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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO PIAU
JULIANA DE ANDRADE MARREIROS
A EXPERINCIA DO CORPO DE ASSESSORIA JURDICA ESTUDANTILCORAJEENQUANTO NCLEO DE ASSESSORIA JURDICA POPULAR E A SUA TRAJETRIA
PARA A CONSTRUO DE UM CONTEXTO INDITO VIVEL.
TERESINA
2011
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JULIANA DE ANDRADE MARREIROS
A EXPERINCIA DO CORPO DE ASSESSORIA JURDICA ESTUDANTILCORAJEENQUANTO NCLEO DE ASSESSORIA JURDICA POPULAR E A SUA TRAJETRIA
PARA A CONSTRUO DE UM CONTEXTO INDITO VIVEL.
Trabalho apresentado Disciplina MonografiaJurdica do Curso de Bacharelado em Direito daUniversidade Estadual do Piau.
Aprovada em: _____/ _____/ _____
BANCA EXAMINADORA
Prof. Msc. Marcos Daniel da Silva Rocha (Orientador)UESPI
Prof. Msc. Gillian Santana de Carvalho Mendes (Examinadora) - UESPI
Prof. Msc.
TERESINA
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Aos trabalhadores; encarcerados; favelados, sem-terra e sem-teto; homoafetivos; negros, brancos,amarelos e indgenas; crianas, adolescentes,homens e mulheres pobres de posses, mascertamente ricos de vida, todos vtimas da exclusoe violncia sciocultural deste pas - porquesofredores de suas opresses so tambm donos deminha solidariedade, comunho e do meu maisprofundo desejo de transformao - em especial aos
jovens da Vila So Francisco, Zona Norte deTeresina, que com o brilho de seus olhos pintaramno cu da esperana em meu corao um tom deazul ainda mais vibrante.
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AGRADECIMENTOS
A meus pais, pessoas que abriram mo de tanto para me proporcionar tudo o que no
tiveram. Pai, pelo exemplo, cuidado, proteo e sacrifcio dirio em meu favor. Me, por
onde quer que tu estejas, ests viva na minha carne, na minha memria, na minha histria, no
meu corao. Obrigada por todo amor que me destes e por ser eterno motivo de meu orgulho.
Amo vocs.
Irmo, Osvaldo Jnior, pelo apoio incondicional, por me certificar de que nunca
estarei s e por ser aquele de quem primeiro sinto falta quando tenho que me afastar de casa.Hoje, ontem e sempre. Sim tu s o bom irmo mais velho e eu a chata irm mais nova.
Vitor, porque s o meu dirio, a quem recorro a qualquer tempo. Por mais que parea
impossvel, s aquele que se esfora com toda a alma para me compreender. Sem voc, esta
monografia jamais teria se concebido: no meu desespero, enxugastes minhas lgrimas, na
minha agonia, criastes motivos pra que eu sorrisse. Fostes o meu maior incentivador e quem
nunca duvidou de que eu conseguiria. s parte ainda do que me faz forte!. Obrigada peloamor imenso. Eu amo voc.
Aos amigos que, perto ou longe, me edificaram. Sou maior, a cada dia, porque sou
vocs. Yasmin, Joo Alexandre, Jayanna, Lucivnia, Fabiano, Jackellyne, Mariah, cada um,
com sua amizade; cada um, uma relao diferente; partes de um todo: eu!
Tia Conceio, minha amada segunda-me. a pessoa que eu mais queria perto demim, 24 horas por dia. Mesmo longe, eu posso sentir o tamanho do seu amor. E nada me faz
sentir mais em casa, sossegada e confortvel que aquele afeto todo que ela derrama quando
cuida de mim. Tia Elisete, pela ateno e pela presena sempre marcante em minha vida; por
me querer to bem; por ser eternamente Tet!
Ao professor, mestre, amigo e querido Braz, porque foi quem nesta vida mais me
inspirou a carregar em meus passos a utopia de viver uma sociedade livre, justa e humana. Por
ter sido aquele que pegou em minha mo e disse: possvel!. Por que pela simples
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existncia, todos os dias me faz acreditar. Se hoje concluo o curso de Direito e fiz AJUP,
por grande contribuio sua. Obrigada!
s minhas famlias: Andrade e Marreiros. Por terem trazido a este mundo meus pais e
por ter lhes sido ponto de apoio por toda a vida. Por me receberem sempre de braos e
corao abertos, por me incentivarem e pela proteo. Em especial aos meus padrinhos,
Rosarinha e Luis, pelo carinho de sempre, e madrinha Dos Anjos, dona do nome mais
apropriado.
Aos Jovens Unidos da Vila So Francisco Zona Norte de Teresina, como
representantes daqueles com quem desejo partilhar a luta por um outro amanh assim como asalegrias e a beleza de um mundo novo.
Aos meus colegas de classe, pelas alegrias cotidianas que me proporcionaram. Somos
artesos de um novo direito!
E o meu agradecimento mais especial: ao Corpo de Assessoria Jurdica Estudantil e a
cada brao, perna, peito, cabea, corao, ouvido, alma, etc. que o compunham. Este Corpoque teve/tem rostinhos lindos bem definidos, cujos donos so Andreia Marreiro, Glaucia
Stela, Lucas Vieira, Jorge Andr, Heiza Maria, Ciro Monteiro, Nara Karoline, Monna
Karoline, Juliana Reis, Rafaella Lustosa, Rafael e Smya Vaz. Ainda que seja to difcil
romper com um mundo de coisas postas e remar contra essa poderosa mar que a
estagnao, a conservao do que nos corri e nos destri enquanto homens, monografo em
teu nome, CORAJE, porque fostes ao longo de nossa caminhada o que tantas vezes nos
manteve firme em nossas escolhas; porque cativastes em ns algumas das nossas maioresmotivaes de ser, estar e participar (n)deste mundo.
Concluirei a graduao relembrando o que contigo vivi e de como por ti me
transformei. Esse trabalho a ltima porta que se fecha nesses cinco anos e, certamente, a
maior janela que se abre perante os meus olhos, com vistas pra um lindo horizonte de um
mundo novo, de esperana. Hoje sinto-me mais e armada: tu, CORAJE, colocastes em meu
peito e em minhas mos as possibilidades pra ver reinar a harmonia entre os homens; me
apresentastes uma outra faceta do direito, esse conhecimento que desejei comungar a vida
toda: ele pode sim ser instrumento de transformao. Me munistes disso e de esperanas.
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Obrigada pelos amigos que me destes, pelo conhecimento que me proporcionastes,
pelas pessoas lindas que me apresentastes (Shara Jane; Nayara; Macell; Isabela; menin@s do
coletivo M.E.U.; os companheiros ajupanos, Ribas e Pazzello;, Betinho; Jlia e Rebecca
(SAJU-BA); Mayara e Marlia (NajucUFC), Dillyane (CAJU-UFC); Mrcio Andr e Cecilia
(NajupGO), Lawrence, Sabrina, Pablo (SURJA), Ramon (P@JE) entre outros tantos, no
menos lindos); por me ensinar a desbravar fronteiras e a romper paradigmas.
A Deus, pai, todo-poderoso, meu melhor amigo, minha melhor companhia, minha
fora: a Ti, toda a minha devoo e amor. Obrigada pelas ddivas de minha vida.
Meus amados companheiros-irmos CORAJOS@S, este rebento nosso. Fruto de
nossa carnavalizao com a vida, de nosso amor e respeito recprocos, de nossa construo
coletiva e de nossos sonhos.
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Como uma linda e fascinante aquarela compe-se a vida.E todos somos, neste jogo de cores,
ao mesmo tempo, tela e tinta.Ser tela pressupe termos a coragem de nos esvaziar;
de oferecer espao ao novo que emergir,ao amor que permite ser e ter vida.
Ser tinta exige abandonarmos a postura passiva e omissiva perante a vida;frente nossa histria
e imprimirmos nossas foras, nossas idiasna composio desta nova obra,
na qual, em cada detalhe,se visualize o todo
e no todo, uma nova cor.
(Josiane Veronese e Luciane Oliveira)
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RESUMO
Esta monografia tem por objetivo o relato da experincia do Corpo de Assessoria Jurdica
Estudantil CORAJEenquanto ncleo de Assessoria Jurdica Universitria Popular, a fim
de apresentar para a comunidade acadmica da Universidade Estadual do Piau a sua prtica
de extenso/comunicao potencialmente transformadora, bem como as possibilidades por ela
ensejadas para a aproximao do direito vida social. Para que tal experincia seja melhor
narrada, foi preciso que se explicitasse a proposta da prxis crtica e emancipatria que a
Assessoria Jurdica Universitria Popular. Nesse sentido, por ser esta uma proposta de claras
opes polticas pelo engajamento, mobilizao e reconhecimento das lutas populares, quepassam pela viabilizao de um novo projeto de sociedade justa, igualitria e efetivamente
democrtica, sua sistematizao pressupe o desenvolvimento de teorias crticas ao direito e
s suas instituies vigentes e aponta para a formulao de novas prticas e concepes
jurdicas e sociais. Dessa forma, buscou-se trabalhar algumas dessas crticas de forma a
revelar as opresses ocultadas pelos paradigmas polticos, culturais e jurdicos afirmados,
abrindo-se o espao para a construo de um novo paradigma. Somente de posse da crtica
tornou-se possvel a construo da proposta de transformao e, comungando deste objetivo, anarrao da trajetria extensionista que se pretendeu realizar no presente trabalho.
Palavraschave: Teorias crticas. Assessoria Jurdica Universitria Popular.
Extenso/comunicao. Transformao.
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ABSTRACT
This monograph aims to report the experience of Corpo de Assessoria Jurdica Estudantil -
CORAJE - as the core of People's University Legal Counsel, to present to the academic
community at Universidade Estadual do Piau its practice of potentially transformative
extension/communication and the possibilities for its opportunity to approach the right to
social life. In order to such an experience be best told, it was necessary to explain the proposal
of critical and emancipatory praxis that is the People's University Legal Counsel. In this
sense, since this is a clear proposal of politic options for engagement, mobilization and
recognition of people's struggles, which pass through the viability of a new project of fairly,equitably and effectively democratic society, its systematization requires the development of
critical theories to the law and to its current institutions and it points to the formulation of new
practices and legal and social conceptions. Thus, this monograph sought to deal with some of
these criticisms in order to reveal the hidden oppression by political paradigms, cultural and
legal affirmed, opening up space for the construction of a new paradigm. Only with the
criticism the construction of the proposed change was possible, and communing that
objective, the narrative extensionist trajectory that was intended to be accomplished in thiswork.
KEYWORDS: People's University Legal Counsel. Extension/communication.
Transformation. Critical theories.
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DECLARAO DE ISENO DE RESPONSABILIDADE
A aprovao desta monografia no significar endosso do professor orientador, da
banca examinadora ou da Universidade Estadual do Piau s idias, opinies e ideologias
constantes no trabalho, a responsabilidade inteiramente da autora.
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3.4.3 Da alteridade................................................................................................... 56
3.4.4 Da horizontalidade......................................................................................... 58
3.4.5 Da auto-gesto e do protagonismo estudantil............................................... 60
3.4.6 Da interdisciplinariedade............................................................................... 61
4 A EXPERINCIA DO PROJETO CORAJE ENQUANTO NCLEO DEASSESSORIA JURDICA UNIVERSITRIA POPULAR (ATRAJETRIA PARA A CONSTRUO DO INDITO VIVEL)............... 64
4.1 A Origem: onde tudo comeou........................................................................ 64
4.2 Formao Poltica............................................................................................. 66
4.3 O Encontro com outros ncleos de AJUP: no estamos ss no mundo!. 67
4.4 A institucionalizao do projeto CORAJE junto Pr-reitoria deExtenso da Universidade Estadual do Piau...................................................... 69
4.5 A II Semana do CORAJE: em busca da renovao do Corpo..................... 72
4.6 O Encontro com a comunidade: a descoberta da Vila So Francisco Zona Norte de Teresina......................................................................................... 73
4.7 A ecloso da greve de professores da UESPI e o envolvimento doCORAJE com o Movimento Estudantil............................................................... 75
4.8 A Adeso Rede Nacional de Assessoria Jurdica Universitria(RENAJU)............................................................................................................... 77
4.9 Em suma, o CORAJE...................................................................................... 78
5 CONCLUSO..................................................................................................... 80
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................................................. 82
ANEXO ILogomarca CORAJE........................................................................ 87
ANEXO IIA construo da Logomarca do CORAJE.................................... 88
ANEXO IIIPrimeira Semana do CORAJE..................................................... 91
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1 INTRODUO
O caminho para a construo do novo no fcil. Especialmente quando o novo
essencialmente contestatrio, insatisfeito e indignado que com o que se pretende estabelecer
como velho. Assim, de indiscutvel importncia o papel da construo terica apta a
fundamentar a derrocada do velho, a necessidade do novo e sua razo de ser. tambm
fundamental que a proposta apontada para a realizao do novo seja convidativa; se mostre
interessante para aqueles que se inclinam a seus propsitos e, pelo menos, instigante aos que,
embora ainda no inclinados, reconheam que a produo de todo e qualquer conhecimento,
principalmente o novo, relevante.Nesse sentido, o que se pretende com o presente trabalho a construo de um
novo horizonte de possibilidades, considerado indito vivel: intenta-se a construo de novos
paradigmas para a cincia, para o processo educativo, para a universidade, para a extenso
acadmica, para o direito e sua vivncia, para a sociedade, para as relaes interpessoais, para
a humanidade e para o mundo. uma proposta de propsitos grandes, ambiciosos, coletivos e
humanos. Se no h de se consider-la revolucionria, pois que rompe com tantos outros
paradigmas, h de se reconhecer seu carter, no mnimo, inovador. E, embora parea bastantepretensiosa, mostra-se uma proposta palpvel, possivelmente realizvel, uma vez que
depende, inicialmente, do esprito de transformao dos grupos envolvidos na sua
concretizao e, a posteriori, do esprito empreendedor da liberdade e da vida humana de toda
a sociedade politizada; humanizada.
Assim a proposta da Assessoria Jurdica Universitria Popular: desafiadora,
politicamente definida, socialmente engajada, horizontalmente aplicada, desveladora,
problematizadora, crtica e autocrtica, capaz de transformar o individuo que dela comunga atal ponto de ele mesmo rever continuamente seus (pr)conceitos, influenciado pela noo de
que a postura esttica diante da diversidade e das vivncias plurais inerentes humanidade
tragicamente (re)produtora de injustias. A proposta da Assessoria Jurdica Universitria
Popular pretende, antes de tudo, resgatar o humano dentro de cada homem e coloc-lo no
centro da vida social.
Diante de to densa proposta, faz-se necessria a sistematizao do conhecimento
que lhe alicera, bem como do conhecimento por ela alcanado. Para a construo deste
conhecimento inexorvel o desenvolvimento da crtica ao que est posto, pois no se pode
propor o novo sem a apreenso do que se pretende instituir como velho, sob pena de este
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novo apenas reproduzir o que deseja superar. Nesses termos, atravs da metodologia de
reviso bibliogrfica, este trabalho traz em seu primeiro captulo a formulao da crtica aos
modelos de sociedade, direito e universidade estabelecidos, a partir de uma postura de
denudao dos vus que encobrem a lamentvel realidade de contrastes sociais abissais.
Nesse processo de desvelamento, so apresentadas novas realidades e prticas
que, embora ainda no tenham sido legitimadas pelos paradigmas tradicionais, implicam em
emergente reconhecimento de suas prerrogativas por parte da sociedade civil. Assim, a partir
da formulao da crtica s instituies polticas, jurdicas, sociais e culturais vigentes,
surgem novas metodologias e formas de enfrentamento ao que socialmente imposto, que,
sistematizadas e condensadas, culminaro na formulao da proposta da extenso enquanto
processo de comunicao, com uma prxis de cunho marcadamente poltico e emancipatrio,como trabalhado no segundo captulo.
A Assessoria Jurdica Universitria Popular passa, dessa forma, pela crtica aos
paradigmas tradicionais de teorizao, produo e circulao do direito, (tais como o
positivismo e o monismo jurdicos e a noo moderna de acesso justia), que edificam uma
verdadeira muralha ideolgica entre o instrumental jurdico e os diversos atores sociais; ao
modelo de universidade e de concepo do conhecimento cientfico, pois que neste mbito
que se inicia a sua prxis; ao modelo de extenso e ensino acadmicos vigentes e s estruturascapitalistas mantenedoras das desigualdades sociais.
Das crticas a estes padres socialmente impostos, a proposta aqui em apreo
lana mo de novos parmetros e aponta novas metodologias para a construo de uma
realidade diversa, tais como a educao popular e a sua abordagem no campo dos direitos
humanos, subtrados das maiorias, assim como a extenso popular enquanto processo de
comunicao, com vistas para a organizao e mobilizao dos povos oprimidos e dos grupos
com eles identificados, para o resgate de sua cidadania e dos preceitos democrticos.Pretende-se com esse trabalho, ento, explicitar os objetivos da Assessoria
Jurdica Universitria Popular de forma a apresentar para a comunidade acadmica e no-
acadmica novas bases para a construo de um contexto indito vivel, caracterizado pela
hegemonia da igualdade e da justia entre os homens. Dessa forma, em seu terceiro captulo,
busca-se fazer um sucinto relato da trajetria do Corpo de Assessoria Jurdica Estudantil
CORAJE enquanto ncleo de extenso/comunicao com prxis de educao popular em
direitos humanos, atravs da anlise do projeto aprovado e institucionalizado pela Pr-
Reitoria de Extenso da Universidade Estadual do Piau e do uso de relatrios, propostas de
oficinas realizadas ao longo de sua caminhada, entre outros documentos em anexo que tem
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por finalidade uma breve demonstrao de sua trajetria. O intuito deste relato o registro
histrico da existncia, da luta e da experincia, potencialmente transformadora e libertadora,
deste projeto, para fins de documentao exigvel consolidao de sua memria.
Objetiva-se cumprir, nesse sentido, com o importante papel de apresentao de
medidas que possibilitem a transformao social a partir da transformao dos prprios
sujeitos com ela comprometidos, bem como de destaque da funo do direito enquanto
poderoso instrumento utilizvel nesta to almejada mudana.
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2 DA CRTICA AO ADVENTO DO INDITO VIVEL: O CAMINHO NECESSRIO
A SE PERCORRER
2.1 Consideraes Iniciais
Nenhuma idia ou proposta considerada nova, transformadora ou mesmo
insurgente nasce do nada. sabido que idias so antes resultados de discusses e reflexes a
partir de algum objeto dado ou alguma situao ftica. O que ser posto aqui em discusso ou
sob reflexo para o posterior surgimento de uma nova idia (qui revolucionria!), qual seja,a proposta da Assessoria Jurdica Universitria Popular (a ser trabalhada no prximo
capitulo), o entendimento vigente do Direito. Na verdade, da crtica cincia jurdica
comumente vislumbrada nos meios jurdicos e na prpria Faculdade de Direito (e, por
conseguinte, a todo o arcabouo terico e ideolgico dela derivado), bem como da pretenso
da construo de um novo paradigma do Direito, que concebida a nova proposta acima
mencionada.
Para que sejam construdos o horizonte de valores e concepes e tambm acompreenso de um Direito novo, faz-se necessrio, ento, conhecer os elementos e
fundamentos que edificam a teoria e a prtica da cincia jurdica (im)posta. Somente a partir
desse conhecimento possvel a crtica s estruturas preponderantes e, para alm das crticas,
a tomada deste conhecimento para a viabilizao de um projeto de sociedade diverso, dentro
das perspectivas deste novo paradigma do Direito.
Da, considerando-se que a noo de paradigma consiste no estabelecimento de
uma viso cravada no interior de uma cincia ou mesmo de uma compreenso de mundo apartir dos processos histricos por que passam as sociedades humanas, tem-se que o
soerguimento de um paradigma s possvel com a superao de outro modelo dantes
estabelecido, uma vez que ambos so incompatveis entre si. Assim, nas palavras de Lucas
Pizzolatto,
Em decorrncia desse processo, podem igualmente se transformar ascomunidades cientficas, as cincias parciais e a prpria noo global de
cincia. As mudanas de paradigma, entretanto, no resultam de umdesenvolvimento evolutivo e linear. Ao contrrio, assemelham-semetaforicamente a revolues. (PIZZOLATTO, 2010, p.02).
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no bojo desse processo de mudana de paradigmas (ou revolues) que as crticas ao
modelo que se pretende superar se tornam visveis e instrumentos necessrios para o
desenvolvimento e estabelecimento do novo. Nesse contexto, as ditas teorias crticas do
Direito so elementos fundamentais para a produo desta nova concepo da cincia
jurdica.
2.2 Crticas ao Positivismo Jurdico
Partindo-se para o conhecimento das estruturas basilares sobre as quais se funda oDireito hegemnico, observa-se que muitos so os mitos e verdades absolutas a serem
desnudados, sob um prisma mais amplo e questionador (por tanto crtico) desta cincia. O
primeiro e maior mito, que merece devido desmascaramento, donde se originam outros tantos
mitos que permeiam a cincia jurdica, a teoria juspositivista. Segundo essa corrente
poltico-filosfica, todo o direito reside e se encerra na lei (chegando mesmo a se
confundirem) ou em qualquer outro meio que a ela se equipare, tais como a doutrina,
jurisprudncia, princpios gerais do direito e os costumes, tendo em vista que tais meios nopodem contradizer a norma.
preciso que aqui se faa uma breve explanao de como tal teoria encontra
plena absoro no subconsciente scio-poltico-jurdico atual e de como ela se converte em
verdadeiro discurso de justificao para as barbries constantemente cometidas pelas classes
que dela se utilizam.
Nesse cerne, necessrio lembrar que o positivismo jurdico ganhou impulso
quando da ascenso da burguesia ao poder poltico (instncia da qual a classe era totalmenteprivada at ento), com o advento da Revoluo Francesa de 1789. O cenrio scio-
econmico era propcio para tal acontecimento, haja vista que o capitalismo, engendrado por
este grupo, j reinava nas sociedades ocidentais. Assim, era gritante que os donos do poder
econmico e, agora, tambm do poltico, tivessem suas reivindicaes levadas a cabo em
todos os mbitos, assegurando-lhes segurana em suas relaes quaisquer que fossem. O
positivismo enquanto corrente dominante em todos os ramos das cincias caa como uma luva
nas mos burguesas e de outra forma no poderia ser com o direito.
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A essa altura, a burguesia deixou de ser uma classe revolucionria e inicia adigesto de suas conquistas; no carece mais de instrumentos crticos evalorativos, diante das normas formalizadas e promulgadas; pois ela jdetm o poder, inclusive nomogtico. E o novo dogma leigo decorrnciade tal situao. (LYRA FILHO, 1980, p.22).
Dessa forma, mantinham-se no ordenamento jurdico os interesses da classe
dominante e qualquer aplicao, interpretao ou mesmo produo jurdica que fugisse dos
limites da lei instituda pelo poder poltico vigente era verdadeira afronta ordem
estabelecida. Da deriva o surgimento de todo um arcabouo terico e filosfico no sentido
de prover a assimilao e a aceitao do juspositivismo por toda a sociedade, inclusive pelas
camadas oprimidas, excludas do processo de produo dos contedos jurdicos.
As teorizaes acerca do juspositivismo reforam seu carter mitolgico na
medida em que procuram dar respostas satisfatrias s diversas demandas sociais sem correr
os riscos de ofensas e ataques a seus mantos sacralizados (pelos grupos por eles
privilegiados), que lhe separam da complexa realidade social. Artifcios como o da
completude do ordenamento jurdico (im)posto como nica forma de soluo para os conflitos
a ele submetidos e da segurana jurdica conferida pelas decises arrimadas neste mesmo
ordenamento vinculam o alcance da justia somente letra fria da lei e aos sistemas de
interpretao que em nada alteram as estruturas defendidas pelos diplomas legais.Incorre-se, assim, em interminvel ciclo de produo de normas em pleno acordo
com o ordenamento jurdico vigente, mantendo-o hermeticamente fechado e insensvel aos
apelos sociais que no sejam os dominantes.
Isso possvel porque o prprio ordenamento jurdico dispe de normasjurdicas capazes de regular o processo de produo das demais normas (...).Depreende-se disso a ausncia de lacunas e antinomias, cuja existncia apenas aparente, j que sua correo pode ser resolvida internamente porintermdio da interpretao, sem que seja preciso recorrer a elementosexternos ao sistema. (PIZZOLATTO, 2010, p.06 e 08).
Sobre a segurana jurdica, aduz ainda o mesmo autor que
A comunidade de juristas professa a convico de que, uma vez seguidoscorretamente os cnones mtodos, princpios e institutos prprios cincia do direito, o resultado sempre ser a obteno de respostas seguras einequvocas que garantam a decidibilidade dos conflitos trazidos perante osjuzes na forma de litgios individualizados. (PIZZOLATTO, 2010, p.08).
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tambm sob o imprio do positivismo jurdico que nasce a figura ideolgica do
consenso poltico, o qual obsta uma viso mais profunda acerca dos reais interesses
submersos na vontade da lei ou do legislador e suprime as lutas sociais do processo
histrico de construo do direito. Do consenso nada mais pode se esperar que a experincia
da paz social, outro produto da idealizao juspositivista e uma das maiores falcias dentro
dos discursos jurdicos predominantes, uma vez que oculta nesta suposta paz toda atuao ou
postura que v de encontro s foras hegemnicas expressas pelo contedo normativo das
leis. Logo,
Ao adotar o mtodo sistemtico na elaborao de proposies acerca doordenamento jurdico, a cincia jurdica almeja neutralizar a diversidade deinteresses concretos na formao do direito e oportunizar soluesharmnicas aos casos concretos, preservando a coeso social.(PIZZOLATTO, 2010, p.08).
Nesses moldes, o mito do consenso poltico encontra sua maior sustentao em
um elemento eminentemente positivista, traduzido como igualdade formal de todos perante a
lei. Em um contexto de luta por liberdade, igualdade e fraternidade tal qual a Revoluo
Francesa, a burguesia precisava mesmo de um argumento que no s a legitimasse no
exerccio do poder poltico como tambm lhe servisse de pretexto para a mobilizao dasmassas em torno dos ideais daquela classe, embora este objetivo no ficasse explcito em suas
palavras de ordem ao movimento. Assim, a proclamao da igualdade formal no texto legal
soava revolucionria s classes marginalizadas, acostumadas desigualdade de toda sorte, e
nada havia que se questionar no ordenamento jurdico positivado. Garantia-se, ento, a
obedincia fiel lei e enterrava-se qualquer chance de revolta popular contra a classe em
ascenso. Nesse sentido, preciosa a lio de Miguel Baldez quando coloca que
Homens e coisas ficam subsumidos na vontade geral (vontade da lei),generalizada e universalizada pela abstrao da realidade. Ocorre nesteprocesso de abstrao e generalizao super-estrutural, a atomizao econseqente individualizao do concreto (...). A partir da todos sosujeitos de direitos e obrigaes e iguais perante a lei, e as contradies sedo no concreto, sob a mediao do Estado, entre o sujeito-operrio e osujeito-patro (e no entre a classe trabalhadora e a classe patronal), entresujeito-posseiro e o sujeito-grileiro (e no os sem-terra e os latifundirios),universal e abstratamente sujeitos (o operrio, o patro, o sem-terra, olatifundirio, todos sujeitos) e por isso, conceptualmente, ou emterminologia mais adequada, ideologicamente iguais perante a lei.(BALDEZ, 1989, p. 02).
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Da igualdade formal pode-se extrair mais uma construo dogmtica operada
pelos ditames positivistas: o mito da neutralidade do direito e de sua dico na atual
conjuntura scio-poltica. Reside nesse fetiche jurdico a idia de que as leis e seus comandos
se mantm entre e acima das partes envolvidas no conflito jurdico-social e que o jurista deve
atender vontade por ela exprimida, sob pena de atentar contra a justia desejada. Importante
salientar que o desenvolvimento e a constante reafirmao dessa fico um dos papis
primordiais da cincia jurdica transmitida atualmente. No por acaso, Kant j enunciava a
total dissociabilidade entre filosofia e direito, concebendo dessa forma um conjunto de
princpios e regras destitudo de qualquer valorao e enquadrando a cincia jurdica no
paradigma cientificista-racional ascendente. Da contribuio de Kant a cincia jurdica muito
tirou sua lio, uma vez que, segundo suas proposies,
Cabia interpretar o mundo como universo de fatos verificveis, dadossensveis da experincia que se conectariam entre si em relao decausalidade. Aos cientistas, em primeiro lugar, incumbiria a tarefa deformular juzos de existncia, ou seja, registrar empiricamente os fatos coma maior exatido e meticulosidade possvel; em segundo lugar, a misso dedescrever objetiva e sistematicamente os fatos observados e descobrir as leisgerais responsveis por sua conexo, abstendo-se de formular juzos devalor. O compromisso para com o ideal cientificista implicava a valorizao
do mtodo e, supunha-se ento, alavancaria inevitavelmente o progressosocial (ANDRADE, 2003, p. 38-41).
De acordo com tais preceitos, caberia ainda aos juristas
conferir ordem e coerncia ao conjunto aparentemente catico de materiaisnormativos, o que requer, em ateno aos critrios de cientificidade, umapostura de neutralidade tico-axiolgica ao se efetuar seu registro e anliseexegtica. Resulta dessa construo uma cincia parcial, terico-conceitual ehermtica, cujos protagonistas principais so os professores das faculdades
de direito os doutrinadores e cujo principal produto a doutrina.(PIZZOLATTO, 2010, p.04).
O mito na neutralidade ainda endossado pela criao da figura do Estado-juiz,
ao qual atribudo o provimento da dico do direito (jurisdio) ou o papel de boca da lei.
Decorre da que a lei, enquanto elemento detentor de todo o direito, considerado neutro, deve
se expressar precipuamente atravs de um agente legitimado poltico-socialmente para tal,
entendimento este derivado da teoria contratualista de Rosseau em conjuno com a teoria da
Separao dos Poderes preceituada por Montesquieu. Isto s vai tornar-se possvel econsolidar-se com a gestao de um ser pblico, por isso (por ser pblico) distanciado dos
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conflitos sociais e, em face deles, neutro e soberano o estado burgus (BALDEZ, 1989,
p.02). Dessa forma, o juiz tambm o Estado e como tal, far suas vezes quando da sua
atuao.
Interessante se faz tambm perceber de que forma a neutralidade cientfica
buscada pelo direito positivo mantm ntima ligao com a neutralidade atribuda ao Estado,
conforme afirma Lucas Pizzollato:
Do ponto de vista poltico, a neutralidade axiolgica da comunidade dos juristas, perseguida em prol do ideal cientificista, atua como correia detransmisso de outro ideal, o da neutralizao do poder dos juzes. No sepode olvidar que a reduo do Judicirio incumbncia de ser a "boca dalei" corresponde aos ditames da teoria da separao dos poderes. De certo
modo, isso origina a iluso ideolgica da dogmtica jurdica odogmatismo. (PIZZOLATTO, 2010, p.05).
Fcil notar, de todo o exposto, que a ideologia do consenso poltico (supostamente
pactuado entre as mais diversas camadas da sociedade) apregoada pelo Estado e por suas
normas, expresses mximas de seus interesses, cumpre seu papel fundamental de omisso
dos conflitos sociais na busca pela efetivao dos anseios populares mais bsicos, na medida
em que se ocupa de ratificar verdades inquestionveis, como a construo da referida
ordem social a partir do exerccio da jurisdio pelo juiz - representante do Estado neutro e
imparcial - e, por conseguinte, do estrito exerccio da lei.
Considerando-se que o Estado composto e dirigido pelas classes dominantes,
uma vez que, no atual contexto de injustias e desigualdades sociais alarmantes, s classes
oprimidas no foi sequer oportunizada a possibilidade de acesso a este ente poltico, preciso
que se afirme: a lei no neutra, conseqentemente o direito como norma tambm no o ,
tampouco o juiz enquanto extenso do Estado poderia s-lo. Isso porque, o Estado como
maior violador dos direitos das camadas mais espoliadas e (re)produtor das opresses por elasexperimentadas, nada mais que figura representativa dos ideais das camadas espoliantes e
instrumento de manuseio poltico para a satisfao dos privilgios que acentuam a
desigualdade entre os diversos estratos sociais. Assim, nas palavras de Baldez, o juiz
(...) no neutro enquanto rgo do Estado, enquanto cultural eideologicamente comprometido com a normatividade jurdica de umasociedade de classes. Ningum, alis, encarna melhor que o Juiz, essecomprometimento estrutural com a ossatura institucional do modo de
produo capitalista. (...) Cabe, assim, ao juiz, no concreto do embate dacontradio (reduzida ao processo) entre os trabalhadores e os no-trabalhadores, a funo de guardio do sistema, cuja estrutura jurdica
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repousa na ideologia da propriedade e do contrato. (BALDEZ, 1989, p. 06 e09).
Cabe aqui tambm ressaltar que nenhuma deciso elaborada pela mente humana
pode de se furtar da emisso de um juzo de valor. O homem, como ser social e poltico que ,
absorve durante seu desenvolvimento em comunidade valores, ideologias e crenas das quais
no se liberta at o fim de sua existncia social. Partindo-se desse pressuposto, tem-se que
com o juiz no poderia ser diferente e, diante do quadro da realidade social de nossos tempos,
somente so candidatos ocupao deste cargo os filhos da classe detentora do capital, seja
ele econmico, social ou cultural. Foroso concluir que o juiz dificilmente formular decises
sem considerar toda a carga valorativa construda em sua criao e reforada pelos espaos
sociais que ocupou ao longo de sua vida, consistindo seu acmulo poltico-cultural em mais
um entrave neutralidade estatal.
Some-se a esta constatao um agravante, que s refora, de forma definitiva, a
parcialidade do direito positivo: a construo positivista impele, por si s, os juristas de
tempos atuais preguia ou comodidade criativa, j que a referida categoria social
vislumbra o encerramento de toda sua carga valorativa, poltica e cultural nos limites de seu
contedo legal. Como ilustrao para tal afirmao, vasta a fonte jurisprudencial, resultado
do esforo (no to considervel) dos profissionais do direito para, em ltima instncia,alargar ou estreitar o mbito de incidncia da norma positiva, eximindo-se inclusive da anlise
mais profunda do caso concreto em questo. Percebe-se, ento, a quase impossibilidade do
empreendimento de um debate (no sentido de confronto de idias) durante o ato decisrio do
juiz, pois seus valores absorvidos j encontram total recepo no ordenamento jurdico posto.
Deriva-se claramente, desta prtica jurdica exaustiva, conduta em hiptese alguma neutra.
Logo,
Este o logro do positivismo jurdico levado s ltimas conseqncias: oengessamento do processo de pensamento acerca de e no prprio Direito. Arealidade concreta ocupa um lugar secundrio, porque a lei positiva e estatalassim o determina. (DUARTE, 2009, p.110)
A desmistificao da neutralidade do direito hegemnico, seja no mbito de sua
teoria ou de sua prxis, encontra respaldo ainda na tese de que por meio da lei que o Estado
legitima sua violncia, entendendo-se que a ele resguardada a prerrogativa da coao. Esta,
por sua vez, elemento garantidor do cumprimento e da plena concretizao do ordenamento
jurdico (im)posto no seio social, reprimindo-se, assim, toda e qualquer forma de confronto
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com o sistema normativo positivado. Tanto assim o que, como nos dizeres de Pizzollato, a
coatividade consiste na marca intrnseca da juridicidade do ordenamento, ao passo que seu
contedo resume-se regulamentao do uso da fora pelas instituies estatais em dada
sociedade. (PIZZOLLATO, 2010, p.06). dessa prerrogativa estatal, que, segundo Hobbes,
este ente poltico e soberano se apropria para exterminar toda a barbrie de uma sociedade
sem lei positivamente definida (tal como a sociedade feudal) e dela que tambm decorre a
categorizao entre o que direito e o que no ; quem so os sujeitos de direito e quem no o
so.
A coao, como dito anteriormente, consiste na fora capaz de assegurar o sistema
positivista de produo e aplicao de normas jurdicas. Essa fora delimita, por meio da
represso, os instrumentos entendidos por jurdicos. Tem-se a, em suma, o elemento tambmassecuratrio do monismo jurdico, outra grande verdade absoluta embasada e alimentada,
reciprocamente, pelo juspositivismo. Reciprocamente porque no se sabe ao certo at que
ponto tais teorias no se fundem numa s, permanecendo entre elas estreita interdependncia.
Basta para isso perceber, que ambas as teorias ganham mxima adeso quando o modo de
produo capitalista alcana seu maior ndice de assimilao pelas sociedades modernas,
(especialmente com o advento da Revoluo Industrial), inferindo-se da que esses preceitos
tericos nada mais so que justificativas para legitimar a apropriao do poder poltico eeconmico pelas classes dominantes.
2.3 Crticas ao Monismo Jurdico
O monismo jurdico tem por definio a exclusividade da produo e aplicao deregras jurdicas imputada ao Estado. O direito, ento, vem a ser tudo o que se pode extrair do
conjunto de normas nsitas no ordenamento jurdico, cuja nica autoria admissvel a estatal,
nem mais, nem menos, certeza esta asseverada pela coercibilidade intrnseca ao ente poltico
referido. em torno dessa perspectiva que toda a cincia jurdica moderna se delineia, como
confirma a lio de Wolkmer:
O paradigma da Dogmtica Jurdica forja-se sobre proposies legais
abstratas, impessoais e coercitivas, formuladas pelo monoplio de um poderpblico centralizado (o Estado), interpretadas e aplicadas por rgos(Judicirio) e por funcionrios estatais (juzes). (WOLKMER, 2001, p.69).
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Assim, no h sombra de dvida a respeito da estreita relao entre positivismo e
monismo jurdicos, tendo em vista que suas manifestaes mximas materializam-se no
Estado e seus comandos normativos. Qualquer outra manifestao destoante desses moldes
deve ser eliminada ou omitida, destituda que est de juridicidade. Tamanha a oficialidade
ideolgica destas afirmaes que outra no poderia ser a mentalidade geral da populao alm
da criminalizao de ordem diversa que venha a ser operada no seio social, qualificada como
informal, paralela e, conseqentemente, inadmissvel, pois resulta em verdadeiro ataque
dignidade do Estado.
Assim que a positividade do Direito se assenta na estabilidade e naunicidade do Direito que emana do Estado. Isto proporciona ao poder estatalo controle exclusivo dos padres de comportamento e reduz o Direito ordem vigente no contexto social. Como tal, este ordenamento jurdico estimune a juzos de valor e se constitui em rbitro nico de justia. Estapositividade da ordem estatal formula, generaliza e valida o Direito estatal.(MELO, R.; 2002, p. 36).
Dada esta validade estatal de controle de todo o direito (de seu nascimento sua
concretizao), conferida pelo paradigma do monismo jurdico, evidente a mscara
ideolgica que encobre a realidade social hodierna, pois sobre o argumento da dicotomia
direito oficial versusdireito informal que se funda toda a violncia institucional estatal. A
esse respeito, assim dispe Furmann:
A questo da lei do mais forte se encontra na atual sociedade mascarada peloDireito oficial. A violncia uma violncia entre classes. Quando o Estadono adentra com seu Direito oficial nas periferias ele abre espao para aecloso da violncia. No toa que se constata nas favelas dos grandescentros do pas o controle jurdico do crime organizado. (FURMANN, 2003,
p.40).
Do legado positivista e do imprio do monoplio estatal, donde se infere que o
contedo do direito muda quando o Estado decide institucionalmente modific-lo
(PIZZOLLATO, 2010, p.07) e que sujeito de direito aquele que se encaixa na ordem
positivada, a qual, em ltima anlise, atende to somente s reivindicaes das classes
dirigentes estatais, resta ainda a aferio de cultura e contracultura designada s diversas
manifestaes engendradas na vida social, dentro dos moldes capitalistas de percepo.
Difcil ignorar que de diversidades se compe as relaes sociais, sejam elas
polticas, religiosas, sexuais e, do ponto de vista macro, de classes. No centro dessas
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diversidades e na dinmica da luta por interesses, variadas so, inevitavelmente, as expresses
polticas e culturais. Faz-se indispensvel, assim, uma compreenso mais profunda e
reveladora dessas demonstraes na medida em que afetam a cincia jurdica, pois no pode o
direito, como elemento regulador da complexa vida em sociedade, manter-se indiferente a tais
fenmenos. E de fato, o direito no o faz. O juspositivismo aliado ao monismo jurdico,
sustentculos da burguesia enquanto classe administradora do Estado, definem bem qual a
posio do direito hegemnico diante dos conflitos assinalados pelas diversidades acima
mencionadas, com base no exerccio da ordem justa positivada, qual todos, com todas as
suas diferenas, se submetem. Cria-se, ento, a partir da linha ideolgica estabelecida pelo
monismo jurdico (que separa o Estado dos anseios populares), os conceitos de cultura
jurdica, expresso esta conformada aos ditames estatais e sub-cultura jurdica, produzida forada esfera estatal.
Assim que, numa sociedade de claras contradies sociais, frutos de um sistema
que legitima a explorao do homem pelo homem e eleva uma classe, em todos os setores da
vida em comunidade, em detrimento de outra que no se pode negar a flagrante injustia
produzida no momento da feitura e dico das leis, que contemplam somente classe
privilegiada. Dessa forma,
(...) o Direito detm uma nova funo, a de abordar a diversidade e acomplexidade. Pois uma forma garantida de chegar a um fim trgico seriaimaginar que a diversidade no existe, ou esperar, simplesmente, que eladesaparecesse. (FURMANN, 2003, p. 40)
nesse contexto de busca por ocupao dos espaos garantidores de interesses e
liberdades que se desenvolve uma contracultura, com escopo de contestao ordem
estabelecida e de defesa dos direitos das classes espoliadas e marginalizadas do processo
legislativo. D-se a essa manifestao scio-poltico-cultural contra-hegemnica o nome de
pluralismo jurdico.
2.4 O pluralismo jurdico: fruto da crtica ao positivismo e ao monismo jurdicos
Denominado ainda por muitos como Direito insurgente, dado seu carter deinsubordinao aos comandos vigentes, o pluralismo jurdico edifica-se sobre as crticas aos
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pilares do Estado de direito moderno, pois parte do pressuposto que, longe do alcance da
justia, o ordenamento posto no dispe de condies normativas e filosficas para atender
aos anseios de toda a populao, pondo em cheque os mitos institudos pela cultura jurdica
dominante. Porm, ser reconhecida como direito um desafio a ser ainda vencido pela
contracultura jurdica que se pretende efetivar. Nesse sentido, tem-se que
Ordenamentos jurdicos plurais so caractersticas da sociedade dividida emclasses, mas o reconhecimento desse fato, por certo, possui umapotencialidade libertadora posto que exigem das parcelas subjugadasconscincia sobre a sua prpria situao que os grupos dominantes noesto dispostos a assumir. (OLIVEIRA, H.; 2009, p. 101)
Determinante para o surgimento das manifestaes jurdicas plurais tambm a
absoro dos conceitos de cidadania e organizao para a participao poltica pela
mentalidade popular. a partir do reconhecimento das classes oprimidas enquanto tal que
suas lutas pela dignidade plena no convvio social ganham objetivos definidos, dentre os quais
se destaca a superao de suas opresses. H que se frisar a dificuldade de tal
reconhecimento, uma vez que o capitalismo e as instituies polticas e jurdicas estabelecidas
reinventam estes conceitos de acordo com suas convenincias, inviabilizando a real
compreenso e alcance destes instrumentos (poderosos) de enfrentamento ordem em vigor.De acordo com o referido processo de reinveno ou ressignificao, a
cidadania vincula-se ao poder de consumo e, por conseguinte, ao acesso ao capital cultural.
Logo, aquele que est fora deste padro encontra sua marginalizao, da qual derivam a
despolitizao, a explorao e at mesmo a criminalidade. Nesse cerne, no obstante o
confronto com o poderio estatal, cabe s comunidades espoliadas reconstruir a noo de
exerccio da cidadania (para alm tambm do exerccio do voto, viso superficial e
insuficiente da soberania popular), retomando as rdeas de seus destinos em suas prpriasmos, que quando mais entrelaadas, mais fortes.
Esse entrelaamento, que ns humanos tendemos a realizar com nossos iguais,
fortalece e mobiliza as camadas populares, oportunizando assim a sua organizao em torno
de seus ideais polticos. Esse cenrio de reivindicao de interesses negados, ento, propicia o
desenvolvimento de prticas e posturas contra-hegemnicas, donde se origina a
sistematizao das experincias de pluralismo jurdico. Assim, na arguta lio de Lyra Filho,
Uma conscientizao crescente das contradies expostas, entre a ordemmantida e os Direitos sonegados cria tenses e impasses no superveis com
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os veculos institucionais existentes. E, se persiste a obstruo, o Direito dosespoliados e oprimidos procura sua realizao fora, acima e at contra oconjunto de leis. (LYRA FILHO, 1984, p. 265)
Emblemticas so, ainda, as palavras de Miguel Pressburger no que tange aconscincia coletiva do povo organizado, quando aduz que
O caldo de cultura do direito insurgente o conflito social e se revela nasestratgias dos sujeitos coletivos de alguma forma organizados. aquelainveno de um direito mais justo e eficiente, que vai emergindo das lutassociais, momento histrico e terico em que os oprimidos se reconhecemcomo classe distinta daqueles que os oprimem. (PRESSBURGER, 1995)
J no sentido de abertura da cincia e das instituies jurdicas a essa produo jurdica paralela nascida no conflito de classes, ratifica ainda Antnio Carlos Wolkmer,
quando destaca que a proposta do pluralismo jurdico o reconhecimento de outro
paradigma cultural de validade para o Direito, representado por nova espcie de pluralismo,
designado como pluralismo jurdico comunitrio participativo. (WOLKMER, 2001, p.361)
ou, como tambm ensina Boaventura de Sousa Santos,
Reconhecer esta prxis como jurdica e este direito como direito paralelo(isto , caracterizar a situao como pluralismo jurdico) e adotar umaperspectiva terica julgando esse Direito no inferior ao direito estatal envolve uma opo tanto cientfica, quanto poltica. Ela implica a negaodo monoplio radical de produo e circulao do Direito pelo Estadomoderno. (SANTOS, apud LYRA FILHO, 1984, p.77)
Diante de todo o exposto, gritante a necessidade do desenvolvimento e fixao
do paradigma da pluralidade nas estruturas constitutivas das instituies polticas, jurdicas e
culturais, uma vez que a sociedade moderna , essencialmente, plural. Como sustentado no
inicio desse capitulo, o exaurimento das teorias legitimadoras de um paradigma que abre a
possibilidade da construo de um novo modelo e outra no a realidade do positivismo e do
monismo vigentes alm de seus esgotamentos, visto que somente se estruturam a partir do
engessamento de suas razes ideolgicas antes aqui desveladas, restando-se impossibilitados
para responder s reivindicaes de todos os setores da sociedade, especialmente os mais
pobres. Ou, como asseverado por Vladimir Luz,
Falar do pluralismo jurdico , antes de tudo e contrario sensu, falar doesgotamento de um projeto jurdico poltico: o projeto monista. nacontradio estabelecida com os fundamentos e com a lgica do projeto
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monista que exsurge o tema do pluralismo seja como oposio terico-prtica a tal modelo, seja atravs do reconhecimento de sua existncia sociale histrica em vrios momentos da organizao jurdica do mundo ocidental,ou, por fim, como proposta de uma nova legitimidade poltico-jurdicaemancipatria, oriunda no apenas do Estado, mas dos valores e das prticasdos movimentos sociais no contexto da periferia do capitalismocontemporneo. (LUZ, 2008, p. 25).
2.5 Consideraes sobre o tema do acesso justia
No bojo desse processo de exaurimento das estruturas jurdicas e polticas
predominantes, inegvel tambm o esgotamento do Judicirio no que diz respeito
resoluo de conflitos de interesses. Este assunto trazido aqui tona no s pela
inefetividade quantitativa do referido rgo estatal, cuja experincia por si s j fere os
princpios polticos institucionalizados constitucionalmente e o prprio exerccio da
cidadania, mas, principalmente, por no ser o Estado eficazmente capaz de solucionar tais
conflitos, posto que, como visto anteriormente, ele conserva em sua existncia poltica a
garantia dos interesses classistas da burguesia moderna.
Entende-se, dessa forma, que o tema do acesso justia no se encerra no acessoao Judicirio (que oficialmente se intitula de Justia), o qual trata a persecuo deste ideal de
forma principiolgica, como elemento de ordem jusnaturalista (que, alis, tem em sua
positivao verdadeiro pressuposto de existncia), mas encontra sua maior razo de ser no
centro dos processos histricos de busca pela concretizao das promessas democrticas de
universalizao da dignidade social e da soberania popular. Trata-se, ento, de participao
efetiva na dinmica poltica da sociedade por parte de todos os grupos que a compem, donde
se almeja a vivncia plena da justia social.Assim, contrape-se idia de justia (consubstanciada nos cdigos jurdicos)
enquanto resultado positivo obtido ao fim dos litgios pontuais, individualizados e, em sua
maioria, de carter econmico (dada a coisificao e quantificao das relaes sociais
hodiernas), a idia de justia enquanto objetivo primordial e concreto dentro da perspectiva da
efetivao de direitos mnimos e fundamentais subtrados das populaes espoliadas,
efetivao esta possibilitada quando tais classes apropriam-se da conscincia poltico-jurdica
de luta por esses direitos. Urgente, pois, a comida no prato das pessoas; o pleno acesso
sade, preventiva ou curativa, por todos (prerrogativas das quais depende o completo existir,
o bem maior da vida), bem como a igualdade de oportunidade educao (inclusive poltica)
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de qualidade, de condies ao trabalho e moradia e o exerccio da liberdade, no um a
liberdade do eu, limitada sempre pelas liberdades circundantes, que necessitam ser
controladas pela fora; mas uma liberdade do ns, em que as realizaes individuais s
fazem sentido porque cercadas pelas coletivas (DUARTE, 2009, p. 114).
Diante deste fatdico quadro de reais contradies e injustias sociais, tem-se que
a lei positiva, estatal, fria e parcial foge de qualquer aproximao material da realidade
circundante. Inadmissvel, ento, a manuteno da vida social sob seu imprio e a presuno
de inafastabilidade da concepo de direito desta mesma lei. Ou seja,
Todas estas questes complexas e contraditrias so tambm jurdicas. Scom esta compreenso ampliada do jurdico podemos perceber porque osservios legais no respondem s demandas sociais e porque estasconcepes so reforadas atravs de uma educao jurdica tcnica-formal.(NEP Flor de Mandacaru - UFPB, 2008, p. 05)
2.6 Do ensino jurdico educao jurdica
Desse modo, emergente tambm a crtica construo e propagao da cincia
jurdica nas Faculdades de Direito contemporneas. No se pode negar que aos juristas reservado escasso espao de criao e problematizao do conhecimento adquirido durante o
processo de consolidao de seus valores polticos, culturais e profissionais, quando da sua
formao acadmica. Isso porque a lgica tcnico-formal de mera transmisso de preceitos
prontos e acabados, produto do legado positivista no marco da cincia racional de
neutralidade tico-axiolgica, no permite qualquer debate ou construo dialtica entre os
elementos polticos, sociais, culturais e propriamente jurdicos que compem o direito.
evidente, neste diapaso, a intencionalidade do ensino do direito: amanuteno das estruturas capitalistas sustentadas pelo ordenamento jurdico estatal,
reforada ainda no processo de formao dos futuros juristas, onde todo o aparato da cultura
jurdica oficial ser professado no intuito da criao de novos adeptos. Logo, se o Estado,
dirigido pelas classes dominantes e representante-mor de seus interesses, o profeta da
doutrina jurdica, as faculdades de direito modernas so eficazes templos de culto e adorao
das sagradas normas jurdicas positivas. Assim que o direito (im)posto recruta seu
exrcito de operadores dodireito, cuja funo precpua a tcnica maante de subsuno
do fato impugnado norma correspondente sem qualquer interveno criativa do sujeito (que
deixa de ser pensante e passa a ser mero reprodutor do conhecimento pr-estabelecido), assim
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(...) muitos dos nossos cursos de Direito ainda se limitam ao ensino baseadoquase exclusivamente nos cdigos e sob uma tica puramente positivista.Tolhem a capacidade crtica, estreitando os horizontes do saber jurdico e
correm o risco de formar advogados perifricos, rbulas de diplomas.Reproduz-se o advogado tradicional, mas no se forma o jurista orgnicoque contribui para as transformaes sociais. (MELO, L.; 2011, p. 28).
Vlido ressaltar que, embora o jurista enquanto resultado deste sistema de
produo em srie creia piamente naquilo que repete,
essa crena dos operadores, entretanto, no consciente, , na verdade, umaviso superficial e irrefletida da realidade, supostamente cientfica, que foi
mostrada a eles pelo ensino tradicional e que no concebe alternativasepistemolgicas. A ideologia que eles repetem , segundo Marx e Engels, airreflexo da conscincia acarretada pela propaganda dos que a forjaram.(RIBEIRO, 2007)
Assim, desse contexto de inquestionvel urgncia da transformao dos padres
formais e burocrticos de manifestaes do direito que nasce a proposta de uma cincia
jurdica nova, capaz de apontar para um projeto de sociedade livre, justa e igualitria. Esse
paradigma de um novo direito tem como mola propulsora a inegvel necessidade de ruptura
tambm com as estruturas hierrquicas e elitistas sobre as quais se assenta o Estado moderno,
irrompendo-se, em conseqncia, com o prprio sistema capitalista. Frisa-se, no entanto, que,
longe de apontar solues pragmticas para a resoluo definitiva dos conflitos de classe, no
se busca aqui definir que novo contexto social emergir dessa ruptura, caracterizando-o, no
atual momento histrico, como indito-vivel.
Explica-se. Seria este horizonte indito exatamente porque no se sabe em que
moldes definidos se constituir esse novo contexto poltico, cultural, jurdico e social, porm,
sabe-se que vivel, pois se pauta na construo de uma vida social baseada nos valorescoletivos adquiridos ao longo dos processos histricos por que passam os homens e no
respeito s diferenas vivenciadas no centro da dinmica das relaes sociais. Assim, no seio
deste modelo de sociedade que se pretende alcanar, desenvolve-se uma nova concepo do
direito, pois
Superado o Direito burgus, chega a possibilidade de um que de fato atendas necessidades sociais e possibilite a realizao das potencialidades,pautado pela liberdade individual realizada nas coletivas e acompanhadopela superao do modo de produo capitalista. Passa-se de um direitopolarizado na emanao de normas por uma classe (ou grupos) dominantes econcentrado no Estado para um conjunto de normas organizacionaisrealizador e transformador das relaes sociais, realizador da justia no
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como norte ideal e estagnado, mas como justia social, encampada nahistria das lutas polticas, econmicas e sociais. (DUARTE, 2009, p. 115).
nesse ponto desta tese que se fala na transmutao da noo do direito enquanto
elemento mantenedor das estruturas desiguais vigentes na concepo do direito enquanto
poderoso instrumento utilizvel no processo de transformao da realidade social. deste
entendimento que comungam as teorias jurdicas insurgentes e em torno deste eixo terico e
de seus desdobramentos que se pretende fundamentar uma nova cincia jurdica, alterando-se,
consideravelmente, os mecanismos de sua circulao nos meios acadmicos. Logo, numa
concepo dialtica do direito, onde o humano, a sociedade, tem prioridade sobre a norma
positivada ou uma idia de justo (FURMANN, 2003, p.38) que se funda essa nova
perspectiva jurdica.
preciso definir que o direito se torna potencial instrumento de mudana social
quando utilizados pelos sujeitos oprimidos, organizados politicamente para esta finalidade.
So esses sujeitos, cujos direitos essenciais lhe so negados no paradigma tradicional de
sociedade, os legtimos para o manuseio deste arsenal jurdico libertador, como confirma
Raissa Melo:
Esta apropriao do Direito e do seu instrumental jurdico pelos
movimentos populares nos parece um sinal de novos tempos, em que oDireito deixa de ser domnio das classes privilegiadas, para ser tambm uminstrumental de trabalho e de luta das classes populares. (MELO, R.; 2002,p. 59).
No abandono das concepes neutras do direito e na assuno de uma concepo
poltica deste instrumento que se baseia o novo discurso da cincia jurdica, donde tambm
se originam conceitos e terminologias novos. No se fala mais em operadores do direito,
pois o direito no maquina inerte, que depende da provocao humana para se movimentar,
mas sim fora viva e constantemente reconstruda nas mudanas histricas realizadas pelahumanidade. Assim, fala-se em atores do direito, profissionais comprometidos com a
transformao paradigmtica de tal forma que se confundem com os grupos marginalizados,
com eles participando da luta pela efetivao dos seus direitos historicamente lesados. Altera-
se ainda, nesse novo horizonte da cincia jurdica, o termo classe social por sujeitos ou atores
sociais, capazes de transformar a realidade que os circunda e, em substituio luta de
classes, emerge a atuao dos movimentos populares (ou sociais) organizados.
Transformado o discurso da cincia jurdica, transformam-se tambm os moldesem que ela se dar no contexto acadmico. Rompe-se com o ensino jurdico e enfatiza-se a
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educao jurdica, concebida, no mbito em questo, a partir do estreitamento da conexo
entre prtica e teoria, bem como do efetivo funcionamento do pouco realizado trip
universitrio, caracterizado pelo elo entre ensino, pesquisa e extenso. Entretanto, cabe aqui
frisar que a adoo deste novo paradigma nas faculdades de direito implica na negao
viso tradicional do referido elo. Trata-se no de produes ou vivncias apartadas em cada
um destes setores da vida acadmica para posterior unio de resultados, mas de vivncias
simultneas e interligadas, tendo como fim a produo de um saber holstico, crtico e
dialtico.
Frise-se que a proposta de abertura do ensino do direito no ter alcanado seu
verdadeiro propsito se todos seus mecanismos no estiverem voltados construo de uma
nova concepo da cincia jurdica, engajada nas lutas sociais para realizao de direitospelos grupos deles desapropriados. A educao jurdica que se pretende circular no espao
acadmico passa, assim, por uma profunda reviso de conceitos e metodologias, bem como
questiona a validade de toda a engrenagem positivista que obstaculiza uma compreenso mais
ampla e sensvel do direito, permitindo-lhe efetivo alcance realidade complexa e plural da
sociedade. Prope-se, ento, a abertura do instrumental jurdico aos apelos dos grupos
oprimidos, conferindo-lhes legitimidade poltica para a confeco de seu arcabouo jurdico-
cultural, como fruto de sua participao no desenvolvimento de sua prpria histria.Nessas circunstncias, vencer o paradigma tradicional para a viabilizao de um
novo projeto de vivncia acadmica do direito requer integrao entre os agentes sociais de
aqum e alm dos limites da faculdade de direito, pois se entende que nessa integrao que a
militncia por uma sociedade mais justa se fortalece e, no centro dela mesma, promove a
transformao no s da conjuntura social que se pretende ultrapassar, mas, e anteriormente,
dos sujeitos envolvidos neste processo de mudana. Assim, imprescindvel o debate e o
dilogo dentro e fora da universidade, para que se tenha uma nova abordagem do direito aptaa contemplar os objetivos concretos desta militncia.
Retomando a idia do incio deste captulo, toda e qualquer abertura para o novo
s se torna possvel com a formulao da crtica. A partir deste marco, vislumbra-se uma
infinidade de possibilidades e lanam-se as bases para a edificao do indito, tornando-lhe
vivel. Da crtica ao positivismo jurdico e aos seus mitos inerentes, eficazmente elaborados
pelas classes dominantes, nasce a necessidade emergente de mudana das estruturas que os
sustentam e da fundao de um outro panorama jurdico, baseado em novas prticas,
abordagens e concepes, para que o direito viva e no somente sirva ao engessamento de
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3 ASSESSORIA JURDICA UNIVERSITRIA POPULAR: UMA PROPOSTA DE
TRANSFORMAO
3.1 Contextualizando a proposta da Assessoria Jurdica Universitria Popular
E no centro da prpria engrenagem, inventa a contra mola que resiste (...) e
entre os dentes segura a primavera. Essa aluso poesia de Joo Ricardo e Joo Apolinrio
explica metaforicamente o nascer, o viver e o existir de uma prtica de direito crtico. Isso
porque ela nasce da insatisfao com a realidade posta pelo paradigma tradicional demanuteno de injustias, cresce e se desenvolve na luta pela construo de um outro
paradigma, assim, resistindo ao hegemnico, e se sustenta no ideal da plenitude da igualdade
entre os homens no respeito s suas diferenas.
Como uma dessas prticas crticas de direito, a Assessoria Jurdica Popular
desenvolve-se no seio da contestao ao velho, da busca pelo novo e do desejo de libertao
dos sujeitos oprimidos de sua subjugao, em um processo emancipatrio galgado no dilogo
e na solidariedade como reconhecimento do outro como igual e no como uma postura desuperioridade sempre que a diferena acarrete inferioridade, e como diferente, sempre que a
igualdade lhe ponha em risco a identidade. (GORSDORF, 2010, p.12).
Nesse sentido, a proposta de Assessoria Jurdica Popular se respalda em uma
postura crtica perante as estruturas dogmatizadas pela compreenso do direito vigente e o
prprio mundo de explorao, usurpao e negao da condio humana dos grupos
marginalizados. Faz-se necessrio ento elucidar no que consiste essa proposta, mais
especificamente a da Assessoria Jurdica Universitria Popular, uma vez que nauniversidade que se constri a fala e a vivncia inspiradoras para o presente trabalho.
Assim, falar de uma prtica crtica de direito no mbito da universidade passa pela
crtica ao direito hegemnico e prpria instituio de onde parte esta prtica. No obstante
todo o questionamento concernente cincia jurdica e sua aplicao na vida cotidiana,
trabalhado no capitulo anterior, cabe aqui reafirmar a crtica aos moldes em que ela se d nos
meios acadmicos, como forma de enfatizar o desencadeamento da educao jurdica, em
substituio ao ensino jurdico tradicional. Desse modo, no intuito da fundao do paradigma
da educao jurdica como meio de formao para a desconstruo das desigualdades
institudas, necessrio romper com a hegemonia da educao bancria incrustada no ensino
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tcnico-formal do direito, haja vista sua finalidade de preservao de tais desigualdades. Isso
por que
Questionar, negar a legitimidade das estruturas jurdicas arcaicas no algopossvel na educao bancria, pois, pelo ensino tradicional, meramenteexpositivo, cabe ao aluno apenas assimilar a realidade terica transmitidapelo professor. Memorizar e repetir so as sadas possveis, j que seroessas as atividades mentais a serem exigidas nas avaliaes, usualmentecaracterizadas como provas. Mantida a prevalncia das aulas expositivascomo procedimento didtico-pedaggico, muito pouco se pode fazer paraalterar o atual estado das coisas em matria de ensino jurdico, pois que, taisperfis de competncias e habilidades so referenciais inadequados formao profissional competente para atender as demandas sociais atuais.(MARTNEZ, 2005, p.2-3).
Da, no processo de enfrentamento catedrtica difuso do conhecimento jurdico
desenvolve-se a noo de uma construo dialtica do direito dentro das faculdades, a partir
do debate promovido nas salas de aula, apto a expor a realidade distorcida pelos institutos
terico-jurdicos vigentes, bem como da integrao entre a sntese deste debate, a pesquisa e a
extenso acadmicas, pois que
Pesquisa e extenso so ausncias injustificveis no processo do ensinar,ausncias que fecham portas realidade. A volta da escola rua aconsolidao da unio entre ensino, pesquisa e extenso permite oconfronto entre as teorias e o mundo, e permite arejar o discurso do ensino.(CORTIANO JUNIOR, 2002, p. 237-8).
Ressalta-se, ainda, a inteno de abertura do ensino jurdico para uma cultura de
agregao das produes subjugadas, percebidas agora como fiis retratos da realidade social
de seus autores, assim como a abertura para a sua politizao tambm atravs do uso crtico e
socialmente engajado do arsenal jurdico preexistente. Nesse sentido,
a politizao do ensino jurdico significa o encontro com as pautas popularesatravs tanto da atuao nos tradicionais espaos jurdicos de formasocialmente engajada (Uso Alternativo de Direito e Positivismo deCombate) como de atividades que reconheam o povo como produtor denormas socialmente eficazes e legtimas (Pluralismo Jurdico) (RIBEIRO,2007).
que no se pode negar o diferencial resultante do manuseio alternativo das
estruturas normativas em nome das reivindicaes dos movimentos sociais articulados,tampouco que, em um processo de mudana de paradigmas, a transio inevitvel. No se
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rompe com as bases de um padro estabelecido definitivamente sem um processo (que poder
ser lento) de assimilao das novas bases em ascenso. Assim, as mudanas se do de dentro
para fora, e o primeiro passo seria a subverso do institudo. Nesse cerne, teis se fazem as
interpretaes e o uso alternativo do direito posto, tais como o mtodo que as correntes acima
mencionadas propem. Todavia, frise-se que uma concepo nova do direito baseia-se mais
firmemente nas prticas jurdicas plurais, dado seu carter efetivamente libertador.
Do contexto acima exposto, apreensvel que a educao jurdica, portanto,
Vai causar problema porque, no campo do conhecimento, o que no causaproblema no conhecimento. Vai incomodar os professores, que seroquestionados sobre a pertinncia do que fazem em termos de formar um
profissional capaz de intervir alternativamente. Vai criticar o atual currculo,muito distante da aprendizagem minimamente adequada. Vai repensar a vidaacadmica, que no pode significar aulas copiadas que apequenam o alunocomo reprodutor de conhecimento alheio. Vai ressaltar o papel da pesquisa,tanto como modo de produo de conhecimento, quanto como baseeducativa essencial. (PEDRO DEMO apud CARVALHO, 2002, p. 224-5).
Dessa forma, a proposta da Assessoria Jurdica Universitria Popular se origina
no bojo da edificao de um novo paradigma para a concepo de direito a ser vislumbrada na
Academia, uma vez que ela perpassa por um novo pensamento acerca da universidade e de
seu papel na realidade de contrastes desumanos que nos circunda. Repensando-se os
mecanismos que compem o atual ensino do direito nas faculdades e obtendo-se como
resultado novas proposies para a produo de um saber jurdico discursivo, combativo e
emancipatrio, visto por uma perspectiva poltica de comprometimento com a transformao
social, repensa-se a prpria universidade e sua metodologia de formao de profissionais, na
medida em que se questiona sua validade e os moldes em que se alcana sua verdadeira
finalidade. Assim, na proposta de um direito novo afirmado em uma universidade nova,
inserida em um projeto de sociedade diverso, que se fundamenta a Assessoria Jurdica
Universitria Popular.
3.2 Universidade e Extenso/Comunicao Popular: novos paradigmas como
pressupostos da Assessoria Jurdica Universitria Popular
3.2.1 Universidade: de onde se origina a Assessoria Jurdica Universitria Popular
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Partindo-se da premissa que a Assessoria Jurdica Universitria Popular consiste
em uma prtica extensionista desenvolvida a partir de uma postura crtica do direito e de suas
estruturas (re)produtoras de desigualdades sociais, bem como do lcus de sua atuao, qual
seja, a via de mo dupla nsita na relao universidade-sociedade, mister se faz lanar um
olhar crtico tambm sobre a Universidade enquanto instituio social.
Assim, considerando-se a origem histrica da universidade, datada da Idade
Mdia (contexto em que o conhecimento era produzido, manipulado e apropriado
exclusivamente pelo clero - categoria social detentora de privilgios tanto quanto a
aristocracia feudal), assim como o processo de adaptao desta instituio s transformaesimpetradas pelas sociedades humanas, observa-se que a definio do seu papel social
encontrou afirmao universal quando do advento da Revoluo Francesa e, por conseguinte,
da legitimao republicana nos Estados modernos. Nessas circunstancias,
A legitimidade da universidade moderna fundou-se na conquista da idia deautonomia do saber em face da religio e do Estado, portanto, na idia de umconhecimento guiado por sua prpria lgica, por necessidades imanentes a
ele, tanto do ponto de vista de sua inveno ou descoberta como de suatransmisso. Em outras palavras, sobretudo depois da Revoluo Francesa, auniversidade concebe-se a si mesma como uma instituio republicana e,portanto, pblica e laica. (CHAU, 2003, p.5).
A partir destas constataes histricas, infere-se que a universidade enquanto
instituio social ter seu papel fundado nas bases do contexto (espao e tempo) poltico-
cultural em que se insere e na forma de Estado vigente. Assim, deflagra-se verdadeira crise de
legitimidade da funo social que a universidade moderna vem desempenhando, na medida
em que ela se desvincula dos ideais democrticos e republicanos (tambm afastados dasprprias estruturas estatais), transmutando-se de instituio em organizao social,
subserviente aos interesses particulares de parcela mnima e beneficiada da populao. Da,
entende-se por organizao social um conceito que se contrape ao de instituio social, como
definido por Marilena Chau, que assim aduz:
Uma organizao difere de uma instituio por definir-se por uma prticasocial determinada de acordo com sua instrumentalidade: est referida ao
conjunto de meios (administrativos) particulares para obteno de umobjetivo particular. No est referida a aes articuladas s idias dereconhecimento externo e interno, de legitimidade interna e externa, mas a
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operaes definidas como estratgias balizadas pelas idias de eficcia e desucesso no emprego de determinados meios para alcanar o objetivoparticular que a define. (...) No lhe compete discutir ou questionar suaprpria existncia, sua funo, seu lugar no interior da luta de classes, poisisso, que para a instituio social universitria crucial, , para aorganizao, um dado de fato. Ela sabe (ou julga saber) por que, para que eonde existe. A instituio social aspira universalidade. A organizao sabeque sua eficcia e seu sucesso dependem de sua particularidade. Issosignifica que a instituio tem a sociedade como seu princpio e suareferncia normativa e valorativa, enquanto a organizao tem apenas a simesma como referncia, num processo de competio com outras quefixaram os mesmos objetivos particulares. (CHAU, 2003, p.5-15).
Nesse sentido, a universidade, como reflexo de seu tempo, traduz na sua prpria
formao interna as estruturas dominantes e mantm-se afastada dos propsitos de
democratizao e universalizao do conhecimento e de sua produo. No seio do modo de
produo capitalista, o ser humano, no exerccio de suas relaes sociais, concebido de
forma fragmentada e assim tambm o conhecimento. Como parte desta lgica, a
universidade cede aos interesses sociais fragmentados, mais especificamente aos dos grupos
detentores do capital econmico e cultural. Desenvolve-se em suas prticas o utilitarismo
mercadolgico do saber com o intuito de sastifazer as necessidades mais imediatas das
relaes de consumo e, dessa forma, no mais produz-se conhecimento, mas to somente
reproduz-se. Isso porque tais relaes so efmeras e a mera operacionalizao do
conhecimento, justificada pela urgncia de sua aplicao na vida cotidiana, no lhe permite
uma compreenso mais profunda ou crtica. A universidade transforma-se em fbrica de
respostas prontas s demandas contemponeas fugazes, ao passo que perde seu carter
construtivo, formador (e no somente informador) e despolitiza-se. Nesse cenrio, mais uma
vez leciona Marilena Chau de forma escalacedora:
A viso organizacional da universidade produziu aquilo que, segundoFreitag (Le naufrage de l'universit), podemos denominar como universidadeoperacional. Regida por contratos de gesto, avaliada por ndices deprodutividade, calculada para ser flexvel, a universidade operacional estestruturada por estratgias e programas de eficcia organizacional e,portanto, pela particularidade e instabilidade dos meios e dos objetivos.Definida e estruturada por normas e padres inteiramente alheios aoconhecimento e formao intelectual, est pulverizada emmicroorganizaes que ocupam seus docentes e curvam seus estudantes aexigncias exteriores ao trabalho intelectual. A heteronomia da universidadeautnoma visvel a olho nu: o aumento insano de horas/aula, a diminuiodo tempo para mestrados e doutorados, a avaliao pela quantidade de
publicaes, colquios e congressos, a multiplicao de comisses erelatrios etc. (CHAU, 2003, p.5-15).
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O processo de despolitizao da prtica educacional peculiar universidade
moderna passa tambm pelo afastamento quase que integral desta instituio da realidade
desigual em que se insere. O conhecimento permanece restrito ao mbito de suas salas de
aula, laboratrios e ncleos de prticas institucionalizados, bem como aprisionado em suas
ctedras, ou, como na metfora de Boaventura de Sousa Santos, consubstancia-se no
isolamento da universidade na torre de marfim insensvel aos problemas do mundo
contemporneo, apesar de sobre eles ter acumulado conhecimentos sofisticados e certamente
utilizveis na sua resoluo. (SANTOS, 1994, p.200).
Nesse contexto de questionamento da validade das prticas educativas realizadas
pela universidade, prope-se ento a ecloso de um processo de desmuralizao ou
desconfinamento das experincias vividas no mbito acadmico, com a finalidade depromover uma construo do conhecimento que seja poltica, democrtica e afinada com os
anseios de um mundo que grita por liberdade. Assim, a extenso universitria, como um dos
trips acadmicos, detm papel fundamental no desenvolvimento desse saber crtico, uma vez
que a ela concerne a caracterstica intrnseca de combinao, em uma dinmica dialgica de
troca de vivncias, entre as produes desencadeadas dentro e fora dos limites da
universidade.
3.2.2 Extenso/Comunicao Popular: prtica da Assessoria Jurdica Universitria
Popular
Este o ponto central de delimitao da proposta da Assessoria Jurdica
Universitria Popular: a extenso universitria concebida enquanto processo de comunicaode carter popular. Porm, antes da anlise mais detida acerca dos elementos basilares que
fundamentam essa proposta de transformao da realidade social, necessria uma avaliao
crtica tambm da atividade extensionista, haja vista sua insero em um contexto de
sobreposio de uma cultura hegemnica de promoo de cruis contradies em detrimento
de uma cultura marginalizada e repreendida.
Hodiernamente, entende-se a universidade como templo de produo e circulao
de conhecimentos devidamente legitimados (pois este o lugar prprio para tais prticas) ou
como mero reduto de intelectuais, responsveis pela criao e sistematizao de resultados-
solues para as necessidades mais urgentes da vida cotidiana. Na melhor das hipteses, e em
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uma perspectiva politico-social, na universidade que se formam cidados legtimos,
aptos a contribuir com o desenvolvimento da sociedade quando do exerccio e manuseio dos
conhecimentos tcnicos adquiridos em sua experincia acadmica. Assim, o conhecimento
socialmente afirmado e reconhecido encerra-se nos muros internos das faculdades, que, diga-
se de passagem, propagam-no de forma fragmentada e diretamente ligada s exigncias do
mercado. Suas problematizaes ficam a critrio do relevante ou irrelevante, institudos pelas
questes emergenciais. Ganha respaldo cientfico o indivduo que se sobressai quantitativa e
qualitativamente na resoluo destas questes, em uma disputa acirrada pela
competitividade absorvida pela universidade. Em um contexto de tantas restries s
produes espontneas e no cientficas (portanto, no legtimas) e de devoo aos xitos
logrados por mritos individuais ou mesmo de uma categoria privilegiada, a dimenso polticadas atividades acadmicas se perde e urge a necessidade de sua reestruturao.
Nesse sentido, so concebidas novas metodologias para as prticas educativas
efetuadas pela universidade efetivamente democrtica que se pretende construir e a extenso
universitria adquire o contedo poltico indispensvel a essa construo. Isso porque
A abertura ao outro o sentido profundo da democratizao dauniversidade, que vai muito alm da da democratizao do acesso da
universidade e da permanncia nesta. Numa sociedade cuja quantidade equalidade de vida assenta em configuraes cada vez mais complexas desaberes, a legitimidade da universidade s ser cumprida quando asatividades, hoje ditas de extenso, se aprofundarem tanto que desapareamenquanto tais e passem a ser parte integrante das atividades de investigaodo ensino.(SANTOS, 1994, p.225).
Nesses termos, prope-se uma extenso universitria que no corrobore com as
estruturas (re)produtoras de desigualdades, pautada na troca de experincias entre os sujeitos
(ou atores sociais) envolvidos em um processo dialgico e na consequente obteno de
proposies que apontem para o desenvolvimento de uma prxis emancipatria de tais
sujeitos, identificados politicamente pelo debate dialtico de que se fazem participantes.
Nessa troca de experincias, ressalta-se, portanto, que
necessrio imiscuir-se tanto em questes internas vividas pela faculdade,como em questes externas, principalmente aquelas ligadas ao acesso justia. Aproxima-se, por um lado, da atividade desempenhada pelosmovimentos sociais. Em poucas palavras, politizam-se a entidade e os
estudantes. Insere-os na realidade, no como mero expectador, mas comosujeito atuante. (CARVALHO, 2002, p. 232).
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Desse modo, a politizao da extenso acadmica trilha um caminho que choca
com a atividade tradicional de extenso em que os estudantes comumente atuam, consistente
na relao hierrquica de prestao de servios s comunidades ditas carentes e admitida pela
entidade universitria como sua prtica de responsabilidade social. Parte-se do pressuposto
de que esta entidade deve dar o devido retorno sociedade, em especial as instituies de
ensino pblico, porque su
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