Universidade Estadual do Cear - UECE
Jean Pierre Gomes Ferreira
Mquina de Guerra e Aparelho de
Estado: a geo-filosofia de Deleuze e
Guattari em Mil Plats
Fortaleza 2009
Universidade Estadual do Cear - UECE
Jean Pierre Gomes Ferreira
Mquina de Guerra e Aparelho de
Estado: a geo-filosofia de Deleuze e
Guattari em Mil Plats
Fortaleza 2009
Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado Acadmico de Filosofia do Centro de Humanidades CH da Universidade Estadual do Cear UECE, como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Emanuel Angelo da Rocha Fragoso
Universidade Estadual do Cear - UECE
Mestrado Acadmico em Filosofia
Mquina de Guerra e Aparelho de Estado: a geo-filosofia
de Deleuze e Guattari em Mil Plats
Jean Pierre Gomes Ferreira
Defesa em: ____ / ____ / ______ Conceito Obtido: ____________
Nota Obtida: _______________
Banca Examinadora
________________________________________________________ Prof. Dr. Emanuel Angelo da Rocha Fragoso
_________________________________________________________ Prof. Dra. Ilana Viana Amaral
_________________________________________________________ Prof. Dr. Luiz Manoel Lopes
Fortaleza 2009
A Jos Ferreira de Sousa, meu av (in memorium), com quem aprendi a cultivar a terra.
Dayana Saraiva, minha esposa,
com quem aprendi a esperar seus frutos.
E a Pierre Saraiva Ferreira, meu filho, para que aprenda a saborear os frutos que cultivei nesta terra.
Agradecimentos
A todos aqueles que tornaram possvel este trabalho, eu agradeo.
Em particular, ao professor Emanuel Fragoso, pelo incentivo, orientao e pacincia ao
longo dos anos deste trabalho, e aos professores Ilana Viana do Amaral e Luiz Manoel Lopes,
pela apreciao deste trabalho.
secretria Maria Teresa Cordeiro Styro, pelo apreo, interesse e profissionalismo
demonstrados ao longo de nossa relao acadmica.
Aos meus amigos e colegas da Escola Estadual de Ensino Profissional Marvin pela
amizade e cooperao.
minha esposa Maria Dayana Saraiva, cujo amor e dedicao me fizerem suportar
todas as crises inerentes ao processo de produo desta tese e ao meu filho por ter me
incentivado a conclu-lo.
Aos meus pais e irmos por me fazerem sempre acreditar em tudo que fao.
Universidade Estadual do Cear e aos colegas da Filosofia, pelo apoio recebido.
FUNCAP pelo apoio financeiro recebido.
RESUMO
FERREIRA, Jean Pierre Gomes. Mquina de Guerra e Aparelho de Estado: a geo-filosofia de Deleuze e Guattari em Mil Plats. Orientador: Emanuel Angelo da Rocha Fragoso; UECE-CH, 2009. Dissertao.
A geo-filosofia de Deleuze e Guattari parte de uma questo muito simples que eles desdobram de
modos diversos e a qual nos detemos aqui sobremaneira, qual seja, Qual a relao do
pensamento com a Terra? Esta questo formulada por eles, particularmente, em O que a
filosofia?, de 1991, ltima obra escrita por eles conjuntamente e que sintetiza, por assim dizer,
suas duas outras obras comuns, O anti-dipo (1972) e Mil plats (1980), os dois tomos de
Capitalismo e esquizofrenia. Obras, no caso, nas quais nos detemos mais para esclarecer o
problema da relao da filosofia com a terra do que para resolv-lo, pois se trata aqui
principalmente de analisar como Deleuze e Guattari concebem esta relao do que,
propriamente, problematiz-la, bem como demonstrar que ela no diz respeito apenas aO que
a filosofia?, enquanto obra e problema, mas tambm obra e problema da mquina de guerra e
do aparelho de Estado em Mil plats, social e politicamente, que passa seno problema dO
anti-dipo de um ponto de vista inconsciente. De modo que nosso objetivo principal com este
trabalho analisar como o problema da mquina de guerra e do aparelho de Estado em Mil
plats est diretamente relacionado ao problema da relao do pensamento com a terra ou da
filosofia com a terra no que diz respeito geo-filosofia Deleuze e Guattari. E que o problema de
uma separao e uma ligao ao mesmo tempo da filosofia com a terra de um ponto de vista do
pensamento absoluto, seja ele imanente ou transcendente, bem como da mquina de guerra e do
aparelho de Estado com a terra de um ponto de vista social e poltico relativamente, seja ele
nmade ou sedentrio. Ou ainda, o problema de um a-partamento da filosofia com a terra de
um ponto de vista do pensamento absoluto, mas tambm social e politicamente relativamente.
ABSTRACT
FERREIRA, Jean Pierre Gomes. The war machine and the State system: the Geophilosophy of Deleuze and Guatarri in A thousand Plateaus. Advisor: Emanuel Angelo da Rocha Fragoso; UECE-CH, 2009. Dissertation. The Geophilosophy of Deleuze and Guatarri starts from a very simple question which they
unfold in several ways and on which it has been focused here considerably, that is to say, "What
is the relation of the thought to the Earth?", this question was developed, especially, in What is
philosophy? (1991), last work jointly written by them and which summarizes, that is, their two
other works in collaboration, Anti-Oedipus (1972) and A thousand Plateaus (1980), the two
volumes of Capitalism and schizophrenia. From this question, we consider that it is not
related only to What is philosophy?, but also to the problem of the war machine and the State
system in A thousand Plateaus socially and politically, thus our major aim with this work is to
analyze how the relation between the war machine and the State system in A thousand
Plateaus is directly connected to the relation of either the thought to the earth or the philosophy
to the earth regarding to the geophilosophy of Deleuze and Guatarri. In that case, the relation
that we conceptualize as an a a-partament of philosophy to the earth, that is, a separation and a
connection at the same time of the philosophy to the earth, from a point of view of an absolute,
immanent and transcedent thought, as well as of the war machine and the State system to the
earth, in a nomadic and sendentary way, from a relative, social and political point of view.
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SUMRIO
INTRODUO ___________________________________________________________ 10.
Captulo 1 - Filosofia e Mtodo: o problema da origem
e a origem da filosofia de Deleuze e Guattari ___________________________ 14.
1.1 1992. O problema da origem da filosofia_______________________________16.
1.1.1 Burnet e o filsofo cientista _____________________________________ 16.
1.1.2 Cornford e o filsofo mitlogo __________________________________ 22.
1.1.3 Vernant e o filsofo cidado ____________________________________ 25.
1.2 A origem do problema da filosofia de Deleuze e Guattari__________________36.
1.2.1 A geo-filosofia e o mtodo ou maneira de pensar de Deleuze e Guattari ___ 39.
1.2.2 A filosofia de Deleuze e Guattari_________________________________ 46.
Captulo 2 - Imanncia e transcendncia da terra na geo-filosofia de Deleuze e Guattari______59.
2.1 Deleuze e as ilhas desertas__________________________________________65.
2.2 A reverso do platonismo__________________________________________73.
2.3 Diferena e repetio: a lgica do sentido______________________________80.
2.3.1 A diferena em si mesma e a repetio para si mesma:
os dois programas da diferena e da repetio_________________________82.
2.3.2 A subverso da imagem de pensamento transcendente
e o problema da lgica do sentido__________________________________110.
2.3.3 Os Esticos e a lgica do sentido__________________________________118.
2.3.4 A dupla causalidade do acontecimento e a dualidade do
sentido na superfcie____________________________________________124.
Captulo 3 - Mquina de Guera e aparelho de Estado:
a geo-filosofia de Deleuze e Guattari em Mil plats _____________________ 135.
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3.1 As mquinas desejantes do anti-dipo e o aparelho de represso edipiano:
uma introduo esquizo-anlise___________________________________141.
3.1.1 No princpio era o fim: o dipo e seu complexo aparelho de represso___144.
3.1.2 No fim era o princpio: o anti-dipo e suas mquinas desejantes________152.
3.2. A mquina de guerra nmade e o aparelho de Estado sedentrio_________172.
Concluso - A-partamento___________________________________________________192.
Referncias Bibliogrficas____________________________________________________194.
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Introduo
A geo-filosofia de Deleuze e Guattari parte de uma questo muito simples que eles
desdobram de modos diversos em suas obras e a qual nos detemos aqui sobremaneira, qual seja,
Qual a relao do pensamento com a Terra?
Esta questo formulada por eles, particularmente, em O que a filosofia?, de 1991,
ltima obra a ser escrita por eles conjuntamente a qual sintetiza, por assim dizer, suas duas outras
obras comuns, O anti-dipo (1972) e Mil plats (1980), os dois tomos de Capitalismo e
esquizofrenia, e, mais do que a resolver, trata-se aqui de analisar como Deleuze e Guattari
concebem esta relao do que, propriamente, problematiz-la, bem como demonstrando que ela
no diz respeito apenas aO que a filosofia?, enquanto obra e problema, mas principalmente
ao problema social e poltico da mquina de guerra e do aparelho de Estado em Mil plats, que
passa pelo ponto de vista do inconsciente em O anti-dipo epor grande parte da obra particular de
Deleuze.
Neste sentido, nosso objetivo no primeiro captulo analisar como este problema da
relao do pensamento com a terra est diretamente relacionado ao que a filosofia para Deleuze
e Guattari, no caso, uma geo-filosofia, j nesta conceituao podendo-se perceber uma relao do
pensamento com a terra, no caso, do pensamento filosfico com a terra. Relao que nos remete
origem da filosofia, na medida em que o problema de uma relao da filosofia com a terra
pressupe, historicamente, por um lado, uma separao com o mito, como supe J. Burnet, e,
por outro, uma ligao com ele, com supe F. Cornford, ou ainda, por fim, uma separao e
ligao ao mesmo tempo da filosofia com a terra social e politicamente na medida em que o filsofo
se torna um cidado, como supe J-P. Vernant. Todavia, uma relao, segundo Deleuze e Guatttari,
que propriamente geogrfica, e no histrica, pois o surgimento ou nascimento da filosofia
11
depende mais de um meio do que de uma origem, motivo pelo qual buscam determinar que meio
precisamente este, em primeiro lugar, o meio de imanncia da Cidade grega, com sua pura
sociabilidade, amizade e gosto pela opinio, troca de opinies, sobretudo em Atenas, a autctone, onde os
filsofos estrangeiros encontram, assim como artesos e mercadores, uma mobilidade e uma
liberdade negada pelos Estados imperiais. De modo que se a filosofia surge ou se inventa na
Grcia, dizem eles, devido a uma contingncia mais do que a uma necessidade, como tambm ocorre
em seu ressurgimento ou reinveno na modernidade.
Eis que o problema da relao da filosofia com a terra est relacionado, neste sentido, a
uma desterritorializao na terra e reterritoralizao no territrio de tipos psicossociais de um
ponto de vista relativo, isto , os filsofos, que, de um ponto de vista absoluto, coincide com sua
desterritorializao num plano de imanncia e reterritorializao no conceito a partir de
personagens conceituais criados por eles ou eles prprios. Ao que o surgimento ou inveno da
filosofia se deve, por um lado, desterritorializao na terra e reterritorializao no territrio dos tipos
psicossociais, e, paralela a esta, desterritorializao num plano de imanncia e reterritorializao em conceitos
dos personagens conceituais. Conceitos, plano de imanncia e personagens conceituais, no caso, os trs
elementos necessrios ao surgimento ou inveno da filosofia e em recproca relao, pois o
conceito necessita de um plano de imanncia para ser criado, assim como o plano de imanncia
precisa de um personagem para ser traado e o personagem conceitual quem cria os conceitos.
No entanto, o surgimento da filosofia somente possvel na medida em que o plano de
imanncia no se faz imanente a uma transcendncia, isto , quando uma iluso de
transcendncia no se projeta sobre o plano de imanncia e no o ladrilha com figuras que
impedem a criao dos conceitos, de modo que o problema da relao da filosofia com a terra,
isto , da geo-filosofia, relaciona-se tambm imanncia e transcendncia dela no pensamento, o
que analisamos isto propriamente no segundo captulo. Em particular, a partir de algumas obras
de Deleuze, tendo em vista sua tentativa de pensar uma reverso da imagem de pensamento
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transcendente que submete a imanncia a partir de uma filosofia da imanncia independente da
transcendncia de vrios modos, e, por sua vez, a partir desta filosofia da imanncia, podendo-se
pensar uma terra imanente independente de uma terra transcendente. No caso, primeiramente, a
partir de uma ilha deserta imanente em relao a uma ilha santa transcendente pensada por Deleuze
em um manuscrito dele da dcada de 50, publicado postumamente, em que podemos perceber j uma
relao do pensamento com a terra. Em segundo lugar, quando ele pretende reverter o
platonismo e seu modelo transcendente de uma terra verdadeira, superfcie celestial, a partir de simulacros-
fantasmas imanentes relacionados a uma terra subterrnea, a terra de Hades. Em terceiro lugar,
quando, a partir desta reverso do platonismo, Deleuze pretende reverter a identidade e sua
representao como imagem de pensamento transcendente a partir da diferena e repetio enquanto
pensamento sem imagem imanente. Por fim, quando reverte o sentido da lgica e sua doxa a partir da
lgica do sentido e seu paradoxo segundo o qual uma imanncia e transcendncia se constituem na
superfcie da terra propriamente dita, e o problema da relao da filosofia com a terra passa a ser um
problema social e poltico.
Neste sentido, se o problema da relao da filosofia com a terra ou geo-filosofia
formulado por eles em O que a filosofia?, este problema tambm o problema da mquina
de guerra e do aparelho de Estado, ou ainda, da geo-filosofia de Deleuze e Guattari em Mil
Plats tal como analisamos no terceiro captulo. Um problema, no caso, de como ns nos
relacionamos social e politicamente com a terra, seja de modo nmade a partir da mquina de
guerra, seja de modo sedentrio, a partir de um aparelho de Estado, e como a tornamos a partir
deles, respectivamente, um espao liso ou estriado. Um problema que se coloca, ademais, em O anti-
dipo, tambm de um ponto de vista do inconsciente na medida em que a produo desejante das
mquinas desejantes investe a produo social e poltica das mquinas sociais, e reprimida e recalcada,
principalmente, pelo aparelho de represso-recalcamento psicanaltico do dipo ao qual eles
opem o anti-dipo da esquizo-anlise. De modo que podemos afirmar que se o problema da
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relao da filosofia com a terra ou da geo-filosofia de Deleuze e Guattari a criao de conceitos e
o traado de um plano de imanncia por um personagem conceitual, podemos dizer que o anti-
dipo o personagem conceitual que traa mil plats como um plano de imanncia ao que a
filosofia de Deleuze e Guattari, isto , sua geo-filosofia, e que o problema da relao da filosofia
com a terra ou da geo-filosofia deles se d na relao destas trs obras.
Por fim, guisa de concluso, afirmamos que, de um ponto de vista relativo, o problema
da mquina de guerra nmade e do aparelho de Estado sedentrio social e politicamente em Mil
plats o problema de uma separao e uma ligao ao mesmo tempo da filosofia com a terra, de
modo imanente ou transcendente, de um ponto de vista do pensamento absoluto segundo a geo-
filosofia de Deleuze e Guattari. Ou ainda, o problema de um a-partamento da filosofia com a
terra de um ponto de vista do pensamento absoluto, mas tambm social e politicamente, que
Deleuze e Guattari no resolvem propriamente, mas o explicitam, sobretudo, em seus dois
modos de pensar e se relacionar com a terra absoluta e relativamente, isto , de modo imanente e
transcendente.
14
Captulo I Filosofia e Mtodo: o problema da
origem e a origem do problema da filosofia de
Deleuze e Guattari
O comear o momento mais delicado na correo do equilbrio. Duna, Frank Herbert
Na histria do homem, as origens geralmente nos escapam.
As origens do pensamento grego, Jean-Pierre Vernant
Pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger do caos. O que a filosofia?, Gilles Deleuze e Flix Guattari
O problema da origem da filosofia encontra trs formulaes entre os historiadores com
datas bastante precisas, em cada uma delas recebendo uma formulao diferente.
Primeiramente, a filosofia aparece como um dom de curiosidade, observao e experimentao
que a constituem como uma cincia distinta dos mitos narrados por Homero e Hesodo, sendo sua
origem concebida como uma separao em relao ao mito, mas tambm da Grcia em relao ao
Egito e Babilnia no que diz respeito a uma pretensa origem oriental da filosofia, o que isto
admitido principalmente por John Burnet em sua obra A aurora da filosofia grega, de 1892.
Num segundo momento, a filosofia aparece como uma racionalizao do mito que encontra
mais precisamente na Teogonia de Hesodo e nos mitos babilnicos sua estrutura e seu material
conceitual, sendo sua origem concebida no como uma separao em relao ao mito, muito
menos da Grcia em relao ao Oriente, mas como uma continuao, uma repetio do mito numa
linguagem diferente, havendo uma ligao entre a filosofia e o mito como concebe particularmente
Francis Cornford em sua obra From religion to philosophe, de 1912.
Num terceiro momento, reconhecida a ligao da filosofia com o mito, contudo, trata-se
de pensar novamente uma separao em relao a ele no sentido de destacar o que a filosofia
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constitui de modo verdadeiramente novo, ou ainda, como deixa de ser mito e se torna filosofia no que diz
respeito principalmente s suas condies histricas. Neste sentido, por fim, a filosofia sendo a
racionalizao da cidade numa ordem social por uma poltica e sua origem concebida como uma
separao e ligao da Polis em seu advento como ordem social em relao soberania do Imprio
Micnico antepassado dos gregos estabelecida por um rei-divino, e o nascimento do filsofo
concebido como solidrio com o aparecimento do cidado como defende Jean-Pierre Vernant
principalmente em sua obra As origens do pensamento grego, de 1962.
Formuladas de modos diferentes, estas trs concepes tm em comum a tentativa de
estabelecer a origem da filosofia como grega apesar de uma relao com o oriente, babilnico ou
egpcio, de modo que o problema da origem da filosofia o problema da filosofia como grega.
Nosso objetivo neste primeiro captulo, primeiramente, retomar o problema da origem da
filosofia nestes trs autores em sua tentativa de uma origem comum para a filosofia e a Grcia, de
modo a considerar, num segundo momento, como este problema se converte na origem do
problema da filosofia de Deleuze e Guattari, no caso, da geo-filosofia deles, na medida em que se
perguntam no livro O que a filosofia? (1991) precisamente: Qual a relao do pensamento
com a Terra?, pressupondo que Pensar se faz antes na relao entre o territrio e a terra. E, a
partir desta relao entre o territrio e a terra, buscam saber em que sentido a Grcia o
territrio do filsofo ou terra da filosofia. Por fim, demonstrar como este problema uma
questo de mtodo ou de uma maneira de pensar da filosofia em que colocam em questo como o
pensamento se relaciona com a terra, se de modo imanente ou transcendente, ou ainda, de um modo
imanente que restaura uma transcendncia.
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1.1. 1992. O problema da origem da filosofia
O problema da origem da filosofia foi bem colocado por Jean-Pierre Vernant quando
analisou e fez uma sntese dos pensamentos de John Burnet e Francis Cornford sobre a origem
da filosofia na Grcia em seu texto A formao do pensamento positivo na Grcia arcaica (1957), bem
como quando retomou o problema da origem destes dois autores de um ponto de vista histrico
original em seu livro As origens do pensamento grego (1962), cujas anlises nos detemos a seguir.
1.1.1 Burnet e o filsofo cientista
Dentre aqueles que defendem uma separao da filosofia em relao ao mito assim como
da Grcia em relao aos outros povos, John Burnet a principal referncia, pois no apenas ele
busca em sua obra comentar o pensamento dos primeiros filsofos, mas tenta estabelecer uma
origem ou uma aurora para a filosofia a partir do pensamento dos jnios sem nenhuma relao
com o mito e com o Oriente, o qual surge quase como um milagre grego.
Em primeiro lugar, se a filosofia surge na Jnia porque a Jnia uma regio sem
passado, ainda que o que se desenvolveu nela seja, como diz, uma revivescncia e continuao
do povo do mar Egeu antepassado dos jnios, pois os invasores do Norte, os aqueus,
desarticularam as enormes monarquias egias e contiveram o crescimento de uma superstio
religiosa semelhante a do Egito e Babilnia, impedindo que os gregos tivessem uma classe
sacerdotal o que produziu uma lacuna na histria grega considerada positiva, na medida em que
contribuiu para o livre desenvolvimento do gnio grego. Este livre desenvolvimento pode ser
encontrado em Homero e Hesodo nos quais os efeitos desta mudana so bem significativos
quanto ao que se perdeu e o que se adquiriu posterior invaso drica. No caso de Homero, por
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exemplo, quando mesmo pertencendo raa antiga egia, falando sua lngua, para a nobreza
aquia que canta, posto que seus deuses e heris tm quase todos nomes aqueus. Mas porque,
sobretudo, nele:
Os deuses tornaram-se francamente humanos, e tudo o que primitivo fica longe dos olhos. Existem, claro, vestgios de crenas e prticas antigas, mas eles so excepcionais. Tem-se observado com freqncia que Homero nunca fala do costume primitivo da purificao em caso de homicdio. Os heris mortos so queimados e no sepultados como os reis da antiga raa. Os fantasmas praticamente no desempenham qualquer papel. (Burnet, p. 23, 2006.) J em Hesodo, acontece um movimento contrrio at certo ponto, quando mesmo
pertencendo a uma poca posterior, porm, mais triste do que a de Homero, a Idade de Ferro, ele
aborda seu tema no esprito da raa antiga e para os pastores e agricultores desta raa que
ele canta em sua Teogonia, posto que eles ainda tinham uma viso primitiva do mundo que
Hesodo parece querer resgatar. Somente parece, porque apesar deste retorno, ele no deixa de
ser influenciado pelo novo esprito, de cantar os deuses dos aqueus como fez Homero e de,
sobretudo, apressar o declnio das velhas idias que buscava conter. [Pois] A Teogonia uma
tentativa de reduzir todas as histrias referentes aos deuses a um nico sistema, e os sistemas so
fatais para algo to inconstante como a mitologia.(Burnet, p. 24, 2006). Pode se perceber esta
dualidade do pensamento de Hesodo de resgatar e apressar o declnio da raa antiga na medida
em que sua Teogonia, como uma cosmogonia, busca a origem dos deuses remontando
especulao antiga de Caos e Eros, o primeiro como um Abismo1 e o segundo como um
impulso de criao, seu objetivo suplant-los e colocar em primeiro lugar Cronos ou Zeus
estabelecendo uma idia dos primrdios de tudo e de uma ordem da criao, algo que, segundo
Burnet, os primitivos no se sentiam intimado a fazer, cientes de que algo serviu de comeo.
1 Deve se ressaltar aqui que, para Burnet, Caos no uma mistura amorfa como geralmente se diz, apoiando-se ele na etimologia da palavra grega, que significa propriamente boca escancarada ou bocejo ou ainda abertura gigantesca. Cf. Burnet, J. A aurora da filosofia grega, nota 12, p.41, 2006.
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Em segundo lugar, se a filosofia jnica, isto se deve tambm terra egia, pois, se por um
lado, Homero e Hesodo atestam uma originalidade grega mais antiga, a egia, ainda que
influenciados pelos aqueus, por outro, em seus poemas h um sentimento de transitoriedade
que tem relao com os egeus e com a Jnia, pois, O ciclo de crescimento e declnio um
fenmeno muito mais marcante nas terras egias do que no norte, e assume mais claramente a
forma de uma guerra de contrrios entre o quente e o frio, o mido e o seco. 2 (Burnet, p. 25,
2006.) Os primeiros cosmlogos, neste sentido, encaram o mundo usando de emprstimo
termos da sociedade humana para explicar as mudanas sazonais, j que uma regularidade, uma
constncia e uma ordem eram mais claramente percebidas nas leis e costumes sociais do que na natureza.
E esta transitoriedade das terras egias numa disputa de contrrios os leva a pensar numa phsis,
algo sempre-novo, imortal, uma substncia primordial, algo permanente no fluxo das coisas, que tanto pode
se referir a um material, uma composio, um carter ou uma constituio geral quanto a mltiplos materiais,
composies, carter ou constituies gerais, como em Empdocles e nos atomistas, que utilizam
o mesmo termo phsis para significar o material primitivo e assim estabelecer uma base comum,
da qual provinham e para a qual tinham de retornar [os contrrios], sendo este o verdadeiro
significado do monismo jnico. (Burnet, p. 26, 2006).
Da busca deste algo sempre-novo, imortal, desta base comum que encontra nas terras
egias seu principal motivo, advm a principal tese de Burnet quanto origem da filosofia na
Jnia, qual seja, a do carter cientfico dos primeiros filsofos, que os distancia da superstio e
religiosidade dos antigos em seus mitos, devido observao e experimentao, mas tambm
distancia a filosofia de uma pretensa origem oriental pela influncia da matemtica egpcia e da
astronomia babilnica. Este carter cientfico pode ser percebido em Eurpides posto que em um
fragmento deste, influenciado por Anaxgora, tem-se, segundo Burnet, uma prova clara da
2 Esta uma primeira crtica de Burnet a Cornford, por este fazer derivar a doutrina dos contrrios de uma representao religiosa, e no do que se impe ateno, no caso, nas terras egias.
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relao entre a histora (investigao cientfica) jnica e a phsis.3 Mas tambm este carter
cientfico dos jnicos se atesta pela secularidade dos primeiros filsofos, seja pelo fato de ter
havido uma ruptura com a antiga religio egia aps a invaso dos aqueus, seja por no haver
uma forte influncia do politesmo olmpico sobre eles, posto que mesmo usando a palavra thos
(deus) para significar muitas vezes a substncia primordial, o que se considerava deus na poca
dos primeiros filsofos no era objeto de culto, como no caso dos corpos celestes
considerados divinos diferentemente do que existia na Terra pelos antigos, distino no
reconhecida pelos primeiros filsofos.4 Os deuses eram apenas uma personificao de
fenmenos naturais e paixes humanas, de modo que no havia um uso religioso da palavra deus,
o que reconhecer isto, diz Burnet (p. 30, 2006), extremamente importante, pois, com isso, no
incorremos no erro de fazer a cincia derivar da mitologia.5
A defesa da origem da filosofia como jnica segundo esta cientificidade encontra sua
expresso mais radical quando se trata de uma pretensa origem oriental da filosofia ou da influncia de
uma saber oriental sobre a mente dos gregos. Para Burnet, em primeiro lugar, a antiguidade da
civilizao egia possibilita que o que se considera oriental seja, na verdade, nativo, e, no que diz
respeito a uma influncia posterior, nem Herdoto, que acreditava numa origem egpcia da
religio e civilizao gregas, nem Plato, que respeitava os egpcios, nem Aristteles que
menciona a origem da matemtica no Egito do testemunhos sobre uma origem da filosofia a
partir do oriente. Em segundo lugar, trata-se de um preconceito quanto originalidade dos
gregos, que tem sua fonte, segundo ele, num mtodo de interpretao alegrico, j que os egpcios e
3 Eis a reproduo do fragmento de Eurpides apud Burnet (p. 27, 2006): Feliz aquele que da investigao (histora)/ recebeu conhecimento (mthesis), sem instigar/ o sofrimento dos cidados/ nem aes injustas;/ mas, observando a ordenao da sempre-nova/ natureza imortal, uniu/ o onde e o como./ Para esses, jamais o estudo se aproxima das obras vergonhosas. 4 Segundo Burnet, esta no distino entre Cu e a Terra teria feito progredir a cincia jnica na medida em que suas idias admitiam correo e desenvolvimento, ao contrrio do que vai acontecer, segundo ele, quando Aristteles retoma essa distino como a de ourans e a sublunar, que faz seno deter o andamento da cincia. Cf. Burnet, J. A aurora da filosofia grega, nota 63, p. 48, 2006. 5 Esta a principal crtica de Burnet a Cornford pois considera um erro fundamental deste no perceber quo completamente as antigas representaes coletivas haviam perdido sua influncia na Jnia, no reconhecendo suficientemente o contraste entre a cincia jnica e a antiga tradio. (Nota 35, p. 44, 2006)
20
judeus, aps terem transformados seus mitos em alegorias influenciados pela filosofia grega,
fizeram a filosofia derivar de seus mitos alegricos, considerando que havia assim uma filosofia
egpcia, moisesta ou mosaica dos filsofos gregos, mtodo que foi transmitido aos apologistas
cristos e retomado no renascimento moderno. Em terceiro lugar, no se pode comprovar que a
filosofia tenha sido transmitida da mesma maneira que as artes foram transmitidas do oriente para
os gregos, pois nem os viajantes gregos nem os egpcios sabiam falar ou escrever bem a lngua de
um e de outro, principal meio de comunicao das idias filosficas. Por fim, no se confirmando
que existisse uma filosofia propriamente egpcia que pudesse ser transmitida.
No que diz respeito a uma influncia da matemtica egpcia e da astronomia babilnica na
filosofia grega, notadamente a partir de Tales considerado primeiro filsofo e tambm o primeiro
gemetra, se isto acontece, a filosofia no deixa de ser grega no modo como a matemtica e a
astronomia so tratadas pelos primeiros filsofos jnios. Primeiramente, quanto aritmtica, os
egpcios no iam alm do que os gregos chamavam de logstica, isto , do modo de distribuir
eqitativamente algumas medidas, alimentos e salrios para determinadas pessoas, como atesta
Plato em suas Leis, algo diferente do que os gregos chamam de arithmetik, o estudo cientfico
dos nmeros. Em segundo lugar, a geometria egpcia tinha apenas fins prticos servindo como regra
para a medio e clculo exato das reas de terra do rio Nilo aps as inundaes, diferente da
cincia da geometria inventada propriamente por Pitgoras que consiste, por um lado, numa
generalizao da utilizao da geometria, como em Tales que a usa para medir distncias de
objetos inacessveis, por exemplo, os navios em relao terra, e, por outro, numa construo
de figuras a partir de linhas, acompanhada pela demonstrao, como afirma Demcrito apud
Burnet (p. 33, 2006).
J em relao astronomia babilnica, ela no tinha um interesse cientfico. Para os
babilnicos, o mapeamento das estrelas e a identificao dos planetas tinham mais relao com a
mitologia e os eclipses uma relao com a adivinhao. Os jnicos, pelo contrrio, tinham um
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interesse cientfico com a astronomia e fizeram descobertas de importncia crucial, notadamente
trs, segundo Burnet: de que a Terra esfrica e no se apia em coisa alguma, de que ela no o
centro do universo, mas gira como os outros planetas ao redor do Sol e, em terceiro lugar, terem
explicado teoricamente os eclipses lunares e solares.
Por fim, a origem da filosofia na Jnia ou propriamente na Grcia deste modo cientfico
sendo ressaltada por um dom da curiosidade, s vezes ousado, desmedido, insolente ou mesmo
pueril dos gregos, pois, por um lado, este dom est diretamente ligado s observaes que eles
faziam, por exemplo, na biologia marinha, com Anaximandro, de modo que Burnet se pergunta:
Ser porventura concebvel que no usassem seus poderes de observao para satisfazer essa
curiosidade?(p. 37, 2006) Por outro, este dom estando relacionado ao mtodo experimental, como
na clepsidra de Empdocles, por ser inconcebvel que um povo curioso aplicasse o mtodo
experimental a um nico caso, sem estend-lo a outros problemas(Burnet, p. 38, 2006.), isto ,
sem generalizar as experincias ao Universo inteiro e construir para ele um sistema e leis. Foi este
dom, por sua vez, que permitiu um progresso cientfico dos primeiros filsofos jnios e gregos j que
eles avanavam de uma hiptese menos adequada a uma mais adequada, como no caso
notadamente da hiptese geocntrica suplantada em pouco tempo pela hiptese heliocntrica,
posto que, conclui Burnet (p. 38, 2006): Justamente por ter sido o primeiro povo a levar a srio
a hiptese geocntrica, os gregos foram capazes de suplant-la. E por isso, enfim, os gregos tm
o direito de serem considerados os criadores da cincia.
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1.1.2 Cornford e o filsofo mitlogo6
Se para Burnet, a filosofia se origina na Jnia como uma cincia e o filsofo , assim, um
cientista jnico em sua aurora, para Cornford, a filosofia tambm se origina na Jnia, mas o filsofo
no propriamente um cientista, e sim, um mitlogo, de modo que se pode perceber uma clara
oposio entre os dois autores quanto origem da filosofia a partir da cincia ou do mito.
Segundo Vernant, a obra de Francis Macdonald Cornford, From religion to
philosophy, de 1912, marca uma mudana histrica no que diz respeito origem da filosofia,
pois a torna problemtica com o liame que estabelece entre o pensamento religioso e o
pensamento racional no que diz respeito aos gregos, mas tambm com o liame estabelecido entre
os gregos e civilizaes orientais, como a Babilnia, colocando em questo a originalidade da
filosofia na Grcia ou, propriamente, ser ela um milagre grego. Segundo ele, a obra de
Cornford devedora de uma poca que se inquieta pelo seu futuro e em que pe em dvida os
seus princpios, [em que] o pensamento racional volta-se para as suas origens: interroga o seu
passado para se situar, para se compreender historicamente.(Vernant, p. 350, 1990), pois a
confiana do Ocidente no monoplio de sua razo foi abalada com a crise da lgica clssica a
partir da fsica e da cincia contemporneas e com os contados com a China e a ndia que
romperam os quadros do humanismo tradicional e levaram o Ocidente a no ter no seu
pensamento o pensamento.
Cornford se opunha a constatao tcita de que a origem da filosofia era um milagre
grego propondo como principal tese uma continuidade histrica entre o pensamento religioso e o 6 O filsofo como mitlogo no uma afirmao do prprio Cornford diferentemente do que faz Burnet ao considerar os primeiros filsofos como cientistas. Contudo, podemos inferir isto na medida em que o que se coloca em questo com Cornford uma racionalizao do mito, isto , uma transposio dele para um pensamento racional, o que pressupe seno uma tentativa de compreenso do mito segundo um estudo do que ele quer dizer, resultando numa mitologia possivelmente, como acontece, por exemplo, no Fedro, de Plato, em que Scrates e Fedro discutem o mito do rapto de Ortias por Breas, ainda que sem maior interesse por parte de Scrates. Acrescentamos que as referncias ao problema da origem em Cornford so a partir de Vernant, o que nos faz resumir muito o pensamento daquele, diferentemente do que fizemos com Burnet, porm, sem contradizer o que aquele pressupunha em seus primeiros estudos, assim acreditamos.
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pensamento dos primeiros filsofos a partir de algo que fosse comum ou permanente em ambos,
que ele encontra principalmente no sistema de representao e no material conceitual que os antigos
poetas elaboraram e os primeiros filsofos laicizaram, na medida em que os elementos destes
permanecem potncias ativas, animadas e imperecveis, sentidas ainda como divinas,7 apesar de
no serem mais personagens mticas, porm, to pouco sendo consideradas realidades concretas,
como considerava Burnet.
em Homero e Hesodo, principalmente, que esta permanncia ressaltada, pois: O
cosmo dos jnios organiza-se segundo uma viso das divises das provncias, uma partilha das
estaes entre foras opostas que se equilibram., (Vernant, p. 351, 1990), assim como em
Homero e Hesodo o mundo se ordena por uma partilha dos domnios e das honras entre os deuses
feitas por Zeus. Os primeiros filsofos pretendem dar uma resposta a um mesmo tipo de questo
que se encontra em Hesodo, qual seja, como pode emergir do caos um mundo ordenado?, e
encontram em duas verses de seu poema um modelo para organizao do cosmo e para o carter
natural da fsica. Em primeiro lugar, na verso em que Zeus luta pela soberania contra Tifo,
drago de mil vozes, fora de confuso e de desordem, e o mata, deste saindo os ventos que
separam o Cu da Terra, em seguida, Zeus tomando o poder e repartindo as honras e os
domnios (esta, ademais, uma narrativa que tem como modelo a festa real da criao do ano-novo
na Babilnia, em que o rei, no fim de um ciclo temporal, isto , de desordem, quando o mundo
retorna ao seu ponto de origem, reafirma seu poder de soberania com a representao da vitria
do deus Marduc sobre o drago Tiamat de cujo corpo criado o cu, assim como os astros e seus
movimentos, os anos, os meses e a raa humana, depois, Marduc distribuindo os privilgios e os
destinos. O que, deste modo, se estabelece tambm um liame entre a origem da filosofia no
apenas com o mito e a religiosidade grega hesidica, mas tambm com o mito e religiosidade
babilnica.) Em segundo lugar, e mais importante, na verso da emergncia da ordem do mundo
7 Sobre as duas crticas de Burnet a Cornford neste sentido, Cf. notas 2 e 5 deste captulo.
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a partir do Caos, um sorvedouro sombrio, vcuo areo onde nada distinto, um abrir-se, uma
boca que se abre, escancara-se para que a Luz e o Dia nela se introduza, dissipe a Noite e separe a
Terra e o Cu, assim como o Mar, donde a gnese da ordem ou do cosmo, segundo Hesodo,
uma separao ou uma segregao de elementos que esto unidos ou mesmo confundidos na
Noite do Caos, somente depois, com o Amor (Eros), havendo uma unio e uma aproximao dos
opostos, como do Cu com a Terra, dos quais nascem Cronos e, deste, por seguinte, Zeus.
Verso na qual se encontra, portanto, um processo natural de organizao do cosmo exposto por
Hesodo cuja estrutura comum da cosmologia dos primeiros filsofos na medida em que
segundo estes tambm:
1.) no comeo, h um estado de indistino onde nada aparece; 2.) desta unidade primordial emergem, por segregao, pares de opostos, quente e frio, seco e mido, que vo diferenciar no espao quatro provncias: o cu de fogo, o ar frio, a terra seca, o mar mido; 3.) os opostos unem-se e interferem, cada um triunfando por sua vez sobre os outros, segundo um ciclo indefinidamente renovado, nos fenmenos metericos, na sucesso das estaes, no nascimento e na morte de tudo o que vive, plantas, animais homens. (Vernant, p. 353, 1990.)
Diante das comparaes entre a cosmologia dos primeiros filsofos e os mitos de
Homero e Hesodo, assim como dos babilnicos, que Cornford estabelece, Vernant demonstra o
sentimento comum que podemos ter na medida em que a filosofia aparece a no como um
milagre grego, algo original, autntico, possuindo uma identidade bem delimitada ou
constituda, mas se contenta em repetir em uma linguagem diferente o que j dizia o mito. Mais
ainda, ele recoloca o problema da origem da filosofia de um ponto de vista de sua identidade com
a Grcia e consigo mesma ao dizer que, tendo se reconhecido a filiao explicitada por Cornford,
J no se trata apenas de encontrar na filosofia o antigo, mas de destacar o verdadeiramente
novo: aquilo que faz precisamente com que a filosofia deixe de ser mito para se tornar filosofia.
(Vernant, p. 354, 1990) como se, neste sentido, a filosofia ao encontrar a sua origem no mito,
dele tivesse que se separar novamente, buscar de novo sua identidade, porm, j no mais em si
mesma, de modo autntico, original ou absoluto, mas em sua diferena e repetio em relao ao
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mito, no devir do mito em filosofia e se perguntar, afinal, O que a filosofia?, para se compreender
historicamente. O que, se isto foi de certo modo colocado por Cornford em seus ltimos
estudos como diz Vernant, o pensamento dele no vai to longe neste sentido.
1.1.3 Vernant e o filsofo cidado
Se para Burnet, o filsofo era um cientista jnico que, pelo dom de curiosidade, observao
e experincia, chega filosofia e, para Cornford, o filsofo era um mitlogo, que, pelo modelo de
pensamento mtico chega a uma estrutura de pensamento filosfico diferente ainda que repetida
em relao ordem natural, para Vernant, o filsofo um cidado em que j no mais a cincia
ou o mito que torna possvel o alvorecer da filosofia, mas o advento da prpria Grcia como polis
ou cidade-Estado.
Pode-se dizer que o pensamento de Vernant constitui, por assim dizer, uma sntese das
posies dos dois autores anteriores, pois, se por um lado, ele segue Cornford ao dizer que assim
como a filosofia se desenvolve do mito, como o filsofo deriva do mago, assim tambm a
Cidade se constitui a partir da antiga organizao social (p. 366, 1990), por outro, a questo da
identidade da filosofia com a Grcia exaltada por Burnet at mesmo como um milagre adquire
em Vernant uma histria ao ponto de no vermos contradio entre milagre e histria, to somente
a explicao de um pela outra na medida em que se Burnet considerava que os termos
empregados pelos primeiros filsofos eram tomados de emprstimo da sociedade humana na
qual uma regularidade e constncia eram percebidas com maior clareza do que na natureza,
em Vernant trata-se justamente de saber como a sociedade humana grega encarnada na polis se
constituiu possibilitando o surgimento do filsofo e sua physis partindo do pressuposto de que:
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A ordem social, tornada humana, presta-se a uma elaborao racional do mesmo modo que a
ordem natural tornada physis. ( Vernant, p. 366, 1990)
Com Vernant, o problema da origem da filosofia j no tanto o de sua relao ou no
com o mito enquanto filosofia ou como cincia, mas o problema da relao da filosofia com a
polis grega. Ao se perguntar Onde comea a filosofia?, ele coloca justamente em questo uma relao
ntima entre a filosofia e os gregos no simplesmente como homens curiosos, observadores ou de
uma mitologia extraordinria, mas principalmente como povo em um determinado lugar, isto ,
coloca em questo aquilo que at ento no se questionava, e sim, dava-se como certo, a relao
do filsofo com o povo e a terra grega ou com a polis grega. De modo que o problema da origem
da filosofia aparece nele como o problema da origem da Grcia e o problema do nascimento do
filsofo como o do aparecimento do cidado grego, como ele diz sem se surpreender:
A solidariedade que constatamos entre o nascimento do filsofo e o aparecimento do cidado no para nos surpreender. Na verdade, a cidade realiza no plano das formas sociais esta separao da natureza e da sociedade que pressupe, no plano das formas mentais, o exerccio de um pensamento racional. (Vernant, p. 365, 1990.) O pensamento racional filosfico no surge, assim, de um milagre ou de uma mitologia,
mas est diretamente relacionado constituio da cidade como uma separao entre natureza e
sociedade, o que somente possvel depois de um longo perodo histrico dividido em trs
momentos especficos: primeiramente, a constituio de uma soberania palaciana da realeza
micnica do antigo povo egeu, mais antigo antepassado dos gregos; em segundo lugar, a
destruio do domnio real da soberania micnica pelos dricos produzindo, por um lado, um
perodo de isolamento dos gregos em relao ao Oriente com o fechamento do mar
Mediterrneo seguido, por um lado, de um perodo de expanso com a retomada do contato com
o Oriente, porm, com uma crise social e de valores devido a disparidade social e de valores entre
os gene ou linhagens aristocrticas e guerreiras e o demos ou aldees, ambos remanescente da antiga
soberania micnica destruda em seu poder real; por fim, em terceiro lugar, a constituio da polis
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propriamente dita como um cosmo humano organizado pelo universo espiritual dos Sbios, forma na
qual vo aparecer os primeiros filsofos, mas da qual se distinguem medida que constituem
escolas e um pensamento propriamente filosfico independente de um carter mstico ou religioso.
Num primeiro momento, natureza e sociedade se confundiam sob a ordem divina de um rei
soberano que: no domina somente a hierarquia social; intervm tambm na marcha dos
fenmenos naturais. A ordenao do espao, a criao do tempo, a regulao do ciclos das
estaes aparecem integrados na atividade real; so aspectos da funo de soberania.( Vernant,
p. 80, 1992). No caso dos gregos, este domnio soberano do rei tem sua origem no povo indo-
europeu antepassado do homem grego estabelecido nas margens do Mediterrneo tanto do lado
ocidental, constituindo a realeza micnica egia antepassada dos gregos continentais, como do lado
oriental, constituindo os hititas, os quais se assemelham aos micnicos em organizao social e
pela utilizao de cavalos e carros para fins militares.8
A realeza micnica ao mesmo tempo em que manteve uma estreita relao com o oriente
em princpio devido sua relao originria com os hititas que para l se expandiram tambm se
diferenciou destes, como se pode perceber em sua estrutura palaciana em que o rei por meio de
seu palcio centraliza e controla a vida social com um papel ao mesmo tempo religioso, poltico,
militar, administrativo e econmico, e se destaca juntamente a ele, num papel administrativo, a
figura do escriba que com o domnio da escrita registra todos os aspectos da vida social permitindo
um controle, uma fiscalizao e um domnio minucioso pela realeza. Um controle reforado,
ademais, pela arquitetura dos palcios micnicos em relao, por exemplo, a dos palcios de Creta
que lhe serviram de modelo aps a tomada desta9, pois os palcios de Creta so:
ddalos de compartimentos dispostos aparentemente em desordem em torno de um ptio central, so construdos no mesmo nvel que a regio circunvizinha sobre a qual se abrem sem defesa por amplas estradas
8 Cf. Vernant, J-P, pp.10-11, 1992, onde estabelecida a relao entre micnicos e hititas no que diz respeito a utilizao do cavalo e dos carros, notadamente, a pr-histria do deus Posido em relao a isto. 9 Creta foi dominada pelos micnicos por volta de 1450 a partir da qual os micnicos estabeleceram um amplo domnio no Mediterrneo oriental. Cf. Vernant, p. 13, 1992.
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que vo ter ao palcio. O solar micnico, tendo no centro o mgaron e a sala do trono, uma fortaleza cercada de muros, um abrigo de chefes que domina e fiscaliza a regio plana que se estende a seus ps. (Vernant, p. 18, 1992. Grifo nosso.)10 O palcio real micnico no centraliza simplesmente a vida social como podemos
perceber, ele estende seu poder a uma regio plana onde o escriba d lugar a outros
personagens tpicos que asseguram o poder do rei. H um processo, por assim dizer, de
descentralizao real em que o rei, dispondo do ttulo do wa-na-ka ou nax que lhe permite
concentrar ao mesmo tempo o domnio militar e religioso, tem como extenso deste poder a
ajuda de dois personagens importantes, o la-wa-ge-tas, militarmente, e o pa-ri-seu, religiosamente.
O la-wa-ge-tas o chefe do las, um povo armado ou um grupo de guerreiros que estabelece uma
ligao militar entre a corte e os comandos locais como sequitrios do rei e que, em algumas
circunstncias, alguns destes detm o mesmo privilgio do tmenos concedido ao wa-na-ka (nax),
isto , o privilgio de ter uma terra, arvel ou de vinhas, oferecida com os aldees que a
guarnecem ao rei, aos deuses, ou a um grande personagem em recompensa de seus servios
excepcionais ou de suas faanhas guerreiras. (Vernant, p. 20, 1992.) J o pa-ri-seus ou basileus
tem uma funo religiosa e administrativa no qual seu poder se confunde com o poder do rei,
pois ele surge segundo uma diferena e polaridade fundamental na sociedade micnica
estabelecida a partir da tenncia do solo, dividida em dois tipos bem distintos que chegam
mesmo a se opor, o ki-ti-me-na Ko-to-na ou terras privadas com proprietrios e o ke-ke-me-na
Ko-to-na ou terras comuns dos demos da aldeia, propriedade coletiva do grupo rural. A
tenncia das terras privadas est em relao direta com o domnio do rei e a posse individual da
terra seja por ele, seja por seus guerreiros a partir do tmenos. J a segunda, a tenncia das terras
10 Esta caracterstica da realeza micnica permite, por um lado, a interpretao dela como burocrtica e semelhante
aos povos fluviais do Oriente prximo. Mas tambm, por outro lado, na arquitetura do palcio micnico pode-se perceber uma primeira separao entre a natureza e a sociedade bem demarcadas pelos muros do palcio separando a sociedade estabelecida entre os dignatrios da realeza com funes bem especializadas e as regies planas, naturais, onde vivem os agricultores e pastores. O que isto se aprofunda com uma comparao com os hititas indo-europeus, parentes dos gregos que se estabeleceram no Oriente prximo e seu pankus, assemblia de gerreiros em oposio aos agricultores e pastores. Cf. Vernant, p. 17, 1992.
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comuns possui um outro nvel de organizao segundo as tradies e hierarquias locais na qual
aparece justamente o personagem do pa-ri-seus (basileus). Ele um simples senhor, dono de um
domnio rural e vassalo do nax, mas que tem uma responsabilidade administrativa bem definida
no que diz respeito ao fornecimento de metal para realeza, principalmente bronze, e tem ao seu
comando o ko-re-te ou regedor de aldeia, semelhante ao la-wa-ge-tas chefe militar do rei.
Juntamente com a Ke-ro-si-ja (gerousia) ou o Conselho dos Velhos, assemblia formada pelos
chefes das casas mais influentes, o Pa-ri-seus estabelece o domnio das terras comuns com uma
relativa autonomia, onde h ainda a presena do demos, os aldees que so meros espectadores
sem direito a fala e que expressam seus sentimentos de aprovao ou descontentamento apenas
em rumores.11
A invaso drica assinalada por Burnet como positiva em relao genialidade grega
parece se confirmar com o papel decisivo dela na constituio da polis grega como se pode
perceber em Vernant. Primeiramente, ela destri o domnio militar e religioso (nax) do rei divino
estabelecendo a partir de ento uma distncia insupervel entre homens e deuses, mas tambm a
perda de uma unidade e de uma ordem social e natural exercida por ele, bem como o
desaparecimento da prpria escrita com a destruio de seu aparelho administrativo. Em segundo
lugar, ela estabelece uma tomada de conscincia da separao do tempo em passado e presente com
a mudana da metalurgia do bronze para o ferro e a constituio de uma idade de ferro atual em
relao antiga idade de bronze.12 Em terceiro lugar, ela separou o mundo dos mortos do mundo dos vivos
e o liame entre o cadver e a terra com a substituio da prtica da inumao pela cremao dos
cadveres. Em quarto lugar, ela substituiu as cenas da vida animal e vegetal nas cermicas por
uma decorao geomtrica, rida e rigorosa excluindo elementos msticos da tradio egia. Por
11 H neste domnio rural como veremos um ensejo do que venha a ser a futura polis grega.
12 No que diz respeito a esta separao, podemos perceber isto em Hesodo em sua distribuio das idades de ouro, bronze, dos heris e de ferro e como isto sentido por ele na descrio delas.
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fim, ela separou a Grcia do Oriente j que Abatida Micenas, o mar deixa de ser um caminho de
passagem para tornar-se uma barreira.(Vernant, p. 24, 1992)
Todavia, o trao mais marcante da invaso drica no parece ter sido tanto o que ela
destruiu, modificou, ou introduziu, mas o que ela deixou escapar por uma linha de fuga, por assim dizer,
a partir da qual foi justamente criada a polis grega. No caso, o domnio do basileus no qual se pode
dizer que o domnio do nax real micnico se manteve, se no em suas estrutura palaciana, pelo
menos, em seu aspecto local ou provinciano, a partir do qual o universo espiritual da polis como um
cosmo humano organizado pensado segundo a hierarquia social e foras sociais contrrias que nele
residem, j que, como diz Vernant (p. 25, 1992):
O termo nax desaparece do vocabulrio propriamente poltico. substitudo, em seu emprego tcnico para designar a funo real, pela palavra basileus cujo valor estritamente local observamos e que, de preferncia a uma pessoa nica a concentrar em si todas as formas de poder, designa empregado no plural, uma categoria de Grandes que se colocam igualmente no cume da hierarquia social.
Se o domnio do basileus escapa dominao drica, ele no deixa de sofrer tambm um
processo de anomia ou desordem devido uma crise da soberania que ento se estabelece com o
desaparecimento do nax, o qual faz surgir um esprito de agn ou de disputa entre os gene
nobilirios e, por seguinte, uma crise da cidade com a diviso social entre urbanos e rurais em
que o privilgio religioso administrativo do basileus detido por uma aristocracia guerreira com sua
arete, sua thyms e sua hybris se ope nitidamente ao demos, classe alde rural encarregada da
agricultura.
No caso da crise da soberania, h uma disputa para saber quem exerce a partir de ento o
poder religioso, militar e de arch ou de comando poltico com o desaparecimento do nax real, o que
isto resolvido em parte com uma diviso do poder entre o basileus, que passou a ter uma funo
especificamente religiosa, o polemarca, chefe dos exrcitos que exerce uma funo militar e o
arcontado grupo de arcontes aos quais a arch (comando poltico e jurdico) da cidade delegada
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atravs de um sistema de eleio anualmente. Contudo, ao mesmo tempo em que o poder se
divide deste modo, no deixa de haver um esprito de gon, isto , de conflito, rivalidade,
concorrncia e de disputa entre os gene nobilirios, aqueles que compem o poder em suas funes
religiosa, militar e poltica.
Este esprito de gon no gera apenas uma crise de poder, mas tambm uma crise na
cidade de modo geral, principalmente com a retomada do comrcio martimo pelos gregos e de
seus contatos com o Oriente que beneficia particularmente a aristocracia guerreira e sua ostentao
de riqueza. Donde uma perda de vergonha por parte desta aristocracia assim como uma exaltao
de sua hybris ou paixes individuais prprias riqueza, em que prevalecem a ambio, a
arrogncia, a astcia, a arbitrariedade, a injustia e a violncia de um sentimento de vingana de sangue como
direitos particulares dos gene a qual, unida ao valor guerreiro e qualificaes religiosas prprias,
por um lado, marcam sua supremacia e domnio sobre os rivais e, por outro, produzem uma
dissociao e diviso da sociedade entre ela e o demos de aldees, ou entre a cidade e a zona rural.
O que isto ressaltado, num plano pr-jurdico, por um embate de foras entre os gene em que
a vingana de sangue a contrapartida ofensa sentida criando um ciclo de assassnios entre as
famlias; num plano religioso, onde cada genos se afirma como senhor de certos ritos, possuidor
de frmulas, de narrativas secretas, de smbolos divinos especialmente eficazes, que conferem
poderes e ttulos de comando. (Vernant, p. 32, 1992.); na guerra, em que uma aristeia manifesta o
valor militar pela superioridade pessoal, pela lyssa (um furor belicoso) e pelo menos (um ardor
inspirado por um deus), onde a virtude guerreira se faz do domnio da thyms, isto , da
afetividade, das emoes e das paixes, a qual reflete a aret ou virtude prpria de uma aristocracia
como sua qualidade natural ligada ao brilho do nascimento, manifestando-se pelo valor do
combate e pela opulncia do gnero de vida(Vernant, p. 58, 1992.); por fim, num plano poltico,
32
quando uma oposio se estabelece entre os grupos e seus argumentos contrrios na gora em que
cada um se ope ao outro numa disputa oratria.13
A todo este esprito de gon ou poder de conflito inspirado na entidade divina de Eris que
compe a sociedade grega em sua hierarquia prpria de aristocratas, guerreiros e aldees, que a
polis se contrape marcando decisivamente a histria grega como um cosmo humano organizado com
universo espiritual prprio. Um aspecto deste universo espiritual advm da prpria aristocracia
guerreira, no caso, o princpio de isonomia em que h uma igual participao de todos no
exerccio do poder, pois, apesar das diferenas entre os gene, eles se consideravam como Hmoioi
(semelhantes) ou Isoi (iguais), associados numa mesma comunidade por uma Philia (amizade ou
amor). Um outro aspecto, a preeminncia do logos (palavra falada) enquanto instrumento de
poder a partir de um debate contraditrio, uma discusso e uma argumentao diretamente relacionada
poltica, que se tambm advm da aristocracia guerreira, adquire com a polis um carter pblico, seja
por colocar em debate as condutas, os processos e os conhecimentos que eram privilgios
exclusivos do basileus, seja por fazer destas condutas, processos e conhecimentos uma cultura
comum com a sua divulgao atravs da escrita, readquirida a partir dos fencios, e da redao das
leis como regra geral a ser aplicada a todos da mesma maneira. O que, para isto, a centralizao da
polis numa gora foi um aspecto decisivo, posto que:
As construes urbanas no so mais, com efeito, agrupadas como antes em torno de um palcio real, cercado de fortificaes. A cidade est agora centralizada na gora, espao comum, sede da Hestia Koin, espao pblico em que so debatidos os problemas de interesse geral. a prpria cidade que se cerca de muralhas, protegendo e delimitando em sua totalidade o grupo humano que a constitui. (...) [E] Desde que se centraliza na praa pblica, a cidade j no sentido pleno do termo, uma polis. (Vernant, p. 31, 1992.)
13 Apesar da gora representar um espao pblico com carter igualitrio de opinies e manifestaes, ela no deixa de ser um espao em que os gene pretendem estabelecer os seus privilgios, que o que buscamos ressaltar aqui. Mais frente, veremos como este espao pblico se torna no apenas um espao de reunies, mas principalmente poltico, isto , em que a polis se centraliza em seu poder.
33
Mas este espao pblico da gora no seria nada sem uma organizao do cosmo humano
e do universo espiritual da polis pelos Sbios ou os primeiros filsofos j que, diz Vernant (p.
365, 1990):
A sabedoria do filsofo designa-o para propor os necessrios remdios subverso que provocaram os comeos de uma economia mercantil. Pede-se-lhe que defina o novo equilbrio poltico suscetvel de reencontrar a harmonia perdida, de restabelecer a unidade e a estabilidade sociais, pelo acordo entre elementos cuja oposio dilacera a Cidade. [E] s primeiras formas de legislao, aos primeiros ensaios de constituio poltica, a Grcia associa o nome de seus Sbios. Pois com o desaparecimento do nax real micnico e a crise instaurada na cidade, uma
mesma questo colocada tanto no que diz respeito a polis como filosofia, qual seja:
como a ordem pode nascer do conflito entre grupos rivais, do choque das prerrogativas e das funes opostas? Como uma vida comum pode apoiar-se em elementos discordantes? Ou para retomar a prpria frmula dos rficos como, no plano social, o uno pode sair do mltiplo e o mltiplo do uno? (Vernant, p. 31, 1992)14 J que:
V. Ehrenberg verifica que h no centro da concepo grega da sociedade, uma contradio fundamental: o Estado uno e homogneo; o grupo humano feito de partes mltiplas e heterogneas. Essa contradio fica implcita, no formulada porque os gregos jamais distinguiram claramente Estado e sociedade, plano poltico e plano social. Da o embarao, para no dizer a confuso, de um Aristteles quando trata da unidade e da pluralidade da polis. (V. Ehrenberg, The greek state, Oxford, 1960, p. 89). [E] Vivida implicitamente na prtica social, essa problemtica do uno e do mltiplo, que se exprime tambm em certas correntes religiosas, ser formulada com todo rigor ao nvel do pensamento filosfico. (Vernant, p. 31, 1992, nota 10.) Diante disto, com os filsofos enquanto Sbios, por sua vez, que se estabelece em
vrios planos uma ordem ou uma unidade da cidade por meio de uma sophrosyne (sabedoria) com o
intuito de restringir a hybris e a arete (virtude guerreira) prpria dos gene em sua violncia, ambio,
privilgios e desejo de poder. Do ponto de vista do direito, esta ordem e unidade acontecem com
uma universalizao da condenao do crime que deixa de ser submetida a um ciclo fatal de
vinganas para ser uma represso organizada no quadro da cidade, controlada pelo grupo e onde
14 Vernant, neste caso, retoma a questo de Cornford sobre como uma ordem pode surgir do caos e a coloca como uma relao entre a polis e a filosofia. Questo, ademais, que mostra, por um lado, que a filosofia est relacionada diretamente aos problemas da polis em seu surgimento, mas que tambm mostra que para a filosofia usar a ordem social grega como modelo a uma ordem natural, aquela ordem social deveria ser primeiramente constituda.
34
a coletividade se encontra comprometida como tal (Vernant, p. 53, 1992.) na medida em que o
mal produzido pelo crime estendido toda a cidade como um miasma a ser purificado ou
expiado religiosamente, surgindo notadamente a figura do Sbio Epimnides. Por outro lado, do
ponto de vista de uma moral, uma ordem e unidade so estabelecidas com a substituio da arete
(virtude) aristocrtica guerreira e sua hybris tendente ao luxo e ostentao de riqueza, hedon
(prazer) e aphrosyne (loucura) por uma arete baseada na sophrosyne (domnio de si) dos Sbios em
que se tenta escapar s tentaes do prazer, da moleza, da sensualidade e da loucura associadas
riqueza e ao thyms (afetividade, paixes, emoes) por uma skesis (disciplina dura e severa, de
ascese), uma temperana, uma proporo, uma justa medida ou justo meio. Onde aparece
notadamente a figura de Slon que torna a cidade um cosmo harmonioso ao associar, por um lado,
a sophrosyne a Dike (justia) como justo meio pondo-se como rbitro, mediador, reconciliador ou um trao
de unio, entre os partidos que dilaceram a cidade, j que ele fazia parte dos mesoi (centro), isto ,
da classe mdia burguesa, e, por outro lado, ao associar a soprhosyne a uma eunomia (distribuio
eqitativa das honras, cargos e poderes) como proporo estabelecendo, assim, uma igualdade
hierrquica entre as classes. Por fim, decisivamente, de um ponto de vista poltico e geogrfico,
esta ordem e unidade se constituem com a fundao da polis sobre uma base nova realizada por
Clstenes a partir da substituio da antiga organizao tribal formada pelas quatro tribos jnicas
da frica e seus territrios especficos, em que prevaleciam os vnculos de consanginidade e a
excluso do demos e de uma burguesia na participao poltica, por uma organizao geogrfica em
que, tribos, demos e burguesia so reunidos num mesmo territrio e organizados em 10 tribos
formadas segundo as trs regies e povoaes em que a tica se divide, no caso: os pediako
(homens da plancie) ou euptridas, os parlios (homens do litoral martimo) ou mesoi e os dicrios
(homens da montanha) ou partido popular. As dez tribos formando uma comisso permanente do
Conselho e exercendo o poder num determinado perodo do ano segundo um calendrio civil e no
mais um calendrio lunar que regulamenta a vida religiosa.
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Se a filosofia se origina na Grcia, conclui Vernant, isto no se deve a um milagre grego
em que o filsofo surge como a encarnao temporal de uma Razo ou uma sabedoria
intemporal como o antigo rei divino e soberano, mas como Sbio cuja participao enquanto
cidado na sociedade grega influi decisivamente na constituio desta sociedade politicamente, isto
, como polis, uma ordem ou cosmo humano organizado por um universo espiritual prprio que no
pertence mais ao domnio de um rei divino e soberano. Sob este aspecto, diz Vernant (p. 95,
1992): Quando nasce em Mileto, a filosofia est enraizada nesse pensamento poltico cujas
preocupaes fundamentais traduz e do qual tira uma parte de seu vocabulrio. Um exemplo que
serve de modelo a isto, para ele, se encontra na obra de Anaximandro, que alm de escrita em
prosa diferentemente do estilo potico das teogonias, introduziu o termo arch e ps o universo
fsico sobre a base de uma ordem geomtrica, assim como a polis de Clstenes, e transformou de um
modo geral as perspectivas cosmolgicas ao conferir ao cosmos uma organizao oposta a que o
mito conferia, como no caso particular da posio da terra, pois, segundo Vernant (p. 88,
1992):
J no se encontra nenhum elemento ou poro do mundo privilegiado em detrimento dos outros, j nenhum poder fsico est situado na posio dominante de um basileus que exera sua dynasteia sobre todas as coisas. Se a terra est situada no centro de um universo, perfeitamente circular, pode permanecer imvel em razo de sua igualdade de distncia, sem estar submetida dominao de qualquer coisa que seja J no mais, pois, o palcio real e o soberano divino que, com seus muros, estende seu
poder s regies planas da terra, to pouco uma explicao mtica que justifica a estabilidade
ou imobilidade da terra, como no caso de Hesodo (p. 111, p. 1992) em que ela aparece como de
amplo seio, de todos [os deuses] sede inabalvel sempre, ou mesmo a explicao de que a terra
flutua sobre um elemento lquido ou repousa sobre um turbilho, a gua de Tales e o Ar de
Anaxmenes, que retoma, por assim dizer, a idia de uma sede inabalvel. Mas sim um cosmos
constitudo por relaes geomtricas como se encontra em Anaximandro posto que se a terra
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permanece imvel porque est igual distncia de todos os pontos da circunferncia celeste e
no tem nenhuma razo para ir para baixo mais que para cima, nem para um lado mais que para
outro (Vernant, p. 87, 1992.) ou porque todos os raios dos crculos so iguais e convergem
para um centro. De modo que centralizada no universo a partir de bases geomtricas que a Terra
ou o mundo aparece pela primeira vez em theoria, isto , vista ou representada, tal como ela
aparece no pnax (mapa) desenhado por Anaximandro e no de Hecateu de Mileto. Porm, isto
somente foi possvel a partir da ordem social da polis em que todos os cidados convergem para a
gora situada no centro da cidade como Isoi (iguais), posto que, por fim, diz Vernant:
A razo grega no se formou tanto no comrcio humano com as coisas quanto nas relaes dos homens entre si. Desenvolveu-se menos atravs das tcnicas que operam no mundo que por aquelas que do meios para domnio de outrem e cujo instrumento comum a linguagem: a arte do poltico, do retor, do professor. () que de maneira positiva, refletida, metdica, permite agir sobre os homens, no transformar a natureza. [E que, portanto] Dentro de seus limites como em suas inovaes, filha da cidade.15 (p. 95, 1992.Grifos nossos.)
1.2 A origem do problema da filosofia de Deleuze e Guattari
A digresso foi longa, mas, como dizem Deleuze e Guattari, a filosofia est em perptua
digresso ou digressividade, alm do que ela era necessria para a compreenso do que se coloca
como origem do problema da filosofia de Deleuze e Guattari ou de sua geo-filosofia.
No que diz respeito ao problema da origem da filosofia, vimos que os historiadores
consideram esta origem como sendo ou a partir da cincia (Burnet), ou dos mitos (Cornford), ou
de uma poltica (Vernant), em que o filsofo aparece ou como cientista, ou como racionalizador dos
15 Vernant, neste ponto, discorda radicalmente de Burnet quanto a um milagre grego em que a cincia da natureza jnica como aurora da filosofia aparece de modo espontneo por um dom de curiosidade numa relao direta ou imediata com a terra egia e sua doutrina dos contrrios donde emerge a physis ou natureza jnica, posto que para Vernant a cincia jnica em sua doutrina dos contrrios e sua physis aparecem numa relao indireta e mediatizada pela polis sem nenhum contato com a natureza, seja por observao seja por experimentao. Cf. Vernant, p. 95, 1992.
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mitos, ou como cidado, Sbio ou filsofo propriamente dito. Nos trs casos, porm, eles
consideram que a origem da filosofia a Grcia ou que a filosofia est relacionada ao territrio da
Cidade-Estado da Grcia assim como o filsofo est diretamente relacionado terra e ao povo
grego. Se Deleuze e Guattari, em O que a filosofia? (1991), concordam com os historiadores
neste ponto, porm, para eles, a relao da filosofia com a terra e o territrio grego algo que
escapa ao domnio da histria e no diz respeito a uma origem, pois pertence, por um lado, ao
domnio da geografia e a um meio no sentido de que:
A geografia no se contenta em fornecer uma matria e lugares variveis para a forma histrica. Ela no somente fsica e humana, mas mental, como a paisagem. Ela arranca a histria do culto da necessidade, para fazer valer a irredutibilidade da contingncia. Ela a arranca do culto das origens, para afirmar a potncia de um meio () Ela a arranca das estruturas para traar as linhas de fuga que passam pelo mundo grego, atravs do Mediterrneo. Enfim, ela arranca a histria de si mesma, para descobrir os devires, que no so a histria, mesmo quando nela recaem (Deleuze e Guattari, p. 125, 1992. Grifos nossos.) O que, neste sentido:
Se a filosofia aparece na Grcia, em funo de uma contingncia mais do que de uma necessidade, de um ambiente ou de um meio mais do que de uma origem, de um devir mais do que de uma histria, de uma geografia mais do que de uma historiografia, de uma graa mais do que de uma natureza. (Deleuze e Guattari, p. 126, 1992. Grifos nossos.) E o mesmo acontece na modernidade quando a filosofia aparece na Alemanha, na
Frana, na Inglaterra, nos Estados Unidos ou em outros lugares e adquire caracteres nacionais em
funo de uma contingncia, um ambiente, um meio, um devir, uma geografia ou uma graa, pois a filosofia
, para eles, uma geo-filosofia na medida em que se h uma relao do filsofo enquanto homem
com um povo e uma terra h tambm uma relao da filosofia com o territrio de um Estado
nacional.
A origem do problema da filosofia de Deleuze e Guattari ou da geo-filosofia
propriamente deles, neste sentido, a relao da filosofia com o territrio de um Estado nacional
e do filsofo com um povo e uma terra de um ponto de vista histrico na medida em que esta
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relao , para eles, uma utopia, pois a utopia que faz a juno da filosofia com sua poca,
capitalismo europeu, mas j tambm a cidade grega. [E] sempre com a utopia que a filosofia se
torna poltica, e leva ao mais alto ponto a crtica de sua poca. (Deleuze, p. 130, 1992.) Uma
utopia que tanto pode ser de um Estado autoritrio ou totalitrio, isto , de transcendncia, quanto de
um Estado revolucionrio e libertrio, isto , de imanncia, mas tambm de uma imanncia que restaura
uma transcendncia, isto , de uma imanncia imanente transcendncia, quando um Estado
revolucionrio e libertrio se torna autoritrio e totalitrio. Todavia, uma utopia que se ope
histria ou sua poc no mais alto pontoa, ainda pertence a elas no presente, de modo que no que
diz respeito a este conceito e relao histrica da filosofia com o territrio de um Estado
nacional ou do filsofo com uma terra e um povo histricos que ele supe, Deleuze e Guattari
propem a partir de sua geo-filosofia outro conceito e outra relao da filosofia com o territrio e
do filsofo com a terra e o povo, no caso, o conceito de devir que mais geogrfico do que
histrico a partir do qual a filosofia faz apelo a um territrio e o filsofo a uma terra e um povo
por vir de modo to somente imanente e no transcendente.
Este devir pressupe uma questo fundamental colocada pela geo-filosofia deles: Qual a
relao do pensamento com a terra? (Deleuze e Guattari, p. 92, 1992.), a partir da qual
colocado em questo o mtodo, o modo ou a maneira de pensar utpica da filosofia na medida em que,
para eles, Pensar no nem um fio estendido entre um sujeito e um objeto, nem uma revoluo
de um em torno do outro. Pensar se faz antes na relao entre o territrio e a terra. (Deleuze e
Guattari, p. 113, 1992.) Neste sentido, o mtodo, modo ou maneira de pensar utpico da filosofia
transcendente, ou ainda, imanente a uma transcendncia na medida em que se relaciona ao
territrio e terra historicamente posto em questo pelo mtodo, modo ou maneira de pensar
geo-filosfica imanente propriamente dito, na medida em que a filosofia se relaciona ao territrio e
terra geograficamente.
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1.2.1 A geo-filosofia e o mtodo ou a maneira de pensar de Deleuze e
Guattari
A geo-filosofia de Deleuze e Guattari, assim, tem como preocupao principal uma
relao do pensamento com a terra que tanto por ser utpica quanto geo-filosfica propriamente
dita a partir da relao entre o territrio e a terra.
A relao entre o territrio e a terra definida por eles a partir de um duplo movimento:
um movimento do territrio terra, ou de desterritorializao, e um movimento da terra ao
territrio, de reterritorializao. Este duplo movimento constitui uma zona de indiscernibilidade entre o
territrio e a terra segundo a qual no se pode dizer, segundo eles, qual dos dois o primeiro,
pois se, de certo modo, a desterritorializao supe uma territorializao, segundo Deleuze e
Guattari (p. 90, 1992.), todo territrio supe talvez uma desterritorializao prvia da terra, e,
neste sentido, a territorializao j uma reterritorializao na medida em que supe esta
desterritorializao prvia. Este o caso, por exemplo, do Estado e da Cidade, pois se eles so
definidos por um princpio territorial ou de territorializao diferente do princpio das linhagens, estas j
constituam um territrio, de modo que o princpio territorial do Estado e da Cidade pressupe
previamente um processo de desterritorializao da terra, no caso do Estado, quando ele
justape e compara os territrios agrcolas remetendo-os a uma Unidade superior aritmtica, e
da Cidade, quando ela adapta o territrio a uma extenso geomtrica prolongvel em circuitos
comerciais. (Deleuze, p. 114, 1992.) O que, neste sentido:
O Spatium imperiale do Estado, ou a extensio poltica da cidade, menos um princpio territorial que uma desterritorializao, que captamos ao vivo quando o Estado se apropria do territrio dos grupos locais, ou ento quando a cidade ignora sua hinterlndia; [e] a reterritorializao se faz num caso sobre o palcio e seus estoques, no outro sobre a gora e as rotas mercantis. (Deleuze, p. 114, 1992.)
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Os movimentos de desterritorializao e reterritorializao da terra so relativos, pois
podem ser fsicos, psicolgicos, histricos, sociais, polticos, geolgicos e mesmo astronmicas
na medida que concerne relao histrica da terra com os territrios que nela se desenham ou
se apagam, sua relao geolgica com eras e catstrofes, sua relao astronmica com o cosmo e
o sistema solar do qual faz parte. (Deleuze e Guattari, pp. 116-117, 1992.) De um ponto de vista
histrico, estes movimentos concernem aos tipos psicossociais do Socius na medida em que em toda
idade, nas menores coisas, como nas maiores provaes, h sempre a procura dos tipos
psicossociais por um territrio, o suportar ou carregar desterritorializaes e o produzir
reterritorializaes quase sobre qualquer coisa, lembrana, fetiche ou sonho, como o caso, por
exemplo, do comerciante enquanto tipo psicossocial na medida em que ele compra num territrio,
mas desterritorializa os produtos em mercadorias, e se reterritorializa sobre os circuitos
comerciais. (Deleuze, p. 91, 1992.) Todavia, a desterritorializao e reterritorializao esto
presentes j nos animais na medida em que eles formam tambm territrios, abandonam-nos e os
refazem muitas vezes em algo de uma outra natureza, pois como diz o etlogo, o parceiro ou o
amigo de um animal equivale a um lar, ou que a famlia um territrio mvel, (Deleuze e
Guattari, p. 90, 1992.) e, no caso do homindeo, desde o seu registro de nascimento, ele
desterritorializa sua pata anterior, ele a arranca da terra para fazer dela uma mo, e a
reterritorializa sobre galhos e utenslios. (Deleuze, p. 90, 1992.)
Mais propriamente, contudo, os movimentos de desterritorializao e reterritorializao
concernem terra, considerada por Deleuze e Guattari como desterritorializante e desterritorializada,
pois no cessa de operar um movimento de desterritorializao in loco, pelo qual ultrapassa todo
o territrio, bem como de restituir os territrios em seus movimentos de desterritorializao.
Movimentos da terra que se confundem com o movimento daqueles que deixam em massa seu
territrio, lagostas que se pem a andar em fila no fundo da gua, peregrinos ou cavaleiros que
cavalgam numa linha de fuga celeste, (Deleuze e Guattari, p. 113, 1992.) no caso, o movimento
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dos tipos psicossociais que deixam o territrio seja de modo imanente, no fundo da gua , seja
de modo transcendente, numa linha de fuga celeste. O que, neste sentido, os movimentos de
desterritorializao e territorializao relativos da terra e seus tipos psicossociais podem ser tanto
de imanncia como de transcendncia. De imanncia, por exemplo, quando horizontal como em
relao Cidade (polis) grega, pois ela libera um Autctone, isto , uma potncia da terra que
segue um componente martimo, que passa por sob as guas para refundar o territrio (o
Erecteion, templo de Atena e de Poseidon). (Deleuze, p. 114, 1992.) E de transcendncia em
relao ao Estado imperial anterior Cidade (polis) grega, quando tende se fazer em altura,
verticalmente, segundo um componente celeste da terra. [Isto porque] O territrio tornou-se
terra deserta, mas um Estrangeiro celeste vem refundar o territrio ou reterritorializar a terra.
(Deleuze, p. 114, 1992.)
A este duplo movimento relativo imanente e transcendente da terra, h paralelamente um
duplo devir absoluto do pensamento, que tambm de desterritorializao e reterritorializao, no caso, o do
plano de imanncia em relao ao conceito e deste quele a partir de personagens conceituais. Pois, por um lado,
a desterritorializao relativa da terra levada a uma desterritorializao absoluta do pensamento
quando a terra entra no puro plano de imanncia do pensamento e Pensar consiste em
estender um plano de imanncia que absorve a terra (ou antes a adsorve). Deleuze e Guattari
(p.117, 1992.) E, por outro, sua reterritorializao no territrio a partir de tipos psicossociais
levada tambm a uma reterritorializao absoluta do pensamento quando a desterritorializao
absoluta do pensamento enquanto plano de imanncia afirma a criao de uma nova terra ou
terra por vir, no caso, o conceito enquanto territrio a partir de personagens conceituais. Em
contrapartida, na medida em que h esta relao do duplo devir absoluto do pensamento e do
duplo movimento relativo da terra, o duplo devir absoluto do pensamento tambm pode ser de
imanncia ou de transcendncia. Isto porque se o duplo movimento relativo da terra for de
imanncia, no duplo devir absoluto do pensamento, h a criao horizontal de conceitos
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sintagmticos, conectivos, vicinais e consistentes nele enquanto plano de imanncia a partir de
personagens conceituais, ou, propriamente, da filosofia na medida em que ela a criao de
conceitos sobre um plano de imanncia pelos personagens conceituais a partir do duplo devir
absoluto do pensamento ou, ainda, de uma geo-filosofia na medida em que os conceitos criados
no plano de imanncia pelos personagens conceituais a partir do duplo devir absoluto do
pensamento se relacionam aos territrios formados na terra pelos tipos psicossociais a partir do
duplo movimento relativo da terra. Mas se o duplo movimento relativo da terra for de
transcendncia ou de uma imanncia imanente a uma transcendncia, no duplo devir absoluto do
pensamento h uma iluso ou projeo do transcendente, seja porque figuras espirituais paradigmticas,
projetivas, hierrquicas e referenciais se projetam sobre ele enquanto plano de imanncia de modo
vertical e impedem os conceitos de serem criados no plano, no caso de uma transcendncia, seja
porque elas enquanto representaes se confundem com os conceitos no plano de imanncia, no
caso de uma imanncia imanente a uma transcendncia, pois, na transcendncia, personagens de
dilogos, teatrais, figuras estticas de uma religio impedem os personagens conceituais de existirem
no plano de imanncia e, na imanncia imanente transcendncia, representantes de uma religio se
confundem com os personagens conceituais no plano de imanncia. O que, por fim, ou h o
impedimento da criao da filosofia por uma projeo de transcendncia religiosa ou ela se
confunde com uma representao segundo uma iluso de transcendncia.
Se a filosofia aparece na Grcia, considerada o territrio da filosofia ou a terra do filsofo
segundo a histria da filosofia, para Deleuze e Guattari, seu aparecimento diz respeito, neste
sentido, relao entre o duplo devir absoluto do pensamento e o duplo movimento relativo da
terra, na medida em que a desterritorializao relativa imanente da terra enquanto
desterritorializada na Cidade grega a partir de estrangeiros, no caso, artesos, mercadores e filsofos
que fugiram dos imprios arcaicos do Oriente foi levada a uma desterritorializao absoluta do
pensamento enquanto plano de imanncia a partir de personagens conceituais. Bem como a
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reterritorializao da terra no territrio da Cidade a partir dos tipos psicossociais na gora, onde
encontraram a liberdade de uma sociedade de amigos, no caso, uma pura sociabilidade como meio de
imanncia que se opunha soberania imperial, assim como um certo prazer de se associar, que
constitui a amizade, mas tambm de romper a associao, que constitui a rivalidade e um gosto
pela opinio, inconcebvel num imprio, um gosto pela troca de opinies, pela conversao
(Deleuze e Guattari, p. 116, 1992.) foi levada tambm a uma reterritorializao absoluta do
pensamento enquanto plano de imanncia no conceito a partir dos personagens conceituais. O
que se h milagre grego, no caso, para Deleuze e Guattari, o da ilha de Salamina, onde a Grcia
escapa ao Imprio persa, e onde o povo autctone, que perdeu seu territrio, o carrega para o
mar, reterritorializando-se sobre o mar. (Deleuze, p. 116, 1992.)
Em contrapartida, por outro lado, se a filosofia ressurge, ou renasce, de certo modo, na
modernidade, tambm de um ponto de vista histrico, porque a desterritorializao relativa
imanente da terra nas vilas-cidades ocidentais a partir do capitalista e do proletrio tambm foi
levada a uma desterritorializao absoluta do pensamento enquanto plano de imanncia a partir
de personagens conceituais, bem como foi levada a uma reterritorializao absoluta do plano de
imanncia no conceito a partir de personagens conceituais a reterritorializao relativa da terra no
Estado nacional moderno a partir de uma sociedade de irmos, verso capitalista da sociedade
dos amigos e uma sociedade de camaradas, verso proletria da sociedade de amigos, pois:
No um grito, mas dois gritos que atravessam o capitalismo e vo ao encalo da mesma decepo: Emigrados de todos os pases, uni-vos Proletrios de todos os pases [O que] Nos dois plos do Ocidente, a Amrica e a Rssia, o pragmatismo e o socialismo representam o retorno de Ulisses, a nova sociedade de irmo ou de camaradas que retoma o sonho grego e reconstitui a dignidade democrtica. (Deleuze e Guattari, p. 129, 1992.) Ou ainda, porque se levou ao absoluto a desterritorializao relativa da terra no capital e
sua reterritorializao no territrio de um Estado nacional democrtico, pois com muita inocncia,
ou safadeza, uma filosofia da comunicao () pretende restaurar a sociedade de amigos ou
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mesmo de sbios, formando uma opinio universal como consenso capaz de moralizar as
naes, os Estados e o mercado(Deleuze e Guattari, p. 139, 1992.), fazendo apelo a uma nova
terra, um novo povo com o conceito de revoluo, posto que:
Como mostrava Kant, o conceito de revoluo no est na maneira pela qual esta pode ser conduzida num campo social necessariamente relativo, mas no entusiasmo com o qual ela pensada sobre um plano de imanncia absoluto, como uma apresentao do infinito no aqui-agora, que no comporta nada de racional ou mesmo razovel. () [Pois] Neste entusiasmo trata-se, todavia, menos de uma separao entre o espectador e o ator, que de uma distino, na ao mesma, entre os fatores histric
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