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IV
A tomada das bocas
Não há como evitar as consequências existenciais do assassinato,
mesmo que a justificativa seja nobre, como legítima defesa, por
exemplo; na verdade, não há como evitar as consequências
existenciais de nenhuma escolha que fazemos, muito menos do
assassinato. Seja qual for o motivo, a justificativa ou o pretexto para
matar alguém, o assassino sempre carregará o peso existencial do ato.
E não estou falando das consequências judiciais que enfrentará ou do
estigma social que vai carregar; estou falando das consequências
trágicas inevitáveis para a consciência do homicida. Dostoievski teve
de gastar mais de seiscentas páginas para dar conta da consciência de
Raskolnikov, e mais uma centena para analisar a desgraça causada aos
envolvidos...
Mano, digo isso porque todas as escolhas humanas, por menores que
sejam, afetam o equilíbrio natural da existência, criam a realidade que
habitamos e contam a história que estamos escrevendo, afetando tudo
que nos rodeia; e não é apenas a física quântica, os xamãs e as
ciências de vanguarda que argumentam isso, mas qualquer um que
ainda não tenha sido adestrado pelas ideologias dominantes ou
enganado pela própria conveniência, consegue enxergar o que digo;
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mas certas escolhas que fazemos tem o poder de criar um estrago
nessa dimensão e de repercutir em muitas outras dimensões, criando
ondas energéticas que afetam muito além do que os olhos podem ver;
e matar um ser humano é uma dessas escolhas que fazem estragos. “A
voz do sangue do teu irmão clama a mim desde a terra... E agora
maldito és tu desde a terra, que abriu a sua boca para receber da tua
mão o sangue do teu irmão”... Isso é bíblico, e foi Éder quem leu pra
mim, como a profecia do meu tormento, e desde então essa foi a
sentença que passou a ecoar de maneira ensurdecedora em minha
consciência e a afetar todas as minhas escolhas; sei que não apenas eu,
mas todos os outros soldados do Movimento passaram a ser
atormentados por causa do sangue em suas mãos. Não há como fugir
das consequências de nossas escolhas e é por isso que somos escravos
de nossa liberdade... somos as escolhas que fazemos.
Se você, caro leitor, reconhece que possui uma consciência ou alma
ou espírito ou como queira chamar, que é algo além de apenas um
nome ou um corpo ou um cérebro... se você já assistiu a alguns
documentários sobre física quântica ou se no silêncio você sente a
eternidade vibrar em ondas por todo o corpo, de algum modo você
sabe que é uma consciência que habita essa realidade, e que com essa
consciência faz escolhas. Então é necessário que reconheça que você,
ou sua consciência, é o produto de suas escolhas. Se você já se
percebeu como um ser consciente, que pode fazer escolhas livres em
qualquer direção, que pode até mesmo extinguir a própria vida, você
se tornou responsável por suas escolhas e pelo personagem que
escolheu interpretar.
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Existir, concentrado leitor, implica numa responsabilidade absoluta!
Implica no fato de que teremos de nos responsabilizar por cada
escolha que fizermos. Numa época como a nossa, em que fugimos
desesperadamente da responsabilidade de ser e existir, essa reflexão
soa como uma profecia maldita... mas é com esse decreto existencial
irrevogável que o sol nos desperta todas as manhãs. Como lembrou o
mano Sartre, só não somos livres para deixarmos de ser livres.
Nós do Movimento escolhemos matar pessoas para alcançar o poder
político. Nós nos preparamos para a dor, para a perda e para a traição
e por isso nos tornamos mais fortes. Buscar o poder implica em certas
transformações existenciais, mas isso não é novidade na história
humana, acontece desde que o ser humano surgiu sobre a face da terra
e pelos motivos mais banais e mais odiosos; no nosso caso, a
justificativa era nobre: fazer justiça ao injustiçado povo brasileiro!
Mas durante toda a nossa ‘aventura’ de tomada do poder, eu me
perguntava se o que fazíamos era motivado por justiça ou por
vingança; quando vejo aqueles pais desesperados na televisão após o
assassinato de seus filhos, clamando por justiça, sempre me pergunto
se o que eles querem é justiça ou vingança; e acredito que alguns
deles, se a lei permitisse, fariam a mesma maldade com o próprio
assassino e chamariam tal ato de JUSTIÇA, em maiúsculo.
Nós gostávamos de acreditar que nossos planos eram motivados por
um forte senso de justiça e isso era muito enfatizado por Dom em seu
diálogo com os outros membros do Movimento, mas depois que li
Memórias do subsolo, aquela porra daquele livro amaldiçoado, minha
consciência nunca mais me deixou em paz e esse argumento da
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‘justiça’ não conseguia mais me convencer. “Dostoievski, seu filho-
da-puta”, eu pensava angustiado enquanto refletia sobre as palavras do
homem do subsolo; eu queria parar de refletir sobre aquilo tudo e
aquela voz amarga não se calava em minha mente; eu queria apenas
não ter chegado àquelas questões... mas quando se ultrapassa certas
linhas de compreensão, não há mais como voltar atrás e aquilo me
angustiava demais; a justificativa que me fez chegar até aquele lugar e
aquele momento, já não alimentava meu espírito, mas eu não poderia
abandonar o Movimento no momento em que nos aproximávamos de
nosso objetivo... eu não conseguia conceber a ideia de abandonar o
Movimento e desperdiçar todo o trabalho e as energias que tínhamos
investido em nosso empreendimento, eu não tive coragem de
sacrificar aquilo em que eu já não acreditava... algo precisava ser
sacrificado, porque a escolha é sempre um ritual de sacrifício de algo!
Se eu escolhesse ouvir minha consciência, teria de sacrificar minha
participação no Movimento e abandonar tudo; se eu escolhesse
permanecer no Movimento, mesmo não acreditando mais em minhas
motivações, teria de sacrificar minha consciência... então foi aí que
sacrifiquei minha consciência e decidi me entorpecer, obviamente que
não com drogas, porque substâncias químicas não tem o poder de
entorpecer a consciência. Entorpeci-me com coisa muito pior: com a
total e completa satisfação de meus desejos.
Meus desejos se tornaram minha bússola existencial e aos poucos
entorpeceram minhas percepções de modo leve e gostoso. Pertencer
àquele contexto satisfazia quase todos os meus desejos: eu tinha
dinheiro, tinha poder, tinha criatividade a ser explorada, tinha
objetivos, metas, etc., e isso me bastava.
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E foi assim que minha participação no Movimento se tornou intensa.
Um homem sem consciência pode realizar feitos inimagináveis,
alcançar objetivos inalcançáveis, pois nada o pode frear, nem as regras
sociais, nem os princípios morais, nem o peso na consciência, pois já
não a possui. Uma consciência perspicaz e afiada é um infortúnio sem
igual, que lateja e faz doer até a cabeça; quem me dera eu tivesse a
consciência dos homens comuns, a consciência daqueles que, por
viverem submersos em sua rotina diária de sobrevivência e por
sentirem-se confortavelmente amparados por seus preconceitos e
ilusões, não se aprofundam em reflexões e questionamentos mais
essenciais.
Infelizmente não fui coroado com tal consciência débil, e pra evitar o
infortúnio de uma consciência perspicaz por muito tempo, me tornei
um homem sem consciência e o objetivo de minhas ações passou a ser
a satisfação de meus desejos, minhas vontades e meus impulsos, quase
sem restrições, até porque quando se tem o poder nas mãos, é difícil
não utilizá-lo em benefício próprio, é difícil se controlar ao invés de se
entregar descontroladamente aos desejos mais impulsivos e
caprichosos; eu senti o doce sabor do poder e era como se meu
espírito gozasse intensa e constantemente, minha autoconfiança
aumentou vertiginosamente e eu chegava a ter sensações prazerosas,
como arrepios e calafrios.
Comecei a usar o poder que tinha alcançado, cansei da minha vida
anterior de humildade e intelectualidade, como um São Francisco de
Assis das ciências humanas, e agora eu queria poder, eu queria
desfrutar de todos os benefícios que aquele poder podia me dar, sem
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qualquer restrição, até porque eu sou um cidadão da pós-modernidade,
um sujeito sem ideologia, um filho da banalidade, um habitante da
hiper-realidade; apenas me entreguei ao espírito de minha época.
Permiti que meus desejos me controlassem e assim desci aos lugares
mais sombrios da minha alma. Já imaginou o que é descer aos lugares
mais sombrios da alma e lá permanecer? Já imaginou o que é
relativizar o mundo todo ao seu redor apenas pra justificar suas
escolhas e aprovar seus caprichos? Já imaginou o que é cegar os olhos
da alma para não enxergar as próprias debilidades?
Sei que você, caro leitor, não apenas imaginou, como provavelmente
deve estar incorrendo nos mesmos erros... e não profiro isso como
julgamento, é apenas a constatação de que a natureza humana, em
toda a sua hediondez, está sendo carinhosamente cultivada em nosso
interior. Somos os mestres do autoengano!
E foi assim que minha participação no Movimento se tornou intensa e
a tomada das bocas foi o rito de passagem; se um verdadeiro rito de
passagem deve ser marcado com sangue, o nosso foi especialmente
sangrento.
Fumávamos excessivamente em nosso Centro de Inteligência
enquanto discutíamos sobre como montar nosso exército pra invadir
as bocas de fumo, e emergindo daquela fumaça densa Marcinho teve
uma ideia que nem mesmo ele levou a sério, mas acabou expondo a
todos: “Vamos montar um exército com as crianças de rua! Ninguém
se importa com elas, são necessitadas de tudo, de amor, de atenção, de
cama para dormir e teto pra se abrigar; é só darmos abrigo, comida,
atenção e treinamento e faremos um exército de elite, com soldados
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motivados e dispostos a dar a vida por nós. Já imaginou um exército
de esfarrapados tomando o poder?”.
“É exatamente o que faremos!”, falou Dom, “Essa engenharia social
ainda está se formando na minha cabeça, mas é com eles que faremos
nossa ‘revolução dos excluídos’! O povo, desde o mais fundo poço
que um ser humano pode chegar, se revolta contra seus opressores e
os esmaga sem dó; os moradores de rua, os comedores de lixo, os
invisíveis sem identidade agora gritam em alto e bom som e se fazem
ouvir!”, e Dom estava radiante com a ideia e transmitia essa
empolgação em suas palavras, “Os moradores de rua são a própria
essência de nossa revolução, pois se os brasileiros são injustiçados por
seus governantes, os mais injustiçados de todos são os moradores de
rua; eles são cuspidos por todos e não tem nada a perder e ainda são
sagazes porque tem que sobreviver nas ruas, à mercê da maldade de
todos. Nós vamos tirá-los das ruas, resgatar sua dignidade e dar um
significado a suas vidas, além de um objetivo a alcançarem, e aí não
haverá como frear a força desses revoltados! O Movimento será a mãe
desses desgraçados e eles darão a vida pela revolução!”.
Marcinho, sem acreditar muito na empolgação de Dom, já desferiu a
primeira crítica: “Seria genial se os mendigos não fossem tão idiotas e
retardados”, e deu uma risada debochada de quem só tinha dado uma
ideia idiota qualquer e algum otário, no caso Dom, teria acreditado em
algo desse tipo, e continuou o que dizia, “esses mendigos-micróbio
retardados só querem encher a cara de cachaça o dia todo! Se você
mandá-los escolherem entre um fuzil e uma garrafa de vodca, pode ter
certeza que escolherão a vodca! Hahaha. Você quer montar um
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exército de bêbados?” e Dom respondeu, “nem todos os moradores de
rua são mendigos ou bêbados, e aqueles que não são basta educá-los e
teremos o maior exército de indignados da história! Eles lutarão por
qualquer causa ou ideologia, porque o sistema criou monstros que não
tem nada a perder e que lutam sozinhos pra sobreviver, e nós só
vamos juntar esses abandonados e dar um motivo pra lutarem!”.
Éder, que tinha apenas escutado a discussão, balançou a cabeça em
sinal de reprovação, pensou alguns segundos e disse, “Porra Dom,
Marcinho tem razão, esses desgraçados já se entregaram totalmente e
não tem força de vontade pra nada, nem pra sair do lixo; minha tia faz
esses trabalhos solidários na igreja dela, leva comida pra esses caras
na rua, conversa com eles, mas esses desgraçados não tem motivação
pra nada, só pra vadiar, já perderam toda a capacidade de mudança...
como é que alguém que perdeu as forças pra mudar a própria vida,
pode mudar o Brasil?”; e a ideia que Dom tanto gostara já estava
desacreditada e superada na cabeça de alguns que participavam da
reunião, mas Dom não abandonou aquela que lhe parecia a melhor
ideia desde a organização do Movimento e continuou argumentando,
“O que é necessário para satisfazer um homem? Será que o alimento
que satisfaz seu estômago tem a capacidade de alimentar seu espírito?
As igrejas, os centros de espiritismo e as muitas instituições
filantrópicas, por mais bem intencionadas que estejam, não sabem que
encher a barriga desses fodidos é apenas uma pequena parte do
processo de transformação dos desgraçados em homens, e nem é a
mais importante. É necessária uma motivação mais profunda, um
combustível existencial mais viscoso que alimente o espírito dessas
pessoas ou elas vão continuar nas ruas abraçadas à vida miserável que
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escolheram...”, e Marcinho perguntou no mesmo instante já
desacreditando da resposta “e que motivação seria essa?”, e Dom
respondeu prontamente “Poder! Poucas coisas motivam mais um ser
humano do que a possibilidade de exercer poder sobre outros
humanos, impor-lhes a sua vontade; nem dinheiro motiva tanto quanto
o poder!”.
Estavam todos olhando para Dom tentando assimilar o discurso e a
proposta de oferecer poder aos miseráveis; Éder acendeu um baseado
e soltou a fumaça que se agigantou como um cogumelo atômico
naquele ambiente meio escuro do nosso QG, e tive a impressão de
termos entrado num sonho lento e teatral, de uma teatralidade
psicodélica muito louca e muito sombria e eu me sentia o espectador
privilegiado daquele instante e me sentia estranhamente mergulhado
numa dimensão intermediária, entre o tempo e a eternidade,
percebendo traços de ambas as realidades.
Os momentos que se seguiram foram vislumbres de eternidade! Tudo
me pareceu claro, meus olhos se abriram, mas nada me pareceu belo
nem confortante porque me senti angustiado e sozinho, mergulhado
numa existência vazia e senti que a minha conexão com os outros
humanos era tão frágil, que se romperia com qualquer movimento;
senti que talvez a conexão entre todos os humanos fosse tão frágil e
tão fugaz, que a própria noção de ‘relação’ fosse uma ilusão muito
ingênua.
Eu olhava pra todas aquelas pessoas na reunião e elas me pareciam
personagens caricatas de si mesmas... e pensei que se não usássemos
máscaras, não suportaríamos olhar nos olhos uns dos outros;
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precisamos sempre ocultar o verdadeiro teor de nossos pensamentos
para não fazermos guerra o tempo todo... aquelas pessoas eram
avatares flutuantes, hologramas conscientes projetados nessa
dimensão infinita, e aquela sala de reunião me pareceu uma pequena
dimensão, quadrada como uma caixa de concreto e perdida na
imensidão da existência entre outras bilhões e bilhões de dimensões, e
tudo me parecia como se eu tivesse ingerido alguma erva xamânica.
Todas as importâncias foram anuladas, os significados humanos foram
suspensos e tudo o que antes me parecia grandioso e admirável, se
tornou desprezível; não houve revelação ou compreensão daquilo
tudo, apenas a sensação de estar penetrando clandestinamente e como
bandido sórdido nos bastidores da existência; e o que ali me
aguardava não eram anjos com Boas Novas, mas trevas existenciais
densas, uma escuridão quase palpável. Aqueles instantes foram
intensos e angustiantes e essa clarividência sombria me ocorreu
justamente enquanto discutíamos o nosso apocalipse.
Dom se levantou da cadeira, desligou o som que tocava Skrillex
incansavelmente, olhou pra todos como um Martin Luther King e
perguntou “vocês estão aqui em busca de quê? O que os motiva a
permanecer no Movimento? Vocês querem mudar o mundo ou apenas
mudar suas vidas?”, e essas perguntas tornavam minha angústia ainda
mais profunda, pareciam assombrar minha consciência; “Vocês
querem poder!”, continuou Dom com ênfase e uma energia
apocalíptica na voz, “de um modo ou de outro, o que todos nós
buscamos é sempre o poder, a vontade de submeter toda a realidade
ante nosso inquestionável poder. Ninguém quer mudar o mundo, mas
apenas mudar a própria sorte, e assim a história humana foi escrita,
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assim os humanos pintaram a Terra com sangue! Assim inventamos o
dinheiro e as hierarquias, as estátuas e as obras grandiosas da
engenharia”, e Dom fez uma pausa e olhou nos olhos de todos nós
para arrancar-nos o espírito e levá-lo cativo, ou pelo menos era como
eu me sentia naquela circunstância; “os prédios gigantescos que
construímos, os carros luxuosos que fabricamos, os belíssimos rituais
que praticamos são apenas símbolos de nossa sede de poder! É isso o
que todos queremos! Imaginem esses fodidos, que sempre foram
vítimas do poder dos outros, tendo a oportunidade de fazer justiça com
as próprias mãos e fazer o mundo pagar por sua desgraça! Eu lhes
garanto que eles não perderão essa chance por nada e nosso exército
lutará até o último soldado! E tem mais: recrutaremos aqueles
moleques presos nas casas de detenção pra menores infratores e
formaremos o maior exército de desprezados já visto na história!
Imaginem todos esses adolescentes maltratados pelos pais, torturados
pela polícia, marginalizados pela sociedade e abandonados pela
justiça... Vamos educá-los e teremos um exército de loucos, um
exército de pessoas que não tem nada a perder e que avança sem medo
para a conquista ou para a morte, tanto faz. Serão como formigas
devoradoras, escondidas nas brechas… Pra acabar com a gente, só
jogando bomba atômica nas favelas… Aliás, a gente acaba arranjando
uma bomba também, daquelas bombas sujas mesmo. Já pensou?
Ipanema radioativa? A burguesada toda apavorada! Se nós
oferecermos uma causa para eles lutarem, eles lutarão e serão nossa
linha de frente!”.
“Mas não seria melhor contratar um exército mercenário ao invés de
tentar controlar um exército de loucos?”, perguntei em voz baixa
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movido por meu desespero particular, “os mercenários viriam,
tomariam as bocas e depois nos auxiliariam no golpe de Estado.
Depois de terminarem o serviço sujo, iriam embora...”, e
impressionado com as sensações avassaladoras que estava sentindo,
eu tentava encontrar uma solução menos comprometedora para minha
consciência; mas minha pergunta pareceu dar uma força ainda maior à
argumentação de Dom, que aproveitou para tocar os corações de
todos, “A revolução brasileira precisa ser feita pelos brasileiros e não
por mercenários estrangeiros, e essa revolução será feita pelos filhos
rejeitados da ‘pátria-mãe-gentil’! Não há nada que pague a satisfação
de ver os rejeitados tomarem o poder! Todos concordam?”, perguntou
Dom aos presentes, e todos permaneceram em silêncio, esperando a
conclusão de Dom.
“Marcinho, vamos enviá-lo à Guatemala para ser militarmente
treinado pelos Kaibiles. Você verá que bastam apenas oito semanas
para transformar um idiota num soldado de elite. Você será nossa
cobaia! Você é o líder dos Caveiras, então você será a cobaia.”.
Depois que enviássemos Marcinho à Guatemala para ser militarmente
adestrado por mercenários guatemaltecos, ele voltaria transformado
num verdadeiro guerreiro a serviço de qualquer interesse que lhe fosse
vantajoso. Naquele momento, a escolha mais vantajosa era o
Movimento. Dom tinha lido em Zero Zero Zero, do Saviano, que os
soldados mais cruéis do mundo eram os Kaibiles e que eram
adestrados na Guatemala; “Oito semanas e tudo o que existe de
humano no ser humano desaparece”, me disse Dom secretamente,
antes de enviá-lo à Guatemala. “Os Kaibiles descobriram uma maneira
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de anular a consciência... em oito semanas eles pegam um Papa
Francisco e o transformam num assassino capaz de matar um cachorro
a dentadas, sobreviver bebendo mijo e matar dezenas de seres
humanos sem se angustiar de remorso. Bastam oito semanas para
aprender a combater em qualquer tipo de terreno e em qualquer
condição atmosférica. Somaremos ao ódio de Marcinho, um
treinamento de elite e assim teremos nosso exército de desgraçados
pronto para atacar”.
Dom continuou, “Imaginem os oprimidos se vingando de seus
opressores! Karl Marx e todos os outros revolucionários da história se
remexerão de orgulho no túmulo, hahaha! Imaginem a favela
invadindo o asfalto!”, e minha mente flutuante vagava pelas sugestões
que Dom fazia penetrar nossas mentes, e eu via ódio nos olhos dos
revoltosos, eu via coquetéis molotov serem lançados contra carros de
luxo, joalherias sendo saqueadas e destruídas, pessoas correndo nas
ruas, policiais sendo perseguidos pela multidão... a fumaça preta de
borracha queimada já começava a arder em minhas narinas e o
desespero das grávidas berrava em minha consciência... o caos!! As
luzes da cidade em guerra ofuscavam meus olhos e as imagens eram
tão intensas que começavam a me causar náuseas, um mal-estar que
lutei para controlar, mas o discurso de Dom vinha como uma
enxurrada brutal em minhas percepções, “Vamos explodir os bancos e
mandar seus juros abusivos pra casa do caralho! Vamos pixar a cidade
e obrigar todas as pessoas a conhecerem nossas ideias estampadas nos
muros; fodam-se as redes de televisão, não precisamos delas pra
comunicar nossa revolta, porque a revolução será feita nas ruas e pela
internet! Marighella tomou a sede da rádio nacional e espalhou suas
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ideias, nós tomaremos as redes sociais com nossos vídeos e nossas
ideias! Nosso comboio revolucionário será o bonde mais sinistro que
já se viu, o bonde dos injustiçados, que veio fazer justiça com as
próprias mãos. E mais: vamos treinar um exército de cães, um exército
de pitbulls pra apavorar qualquer um que seja contra a revolução...
conseguem imaginar?”.
O discurso de Dom convenceu e empolgou a quase todos na reunião,
mas em minhas percepções alteradas pela clarividência que me
tomava, aquele discurso parecia o anúncio do apocalipse; enquanto ele
falava sobre o exército brutal que pretendia montar, minha mente era
invadida por imagens quase proféticas sobre como toda aquela
violência aconteceria. A ideia de Dom era criar um exército de
matadores raivosos e inconscientes, com estratégias de luta sangrenta
e cruel, como muitos grupos rebeldes fazem ao redor do mundo e
principalmente na África, onde crianças são treinadas para se tornarem
soldados cruéis e sem alma; e com as proporções geográficas do
território brasileiro aquilo se tornaria um verdadeiro apocalipse local.
Meus pesadelos aumentaram.
Mais do que imaginar, eu estava vivendo intensamente aquele
apocalipse e meu rosto deve ter revelado meu terror interno, porque
Maria me olhou e perguntou, “Zumbi, você está bem? Que cara de
terror é essa?”, e todos me olharam, e Marcinho começou a rir de
deboche e emendou, “Esse cara não vai conseguir nem apertar o
gatilho, ha ha ha! Olha essa cara de medo, essa cara de frouxo!”;
Marcinho jamais entenderia os lugares pelos quais minha consciência
viajava e a clarividência que me atingira; pra ele tudo era simples
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demais e ordinário demais; suas reflexões eram rasas demais, ele
acreditava no chão em que pisava e naquilo em que suas mãos
tocavam, o resto não existia.
Dom se aproximou de mim, abaixou pra olhar na altura dos meus
olhos e me disse com muita calma, com aquela calma que só possuem
aqueles que sabem o que estão falando, “os tempos de reflexão e
consciência se foram! Agora é o momento de escrever a história com
nosso próprio sangue e o sangue de todos os desgraçados que
estupram nossa nação!”.
Os olhos de Dom não eram mais os mesmos, ele ainda olhava com
profundidade, mas agora era de uma profundidade visceral e
desencantada, agressiva, cortante; seu rosto também parecia mais duro
e os pelos de sua barba me pareceram de arame farpado; tinha mais
tatuagens e olheiras, e ele me parecia tão estranho e diferente, como se
eu não o visse há dois anos; ele já se preparava pra essa transformação
existencial desde que teve a ideia de fazer a revolução, ele já sabia que
teria que abandonar a consciência para fazer a revolução, pois não há
causa ou ideologia que justifique o assassinato.
Nós já havíamos discutido isso algumas vezes nos jardins da FFLCH e
Dom defendia que a vida humana está acima de qualquer formulação
ou resolução intelectual, seja de cunho político, econômico, religioso e
nenhuma filosofia ou ideologia pode justificar o assassinato, a
extinção da vida. Dom acreditava nisso, e por isso escolheu abandonar
a consciência como se abandona um navio. Seu olhar também
transmitia essa escolha maldita.
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Eu, em minha estúpida ingenuidade, ainda não tinha me dado conta de
que, ou nossas escolhas são radicais e nos jogam na frenética
intensidade da vida, ou boiaremos sempre na superfície das meias-
escolhas, viveremos sempre na mornidão de uma vida sem gravidade
e sem peso. Eu sempre fui da classe média e quem é da classe média
geralmente não precisa fazer escolhas radicais: temos segurança
financeira, temos plano de saúde, temos entretenimento e temos
consumo; estudamos, arrumamos emprego, entramos no mercado e
nos tornamos competitivos; estamos seguros e satisfeitos dentro de
nossas celas, fazendo girar o motor do sistema que nos aprisiona e nos
protege do chão frio e úmido da realidade; nossa consciência quase
não é exigida e permanece semiadormecida por décadas. Mas agora
estávamos fazendo a revolução, e a consciência desperta exigia de nós
uma escolha radical; Dom e os demais já haviam feito suas escolhas, e
apenas eu havia protelado esse momento crucial e agora estava
apavorado, como diante de um abismo.
Dom levantou-se novamente e continuou, “Quantos concordam com
meu exército de excluídos e rejeitados?”, e todos se manifestaram a
favor, inclusive eu, que olhava para o chão sem a menor convicção e
suando de desespero; eu não conseguiria ficar naquela reunião nem
mais um instante, acreditava que seria tomado por uma crise de pânico
e que nunca mais voltaria ao normal, então saí da sala e desci as
escadas sem olhar pra ninguém; desci as escadas como um
mergulhador sem ar busca desesperadamente a superfície, e quando
atravessei a porta e saí para a rua, vomitei nos pés de dois moleques
que brincavam ali e que logo correram com nojo e riram da minha
cara.
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Eu encostei o rosto no muro de nosso QG e vomitei até ficar sem ar
nos pulmões, eu estava passando muito mal e sentia uma angústia que
me fez chorar dolorosamente assim que consegui respirar novamente.
Maria saiu pela porta e me olhou encostado no muro, a calçada toda
vomitada e minha cara que se desfazia em lágrimas; eu dei as costas
pra ela e saí andando cambaleante e sem forças e ela começou a me
chamar num tom inquisitivo, “Zumbi, o que está acontecendo? Zumbi,
me espera!”, e eu não sabia o que ela estava querendo ou como eu
reagiria, então continuei me esforçando para andar sem cambalear
tanto, mas ela logo me alcançou e me amparou com medo que eu
caísse, e continuou me questionando, agora num tom mais amistoso,
“Zumbi, o que está acontecendo? Por que você está desse jeito?”, eu
continuei chorando e caminhando pendurado em Maria até o beco
mais próximo.
Quando vi o beco escuro e vazio, puxei Maria para dentro do beco,
segurei seu rosto com as duas mãos, meus olhos vermelhos e
encharcados de lágrimas, olhei-a nos olhos e perguntei, “Maria, onde
está sua consciência? Como faço pra minha consciência desaparecer
completamente? Por favor, me liberte dessa agonia!”, e Maria me
olhava assustada tentando compreender exatamente o que eu estava
querendo dizer, “Maria, isso tudo é uma corrida de ratos, uns
devorando os outros, irmãos se alimentando das desgraças uns dos
outros e no final sempre nos autodestruímos... nós derramaremos o
sangue de nossos irmãos, nós pintaremos o solo com sangue de nossos
irmãos e isso não te atormenta? O mistério da iniquidade está entre
nós, o apocalipse se avizinha e isso não te atormenta?”.
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Maria soltou um riso nervoso e sem convicção, como que pra afastar
as profecias malditas que eu acabara de proferir, mas aquele beco em
trevas fazia tudo parecer ainda mais tenebroso e sua risada me pareceu
demoníaca, maldosa; “Zumbi, que apocalipse? Que apocalipse? Nós
vamos mudar a história do Brasil, vamos dar voz ao povo! Se isso é
um apocalipse, então eu vou ajudar a realizá-lo, não importa o preço a
pagar!”.
Todos estavam envolvidos demais com a revolução e suas
consciências não lhes permitiam sequer formular as questões que eu
então formulava, e eu, existencialmente sozinho e em desespero, caí
de joelhos, abracei as pernas de Maria e soltei o resto do choro que
ainda havia. Fiquei assim por um minuto, com os olhos rigidamente
fechados e desejando que aquela angústia me abandonasse, pensando
que eu aceitaria qualquer oferta em troca da minha consciência;
“qualquer oferta me livraria daquela angústia”, eu pensava
angustiadamente, e lentamente minha angústia foi sumindo. Aos
poucos, uma sensação de contentamento foi me tomando e logo já era
um bem-estar, como se uma droga espiritual tivesse sido injetada em
mim; soltei as pernas de Maria e sentei sobre meus calcanhares;
enxuguei as lágrimas e respirei fundo enquanto Maria me olhava com
atenção, perscrutando meus movimentos e tentando capturar meus
pensamentos.
Fiquei de pé vagarosamente e olhei para Maria; eu me sentia
indiferente, blasé, sem compromisso com o ‘fio da realidade’; “Vou
dar uma volta e amanhã nos falamos... amanhã é um novo dia”, disse
eu e saí andando em direção ao carro que usávamos no Movimento;
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não olhei para trás e não vi a cara que Maria fez quando me afastei;
entrei no carro, tirei do bolso uma cópia da chave, liguei o carro e fui
dar uma volta na orla da Praia da Costa para experimentar essa nova
sensação que tomava meu ser. Eu me sentia leve e livre de qualquer
amarra moral ou social; todas as possibilidades estavam disponíveis
diante de mim e eu até me sentia poderoso. Agora tudo parecia
possível!
As noites de Vila Velha são extremamente agradáveis e essa noite
estava especialmente agradável, com uma brisa fresca que entrava
pelas janelas abertas do carro; acendi um cigarro e fui sentindo o
vento na cara refrescando meus neurônios depois de tanta opressão e
sofrimento mental; eu puxava a fumaça e com ela soltava os últimos
resquícios do tormento que minha já ausente consciência me causava,
eu passava a mão na minha cabeça raspada e deixava meus olhos
vagarem perdidos entre as luzes ofuscantes da orla e senti meu ser se
pulverizar com a força da brisa e se misturar com todas as outras
partículas da existência; eu era todas as coisas e senti meu ser se
espalhar por todos os cantos do universo e se perder completamente.
A única coisa que ainda me conectava a essa dimensão a que
chamamos de realidade, era a vaga sensação de ainda estar dirigindo
aquele carro pela orla, e bastou apenas isso para que meu ser se
recompusesse, vindo de todas as partes do universo.
Minha mente flutuava leve e não sentia o peso esmagador da
responsabilidade de ser e existir; quaisquer que fossem minhas
escolhas, eu sentia que não me responsabilizaria por elas e pensar
nisso me dava uma leveza ainda maior, cada vez maior e eu queria
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navegar infinitamente por essa sensação. “Se estou condenado a ser
livre”, pensava eu, “então quero ser livre para não me responsabilizar
pelo que faço!”, e esse sentimento juvenil de leveza me invadiu
completamente. Eu me sentia feliz e posso até dizer que me sentia
pleno. Finalmente encontrei o paraíso mental em que se refugiam os
poderosos!
Parei o carro na curva da sereia, atravessei o calçadão, tirei a camisa e
o tênis e mergulhei só de bermuda nas águas geladas da Praia da
Costa. Meu corpo todo ficou dormente e eu sentia a energia vital do
meu corpo se espalhar por todo o oceano e sentia minha mente se
esvaziar; o ritual de abandono da consciência estava concluído e esse
mergulho me servira como um batismo maldito, mas que me deu
bastante tranquilidade; agora eu estava pronto para as próximas fases
da Revolução.
Saí do mar, depois de alguns minutos boiando em sua calmaria e disse
a mim mesmo em voz alta, “vamos promover o Apocalipse!”. Entrei
no carro e voltei para o nosso Principado.
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