A de Açor
Helen Macdonald
H is for Hawk
Tradução do inglês de Ana Falcão Bastos
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Conteúdos
PARTE I1 :: Paciência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112 :: Perdida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213 :: Pequenos mundos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 294 :: Mr. White . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 455 :: Agarrar com força . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 596 :: A caixa de estrelas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 707 :: Invisibilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 798 :: O interior de Rembrandt . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 919 :: O rito de passagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9910 :: Escuridão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10811 :: Sair de casa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11812 :: Marginais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12813 :: Alice, a cair . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14214 :: O fio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15615 :: O dobrar dos guizos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16816 :: Chuva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17817 :: Calor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183
PARTE II18 :: Voar em liberdade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19219 :: Extinção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20520 :: Escondido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21321 :: Medo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22522 :: O Dia das Maçãs . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23623 :: Cerimónia memorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24724 :: Fármacos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25525 :: Lugares mágicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26726 :: O voo do tempo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27927 :: O Novo Mundo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28728 :: Histórias de inverno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29829 :: A primavera faz a sua entrada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31130 :: A terra move-se. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 319Posfácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 324Notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 328Pequeno glossário de falcoaria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 338Agradecimentos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 339
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PARTE I
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Paciência
Quarenta e cinco minutos a nordeste de Cambridge há uma
paisagem que comecei a adorar. As terras alagadiças dão lugar a
areia ressequida. É uma zona de pinheiros contorcidos, carros
incendiados, sinais rodoviários cheiso de buracos de balas e bases
da Força Aérea dos Estados Unidos. E tem fantasmas: casas que
se desmoronam no interior de blocos numerados de pinhal. Há
espaços construídos para armas nucleares transportadas por ar
no interior de sepulturas cobertas de erva por trás de vedações
de três metros, salões de tatuagens e campos de golfe da Força
Aérea dos EUA. Na primavera é uma confusão de ruído: tráfego
aéreo constante, armas a gás sobre campos de ervilhas, cotovias-
-arbóreas e motores a jato. Chama -se Brecklands – as terras par-
tidas – e foi aí que fui parar nessa manhã, há sete anos, no início
da primavera, numa viagem que não tinha planeado. Às cinco da
manhã, estava a olhar para um quadrado projetado no teto de
uma luz que vinha da rua, e a ouvir um casal de foliões retar-
datários que conversava no passeio lá fora. Sentia-me esquisita:
exausta, agitada, com a sensação desagradável de me terem tirado
o cérebro e enchido o crânio com qualquer coisa semelhante a
folha de alumínio aquecida no micro-ondas, amarrotada, quei-
mada e a fazer faíscas. Grrr. Tenho de me levantar, pensei, atirando
as mantas para trás. De sair! Enfiei as calças de ganga, botas e uma
camisola, escaldei a boca com café queimado, e só quando o meu
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velho Volkswagen e eu já íamos a meio da A14, descobri para
aonde ia e porquê. Para lá do para-brisas embaciado e de linhas
brancas, via-se a floresta. A floresta partida. Era para lá que me
dirigia. Para ver açores.
Sabia que ia ser difícil. Os açores são difíceis. Alguma vez
viram uma ave de rapina apanhar um passarinho no vosso jar-
dim? Eu nunca vi, mas sei que acontece. Descobri indícios. Nas
lajes do pátio, uma ou outra vez, fragmentos minúsculos: uma
pequena perna de uma ave canora, semelhante a um inseto, com
uma pata bem cerrada onde os tendões a puxaram; ou – ainda
mais horripilante – um bico desconjuntado, a parte de cima ou
de baixo do bico de um pardal-de-telhado, uma pequena conta
cónica cinzento-avermelhada, ligeiramente translúcida, com
alguma penugem do maxilar colada. Mas talvez já vos tenha acon-
tecido olhar pela janela e ver no relvado um grande açor ensan-
guentado a matar um pombo, um melro ou uma pega, e ele vos
tenha parecido a criatura selvagem maior e mais impressionante
que já vos foi dada a ver, como se alguém tivesse empurrado um
leopardo das neves para dentro da vossa cozinha e tivessem dado
com ele a comer o gato. Já aconteceu haver pessoas que se preci-
pitam para mim no supermercado ou na biblioteca a dizer, com
os olhos dilatados, esta manhã vi uma ave de rapina a apanhar um
passarinho no meu jardim! E quando me preparo para abrir a boca
e exclamar um gavião, elas dizem e fui ver no livro das aves. Era um
açor. Mas nunca é; não vale a pena consultar os livros. Uma ave de
rapina parece sempre muito maior do que é na realidade quando
está a lutar com um pombo no nosso jardim, e as ilustrações dos
livros de aves nunca coincidem com a memória que temos do
acontecimento. Cá está o gavião-comum. É cinzento, com barras
pretas e brancas na fronte, olhos amarelos e uma cauda longa. Ao
seu lado pode ver-se o açor. Este também é cinzento, com barras
pretas e brancas na fronte, olhos amarelos e uma cauda longa. E
vocês pensam: hmm... Põem-se a ler a descrição. Gavião-comum:
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PACIÊNCIA
trinta a quarenta centímetros de comprimento. Açor, quarenta e
oito a sessenta e dois centímetros. Cá está. Ele era enorme. Só
podia ser um açor. Parecem idênticos. Os açores são maiores, é
tudo. São só maiores.
Não. Na vida real, os açores são tão parecidos com os gaviões
como os leopardos são parecidos com os gatos domésticos. Sim,
é verdade que são maiores. Mas também mais robustos, sangui-
nários, mortíferos, assustadores e muito, muito mais difíceis de
ver. Habitantes das florestas, e não de jardins, são o graal negro
dos observadores de aves. Podemos passar uma semana numa
floresta repleta de açores sem nunca ver nenhum, somente ves-
tígios da sua presença. Um silêncio súbito, seguido de gritos de
aves aterrorizadas e a sensação de qualquer coisa a mover-se fora
do nosso campo de visão. Talvez encontremos um pombo meio
comido, estendido numa explosão de penas brancas no solo da
floresta. Ou podemos ter sorte: num passeio matinal por entre
a neblina, viramos a cabeça e, por uma fração de segundo, vis-
lumbramos uma ave a afastar-se a grande velocidade, as enormes
garras ligeiramente cerradas, os olhos postos num alvo distante.
Uma fração de segundo que imprime a imagem indelevelmente
no nosso cérebro e nos deixa sedentos de mais. Procurar açores é
como procurar a graça divina: acontece, mas não muitas vezes, e
não sabemos dizer quando nem como. Mas as hipóteses melho-
ram ligeiramente nas manhãs calmas e límpidas do início da pri-
mavera, pois é nessa altura que os açores largam o seu mundo por
baixo das árvores para fazerem a corte uns aos outros lá no alto,
no céu. Era isso que eu tinha esperança de ver.
Bati com a porta enferrujada e parti com os binóculos para
uma floresta cor de estanho areado da geada. Desde a última vez
que lá tinha estado, parcelas do local haviam desaparecido. Encon-
trei quadrados de solo destruído, hectares desfeitos das árvores,
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raízes arrancadas e agulhas secas espalhadas na areia. Clareiras.
Era disso que precisava. Lentamente, o meu cérebro começou
a reajustar-se a espaços que não utilizava havia meses. Durante
muito tempo, tinha vivido na universidade, em bibliotecas e salas
de aula, de cenho franzido a olhar para ecrãs, a corrigir traba-
lhos, a tentar encontrar referências académicas. Era um outro
tipo de perseguição. Ali eu era um animal diferente. Alguma vez
viram um veado a sair do seu esconderijo? Dão um passo, param
e ficam imóveis, com o nariz no ar, a olhar e a farejar. Um frémito
nervoso poderá percorrer-lhes os flancos. E depois, tranquiliza-
dos por se sentirem em segurança, saem do meio dos arbustos
para irem pastar. Naquela manhã, senti-me como o veado. Não
que estivesse a farejar o ar ou parada com medo – mas tal como
ele, estava dominada por modos muito antigos e emocionais de
me deslocar através de uma paisagem, a experimentar formas de
atenção e de comportamento que estavam para além do controlo
consciente. Qualquer coisa dentro de mim comandava os meus
passos sem que eu tivesse grande consciência disso. Talvez fos-
sem milhões de anos de evolução, talvez fosse intuição, mas na
minha busca de açores sinto-me tensa quando caminho ou estou
imóvel ao sol, dou comigo a dirigir-me inconscientemente para
zonas de luz, ou a escapar-me para zonas de sombra estreitas e
frias ao longo dos vastos intervalos entre os renques de pinhei-
ros. Encolho -me se oiço o chamamento de um gaio, ou o grito de
alarme repetido e zangado de um corvo. Estes dois sons podiam
significar Alerta, humano! ou Alerta, açor! E naquela manhã eu
estava a tentar encontrar um ocultando o outro. Essas antigas
intuições fantasmagóricas que há milénios ligam corpo e espírito
tinham-se afirmado, impondo a sua vontade, fazendo-me sentir
incomodada sob a luz intensa do sol, inquieta no lado errado de
uma cumeeira, de certo modo obrigada a caminhar sobre uma
elevação coberta de ervas descoradas para chegar a qualquer coisa
do outro lado que acabaria por se revelar um lago. Aves pequenas
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PACIÊNCIA
erguem-se em nuvens da beira da água: tentilhões-comuns, ten-
tilhões-monteses, um bando de chapins-rabilongos pousados em
ramos de salgueiros como flores de algodoeiro em movimento.
O lago era a cratera de uma bomba, uma de uma fila lançada
por um bombardeiro alemão sobre Lakenheath durante a guerra.
Era uma anomalia aquática, um lago nas dunas, rodeado por tufos
espessos de juncos de areia, a muitos, muitos quilómetros do mar.
Abanei a cabeça. Era estranho. Mas, afinal, isto aqui é mesmo
muito estranho e, ao percorrer a floresta, deparamo-nos com
toda a espécie de coisas de que não estávamos à espera. Grandes
extensões de musgo-das-renas, por exemplo: minúsculas estre-
las, flósculos e indícios de uma antiga flora a crescer numa terra
exaurida. Estaladiça quando a pisamos no verão, aquela matéria
assemelha-se a uma parcela do Ártico caída num sítio errado do
mundo. Por toda a parte, há flancos descarnados e lâminas de
sílex. Nas manhãs húmidas podemos apanhar estilhaços extraí-
dos de núcleos de sílex por artífices do Neolítico, minúsculas las-
cas de pedra que refulgem em finas camadas de água fria. Esta
região foi o centro da manufatura do sílex no Neolítico. E, mais
tarde, tornou-se famosa pela criação de coelhos para aproveita-
mento da carne e da pele. Em tempos, coelheiras gigantescas,
delimitadas por taludes de arbustos espinhosos, estendiam-se
pela paisagem arenosa, dando os nomes a localidades – Wan-
gford Warren, Lakenheath Warren –, mas os coelhos acabaram
por provocar uma catástrofe. O consumo intensivo da erva de
que se alimentavam, juntamente com a dos carneiros, reduziu os
prados a uma fina camada de raízes sobre a areia. Onde o con-
sumo de erva era maior, a areia era soprada em rajadas e deslo-
cava-se pela região. Em 1688, fortes ventos do sudoeste fizeram
o solo destruído subir até ao céu. Uma enorme nuvem amarela
obscureceu o sol. Toneladas de terra deslocaram-se, moveram-se,
caíram. Brandon ficou rodeada de areia; Santon Downham foi
tragada e o seu rio completamente obstruído. Quando os ven-
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tos pararam, quilómetros de dunas estendiam-se entre Brandon
e Barton Mills. A zona tornou-se famosa pela dificuldade atroz
em se viajar nela: dunas macias, escaldantes no verão e infesta-
das de salteadores à noite. A nossa Arabia deserta. John Evelyn
descreveu-as como as «Areias Viajantes» que «deterioraram de
tal modo a região, rolando de um sítio para outro, como as Areias
nos Desertos da Líbia, e que cobriram por completo os domínios
de alguns cavalheiros».
E ali estava eu, nas Areias Viajantes de Evelyn. A maior parte
das dunas está oculta por pinhais – aí plantados na década de
1920 a fim de nos fornecer madeira para futuras guerras – e os
salteadores desapareceram há muito. Mas a região ainda parece
perigosa, meio soterrada, destruída. Adoro-a porque me parece
a mais selvagem de todas as que conheço em Inglaterra. Não é
uma paisagem erma e intacta como a do cume de uma monta-
nha, mas uma desolação selvagem em que as pessoas e terreno
conspiraram a sua peculiaridade. Está impregnada do sentido de
uma história rural alternativa; não apenas os ociosos sonhos de
grandeza de propriedade fundiária, mas uma história de diligên-
cia, florestação, calamidade, comércio e labor. Não me ocorria um
lugar mais perfeito para encontrar açores. Condizem na perfeição
com a estranha paisagem da Breckland, pois a sua história é igual-
mente humana.
É uma história fascinante. Outrora os açores proliferavam
nas Ilhas Britânicas. «Há diversos Tipos e Tamanhos de Açores»,
escreveu Richard Blome, em 1618, «que diferem em Excelência,
força e robustez consoante os diversos Países onde são Criados;
mas nenhum lugar proporciona aves tão boas como as da Moscó-
via, Noruega e o Norte da Irlanda, particularmente no Condado
de Tyrone.» Mas as qualidades dos açores caíram no esqueci-
mento com o início da Delimitação das Terras, que limitou a pos-
sibilidade de as pessoas comuns praticarem a largada de açores,
e com o advento das armas de fogo de precisão que puseram em
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PACIÊNCIA
moda a caça, substituindo-a à falcoaria. Os açores tornaram-se
animais nocivos, e não companheiros de caça. A perseguição que
lhes foi movida pelos couteiros constituiu o golpe de misericórdia
para uma população já a debater-se com falta de habitat. No final
do século XIX, os açores britânicos estavam extintos. Tenho uma
fotografia de uma das últimas aves a ser abatida, embalsamada;
um instantâneo a preto e branco de uma ave de uma propriedade
escocesa, empapada, empalhada e com olhos de vidro. Tinham
desaparecido.
Porém, nas décadas de 1960 e 1970, os falcoeiros deram iní cio
a um projeto discreto, não oficial, para os trazer de volta. O Clube
dos Falcoeiros Britânicos empreendeu para que, pelo preço da
importação de um açor do Continente destinado à falcoaria,
se pudesse trazer uma segunda ave e soltá-la. Comprar uma e
libertar outra. Não era difícil fazer isso com uma ave tão autó-
noma e predadora como o açor. Bastava encontrar uma floresta
e abrir a caixa. Falcoeiros com ideias semelhantes começaram a
fazer isso por toda a Grã -Bretanha. As aves chegavam da Suécia,
Alemanha e Finlândia: na maioria eram de grande porte e de cor
pálida, oriundas das florestas de coníferas. Algumas eram liberta-
das voluntariamente. Outras perdiam-se, simplesmente. Sobrevi-
viam, encontravam-se umas às outras e acasalavam, secretamente
e com êxito. Hoje o número dos seus descendentes ronda os qua-
trocentos e cinquenta casais. A presença destes açores britânicos
esquivos, espetaculares, perfeitamente à vontade, deixa-me feliz.
A sua existência desmente a ideia de que a vida selvagem nunca é
tocada pelos corações e mãos humanos. Pelo contrário, ela pode
ser obra do homem.
Eram oito e meia em ponto. Eu estava de olhos baixos a con-
templar um pequeno rebento de mahonia que brotava da erva,
com as suas folhas vermelho-sangue-de-boi semelhantes a pele
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de porco. Ergui os olhos. E foi então que vi os meus açores. Lá
estavam eles. Um casal, a pairar acima da copa das árvores, na
atmosfera que aquecia rapidamente. Sentia o sol na nuca como
uma mão aberta e quente, mas, ao ver aquelas aves a pairar, senti
nas narinas o odor do gelo, dos caules das samambaias e da
resina de pinheiros. O cocktail dos açores. Continuavam a pairar.
No ar, a sua cor é um cinzento complexo. Não cinzento-ardósia
nem cinzento-pombo, mas uma espécie de tonalidade de nuvem
de chuva. E, apesar da distância a que se encontravam, divisei as
grandes penas infracaudais brancas, semelhantes a uma borla de
pó de arroz, abertas, com a cauda espessa e arredondada atrás,
e a magnífica curva das secundárias de um açor a planar, que
os torna completamente diferentes dos gaviões. Estavam a ser
assediados por corvos e não se importavam, como se dissessem
queremos lá saber. Um corvo aproximou-se do macho a grande
velocidade e este ergueu uma asa para o deixar passar. O corvo
não era estúpido e não se manteve durante muito tempo debaixo
da asa da ave maior. Aqueles açores não se estavam a exibir em
todo o seu esplendor: não havia nenhum daquele paraquedismo
que os livros referiam. Mas estavam a adorar o espaço que os
separava um do outro, no qual gravavam toda a espécie de belís-
simas cordas e distâncias concêntricas. Duas batidas de asas, e
o macho, o terçó, ficava acima da fêmea, depois derivava para
norte em relação a ela, em seguida resvalava para baixo, rápido,
como uma facada, uma suave garatuja caligráfica por baixo dela,
e esta baixava uma asa, e elevavam -se de novo a planar. Estavam
por cima de um pinhal, ali mesmo ao pé. E depois desapare-
ciam. O meu casal de açores descrevia no céu linhas extraídas
de manuais de física para, no minuto a seguir, não haver nada
de nada. Não me lembro de ter baixado os olhos, ou desviado.
Talvez tivesse pestanejado. Talvez fosse tão simples quanto isso.
E nesse minúsculo intervalo de trevas que o cérebro disfarça, eles
tinham mergulhado no arvoredo.
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Sentei-me, fatigada e contente. Os açores tinham partido, o
céu estava vazio. O tempo passou. O comprimento de onda da luz
que me rodeava reduziu-se. O dia foi-se construindo a si mesmo.
Um gavião, leve como um brinquedo em balsa e papel de arroz,
passou a zunir à altura dos joelhos, elevando-se como um papa-
gaio de papel acima de silvas de amoras silvestres e desaparecendo
no arvoredo. Fiquei a vê-lo afastar-se, perdida em reminiscências.
Aquela recordação era resplandecente, irresistível. O ar cheirava
a resina e à mistura de vinagre e pez das formigas carpinteiras.
Senti os meus dedos de menina enfiados numa grade de plástico e
o peso de um par de binóculos da Alemanha de Leste pendurado
ao pescoço. Estava aborrecida. Tinha nove anos. O meu pai estava
ao meu lado. Procurávamos gaviões. Havia ninhos nas proximi-
dades e, naquela tarde de julho, a nossa esperança era avistarmos
o género de espetáculo que por vezes nos proporcionavam: uma
ondulação submarina que varria o topo dos pinheiros quando um
deles chegava e partia, um vislumbre de um olho amarelo, um
peito cerrado contra a agitação das agulhas dos pinheiros, ou uma
breve silhueta preta recortada no céu do Surrey. Durante algum
tempo, foi emocionante perscrutar a escuridão entre as árvores
e o laranja-sangue e negro onde o sol batia, desenhando som-
bras irregulares nos pinheiros. Mas quando temos nove anos, é
difícil esperar. Dei um pontapé na base da cerca com uma das
galochas. Impaciente e irritada. Soltei um suspiro. Desprendi os
dedos da grade. Nessa altura, o meu pai olhou para mim, meio
exasperado, meio divertido, e explicou-me uma coisa. Explicou-
-me o que era a paciência. Disse que era extremamente impor-
tante nunca me esquecer do seguinte: quando queríamos muito
ver uma coisa, por vezes, tínhamos de ficar imóveis, de permane-
cer no mesmo sítio, de nos lembrar do quanto desejávamos vê-la
e de ser pacientes. «Quando estou a trabalhar, a tirar fotografias
para o jornal», disse ele, «por vezes tenho de ficar sentado no
carro durante horas para conseguir a fotografia que quero. Não
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me posso levantar para beber uma chávena de chá nem sequer
para ir à casa de banho. Tenho de ser paciente. Se queres ver aves
de rapina, também tens de ser paciente.» Falou num tom grave e
sério, e não irritado; estava a comunicar uma Verdade de adulto,
mas eu fiz que sim com a cabeça, amuada e a olhar para o chão.
Aquilo parecia-me um sermão, não um conselho, e não percebia
aonde ele queria chegar.
Uma pessoa aprende. Hoje, pensei, já não com nove anos e
sem estar aborrecida, era paciente e as aves de rapina apareciam.
Levantei-me lentamente, com as pernas um pouco entorpecidas
por ter estado imóvel durante tanto tempo, e vi que tinha na mão
uma pequena quantidade de musgo-das-renas, um pedacinho
desse líquen ramificado de um cinzento-esverdeado pálido que
pode sobreviver do quase nada que o mundo lhe fornece. É um
exemplo de paciência. Se o guardarmos no escuro, se o congelar-
mos, se o secarmos até ficar estaladiço, o musgo-das-renas não
morre. Fica em estado latente à espera de que as coisas melhorem.
É um ser impressionante. Sopesei a pequena esfera ramosa. Era
quase como se não a tivesse na mão. E, num impulso súbito, enfiei
no bolso de dentro do colete essa pequena recordação roubada
ao dia em que vi as aves de rapina, e fui para casa. Pu-la numa
prateleira perto do telefone. Três semanas mais tarde, era para o
musgo-das-renas que olhava quando a minha mãe ligou a dizer
que o meu pai tinha morrido.
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Perdida
Preparava-me para sair de casa quando o telefone tocou. Atendi.
Saltitante, com as chaves de casa na mão. «Está?» Uma pausa.
A minha mãe. Bastou uma frase para que eu percebesse: «Recebi
uma chamada do St Thomas’ Hospital». Percebi logo. Percebi
que o meu pai tinha morrido. Percebi que morreu pela frase que
ela disse depois da pausa, com uma voz que eu nunca lhe ouvira.
Morto. Caí no chão. As minhas pernas cederam, quebraram e fiquei
sentada na carpete, com o telefone apertado contra a orelha direita,
a ouvir a minha mãe e a fitar a bolinha de musgo-das-renas na
estante, impossivelmente leve, um emaranhado flutuante de caules
cinzentos e duros com pontas aceradas, poeirentas, e espaços sere-
nos de ar entre eles, enquanto a minha mãe dizia que no hospital
não podiam fazer nada, era o coração, creio, não se podia fazer nada,
não precisas de voltar cá esta noite, não voltes, é longe e é tarde, a
viagem de carro é demorada e não precisas de voltar – é claro que
aquilo eram disparates; nenhuma de nós sabia o que podíamos ou
devíamos fazer ou o que era aquilo tudo, a não ser que estávamos
presas, e também o meu irmão, a um mundo já desaparecido.
Pousei o telefone. Ainda tinha as chaves na mão. Nesse
mundo que já não existia eu ia jantar com Christina, a minha
amiga australiana, filósofa, que esteve o tempo todo ali, sentada
no sofá, desde que o telefone tocou. O seu rosto pálido fitava-me.
Contei-lhe o que tinha acontecido. E insisti para que fossemos ao
restaurante, tínhamos reservado uma mesa, é claro que devíamos
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ir, e fomos mesmo, e pedimos, e a comida chegou e eu não comi.
O empregado de mesa estava preocupado, quis saber se havia
algum problema. Bem.
Julgo que Christina lhe disse. Não me recordo, mas ele fez
uma coisa extraordinária. Desapareceu e voltou a aparecer junto
da mesa, com uma expressão ansiosa e preocupada, e com um
brownie duplo de chocolate com gelado e um raminho de hortelã
espetado no cimo, por conta da casa, polvilhado com cacau em
pó e açúcar de confeiteiro. Num prato preto. Fiquei a olhar para
aquilo. Isto é ridículo, pensei. E depois, o que será? Tirei a hortelã
do gelado, ergui-a, olhei para as duas pequenas folhas e para o
minúsculo caule cortado besuntado de chocolate e pensei isto não
vai voltar a crescer. Sensibilizada e surpreendida por um empre-
gado de mesa ter pensado que um bolo com gelado grátis me iria
reconfortar, olhava para a extremidade cortada da hortelã. Fazia-
-me recordar qualquer coisa. Tentei descobrir o que seria. E então
voltei atrás, a três dias antes, a Hampshire, estávamos no jardim
num fim de semana radioso de março, encolhi-me quando vi que
o meu pai tinha um corte com mau aspeto no braço. Feriste-te,
disse-lhe. Ah, isso, respondeu ele, inserindo outra mola no trampo-
lim que estávamos a construir para a minha sobrinha. Foi no outro
dia. Não me recordo como. Numa coisa qualquer. Mas não tarda está
curado, está a sarar bem. Foi nessa altura que o antigo mundo se
curvou, murmurou despedidas e desapareceu. Saí a correr para a
noite. Tinha de me meter no carro e voltar ao Hampshire. Tinha
de ir logo. Porque o corte não ia. Não ia sarar.
Tomemos uma palavra. Bereavement. Ou Bereaved. Bereft.
Deriva do inglês antigo bereafian que significa «despojar, arreba-
tar, confiscar, roubar». Roubada. Desapossada. Acontece a toda
a gente. Mas uma pessoa sente isso sozinha. Por muito que se
tente, uma perda traumatizante não é para ser partilhada. «Ima-
gina», disse eu na altura a alguns amigos, numa tentativa sincera
de explicar. «Imagina que toda a tua família está numa sala. Sim,
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a família inteira. Todas as pessoas que amas. Então alguém entra
na sala e dá um murro no estômago a cada um. Um por um. Com
toda a força. Caem todos no chão. Certo? Então, o que se passa
é o seguinte – todos sentem o mesmo tipo de dor, é igual para
todos, mas estão tão ocupados a sofrer para sentir outra coisa a
não ser que estão sozinhos no mundo. É assim! Acabei, triunfante,
o meu pequeno discurso, convencida de que tinha encontrado a
maneira perfeita de explicar o que se sentia. Fiquei intrigada com
os rostos condoídos, horrorizados, porque nem me passou pela
cabeça que um exemplo que punha as famílias dos meus amigos
em salas onde lhes batiam pudesse dar ideia de insanidade total.
Mesmo agora, não consigo colocar as coisas na ordem certa.
As recordações são como pesados blocos de gelo. Posso pousá-los
em diferentes sítios, mas eles não formam uma história. Um dia,
íamos de Waterloo para o hospital sob um céu nublado. Respirar
parecia um ato de disciplina. A mãe voltou-se para mim, com o
rosto tenso, e disse: «Há de chegar uma altura em que tudo isto
nos vai parecer um pesadelo.» Os óculos dele, cuidadosamente
dobrados, sobre a mão aberta da minha mãe. O casaco dele. Um
envelope. O relógio. Os sapatos. E quando saímos dali, a agar-
rar um saco de plástico com os pertences do meu pai, as nuvens
ainda lá estavam, um friso de cúmulos imóveis sobre o Tamisa
uniforme como uma pintura mate sobre vidro. Na Ponte de
Waterloo apoiámo-nos na pedra de Portland a olhar para a água
lá em baixo. Nessa altura, creio que sorri pela primeira vez desde
o telefonema. Em parte porque a água corria para o mar e esse
simples fenómeno físico ainda fazia sentido, o que não acontecia
com o resto do mundo. E em parte porque, uma década antes, o
pai tinha inventado um projeto lateral de fim de semana maravi-
lhosamente excêntrico. Decidira fotografar cada uma das pontes
sobre o Tamisa. Às vezes, aos sábados de manhã, eu ia com ele de
carro até às Cotswolds. O meu pai tinha sido o meu pai, mas tam-
bém meu amigo e um cúmplice quando se tratava de empreen-
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dimentos como aquele. Desde a nascente coberta de erva perto
de Cirencester caminhámos e explorámos, seguimos um curso de
águas sinuoso e lamacento, violámos propriedade alheia para tirar
fotografias de pranchas sobre o rio, fomos alvo dos gritos de agri-
cultores, de ameaças do gado, debruçámo-nos sobre mapas numa
concentração profunda. O projeto prolongou-se por um ano. Mas
ele acabou por concretizá-lo. Cada uma das pontes. Algures, nos
arquivos de slides, na casa da minha mãe, existe um registo foto-
gráfico completo das maneiras de atravessar o Tamisa da nascente
até ao mar.
Houve outro dia em que entrámos em pânico por não con-
seguirmos encontrar o carro dele. Tinha-o estacionado perto da
Ponte de Battersea e, claro, não voltara lá. Procurámo-lo durante
horas, cada vez mais desesperados, procedendo a buscas infrutí-
feras em ruas secundárias, em ruas laterais e em becos, alargando
a pesquisa a zonas a quilómetros de distância de qualquer sítio
onde o carro pudesse estar. À medida que o dia ia passando, com-
preendemos que, mesmo que encontrássemos o Peugeot azul do
pai com o passe de imprensa enfiado na pala de sol e as câmaras na
bagageira, a nossa busca teria sido em vão. Claro que o carro tinha
sido rebocado. Encontrei o número, liguei para o parque e disse
ao homem que estava ao telefone que o proprietário do veículo
não podia ir buscá-lo porque tinha morrido. Ele era meu pai. Que
não fora intenção dele deixar ali o carro, mas que tinha morrido.
Que não o deixara lá de propósito. Frases delirantes, vazias, talhadas
em pedra. Não percebi o silêncio embaraçado do homem. Depois
ele respondeu-me «desculpe, oh, meu Deus, lamento muito», mas
podia ter dito fosse o que fosse que isso não teria significado nada.
Tínhamos de levar a certidão de óbito do pai para evitar pagar o
reboque. Isso também não teve qualquer significado.
Depois do funeral regressámos a Cambridge. Eu não dormi.
Andei às voltas no carro. Vi o crepúsculo e a alvorada, e o Sol pelo
meio. Observei os pombos a abrir as caudas e a fazer a corte uns aos
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outros em pavanas majestosas no relvado junto da minha casa. Os
aviões continuavam a aterrar, os carros a circular, as pessoas a fazer
compras, a conversar e a trabalhar. Nenhuma dessas coisas fazia
sentido. Durante semanas senti que era feita de metal a arder em
fogo brando. Era isso que sentia, tanto mais que estava convencida
de que, apesar de todos os indícios em contrário, se me pusessem
numa cama ou numa cadeira, teria ardido por completo.
Foi por essa altura que uma espécie de loucura se insinuou.
Ao olhar para trás, julgo que nunca estive verdadeiramente louca,
mas apenas louca nor-noroeste. Era capaz de distinguir uma ave
de rapina de um serrote, mas por vezes ficava surpreendida por
serem tão parecidos. Sabia que não estava louca porque já tinha
visto pessoas que sofriam de psicoses, e essa loucura era tão óbvia
como o sabor de sangue na boca. O tipo de loucura de que eu
sofria era diferente. Era calma e muito, muito perigosa. Era uma
loucura destinada a permitir-me conservar a sanidade mental.
A minha mente esforçava-se por transpor o fosso, por construir
um mundo novo e habitável. O problema era ela não ter nada
com que trabalhar. Não havia companheiro, nem filhos, nem
lar. Nem sequer um trabalho das nove às cinco. Por isso deitei
a mão ao que pude. Estava desesperada e interpretava o mundo
erradamente. Comecei a reparar em associações curiosas entre as
coisas. Pormenores sem importância adquiriam um significado
extraordinário. Lia o meu horóscopo e acreditava nele. Augúrios.
Acessos intensos de déjà vu. Coincidências. Recordações de coisas
que ainda não tinham acontecido. O tempo já não avançava. Era
uma coisa sólida capaz de me comprimir e que me empurrava; um
fluido denso, meio ar, meio vidro, que corria para ambos os lados
e enviava pequenas vagas de reminiscências para a frente e novos
acontecimentos para trás, de modo que as coisas novas com que
me deparava, na altura, pareciam recordações de um passado dis-
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tante. Às vezes, algumas vezes, quando estava sentada num com-
boio ou num café, sentia o meu pai sentado ao pé de mim. Isso era
reconfortante. Como tudo o resto. Porque aquelas eram as loucu-
ras normais da dor. Aprendi isso nos livros. Comprei livros sobre
a dor, o luto e a perda. Espalhavam-se sobre a minha secretária
em pilhas vacilantes. Como uma boa académica, pensava que os
livros davam respostas. Era tranquilizador saber que toda a gente
vê fantasmas? Que toda a gente deixa de comer? Ou não conse-
gue parar de comer? Ou que o desgosto tem fases que podem ser
numeradas e fixadas como escaravelhos em caixas? Li que depois
da negação vem a dor. Ou a raiva. Ou a culpa. Recordo-me de
me preocupar com a fase em que estava. Queria organizar o pro-
cesso numa taxonomia, ordená-lo, torná-lo lógico. Mas não havia
lógica, e eu não reconhecia nenhuma daquelas emoções.
As semanas passaram. As estações mudaram. As folhas apa-
receram, as manhãs encheram-se de luz, os andorinhões regres-
saram com os seus gritos ao passarem pela minha casa de Cam-
bridge, cortando o céu do início do verão, e comecei a pensar que
estava bem. Aquilo era o que chamam dor normal. Uma subida
de regresso à vida, lenta e sem incidentes, depois da perda. Daqui
a pouco vai passar. Ainda esboço um sorriso quando penso na
leviandade com que acreditava nisso, por estar tão redondamente
enganada. Era percorrida por uma carência invisível. Estava ávida
de material com que me ocupar, de amor, de qualquer coisa que
anulasse o sentido de perda e a minha mente não hesitava em ten-
tar recrutar fosse quem fosse, o que quer que fosse, para dar uma
ajuda. Em junho, apaixonei-me, previsível e devastadoramente,
por um homem que se pôs a milhas ao descobrir o quanto estava
destroçada. O seu desaparecimento deixou-me praticamente
insensível. Embora hoje nem me recorde da cara dele, não perceba
sequer por que motivo fugiu e saiba que em princípio ele podia
ter sido uma pessoa qualquer, ainda guardo um vestido vermelho
que nunca voltarei a usar. As coisas são assim.
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Depois foi o próprio mundo que começou a chorar. Os céus
abriram-se e começou a chover sem parar. Os noticiários estavam
repletos de cheias e de cidades alagadas, de aldeias perdidas no
fundo de lagos, de inundações relâmpago que alagavam a M4 cau-
sando problemas ao trânsito das férias, de caiaques nas ruas de vilas
do Berkshire, da subida do nível da água do mar, da descoberta de
que o Canal da Mancha surgiu devido ao rebentamento de um lago
gigantesco há milhões de anos. E a chuva continuava, cobrindo as
ruas de água borbulhante, partindo toldos de lojas, transformando
o rio Cam numa torrente cor de café com leite, engrossada por
ramos partidos e vegetação rasteira encharcada. A minha cidade
estava apocalítica. «O tempo não me parece nada estranho»,
recordo-me de dizer a uma amiga debaixo do toldo de uma espla-
nada, enquanto a chuva batia no passeio atrás das nossas cadeiras
com tal violência que bebíamos o café no meio de uma neblina fria.
Enquanto a chuva caía, as águas subiam e eu me esforçava por
manter a cabeça à tona, qualquer coisa nova começou. Acordava
de cenho franzido. Voltara a sonhar com aves de rapina. Comecei
a sonhar com elas constantemente. Eis outra palavra: raptor, que
significa «ave de rapina». Derivado do latim raptor, «ladrão», de
rapere, que significa «apoderar-se de». Furtar. Confiscar. As aves
de rapina eram açores, e um em particular. Uns anos atrás, eu tra-
balhara num centro de aves de presa no limite da Inglaterra com
o País de Gales; uma região de terra vermelha, de exploração car-
bonífera, de floresta húmida e de açores selvagens. Aquele, uma
fêmea adulta, embatera numa vedação enquanto caçava e perdera
a consciência. Alguém tinha pegado nela, inconsciente, pusera-
-a numa caixa de cartão e levara-a ao centro. Teria alguma coisa
partida? Estaria ferida? Reunimo-nos numa sala mal iluminada,
pusemos a caixa em cima da mesa, e o chefe introduziu nela a mão
protegida por uma luva. Uma breve agitação, e surgindo na obscu-
ridade, a crista cinzenta erguendo-se e as penas do peito fechado
avolumando-se num merengue de agressão e medo, uma enorme
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fêmea de açor. Era velha, pois os pés eram nodosos e empoeira-
dos, tinha os olhos de um laranja intenso e profundo e era bela.
De uma beleza semelhante a um penhasco de granito ou a uma
nuvem de tempestade. Enchia completamente a sala. Tinha um
dorso maciço de penas cinzentas descoradas pelo sol, era tão mus-
culada como um Pit Bulle, intimidante como o inferno, mesmo
para o pessoal que passava os dias a ocupar-se de águias. Era sel-
vagem, arrepiante e reptiliana. Com todo o cuidado, abrimos-lhe
as grandes asas, ao mesmo tempo que ela esticava e rodava o pes-
coço para nos olhar, sem pestanejar. Passámos-lhe os dedos pelos
ossos estreitos das asas e das espáduas para verificar se não tinha
nada partido, ao longo de ossos leves como tubos, ocos, cada um
suportado por escoras internas de osso como o interior da asa de
um aeroplano. Verificámos-lhes as clavículas, as pernas e os dedos
grossos e escamudos e as garras com mais de dois centímetros de
comprimento. Também não nos pareceu que houvesse problemas
de visão: erguemos um dedo à frente de cada olho ardente, um de
cada vez. Snap, snap, fazia o bico dela. Em seguida, virou a cabeça
para olhar diretamente para mim. Fixou os olhos nos meus, as
pupilas negras imóveis acima do bico negro e curvo. Foi então
que, naquele preciso momento, me ocorreu que aquele açor era
maior e mais importante do que eu. E muito, muito mais velho:
um dinossauro vindo da Floresta de Dean. Havia um nítido odor
pré-histórico libertado pelas penas; prendeu-se ao meu nariz –
apimentado, ferrugento como chuva de tempestade.
Não havia nenhum problema com ela. Levámo-la para o
exterior e soltámo-la. Abriu as asas e num segundo partiu. Desa-
pareceu por cima de uma sebe inclinada. Era como se tivesse
encontrado uma fissura na atmosfera húmida do Gloucestershire
e deslizado através dela. Aquele era o momento que eu não parava
de reproduzir, incessantemente. Era o sonho recorrente. A partir
daí, o açor era inevitável.
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