Download - A Nova Gazeta Renana - PUC-SP231 MARGEM, SÃO PAULO, No 14, P. 229-259, DEZ. 2002 A NOVA GAZETA RENANA minho que cada Øpoca tem diante de si seja tªo longo quanto o futuro. Tal Ø

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    A declaração de Camphausenna sessão de 30 de maio

    (NGR, no 3, 3/6/1848)

    Post et non propter,2 ou seja, o sr.Camphausen tornou-se primeiro-minis-tro3 não através da Revolução de Mar-ço, mas sim depois da Revolução deMarço. O significado desta posteriori-

    dade de seu ministério foi revelado pe-lo sr. Camphausen de maneira solenee transcendente, com aquela, por as-sim dizer, grave corporeidade que ocul-ta as carências da alma,4 a 30 de maiode 1848 à Assembléia de Berlim, resul-tante do acordo entre ele e os eleitoresindiretos.5

    O ministério formado a 29 de mar-ço, diz o pensador amigo da história,6

    A Nova Gazeta Renana

    KARL MARX1

    1. Artigos recolhidos e traduzidos por LíviaContrim (e-mail: [email protected]).2. Depois e não através.3. O ministério Camphausen substituiu, em 29 demarço de 1848, o governo do conde Arnim-Boitzenburg, formado em 19 de março de 1848. Oprimeiro-ministro do novo governo era o banquei-ro renano Ludolf Camphausen (1803-1890), pre-sidente da Câmara de Comércio de Colônia, umdos líderes da burguesia liberal renana, membro,em 1847, da Dieta Unificada; o ministro das Fi-nanças era David Justus Hansemann (1790-1864),um dos representantes da grande burguesiarenana, que, na primeira Dieta Unificada, de 1847,se apresentara como líder da oposição liberal e,em 1848, se elegera deputado à Assembléia Na-cional Prussiana. Esse governo via como sua tare-fa a mediação entre a grande burguesia e a Coroa.

    4. Do romance de Laurence Sterne, The Life andopinions of Tristram Shandy, Gentleman (A vida e asopiniões de Tristram Shandy), vol. 1, capítulo 11.5. A Assembléia Nacional Prussiana foi convocadano dia 22 de maio de 1848 para entender-se coma Coroa sobre uma Constituição. Apesar da leieleitoral de 8 de abril de 1848, que previa o sufrá-gio universal, a Assembléia foi eleita pela via indi-reta. A maioria dos deputados era representanteda burguesia e dos burocratas prussianos.6. Designação irônica de Marx e Engels paraCamphausen, aludindo ao subtítulo da obra en-tão muito conhecida História geral do início do co-nhecimento histórico até nossa época. Elaborado porKarl Von Rotteck para os pensadores amigos da histó-ria, Freiburg im Breisgau, 1834.

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    reuniu-se logo depois de um aconte-cimento cujo significado não desconhe-cia nem desconhece.7

    A afirmação do sr. Camphausen, deque não formara o ministério antes do29 de março, comprova-se nos núme-ros dos últimos meses da Gazeta do Es-tado Prussiana.8 E pode-se seguramentesupor que uma data tenha grande sig-nificado, especialmente para o sr.Camphausen, quando constitui ao me-nos o ponto de partida cronológico desua ascensão. Que tranqüilidade paraos combatentes mortos nas barricadasque seus frios cadáveres figurem comomarcos, como indicadores apontadospara o ministério de 29 de março!Quelle gloire!9

    Numa palavra: depois da Revolu-ção de Março, formou-se um ministé-rio Camphausen. Este mesmo ministé-rio Camphausen reconhece o grandesignificado da Revolução de Março;ao menos, não o desconhece. A revo-lução mesma é bagatela, mas seu signi-ficado! Ela significa, justamente, o mi-

    nistério Camphausen, ao menos postfestum.

    Este acontecimento a forma-ção do ministério Camphausen ou a Re-volução de Março? é uma das cau-sas mais essenciais que contribuem paraa transformação de nossa constituiçãopolítica interna.

    Isto deve significar que a Revolu-ção de Março é uma causa essencial,que contribui para a formação do mi-nistério de 29 de março, ou seja, para oministério Camphausen. Ou isto deve-ria meramente significar: a revoluçãoprussiana de março revolucionou aPrússia? Em todo caso, uma tão solenetautologia é presumível num pensa-dor amigo da história.

    Encontramo-nos no umbral damesma (a saber, da transformação denossas relações políticas internas), e ocaminho diante de nós é longo, o go-verno o reconhece.

    Numa palavra: o ministérioCamphausen reconhece que tem aindaum longo caminho diante de si, isto é,promete-se uma longa duração. Breveé a arte, isto é, a revolução, e longa avida,10 isto é, o ministério que a suce-deu. E, ainda por cima, ele próprio oreconhece. Ou interpreta-se de outramaneira as palavras de Camphausen?Certamente não pretenderemos dopensador amigo da história a trivial ex-plicação de que os povos que se encon-tram no umbral de uma nova épocahistórica, no umbral estão, e que o ca-

    7. Em seus artigos sobre os debates na Assem-bléia Nacional prussiana (Assembléia Ententista),Marx e Engels utilizaram as Notas estenográficassobre os debates da Assembléia convocada parafazer um acordo sobre a Constituição Prussiana,suplemento do Diário Oficial Prussiano, vol. 1-3,Berlim, 1848, publicadas mais tarde como ediçãoavulsa sob o título Debates da Assembléia Constituin-te da Prússia de 1848, vol. 1-8, Berlim, 1848.8. Gazeta Geral do Estado Prussiana fundada emBerlim em 1819, de 1819 até abril de 1848 o órgãosemi-oficial do governo prussiano; de maio de1848 até julho de 1851 foi publicada sob o títulode Diário Oficial Prussiano como órgão oficial dogoverno prussiano.9 . Que glória!

    10. Citação modificada do Fausto, de Goethe, Pri-meira Parte, Noite; ali se diz: Longa é a arte, ecurta nossa vida.

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    minho que cada época tem diante de siseja tão longo quanto o futuro.

    Tal é a primeira parte do laborio-so, grave, formal, sólido e fino discur-so do primeiro-ministro Camphausen.Resume-se em três frases: Depois daRevolução de Março, o ministério Cam-phausen. Grande significado do minis-tério Camphausen. Longo caminhodiante do ministério Camphausen!

    Agora, a segunda parte.Mas, de maneira alguma compre-

    endemos a situação assim, explica dou-toralmente o sr. Camphausen, comose tivesse se produzido, através desseacontecimento (a Revolução de Mar-ço) uma completa reviravolta, comose toda a constituição de nosso Estadotivesse sido derrubada, como se todoo existente tivesse cessado de existirjuridicamente, como se todas as situa-ções precisassem ser de novo juridica-mente fundadas. Ao contrário. Nomomento de sua reunião, o ministérioconcordou em considerar como umaquestão vital que a Dieta Unificada11

    antes convocada se reunisse efetiva-mente, apesar das petições em contrá-rio recebidas, e que se passasse à novaConstituição a partir da Constituiçãoexistente, com os meios legais que elaoferecia, sem cortar o laço que liga ovelho ao novo. Este caminho incon-testavelmente certo foi seguido, a leieleitoral foi submetida à DietaUnificada e, com sua aprovação, foi

    promulgada. Mais tarde, procurou-seinduzir o governo a modificar a lei demoto próprio, especialmente a conver-ter o sistema eleitoral indireto no di-reto. O governo não cedeu a isto. Ogoverno não exerceu nenhuma dita-dura; não pôde exercê-la, não quisexercê-la. A lei eleitoral foi aplicadade fato tal como existia de direito.Sobre a base desta lei eleitoral forameleitos os eleitores e os deputados.Sobre a base desta lei eleitoral, os se-nhores estão aqui, com plenos pode-res para entender-se com a Coroa so-bre uma Constituição que, esperamos,seja durável para o futuro.

    Um reino por uma doutrina!12 Umadoutrina por um reino!

    Primeiro vem o acontecimento,título envergonhado da revolução. De-pois vem a doutrina e logra o aconte-cimento.

    O acontecimento ilegal faz do sr.Camphausen um primeiro-ministro res-ponsável, uma figura que não tinha ne-nhum lugar, nenhum sentido no pas-sado, na Constituição então existente.Através de um salto mortale, saltamospor sobre o velho e encontramos, porsorte, um ministro responsável; mas oministro responsável encontra, pormais sorte ainda, uma doutrina. Como primeiro sopro de vida de um pri-meiro-ministro responsável, a monar-quia absoluta morrera, decompusera-se. Entre suas vítimas, encontrava-sena primeira fileira a defunta Dieta

    11. Era composta, mais ou menos, como a Assem-bléia dos Notáveis da França às vésperas de 1789,na qual estavam representadas as três ordens (no-breza, clero e terceiro Estado).

    12. Citação modificada de Rei Ricardo III, deShakespeare, Ato 5, cena 4; ali se diz: Um cava-lo, um cavalo! Meu reino por um cavalo!.

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    Unificada, esta repugnante mistura dedelírio gótico com mentira moderna.13

    A Dieta Unificada era a fiel ama-da, a besta de carga da monarquiaabsoluta. Assim como a república ale-mã só pode festejar seu advento sobreo cadáver do sr. Venedey,14 o ministé-rio responsável só pode festejar o seusobre o cadáver da fiel amada. O mi-nistro responsável procura agora o ca-dáver esquecido ou evoca o espectroda fiel amada Unificada, o qual efe-tivamente aparece, mas, desgraçada-mente, cambaleando suspenso no ar,executando as mais extravagantes ca-briolas, já que não encontra mais ne-nhum terreno sob seus pés, pois o an-tigo terreno do direito e da confiançafora tragado pelo terremoto do acon-tecimento. O mestre feiticeiro comu-nica ao espectro que o chamara paraliquidar seu legado e poder portar-secomo seu leal herdeiro. O espectro nãopoderia jamais apreciar suficientemen-te este obsequioso comportamento,pois na vida comum não se permite queos mortos firmem testamento postu-mamente. Sumamente lisonjeado, o espec-tro aquiesce como um pagode a tudo oque o feiticeiro ordena, faz uma reverên-cia à saída e desaparece. A lei da eleiçãoindireta15 é seu testamento póstumo.

    O embuste doutrinário atravésdo qual o sr. Camphausen, a par-tir da Constituição existente, pas-sou, com os meios legais que elaoferecia, à nova Constituição efe-tuou-se da seguinte maneira:

    Um acontecimento ilegal faz do sr.Camphausen um primeiro-ministro res-ponsável, um ministro constitucional uma pessoa ilegal no sentido da ve-lha Constituição existente. O minis-tro constitucional faz, de modo ilegal,da inconstitucional, estamental fielamada Unificada uma Assembléiaconstituinte. A fiel amada Unificadafaz, de modo ilegal, a lei da eleição in-direta. A lei da eleição indireta faz aCâmara de Berlim, e a Câmara deBerlim faz a Constituição, e a Consti-tuição faz todas as Câmaras seguintespara todo o sempre.

    Assim, o ganso torna-se ovo e oovo, ganso. Mas, no grasnido salvadordo Capitólio16 o povo reconhecerá, bre-ve, que os ovos dourados de Leda, quepôs na revolução, foram surrupiados.O próprio deputado Milde17 não pare-

    13. HEINE, Alemanha. Um conto de inverno, cap.XVII.14. Venedey, Jacob (1805-1871): historiador epublicista de Colônia. Em 1848, foi membro doParlamento Preparatório e da Assembléia Nacio-nal de Frankfurt (centro-esquerda).15. A lei eleitoral para a Assembléia convocadapara se entender sobre a Constituição prussianafoi aprovada, por proposta do ministério

    Camphausen, em 8 de abril de 1848 pela segundaDieta Unificada e baseava-se no sistema de elei-ção indireta em duas etapas.16. No ano 390 a.C., os gauleses ocuparam a cidadede Roma, com exceção do Capitólio, cujos defensores,segundo a tradição, quando de um ataque-surpresanoturno dos inimigos, foram acordados a tempo pelograsnido dos gansos do templo de Juno.17. MILDE, Karl August (1805-1861): industrial têx-til (algodão) em Breslau, membro da Dieta Unificada.De 26 de maio a 26 de junho, presidente da Assem-bléia Nacional de Berlim, onde pertencia à direita. De25 de junho a 21 de setembro, foi ministro do Comér-cio, no gabinete Auerswald-Hansemann.

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    ce ser o filho de Leda, o Castor queresplandece ao longe.18

    O Ministério Camphausen(NGR, nº 4, 4/6/1848)

    É sabido que a Assembléia Nacio-nal francesa de 1789 foi precedida deuma Assembléia de Notáveis, uma as-sembléia de composição estamentalcomo a Dieta Unificada prussiana. Nodecreto pelo qual convocava a Assem-bléia Nacional, o ministro Necker sereferia ao desejo, expresso pelos notá-veis, de convocar os Estados Gerais. Oministro Necker teve uma vantagemsignificativa sobre o ministroCamphausen. Ele não precisou esperara Tomada da Bastilha e a queda damonarquia absoluta para ulteriormen-te atar, com uma doutrina, o velho aonovo, a fim de laboriosamente mantera aparência de que a França chegara ànova Assembléia Constituinte atravésdos meios legais da antiga Constitui-ção. Teve ainda outra vantagem. Eraministro da França, e não da Alsácia-Lorena, ao passo que o sr. Camphausennão é ministro da Alemanha, mas daPrússia. E com todas estas vantagens,o ministro Necker não conseguiu trans-formar um movimento revolucionárionuma tranqüila reforma. As grandes

    doenças não se curam com essência derosas.19 O sr. Camphausen conseguirámenos ainda mudar o caráter do mo-vimento por meio de uma teoria arti-ficial, que traça uma ligação entre seuministério e as antigas condições damonarquia prussiana. A Revolução deMarço, o movimento revolucionárioalemão em geral, não se deixam trans-formar, mediante um artifício qual-quer, em incidentes mais ou menosimportantes. Luís Felipe foi escolhidorei de França porque era Bourbon? Foiescolhido apesar de ser Bourbon? Lem-bramos que essa questão dividiu ospartidos logo depois da Revolução deJulho.20 O que demonstrava esta ques-tão? Que a revolução fora posta emquestão, que o interesse da revoluçãonão era o interesse da classe que che-gara ao poder e de seus representan-tes políticos.

    A declaração do sr. Camphausen,de que seu ministério veio ao mundonão através da Revolução de Março,senão depois da Revolução de Março,tem esse mesmo significado.

    18. De acordo com o mito grego, os filhos da sobe-rana espartana Leda e de Zeus saíram de um ovo.Castor, o filho de Leda, foi uma figura heróica daGrécia antiga. A mesma designação tem uma es-trela da constelação de Gêmeos.

    19. HEINE, Alemanha. Um conto de inverno, cap.XXXI.20. Quando, alguns dias antes do início da Mo-narquia de Julho, foi ponderada a questão de se onovo rei devia adotar o nome de Felipe VII, Dupino Velho (1783-1865) declarou que o duque deOrléans fora chamado ao trono não porque, masapesar de ser um Bourbon.

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    Queda do ministério Camphausen 21

    (NGR, 23/6/1848)

    Tão belo brilha ainda o sol,Um dia há de se pôr,22 e também o

    sol de 30 de março,23 tinto do sangueardente dos poloneses, se pôs.

    O ministério Camphausen vestira acontra-revolução com sua roupagemliberal-burguesa. A contra-revoluçãosente-se suficientemente forte para li-vrar-se da incômoda máscara.

    Um insustentável ministério qual-quer, de centro-esquerda, pode possi-velmente suceder por alguns dias oministério de 30 de março. Seu verda-deiro sucessor é o ministério do prín-cipe da Prússia. Cabe a Camphausen ahonra de ter dado ao partido absolu-tista feudal esse seu chefe natural e, asi próprio, seu sucessor.

    Para que mimar ainda por mais tem-po os tutores burgueses?

    Não estão os russos na fronteiraoriental e as tropas prussianas na oci-

    dental? Os poloneses não foram con-quistados para a propaganda russapelo obus e pela pedra infernal?

    Não foram tomadas todas as provi-dências para repetir o bombardeio de Pra-ga em quase todas as cidades renanas?

    Na guerra polonesa, na dinamar-quesa, nos inúmeros pequenos confli-tos entre a tropa e o povo, o exércitonão teve todo o tempo para se trans-formar numa soldadesca brutal?

    A burguesia não está farta da re-volução? E não se eleva no meio domar o rochedo sobre o qual a contra-revolução construirá sua igreja, a In-glaterra?

    O ministério Camphausen procuraapanhar ainda alguns centavos de po-pularidade, provocar a compaixão pú-blica pela garantia de que se retira endupe24 da cena do Estado. E, segura-mente, é um enganador enganado. Aserviço da grande burguesia, teve deprocurar privar a revolução de seusfrutos democráticos; em luta contra ademocracia, teve de se aliar ao partidoaristocrático e tornar-se o instrumentode seus apetites contra-revolucionários.Este está suficientemente fortalecidopara poder desembaraçar-se de seuprotetor. O senhor Camphausen se-meou a reação no sentido da grandeburguesia, e colheu-a no sentido dopartido feudal. Tal era a boa intençãodo homem, tal seu triste destino. Umcentavo de popularidade25 para o ho-mem desiludido.

    21. Depois do ataque ao arsenal, em 17 de junhode 1848, renunciaram os ministros Von Kanitz,conde Schwerin e barão Von Arnim, e em 20 dejunho todo o ministério Camphausen. A Nova Ga-zeta Renana viu nessa queda de Camphausen a indi-cação de que a grande burguesia pensava em pas-sar do período de traição passiva do povo à Co-roa ao período da subjugação ativa do povo sobseu domínio em aliança com a Coroa.22. Ferdinand Raimund, A moça do mundo das fa-das ou O camponês como milionário, Ato 11, cena 6.23. Em 30 de março de 1848 iniciou suas ativida-des o ministério Camphausen, formado no diaanterior, e em cujo período de governo ocorreu arepressão sangrenta da insurreição na Posnânia.

    24. Argutamente.25. HEINE, Alemanha. Um conto de inverno, cap. XXIV.

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    Um centavo de popularidade!Tão belo brilha ainda o sol,Um dia há de se pôr.Mas no oriente ele renascerá.

    O Ministério de Ação(NGR, nº 39, 9/7/1848)

    Temos uma nova crise ministerial.O ministério Camphausen foi derruba-do, o ministério Hansemann desabou.O Ministério de Ação26 teve uma dura-ção de oito dias, apesar de todas as me-zinhas caseiras, emplastros, processoscontra a imprensa, prisões, apesar doatrevimento petulante com que a bu-rocracia reergueu a cabeça de atasempoeiradas e tramou uma vingançamesquinha e brutal por seu destrona-mento. O Ministério de Ação, resu-mo da pura mediocridade, estava ain-da, no início da última sessão da As-sembléia Ententista,27 suficientementeconfuso para acreditar em suainabalabilidade.

    No final da sessão28 estava total-mente destroçado. Esta transcendente

    sessão deu ao primeiro-ministro, vonAuerswald, a convicção de que deviaapresentar sua demissão; também o mi-nistro von Schreckenstein não queriapermanecer por mais tempo moço derecados de Hansemann, e assim ontemo ministério inteiro se dirigiu ao rei emSanssouci. O que foi acertado lá ficare-mos sabendo até amanhã.

    Nosso correspondente berlinenseafirma em um pós-escrito:

    Acaba de propagar-se o boato deque Vincke, Pinder, Mevissen29 foramconvidados urgentemente para ajudara compor um novo ministério.

    26. Ao governo Camphausen seguiu-se, naPrússia, de 26 de junho a 21 de setembro de 1848,o governo Auerswald-Hansemann, o assim chama-do Ministério de Ação. Auerswald era o pri-meiro-ministro desse ministério, e Hansemann, averdadeira cabeça do gabinete, continuou sendo,como sob Camphausen, ministro das Finanças.27. Valemo-nos, aqui, da solução encontrada pe-los tradutores de A burguesia e a contra-revolução(São Paulo, Ensaio, 1989) para o termoVereinbarungsversammlung (N. da T.).28. Ao término da sessão de 4 de julho de 1848,na qual se debateu novamente sobre a Comissão

    para a Investigação dos Acontecimentos naPosnânia, a Assembléia Nacional Prussiana deci-diu conceder plenos poderes àquela comissão.Tomar essa decisão significava uma derrota parao ministério Auerswald-Hansemann. Os represen-tantes da ala direita procuraram, então, contra asregras parlamentares, impor uma nova votação, ejustamente sobre a proposta já rejeitada com aprimeira decisão, a de limitar os plenos poderesda comissão. Em sinal de protesto, os deputadosda ala esquerda deixaram a sala de sessões. Adireita aproveitou-se disso e aprovou a propostade negar à comissão o direito de ir à Posnânia einterrogar testemunhas e especialistas no própriolocal. Com isso, a decisão original da Assembléiafoi ilegalmente anulada.29. Vincke, Georg Freiherr Von (1811-1875): polí-tico liberal prussiano; em 1848, um dos líderes daala direita da Assembléia Nacional de Frankfurt;mais tarde, ex-liberal.Pinder: funcionário público prussiano, liberal mode-rado; em 1848, chefe de administração da Silésia, de-putado à Assembléia Nacional Prussiana (direita) emembro da Assembléia Nacional de Frankfurt.Mevissen, Gustav Von (1815-1899): banqueiro emColônia, um dos líderes da burguesia liberalrenana; em 1848 foi membro da Assembléia Nacio-nal de Frankfurt (centro-direita).

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    Se o boato se confirmar teremoschegado, pois, finalmente, de um mi-nistério de mediação, através do Mi-nistério de Ação, a um ministério dacontra-revolução. Finalmente! O curtís-simo tempo de vida desta contra-re-volução ministerial seria suficiente paramostrar ao povo, em todo seu tama-nho natural, o anão que, ao menor ven-to de reação, ergue novamente acabecinha.

    A crise ministerial(NGR, nº 40, 10/7/1848)

    O ministério Hansemann proteloupor alguns dias, com grande teimosia,sua dissolução. O ministro das Finan-ças em particular parece patriótico de-mais para querer entregar a mãos iná-beis a administração do Tesouro pú-blico. Falando parlamentarmente, o mi-nistério está liquidado, e no entantoainda existe de fato. Em Sanssouci pa-rece ter sido deliberada a tentativa deprolongar sua vida. A própria Assem-bléia Ententista que, num momento,está prestes a dar no ministério o gol-pe mortal, no momento seguinte estre-mece de novo de medo, assusta-se comseus próprios desejos, e a maioria pa-rece pressentir que, se o ministérioHansemann ainda não é o ministériode seu coração, um ministério de seucoração é ao mesmo tempo um minis-tério da crise e da decisão. Daí suasdebilidades, suas inconseqüências, suasinvectivas petulantes, que se trans-formam repentinamente em arrepen-dimento. E o Ministério de Ação acei-

    ta, com imperturbável e quase cínicaserenidade, uma tal vida emprestada,posta em questão a cada momento, hu-milhada, alimentada pela esmola dosfracos.

    Duchâtel! Duchâtel! O inevitávelnaufrágio desse ministério, apenasadiado penosamente por alguns dias,será tão inglório quanto sua existên-cia. Em nosso número de hoje, traze-mos aos leitores um artigo mais longode nosso correspondente em Berlimem que é avaliada essa existência. Po-demos descrever em uma palavra asessão ententista de 7 de julho. A As-sembléia troça do ministérioHansemann, dá-se o prazer dederrotá-lo a meias, humilha-o meiosorridente, meio rancorosamente, masna despedida a alta assembléia grita-lhe: Não leve a mal! e o estóicotriunvirato Hansemann-Kühlwetter-Milde murmura de volta: Pas si bête!Pas si bête!30

    Projeto de lei sobre a regovação dos encargosfeudais 31

    (NGR, nº 60, 30/7/1848)

    Se alguma vez um renano pôde es-quecer o que deve à dominação es-trangeira, à opressão do tirano

    30. Não [somos] tão tolos!31. O Projeto de Lei sobre a Revogação sem In-denização de diversos encargos e tributos feu-dais foi enviado à Assembléia Nacional Prussianaem 10 de julho de 1848; seus motivos foram ex-postos na sessão de 18 de julho de 1848.

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    corso,32 que leia o projeto de lei so-bre a revogação sem indenização dosdiferentes encargos e tributos que osenhor Hansemann, no ano da graçade 1848, envia à consideração deseus ententistas. Suserania, jurosalodiais, falecimento, direito de mãomorta, mortalha, direito de proteção,direito de justiça, tributo de três coi-sas, tributo de criação, tributo do selo,tributo do gado, dízimo sobre as abe-lhas etc. quão estranhos, quão bár-baros soam estes nomes absurdos anossos ouvidos civilizados pela des-truição franco-revolucionária do feu-dalismo, através do Code Napoléon!33

    Quão incompreensível nos é toda estamiscelânea de prestações e tributosmedievais, este gabinete de histórianatural das velharias carcomidas daépoca antediluviana!

    E contudo, patriota alemão, descal-ça-te, pois pisas um solo sagrado! Es-tas barbaridades são os escombros daglória germano-cristã, são os últimoselos de uma corrente que perpassa ahistória e te une à grandeza de teuspais, remontando às florestas teutôni-cas! Este ar confinado, este lodo feu-dal, reencontrados aqui em sua clássi-ca pureza, são os produtos mais origi-nais de nossa pátria e aquele que forum verdadeiro alemão deve exclamarcom o poeta:

    É este sim o ar de minha pátria!Minha face ardente o sentiu!E este barro dos grandes caminhos,É a crosta de minha pátria!34

    Percorrendo este projeto de lei, pa-rece à primeira vista que nosso minis-tro da Agricultura, sr. Gierke,35 sob asordens do sr. Hansemann, faz um gran-de gesto audacioso,36 que suprime deuma só penada a Idade Média inteira,e tudo grátis, é claro!

    Se, em contrapartida, examinamosos Considerandos do projeto, vemosque iniciam demonstrando que, narealidade, nenhuma obrigação feudalpode ser abolida sem indenização portanto, com uma afirmação audacio-sa, em contradição direta com o ges-to audacioso.

    Entre estas duas audácias, a timi-dez prática do sr. ministro manobracom prudência e precaução. À esquer-da o bem público e as exigências doespírito do tempo, à direita os direi-tos bem adquiridos dos proprietáriossenhoriais, ao centro o louvável pen-samento de um desenvolvimento maislivre da vida rural, encarnado no pudicoembaraço do sr. Gierke que conjunto!

    32. Na Renânia, onde a influência da RevoluçãoFrancesa era muito forte, as relações feudais fo-ram suprimidas durante o domínio de NapoleãoI e não foram restabelecidas depois de 1815. Norestante da Prússia, ao contrário, foram conserva-das, no essencial, até 1848.33. Código Napoleônico.

    34. HEINE, Alemanha. Um conto de inverno, cap. VIII.35. Gierke: liberal; em 1848 foi deputado à As-sembléia Nacional prussiana (centro-esquerda),ministro da Agricultura da Prússia de março asetembro de 1848.36. A expressão um gesto audacioso fora utili-zada originariamente nos debates da AssembléiaNacional de Frankfurt pelo deputado Mathy epelo presidente Gagern, e rapidamente se tornoupopular.

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    Basta. O sr. Gierke reconhece ple-namente que os encargos feudais emgeral só podem ser abolidos medianteuma indenização. Assim, os encargosmais pesados, os mais disseminados,os mais essenciais subsistem, ou, ondejá foram suprimidos de fato pelos cam-poneses, serão restabelecidos.

    Mas, observa o sr. Gierke, se, nãoobstante, relações particulares cujo fun-damento intrínseco for insuficiente, oucuja continuidade for incompatível comas exigências do espírito do tempo edo bem público, forem revogadas semindenização, que os atingidos saibamreconhecer que fazem alguns sacrifíciosnão somente em prol da prosperidadegeral como também em prol de seuspróprios interesses bem-compreendi-dos, a fim de que as relações entre osque têm direitos e os que têm deveresresultem pacíficas e cordiais, e sobre-tudo para preservar à propriedadefundiária sua posição no Estado, con-veniente ao bem de todos.

    A revolução no campo consistia naabolição efetiva de todos os encargosfeudais. O Ministério de Ação, que re-conhece a revolução, reconhece-a nocampo aniquilando-a sub-repticiamen-te. Restaurar completamente o antigostatus quo é impossível; os campone-ses assassinariam imediatamente seussenhores feudais, como o próprio sr.Gierke reconhece. Portanto, revoga-seuma pomposa lista de encargos feudaisinsignificantes e pouco disseminados,e restabelece-se a principal obrigaçãofeudal, que se resume na simples pala-vra corvéia.

    Com a abolição de todos estes di-

    reitos a nobreza não sacrifica nem 50mil táleres por ano e salva vários mi-lhões. E ainda, espera o ministro, tam-bém se reconciliará com os campone-ses, e no futuro, quando das eleiçõespara a Câmara, obterá inclusive seusvotos. De fato, o negócio seria bom, seo sr. Gierke não cometesse erros decálculo!

    Desse modo, as objeções dos cam-poneses seriam afastadas, bem comoas da nobreza, na medida em que ava-liasse corretamente sua situação. Restaainda a Câmara, os escrúpulos de chica-neiros jurídicos e radicais. A diferençaentre os encargos que podem e os quenão podem ser abolidos que não éoutra senão a existente entre os encar-gos completamente sem valor e os mui-to valiosos deve, por amor da Câ-mara, receber uma aparência de fun-damentação jurídica e econômica. O sr.Gierke tem de mostrar que os encar-gos a abolir: 1. têm um fundamentointrínseco insuficiente, 2. estão em con-tradição com o bem público, 3. com asexigências do espírito do tempo e 4.que sua revogação, no fundo, não é umaviolação do direito de propriedade,não é uma expropriação sem indeniza-ção.

    Para demonstrar a insuficiente fun-damentação destes tributos e presta-ções, o sr. Gierke mergulha nas regiõesmais sombrias do direito feudal. Todoo desenvolvimento, inicialmente mui-to lento, dos estados alemães desde ummilênio é evocado por ele. Mas em queisto ajuda o sr. Gierke? Quanto mais seaprofunda, quanto mais revolve o lodobolorento do direito feudal, tanto mais

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    este lhe demonstra uma fundamenta-ção não insuficiente, mas muito sólida,do ponto de vista feudal, dos encargosem questão; o infeliz ministro não fazsenão expor-se à hilaridade geral quan-do se esfalfa para extrair, do direito feu-dal, oráculos de direito civil moderno,e para fazer pensar e julgar o barão feu-dal do século XII como o burguês doséculo XIX.

    O sr. Gierke herdou, felizmente, oprincípio do sr. Von Patow: abolir semindenização tudo o que seja emanaçãoda suserania e da servidão, mas todoo restante apenas sob resgate. Mas aca-so o sr. Gierke acha necessária grandedose de sagacidade para demonstrarque os encargos a serem abolidos sãotambém, em geral, emanações da suse-rania feudal?

    Não é preciso acrescentar que o sr.Gierke, para ser conseqüente, introduzclandestinamente conceitos jurídicosmodernos entre as disposições jurídi-cas feudais; e, em caso de extrema ne-cessidade, é sempre a estes conceitosque apela. Mas, se o sr. Gierke medealguns destes encargos segundo as fi-guras do direito moderno, é incompre-ensível por que não faz o mesmo comtodos. Mas nesse caso, certamente, ascorvéias passariam por maus bocadosdiante da liberdade do indivíduo e dapropriedade.

    Mas o sr. Gierke alcança resultadosainda piores com suas diferenciaçõesquando invoca o argumento do bempúblico e as exigências do espírito dotempo. Entretanto, é evidente por simesmo: se estes encargos insignifican-tes são um obstáculo ao bem público e

    contradizem as exigências do espíritodo tempo, tanto mais o serão ascorvéias, prestações, direitos de con-cessão etc. Ou o sr. Gierke consideraextemporâneo o direito de depenar osgansos dos camponeses (§ 1, nº 14), mascontemporâneo o direito de depenaros próprios camponeses?

    Segue-se a demonstração de que arevogação em causa não viola o direi-to de propriedade. Naturalmente, aprova desta gritante falsidade tem deser fictícia, e, com efeito, só pode serapresentada demonstrando-se à no-breza que estes direitos são desprovi-dos de valor para ela, o que só apro-ximadamente pode ser demonstrado.O sr. Gierke faz então, com o maiorzelo, o cômputo de todas as dezoitoseções do primeiro parágrafo, semperceber que, na mesma medida emque consegue demonstrar o desvalordos encargos em questão, prova tam-bém o desvalor de seu projeto de lei.Bravo sr. Gierke! Quanto nos custaarrancá-lo de sua doce ilusão e ani-quilar seu diagrama arquimédico-feu-dal!

    Mas ainda há uma dificuldade!Quando do anterior resgate dos en-cargos que agora devem ser abolidos,e como em todo resgate, os campone-ses foram terrivelmente prejudicados,em benefício da nobreza, por comis-sões corruptas. Eles reclamam agoraa revisão de todos os contratos de res-gate firmados sob o antigo governo,e têm toda razão!

    Mas o sr. Gierke não pode admiti-lo. A isto se opõem direitos e leis for-mais, que se opõem sobretudo a todo

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    progresso, já que cada nova lei revogauma antiga e um velho direito formal.

    As conseqüências disto são segu-ramente previsíveis: proporcionar van-tagens aos submissos por uma via con-trária aos princípios jurídicos de to-dos os tempos (revoluções tambémcontradizem os princípios jurídicos detodos os tempos) traria incalculáveiscalamidades a uma enorme parcelados proprietários fundiários do Esta-do, e portanto (!) ao próprio Estado!

    E então o sr. Gierke demonstra,com uma seriedade comovente, queum tal procedimento põe em ques-tão e abala toda a situação jurídica dapropriedade fundiária, o que, ligadocom os inúmeros processos e custos,37

    infligiria à propriedade fundiária, fun-damento essencial da prosperidade danação, uma ferida da qual ela dificil-mente se recuperaria; que é um aten-tado aos princípios jurídicos da vali-dade dos contratos, um ataque contraas relações contratuais indiscutíveis,em conseqüência do qual toda a con-fiança na estabilidade do direito civilseria abalada e, assim, todas as rela-ções comerciais seriam, ameaçadora-mente, postas em perigo!!!

    Portanto, o sr. Gierke vê aqui umatentado ao direito de propriedade queabalaria todos os princípios jurídicos.E por que a abolição sem indenizaçãodos encargos em questão não é umatentado? Aqui se trata não somentede relações contratuais indiscutíveis,

    como de um direito incontestável,irrecusavelmente aplicado desde umtempo imemorial, enquanto os contra-tos questionados no pedido de revi-são não são de modo algum incontes-táveis, já que os subornos e os abusossão notórios e, em muitos casos,demonstráveis.

    É impossível negar: por muito in-significantes que sejam os encargosabolidos, o sr. Gierke, abolindo-os,proporciona aos submissos vantagenspor uma via contrária aos princípiosjurídicos de todos os tempos, à qualse opõem diretamente a lei e o direi-to formal; ele desorganiza toda a si-tuação jurídica da propriedadefundiária, ataca, na raiz, direitos in-discutíveis.

    De fato, sr. Gierke, valeu a pena co-meter tão graves pecados para atingirum resultado tão pauvre?38

    Certamente, o sr. Gierke ataca apropriedade é inegável mas nãoa propriedade moderna, burguesa, esim a feudal. Ele reforça a proprieda-de burguesa, que se ergue sobre as ru-ínas da propriedade feudal, destruin-do a propriedade feudal. E é somentepor isso que não quer revisar os con-tratos de resgate, porque, por meiodestes contratos, as relações feudais depropriedade são transformadas em re-lações burguesas, porque não pode,portanto, revisá-los sem ao mesmo tem-po violar formalmente a propriedadeburguesa. E a propriedade burguesa énaturalmente tão sagrada e inviolável

    37. Nas notas estenográficas: custos inestimáveise inúmeros processos. 38. Pobre.

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    quanto a propriedade feudal é atacávele, segundo as necessidades e a cora-gem dos senhores ministros, violável.

    Em síntese, qual é o sentido destalonga lei?

    É a prova mais concludente de quea revolução alemã de 1848 é apenas aparódia da Revolução Francesa de1789.

    Em 4 de agosto de 1789,39 três se-manas após a tomada da Bastilha, emum dia o povo francês deu cabo dosencargos feudais.

    Em 11 de julho de 1848, quatro me-ses após as barricadas de março, os en-cargos feudais deram cabo do povo ale-mão, teste Gierke cum Hansemanno.40

    A burguesia francesa de 1789 nãoabandonou um só instante seus aliados,os camponeses. Ela sabia que a base desua dominação era a destruição do feu-dalismo no campo, a criação de umaclasse de camponeses livres e proprie-tários.

    A burguesia alemã de 1848 traiusem qualquer decoro os camponeses,seus aliados mais naturais, a carne desua carne, e sem os quais ela é impo-tente ante a nobreza.

    A persistência, a sanção dos direi-tos feudais sob a forma de um (ilusó-rio) resgate, eis afinal o resultado darevolução alemã de 1848. Eis o parcoresultado de tanta agitação!

    A crise e a contra-revolução41

    (NGR, nº 100, 12/9/1848)

    Quem ler nosso correspondente deBerlim poderá dizer se não previmoscom exatidão o desenrolar da crise mi-nisterial. Os velhos ministros renunci-am; o plano do ministério, de se man-ter por meio da dissolução da Assem-bléia Ententista, por meio de leis mar-ciais e canhões, parece não ter alcança-do o aplauso da camarilha. Os junkersardem de desejo por um conflito como povo, pela repetição das cenas do ju-nho parisiense nas ruas de Berlim; maseles não vão se bater pelo ministérioHansemann, e sim pelo ministério dopríncipe da Prússia. Radowitz,42 Vinckee outros semelhantes indivíduos dig-nos de confiança serão convocados; anata da cavalaria prussiana ewestfaliana, ao que tudo indica associ-ada com alguns honestos burgueses daextrema direita, com um Beckerathe econsortes, a quem se pode confiar asprosaicas operações comerciais do Es-tado eis o ministério do príncipe da

    39. Na noite de 4 de agosto de 1789 a AssembléiaNacional francesa, sob a pressão do crescentemovimento camponês, anunciou solenemente asupressão de uma série de encargos feudais, queàquela época já haviam sido eliminados na práti-ca pelos camponeses sublevados. A lei promul-gada logo depois, no entanto, só suprimia semindenização os encargos pessoais. A eliminaçãode todos os encargos feudais sem nenhuma inde-nização só foi efetivada no período da ditadurajacobina, pela lei de 17 de julho de 1793.40. Testemunhado por Gierke e Hansemann.

    41. O segundo, terceiro e quarto artigos dessasérie traziam, na Nova Gazeta Renana, o título ACrise.42. Radowitz, Joseph Maria Von (1797-1853): gene-ral e político prussiano, representante da camari-lha reacionária da corte; em 1848 foi um dos líderesda direita na Assembléia Nacional de Frankfurt.

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    Prússia, com que tencionam nos pre-sentear. Enquanto isso lançam cente-nas de boatos, talvez mandem chamarWaldeck43 ou Rodbertus,44 desorientama opinião pública, e nesse meio tempofazem seus preparativos militares e,quando for a hora, aparecerão publi-camente.

    Caminhamos para uma luta decisi-va. As crises simultâneas em Frankfurte Berlim, as últimas resoluções dasduas assembléias, obrigam a contra-revolução a travar sua última batalha.Se em Berlim ousarem esmagar sob ospés o princípio constitucional da maio-ria, se puserem diante dos 219 votosda maioria o dobro de canhões, se ou-sarem, não somente em Berlim, mastambém em Frankfurt, desmentir amaioria por um ministério, o que dian-te das duas assembléias é impossível se provocarem, pois, a guerra civilentre a Prússia e a Alemanha, os de-mocratas sabem o que têm de fazer.

    (NGR, nº 101, 13/9/1848)

    Enquanto o novo ministério do im-pério, como informamos ontem, foi

    confirmado também por outras fontes,e talvez já hoje ao meio dia recebamosa notícia de sua configuração definiti-va, a crise ministerial continua em Ber-lim. Essa crise só pode ser solucionadapor dois caminhos:

    Ou um ministério Waldeck,reconhecimento da autoridade da As-sembléia Nacional alemã, reconheci-mento da soberania do povo;

    Ou um ministério Radowitz-Vincke, dissolução da Assembléia deBerlim, negação das conquistas revo-lucionárias, constitucionalismo de fa-chada ou mesmo a Dieta Unificada.45

    Não o ocultemos de nós mesmos:o conflito que irrompeu em Berlim nãoé um conflito entre os ententistas e osministros, é um conflito entre a Assem-bléia, que pela primeira vez se apre-

    43. Waldeck, Benedikt Franz Leo (1802-1870):conselheiro do Supremo Tribunal em Berlim, de-mocrata; em 1848 foi um dos líderes da esquerdae vice-presidente da Assembléia Nacional prus-siana; mais tarde, progressista.44. Rodbertus-Jagetzow, Johann Karl (1805-1875):latifundiário prussiano, economista político,ideólogo dos junkers aburguesados; em 1848 foilíder da centro-esquerda na Assembléia Nacionalprussiana, ministro da Educação no gabineteAuerswald; posteriormente, teórico do socialis-mo de estado junker-prussiano.

    45. A primeira Dieta Unificada se reuniu, graças auma patente real, de 11 de abril de 1847 a 26 dejunho de 1847. Representava a união de todas asoito Dietas Provinciais existentes, era convocadaa critério do rei e se dividia em duas câmaras. Acâmara do estamento senhorial consistia em 70representantes da alta nobreza, a câmara dos trêsestamentos restantes abrangia 237 representantesda cavalaria, 182 das cidades e 124 dos municípiosrurais. As atribuições da Dieta Unificada limita-vam-se à autorização de novos empréstimos emtempos de paz e à votação de novos impostos ouaumento de impostos. Com sua instituição, omonarca prussiano queria evitar o cumprimentodas promessas constitucionais que fizera e as de-terminações da lei sobre as dívidas estatais. NaDieta manifestou-se uma forte oposição liberal,vinda dos representantes da grande burguesiarenana (Hansemann, Camphausen, Von Beckerath)e de uma parte da nobreza da Prússia oriental(Von Vincke, Von Auerswald). Como a Dieta sedeclarou incompetente para autorizar um emprés-timo, o rei mandou-a de volta para casa.

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    senta como constituinte, e a Coroa.Terão coragem de dissolver a As-

    sembléia, ou não? Tudo depende dis-so.

    Mas a Coroa tem o direito de dis-solver a Assembléia? É certo que, nosestados constitucionais, a Coroa, emcaso de conflito e sobre a base da Cons-tituição, tem o direito de dissolver acâmara legislativa convocada e apelarao povo por meio de novas eleições.

    A Assembléia de Berlim é uma câ-mara constitucional, legislativa?

    Não. Ela foi convocada para en-tender-se com a Coroa sobre a consti-tuição prussiana, sobre a base não deuma constituição, mas de uma revolu-ção. Não recebeu de modo algum seumandato da Coroa ou de seus minis-tros responsáveis, mas sim somente deseus eleitores e de si mesma. A Assem-bléia era soberana como a legítima ex-pressão da revolução, e o mandato queo sr. Camphausen, junto com a DietaUnificada, lhe expediu na lei eleitoralde 8 de abril,46 não passava de um votopiedoso, sobre o qual a Assembléia ti-nha de deliberar.

    No início, a Assembléia acolheu emmaior ou menor medida a teoriaententista.47 Ela viu como, desse modo,

    foi lograda pelos ministros e pela ca-marilha. Finalmente, realizou um atode soberania por um momento,apresentou-se como Assembléia Cons-tituinte, não mais como Ententista.

    Como Assembléia soberana daPrússia, tinha pleno direito para isso.

    Mas uma assembléia soberana nãoé dissolúvel por ninguém, não está sub-metida às ordens de ninguém.

    E mesmo como mera AssembléiaEntentista, mesmo de acordo com aprópria teoria do sr. Camphausen, elase encontra em posição de igualdadecom a Coroa. Ambas as partes celebra-ram um acordo nacional, ambas as par-tes têm a mesma cota de soberania, estaé a teoria de 8 de abril, a teoriaCamphausen-Hansemann, portanto ateoria oficial reconhecida pela própriaCoroa.

    Se a Assembléia está em posição deigualdade ante a Coroa, a Coroa nãotem nenhum direito de dissolver a As-sembléia.

    Caso contrário, conseqüentemente,a Assembléia teria do mesmo modo odireito de depor o rei.

    A dissolução da Assembléia seria,pois, um golpe de estado. E o 29 dejulho de 1830 e o 24 de fevereiro de1848 mostraram como se responde aum golpe de estado.

    Dir-se-á que a Coroa poderia, sim,apelar novamente aos mesmos eleito-res. Mas quem não sabe que hoje os

    46. A Lei eleitoral para a Assembléia convocadapara entender-se sobre a constituição prussianafoi, por proposta do ministério Camphausen, apro-vada em 8 de abril de 1848 pela segunda DietaUnificada e baseava-se no sistema eleitoral indire-to em duas etapas.47. A teoria ententista, com a qual a burguesiaprussiana, na pessoa de Camphausen e Hansemann,procurou justificar sua traição à revolução, consistiaem que a Assembléia Nacional prussiana,

    permanecendo no terreno do direito, devia selimitar à fundação de uma ordem constitucionalpor meio da conciliação com a Coroa.

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    eleitores elegeriam uma Assembléiatotalmente diferente, uma Assembléiaque faria muito menos cerimônias coma Coroa?

    É evidente: se após a dissoluçãodesta Assembléia só é possível o apeloa eleitores muito diferentes dos de 8de abril, então não é mais possível ne-nhuma outra eleição, a não ser a queserá proposta sob a tirania do sabre.

    Portanto, não tenhamos ilusões:Se a Assembléia vencer, se impu-

    ser o ministério da esquerda, então opoder da Coroa ao lado da Assembléiaserá quebrado, o rei voltará a ser ape-nas o servidor pago do povo, e estare-mos novamente na manhã de 19 demarço caso o ministério Waldecknão nos traia, como tantos antes dele.

    Se a Coroa vencer, se impuser o mi-nistério do príncipe da Prússia, entãoa Assembléia será dissolvida, o direitode associação suprimido, a imprensaamordaçada, uma lei eleitoral censitáriadecretada, talvez até mesmo, como dis-semos, a Dieta Unificada evocada maisuma vez tudo sob a proteção da di-tadura militar, dos canhões e das baio-netas.

    A vitória de uma das partes depen-derá da atitude do povo, especialmen-te da atitude do partido democrático.Os democratas têm de optar.

    Estamos em 25 de julho. Ousar-se-á decretar as ordenanças que são pre-paradas em Potsdam? O povo será pro-vocado a dar o salto de 26 de julho a24 de fevereiro em um dia?48

    Boa vontade com certeza não falta,mas a coragem, a coragem!

    (NGR, nº 102, 14/9/1848)

    A crise em Berlim avançou mais umpasso: o conflito com a Coroa, que on-tem ainda só podia ser designado comoinevitável, aconteceu de fato.

    Nossos leitores encontram logo adi-ante a resposta do rei ao pedido de re-núncia dos ministros.49 Por meio destacarta, a própria Coroa passa para o pri-meiro plano, toma partido a favor dosministros, contrapõe-se à Assembléia.

    Vai mais longe ainda: constitui umministério estranho à Assembléia, con-voca Beckerath, que em Frankfurt sen-ta-se à extrema-direita e que emBerlim, como o mundo inteiro sabe porantecedência, jamais poderá contar comuma maioria.

    O ofício do rei é rubricado pelo sr.Auerswald. O sr. Auerswald devia seresponsabilizar por ter, assim, empur-

    miam a liberdade de imprensa, declaravam dis-solvida a Câmara e alteravam a lei eleitoral demodo que reduzia os eleitores em três quartos.Essas medidas extraordinárias do governo deCarlos X foram o motivo da revolução burguesade 1830 na França, a qual, em 29 de julho, supri-miu o domínio dos Bourbon.49. Em sua mensagem de 10 de setembro de 1848,Frederico Guilherme IV, concordando com a opi-nião dos ministros, declarou que a resolução daAssembléia Nacional prussiana de 7 de setembrode 1848 representava uma violação do princípioda monarquia constitucional, e ratificou a reso-lução do ministério Auerswald-Hansemann de re-nunciar em sinal de protesto contra esse procedi-mento da Assembléia.

    48. Em 26 de julho de 1830 foram publicados osdecretos (ordenanças) reais que, na França, supri-

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    tendo a Coroa e incitando à república!O princípio constitucional!, gritam

    os ministros. O princípio constitucio-nal!, grita a direita. O princípio consti-tucional!, geme o eco surdo da Gazetade Colônia.

    O princípio constitucional! Essessenhores são mesmo, então, suficien-temente tolos para acreditar que sepossa afastar o povo alemão da tem-pestade do ano de 1848, do colapsocada dia mais iminente de todas as ins-tituições históricas tradicionais, com acarcomida divisão dos poderes deMontesquieu-Delolme,50 com frasesdesgastadas e ficções há muito desmas-caradas?

    O princípio constitucional! Masos mesmos senhores que querem sal-var o princípio constitucional a qual-quer custo deveriam antes de mais nadareconhecer que em uma situação pro-visória ele só pode ser salvo com ener-gia!

    O princípio constitucional! Mas ovoto da Assembléia de Berlim, as coli-sões entre Potsdam e Frankfurt, os dis-túrbios, as tentativas da reação, as pro-vocações da soldadesca não mostraramhá muito que, apesar de todas as fra-

    ses, nós ainda estamos no terreno re-volucionário, que a ficção de que já es-távamos no terreno da constituinte, damonarquia constitucional acabada, nãoleva a nada além de colisões, as quaisjá agora o princípio constitucionalconduziu à beira do abismo?

    Toda situação política provisóriaposterior a uma revolução exige umaditadura, e mesmo uma ditadura enér-gica. Criticamos Camphausen desde oinício por não ter agido ditatorialmen-te, por não ter destruído e removidoimediatamente os restos das velhas ins-tituições. Assim, enquanto o sr.Camphausen se embalava no sonhoconstitucional, o partido vencido for-talecia as posições na burocracia e noexército, e ousava mesmo, aqui e aco-lá, a luta aberta. A Assembléia foraconvocada para se entender sobre aconstituição. Ela estava em posição deigualdade com a Coroa. Dois poderesem posição de igualdade em um go-verno provisório! Precisamente a divi-são dos poderes com que o sr.Camphausen procurava salvar a liber-dade, precisamente essa divisão dospoderes devia, em um governo provi-sório, levar a colisões. Atrás da Coroase ocultava a camarilha contra-revolu-cionária da nobreza, dos militares, daburocracia. Atrás da maioria da Assem-bléia estava a burguesia. O ministérioprocurava conciliar. Débil demais paradefender decididamente os interessesda burguesia e dos camponeses e des-truir, de um só golpe, o poder da no-breza, da burocracia e dos líderes mi-litares, desajeitado demais para nãoferir sempre a burguesia com suas me-

    rado a Coroa à sua frente para cobrirsua ignominiosa retirada, por ter pro-curado se esconder, ante a Câmara,atrás do princípio constitucional aomesmo tempo que esmagava sob os péso princípio constitucional, comprome-

    50. Delolme, Jean-Louis (1740-1806): especialistaem direito público e jurista suíço, defendia a dou-trina da divisão dos poderes.

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    didas financeiras, não chegou a nadaalém de se tornar impossível para to-dos os partidos e provocar justamentea colisão que queria evitar.

    Em toda situação não-constituída odecisivo não é este ou aquele princí-pio, mas sim somente a salut public, obem público. O ministério só poderiaevitar a colisão da Assembléia com aCoroa se reconhecesse o princípio dobem público, mesmo correndo o riscode colidir ele próprio com a Coroa. Maspreferiu manter-se possível emPotsdam. Contra a democracia, nuncavacilou em tomar medidas em prol dobem público (mesures de salut public),medidas ditatoriais. Ou foi outra coisaa utilização das velhas leis sobre cri-mes políticos, mesmo quando o sr.Märker51 já havia reconhecido que es-ses parágrafos do Direito Nacional(Landsrecht)52 deveriam ser suprimi-dos? Foram outra coisa as prisões emmassa em todas as partes do império?

    Mas em oposição à contra-revolu-ção o ministério guardou-se bem detomar providências em prol do bempúblico!

    E justamente dessa tibieza do mi-nistério ante a contra-revolução, quese tornava dia a dia mais ameaçadora,nasceu a necessidade, para a Assem-bléia, de ditar ela mesma medidas emprol do bem público. Uma vez que aCoroa, representada pelo ministro, eradébil demais, a Assembléia mesma de-via tomar providências. Ela o fez coma resolução de 9 de agosto.53 Mas o fezde uma forma ainda muito suave,dando aos ministros apenas umaadvertência. Os ministros não fize-ram caso disso.

    51. Märker, Friedrich August (1804-1889): juizdo Tribunal Criminal em Berlim, liberal; em 1848,f o i d e p u t a d o à A s s e m b l é i a N a c i o n a lprussiana (centro) e ministro da Justiça (ju-nho a setembro).52. O Direito Nacional (Landsrecht) Geral para osEstados Prussianos de 1794 era uma súmula dodireito burguês, do direito de comércio, de troca,marítimo e de segurança, além do direito penal,religioso, público e administrativo; consolidava ocaráter reacionário da Prússia feudal no âmbitojurídico e partes essenciais dele vigoraram até aintrodução do Código Civil, em 1900.

    53. Em 3 de agosto de 1848 ocorreu, na fortalezaSchweidnitz, um ataque de surpresa das tropasda fortaleza contra a Guarda Civil, no qualquatorze cidadãos foram mortos. Provocada poresse sempre reacionário comportamento das tro-pas prussianas, a Assembléia Nacional aprovou,em 9 de agosto, sob inclusão de algumas propos-tas de alteração, uma moção do deputado Stein comas seguintes palavras: O sr. ministro da Guerradeve declarar, em um decreto ao exército, que osoficiais permaneçam longe de todas as tentativasreacionárias, não apenas evitando conflitos de todotipo com os civis, mas sim mostrando, pela apro-ximação aos cidadãos e união com eles, que que-rem colaborar com franqueza e abnegação para aefetivação de um estado de direito constitucional,e que aqueles oficiais cujas convicções políticasnão estejam de acordo com isto considerem umdever de honra desligar-se do exército. O minis-tro da Guerra Schreckenstein não promulgou, ape-sar da resolução da Assembléia, nenhuma ordemsemelhante. Por isso Stein repetiu sua moção nasessão da Assembléia Nacional de 7 de setembro;a maioria dos deputados aderiu à intimação aoministério para cumprir rapidamente essa resolu-ção. Diante deste resultado da votação, o minis-tério Auerswald-Hansemann renunciou. No perí-odo do ministério Pfuel, que o sucedeu, a ordemfoi finalmente dada, em uma forma atenuada,mas ficou só no papel.

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    Mas também como eles poderiamtê-la acolhido? A resolução de 9 deagosto esmaga sob os pés o princípioconstitucional, é uma usurpação dopoder legislativo contra o executivo,destrói a divisão e o controle mútuodos poderes, tão necessários no inte-resse da liberdade, transforma a As-sembléia Ententista na Convenção Na-cional!

    E eis agora um fogo cerrado deameaças, um apelo atroador ao medodos pequeno-burgueses, a perspectivaaberta de governo de terror com gui-lhotina, impostos progressivos, confis-co e bandeira vermelha.

    A Assembléia de Berlim umaConvenção! Que ironia!

    Mas esses senhores não estão to-talmente equivocados. Se o governocontinuar como até agora, não demo-rará muito para termos uma Conven-ção não apenas para a Prússia, maspara toda a Alemanha , uma Con-venção que será obrigada a reprimircom todos os meios a guerra civil denossos 20 vendeanos54 e a inevitávelguerra russa. Agora certamenteestamos mesmo na paródia da Consti-tuinte!

    Mas como os senhores ministrosque apelam ao princípio constitucionalmantiveram este princípio?

    Em 9 de agosto, eles deixaram aAssembléia se dispersar calmamente,na boa-fé de que cumpririam a resolu-ção. Nem pensaram em comunicar àAssembléia sua negativa, e muito me-nos em renunciar a seus cargos.

    Refletiram durante um mês inteiroe finalmente, sob ameaça de várias in-terpelações, notificaram laconicamenteà Assembléia: evidentemente não cum-pririam a resolução.

    Depois, quando a Assembléia, nãoobstante, ordenou aos ministros quecumprissem a resolução, eles se entrin-cheiraram atrás da Coroa, provocaramum rompimento entre a Coroa e a As-sembléia e incitaram assim à república.

    E esses senhores ainda falam doprincípio constitucional!

    Em resumo:A inevitável colisão entre dois po-

    deres em posição de igualdade em umgoverno provisório ocorreu. O minis-tério não soube conduzir de modo su-ficientemente enérgico o governo, dei-xou de tomar as necessárias medidasem prol do bem público. A Assembléianão fez mais do que sua obrigação aointimar o ministério a cumprir seu de-ver. O ministério tomou isto por umaviolação à Coroa, e ainda a compro-meteu no momento de sua demissão.A Coroa e a Assembléia se contrapõemuma à outra. A conciliação levou àdivisão, ao conflito. Caberá talvez àsarmas decidir.

    Quem tiver mais coragem e conse-qüência vencerá.

    54. Vendéia província francesa em que, durante aRevolução Francesa, na primavera de 1793,irrompeu uma insurreição contra-revolucionáriasob a liderança da nobreza, que se apoiou nocampesinato dessa região economicamente atra-sada. Vendéia é, por isso, utilizada generalizadamentepara tendências contra-revolucionárias.

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    248 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002

    (NGR, nº 104, 16/9/1848)

    A crise ministerial entrou outra vezem um novo estágio, não graças à che-gada e aos inúteis esforços do impos-sível sr. Beckerath, mas sim devido àrevolta militar em Potsdam e Nauen.55

    O conflito entre democracia e aristo-cracia irrompeu no próprio seio daGuarda: os soldados viram na resolu-ção da Assembléia do dia 7 sua liber-tação da tirania dos oficiais, enviaram-lhe mensagens de agradecimento, de-ram um Viva! a ela.

    Assim a espada foi arrancada dasmãos da contra-revolução. Agora nin-guém ousará dissolver a Assembléia, ese isso não for feito não restará nadamais do que ceder, cumprir a resolu-ção da Assembléia e convocar um mi-nistério Waldeck.

    Provavelmente a revolta dos solda-dos de Potsdam nos economizou umarevolução.

    O ministério Pfuel56

    (NGR, nº 116, 14/10/1948)

    Quando o ministério Camphausencaiu, dissemos:

    O ministério Camphausen vestiraa contra-revolução com sua roupagemliberal-burguesa. A contra-revoluçãosente-se suficientemente forte para li-vrar-se da incômoda máscara. Um in-sustentável ministério qualquer, decentro-esquerda (Hansemann), podepossivelmente suceder por alguns diaso ministério de 30 de março. Seu ver-dadeiro sucessor é o ministério do prín-cipe da Prússia (N[ova] G[azeta]R[enana], nº 23, de 23 de junho). E re-almente ao ministério Hansemann su-cedeu o ministério Pfuel57 (deNeufchâtel58).

    O ministério Pfuel maneja as frasesconstitucionais como o poder centralem Frankfurt maneja a unidade ale-mã. Se compararmos o corpus delicti,o verdadeiro corpo desse ministério,

    55. Em 13 de setembro, os 1º e 2º Regimentos daGuarda em Potsdam se revoltaram contra as me-didas arbitrárias de seus oficiais. O motivo princi-pal foi o embargo, pelos oficiais, de uma mensagemde agradecimento ao deputado Stein e à AssembléiaNacional prussiana pela resolução de 7 de setembro.Os soldados chegaram a construir barricadas.Em Nauen, os couraceiros da Guarda ali estacio-nados recusaram-se, em 10 de setembro, a se lan-çar contra os cidadãos por ordem de seus oficiais.56. De acordo com o decreto de Frederico Guilher-me IV, de 21 de setembro de 1848, o ministério

    Pfuel foi constituído com a seguinte composição:Von Pfuel, primeiro-ministro; Eichmann, ministrodo Interior; Von Bonin, ministro das Finanças; con-de Von Dönhoff, ministro do Exterior; Muller,ministro da Justiça. Era um ministério de funcio-nários e oficiais reacionários, que aparentementeia ao encontro do desejo da Assembléia Nacional,mas enquanto isso organizava abertamente asforças da contra-revolução. Depois da queda deViena, o ministério Pfuel foi substituído, em 8 denovembro, pelo ministério do conde VonBrandenburg, que realizou o golpe de Estado con-tra-revolucionário (estado de sítio em Berlim, disso-lução da Guarda Civil e da Assembléia Nacional).57. Pfuel, Ernst Heinrich Adolf Von (1779-1866):general prussiano, representante da camarilhamilitar reacionária, governador de Neuchâtel(1832-1848); em março de 1848 foi comandanteem Berlim, dirigiu em abril e maio a repressão àinsurreição na Posnânia; primeiro-ministro e mi-nistro da Guerra (setembro a novembro de 1848).58. Neuchâtel (ou Neufchâtel) designação fran-cesa para o cantão suíço Neuenburg, formado do

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    com seu eco, suas declarações consti-tucionais, seus abrandamentos, medi-ações, conciliações na Assembléia deBerlim, só podemos dizer sobre eleuma palavra, a palavra de Falstaff:

    Quão sujeitos estamos os velhosao vício da mentira!59

    Ao ministério Pfuel só pode suce-der um ministério da revolução.

    Vitória da contra-revoluçãoem Viena

    (NGR, nº 136, 7/11/1848)

    A liberdade e a ordem croata ven-ceram e celebraram sua vitória com in-cêndios, violações, pilhagens, com atro-cidades de uma infâmia inominável.Viena está nas mãos de Windischgrätz,Jellachich e Auersperg.60 Hecatombes

    de sacrifícios humanos que fariam vi-rar em seu túmulo o velho traidorLatour.

    Todas as mais sombrias previsõesde nosso correspondente de Viena61 seconfirmaram, e talvez neste momentoele mesmo já tenha sido trucidado.

    Por um momento esperamos a li-bertação de Viena do socorro hún-garo, e os movimentos do exércitohúngaro ainda nos parecem enigmá-ticos.

    Traições de todo tipo prepararama queda de Viena. Toda a história doparlamento e do Conselho Municipaldesde 6 de outubro não passa de umacontínua história de traição. Quem es-tava representada no parlamento e noConselho Municipal?

    A burguesia.Uma parte da Guarda Nacional de

    Viena, logo no início da Revolução deOutubro, tomou abertamente o parti-do da camarilha. E no final da Revolu-ção de Outubro encontramos outraparte da Guarda Nacional em luta con-tra o proletariado e a Legião Acadê-

    antigo principado Neuenburg e Valendis. Por de-cisão do Congresso de Viena, Neuchâtel, comoestado indivisível e totalmente separado da mo-narquia prussiana, foi adjudicado ao rei daPrússia e admitido como 21º cantão da Confede-ração Helvética. Em 1831, uma tentativa dos re-publicanos em Neuchâtel de forçar, por meio deuma insurreição, uma modificação na Constitui-ção e a total separação da Prússia foi reprimidacom grande violência pelo plenipotenciário do reiprussiano, general Von Pfuel. Depois disso, Pfuelfoi nomeado governador prussiano de Neuchâtel.Imediatamente após a Revolução de Fevereiro de1848, irrompeu novamente uma insurreição re-publicana. Foi constituído um governo provisó-rio, Neuchâtel foi declarada república, e pôs-seum fim, na prática, ao domínio da Prússia. Em1857 o rei prussiano teve de renunciar oficialmen-te a suas pretensões a Neuchâtel.59. Shakespeare, Rei Henrique IV, Segunda Parte,Ato 3, cena 2.60. Windischgrätz, Alfred, príncipe de (1787-1862): marechal-de-campo austríaco, em 1848-49

    foi um dos líderes da contra-revolução na Áus-tria; em 1848 dirigiu a repressão às insurreiçõesde junho em Praga e de outubro em Viena; depoisesteve à cabeça do exército austríaco que comba-teu contra a revolução húngara.Jellachich, Josip, conde de Buzim (1801-1859):general austríaco, tomou parte ativa na repres-são às revoluções de 1848-49 na Áustria e naHungria.Auersperg, Karl, conde de (1793-1859): generalaustríaco, em 1848 foi comandante da guarniçãode Viena, participou ativamente na repressão dainsurreição de outubro.61. Muller-Tellering.

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    mica,62 em entendimento secreto comos bandidos do imperador. Quem per-tence a esta fração da Guarda Nacio-nal?

    A burguesia.Mas na França a burguesia passou

    para a ponta da contra-revolução de-pois de ter derrubado todos os obstá-culos que se punham no caminho dadominação de sua própria classe. NaAlemanha ela se encontra rebaixada acaudatária da monarquia absoluta e dofeudalismo, antes de ter ao menosgarantido as condições vitais básicasde sua própria liberdade civil e domi-nação. Na França ela se apresentoucomo déspota e fez sua própria con-tra-revolução. Na Alemanha ela seapresentou como escrava e fez a con-tra-revolução de seus próprios déspo-tas. Na França ela venceu para humi-lhar o povo. Na Alemanha ela se hu-milhou para que o povo não vencesse.A história inteira não mostra outramiséria ignominiosa como a da burgue-sia alemã.

    Quem fugiu de Viena aos bandos eabandonou à generosidade do povo avigilância das riquezas deixadas paratrás, para caluniar seu serviço de guar-da durante a fuga e no regresso assis-tir a seu massacre?

    A burguesia.Os segredos íntimos de quem ma-

    nifestava o termômetro que descia acada sopro de vida do povo de Vienae subia a cada estertor de morte dele?

    Quem falou na língua rúnica da cota-ção da bolsa?

    A burguesia.A Assembléia Nacional alemã e

    seu poder central traíram Viena.Quem eles representavam?

    Sobretudo a burguesia.A vitória da ordem e liberdade

    croata em Viena estava condicionadapela vitória da república honesta emParis. Quem venceu nas jornadas dejunho?

    A burguesia.Com a vitória em Paris, a contra-

    revolução européia começou a come-morar sua orgia.

    Nas jornadas de fevereiro e marçoo poder armado fracassou por todaparte. Por quê? Porque ele não repre-sentava nada além do próprio gover-no. Depois das jornadas de junho elevenceu por toda parte, porque por todaparte a burguesia se entendera secreta-mente com ele, enquanto, por outrolado, tinha em suas mãos a direção ofi-cial do movimento revolucionário e to-mou todas aquelas meias medidas cujofruto natural é o aborto.

    O fanatismo nacional dos tchecosfoi a ferramenta mais poderosa da ca-marilha vienense. Os aliados já se de-sentenderam. Nossos leitores encontra-rão neste número o protesto da depu-tação de Praga contra a impertinênciavil com a qual foi saudada em Olmütz.

    Este é o primeiro sintoma da guer-ra que começará entre o partido eslavoe seu herói Jellachich e o partido dasimples camarilha, posta acima detoda nacionalidade, e seu heróiWindischgrätz. Por seu lado, o campo-

    62. A Legião Acadêmica era constituída de estu-dantes universitários e era a mais radical das or-ganizações militares burguesas.

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    A NOVA GAZETA RENANA

    nês alemão na Áustria ainda não estápacificado. Sua voz será atravessada es-tridentemente pela assuada nacionalaustríaca. E por um terceiro lado, aamável voz do czar será ouvida até emPest; seus carrascos aguardam a pala-vra decisiva no principado do Danúbio.

    Finalmente, só a última resoluçãoda Assembléia Nacional alemã emFrankfurt, que incorpora a Áustria ale-mã ao reino alemão, devia levar a umenorme conflito, se o poder central ale-mão e a Assembléia Nacional alemã nãoacreditassem ter cumprido sua tarefaao entrar no palco para serem vaiadospelo público europeu. Apesar de suaresignação religiosa, a luta na Áustriaassumirá dimensões gigantescas, comoa história mundial ainda não viu.

    Agora mesmo foi representado emViena o segundo ato do drama, cujoprimeiro ato foi representado em Pa-ris sob o título: As Jornadas de Ju-nho. Em Paris mobilizados, em Vienacroatas em ambos lazzaronis, olumpem-proletariado armado e com-prado contra o proletariado trabalha-dor e pensante. Em Berlim presencia-remos em breve o terceiro ato.

    Posto que a contra-revolução viveuem toda a Europa pelas armas, elamorreria em toda a Europa pelo dinhei-ro. O fato que cassaria a vitória seria a bancarrota européia, a bancarrota doEstado. Nos escolhos econômicos aspontas das baionetas quebram-se comopavio macio.

    Mas o desenvolvimento não espe-ra o dia do vencimento da letra de câm-bio que os Estados europeus sacaramcontra a sociedade européia. Em Paris

    o contragolpe que aniquilou a revolu-ção de junho será vencido. Com a vitó-ria da república vermelha em Parisos exércitos serão lançados do interiordos países sobre as fronteiras, e o po-der real dos partidos em luta se reve-lará claramente. Então nos lembrare-mos de junho, de outubro, e tambémnós clamaremos:

    Vae victis!63

    A carnificina inútil desde as jorna-das de junho e outubro, a enfadonhafesta de sacrifício desde fevereiro emarço, o canibalismo da própria con-tra-revolução convencerão o povo deque só há um meio para encurtar, sim-plificar, concentrar as terríveis doresda agonia da velha sociedade e as san-grentas dores do nascimento da novasociedade, só um meio o terroris-mo revolucionário.

    A crise em Berlim64

    (NGR, nº 138, 9/11/1848)

    A situação parece muito complica-da, mas é muito simples.

    O rei, como a Nova Gazeta

    63. Ai dos vencidos! Grito de Brennus antes da toma-da e destruição de Roma pelos gauleses (390 a.C.).64. O artigo A crise em Berlim e a série de arti-gos A contra-revolução em Berlim, de KarlMarx, são um eco imediato da preparação e docomeço do golpe de estado contra-revolucionárioem Berlim. Em 8 de novembro, o rei destituiu oministério Pfuel e nomeou o ministérioBrandenburg-Manteuffel, abertamente contra-re-volucionário. Em 9 de novembro foi anunciada àAssembléia Nacional prussiana uma mensagemsuprema do rei, que ordenava seu adiamento e

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    Prussiana65 corretamente observa, as-senta sobre os mais amplos fundamen-tos seus direitos hereditários pelagraça de Deus.

    Do outro lado, a Assembléia Nacionalnão se assenta sobre absolutamentenenhum fundamento, ela deve primeiroconstituir, estabelecer o fundamento.

    Dois soberanos!O elo de ligação entre ambos é

    Camphausen, a teoria ententista.Logo que os dois soberanos não

    puderem ou não quiserem mais conci-liar, eles se transformarão em dois so-beranos inimigos. O rei tem o direitode atirar a luva à Assembléia, e a As-sembléia tem o direito de atirar a luvaao rei. O maior direito está do ladodo maior poder. O poder se compro-va na luta. A luta se comprova na vi-tória. Ambos os poderes só podemfazer valer seu direito pela vitória, seunão-direito só pela derrota.

    Até agora, o rei não é um rei cons-titucional. É um rei absoluto, que sedecide ou não pelo constitucionalismo.

    Até agora, a Assembléia não é cons-titucional, é constituinte. Até agora elatentou constituir o constitucionalismo. Elapode desistir ou não de sua tentativa.

    Ambos, o rei e a Assembléia, sub-meteram-se provisoriamente aos ritu-ais constitucionais.

    A reivindicação do rei, de consti-tuir ao seu arbítrio um ministérioBrandenburg,66 apesar da maioria daCâmara, é a reivindicação de um reiabsoluto.

    A pretensão da Câmara de proibirao rei, por meio de uma deputação di-reta, a constituição de um ministérioBrandenburg é a pretensão de umaCâmara absoluta.

    O rei e a Assembléia pecaram con-tra a convenção constitucional.

    O rei e a Assembléia, cada um emseu âmbito originário, recuaram, o reiconscientemente, a Câmara inconscien-temente.

    A vantagem está do lado do rei.O direito está do lado do poder.A frase sobre o direito está do lado

    da impotência.O ministério Rodbertus seria o zero,

    em que mais e menos se paralisam.

    A contra-revolução em Berlim(NGR, nº 141, 12/11/1848)

    O ministério Pfuel foi um mal-en-tendido; seu verdadeiro sentido é o

    transferência de Berlim para a cidadezinha pro-vinciana de Brandenburg. Era o começo do golpede Estado, consumado com a dissolução da As-sembléia Nacional prussiana e a outorga de umaconstituição em 5 de dezembro de 1848.A Nova Gazeta Renana fez tudo para mobilizar asmassas populares para a luta contra este golpe deEstado contra-revolucionário.65. Nova Gazeta Prussianajornal diário publicadoem Berlim desde junho de 1848; foi o órgão dacamarilha contra-revolucionária da corte e dosjunkers prussianos. Esse jornal também era conhe-cido pelo nome de Gazeta da Cruz, porque traziaem seu título uma cruz de ferro, circundada pelaspalavras Avante com Deus pelo Rei e pela Pátria.

    66. Brandenburg, Friedrich Wilhelm, conde de(1792-1850): general e estadista prussiano, pri-meiro-ministro contra-revolucionário (novembrode 1848 a dezembro de 1850).

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    ministério Brandenburg. O ministérioPfuel foi a indicação do conteúdo, oministério Brandenburg é o conteúdo.

    Brandenburg na Assembléia e a As-sembléia em Brandenburg.67

    Eis o epitáfio da casa Brandenburg!68

    O imperador Carlos V ficou surpre-so por ter sido enterrado vivo.69 Umapiada de mau gosto cinzelada em sualápide afirma que isto é mais do que apena capital, que o imperador CarlosV incluiu em seu Código Penal.70

    Brandenburg na Assembléia e a As-sembléia em Brandenburg!

    No passado um rei da Prússia com-pareceu à Assembléia. Não era o ver-dadeiro Brandenburg. O marquês deBrandenburg, que anteontem compa-receu à Assembléia, era o verdadeirorei da Prússia.

    O Corpo da Guarda na Assembléia,a Assembléia no Corpo da Guarda! isto é: Brandenburg na Assembléia, aAssembléia em Brandenburg!

    Ou a Assembléia em Brandenburg como se sabe, Berlim fica na provín-cia de Brandenburg será o senhor...sobre o Brandenburg na Assembléia?Brandenburg procurará proteção naAssembléia, como no passado Capetaem outra Assembléia?71

    Brandenburg na Assembléia e a As-sembléia em Brandenburg é uma ex-pressão dúbia, ambígua, prenhe dedestino.

    É sabido que os povos dão cabo comfacilidade infinitamente maior dos reisdo que das assembléias legislativas. Ahistória possui um catálogo de revol-tas inúteis do povo contra as assembléi-as nacionais. Oferece apenas duas gran-des exceções. O povo inglês pulverizouo longo parlamento na pessoa deCromwell, o povo francês o corpolegislativo na pessoa de Bonaparte. Maso longo parlamento já se tornara haviamuito uma carcaça, o corpo legislativohavia muito um cadáver.

    Seriam os reis mais felizes do queos povos nas sublevações contra as as-sembléias legislativas?

    Carlos I, Jakob II, Luís XVI, Carlos Xretratam ancestrais pouco promissores.

    Mas na Espanha, na Itália háantepassados mais felizes. E recente-mente em Viena?

    67. Alusão às palavras de Frederico Guilherme IVa respeito do ministério Brandenburg: OuBrandenburg na Câmara, ou a Câmara emBrandenburg. A Nova Gazeta Prussiana, em seunúmero de 9 de novembro, ajustou: Brandenburgna Câmara e a Câmara em Brandenburg.68. A dinastia dos Hohenzollern, que em 1417recebeu o marquesado de Brandenburg comofeudo hereditário.69. O imperador Carlos V, segundo a tradição, pou-co antes de sua morte, organizou as cerimôniasde seu próprio funeral e tomou parte pessoal-mente nessas solenidades fúnebres.70. O Código Penal de Carlos V (Constitutiocriminalis carolina), aprovado em 1532 pelo par-lamento em Ratisbona, destacava-se por suaspenas extraordinariamente cruéis.

    71. O rei francês Luís XVI (Louis Capet), durantea insurreição popular de 10 de agosto de 1792,que derrubou a monarquia na França, procurouproteção na Assembléia Nacional. No dia seguin-te, o rei foi preso. A Convenção, que se reuniacomo tribunal acima de Luís XVI, declarou-o cul-pado de conspiração contra a liberdade da naçãoe a segurança do Estado e o condenou à morte.

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    Mas não devemos nos esquecer deque em Viena tinha assento um Con-gresso popular e que os representan-tes do povo eslavo, com exceção daPolônia, marcharam alegremente parao acampamento imperial.72

    A guerra da camarilha vienensecontra o parlamento era ao mesmo tem-po a guerra do parlamento eslavo con-tra o parlamento alemão. Na Assem-bléia de Berlim, ao contrário, não sãoos eslavos que formam uma cisão, massomente os escravos, e escravos, escra-vos não são um partido, são no máxi-mo a retaguarda de um partido. Adesertora direita berlinense73 não levanenhuma força ao campo inimigo, e simo infecta com uma doença mortal, coma traição.

    Na Áustria o partido eslavo ven-ceu com a camarilha; ele agora lutarácom a camarilha pelo botim. Se a ca-marilha berlinense vencer, não terá dedividir a vitória com a direita e a farávaler contra a direita; ela lhe dará umagorjeta e um pontapé.

    A Coroa prussiana está em seu di-reito quando enfrenta a Assembléiacomo uma Coroa absoluta. Mas a As-sembléia está no não-direito, porquenão enfrenta a Coroa como uma As-sembléia absoluta. Acima de tudo eladeveria prender os ministros por altatraição, por alta traição contra a sobe-rania do povo. Deveria pôr sob vigi-lância, fora da lei, todo funcionário quedesse ouvidos a outras ordens que nãoas suas.

    Assim seria possível que a fraque-za política com que a Assembléia Naci-onal se reuniu em Berlim se transfor-masse em sua força burguesa nas pro-víncias.

    A burguesia teria transformadocom muito prazer a monarquia feudalem uma monarquia burguesa pelo ca-minho amistoso. Depois de arrancar aopartido feudal os brasões e títulosofensivos a seu orgulho burguês e osrendimentos pertencentes à proprieda-de feudal que violam o modo de apro-priação burguês, ela teria com todo oprazer se casado com o partido feudale subjugado o povo junto com ele. Masa alta burocracia não quer decair cria-da de uma burguesia, de quem fora,até agora, a despótica mestre-escola.O partido feudal não quer queimar noaltar da burguesia suas distinções e seusinteresses. E, finalmente, a Coroa vênos elementos da velha sociedade feu-dal, de que é a mais alta emanação, seuchão social verdadeiro e natural, aopasso que, na burguesia, vê um terre-no estranho e artificial, do qual só po-deria se sustentar sob a condição dedefinhar.

    72. A maioria dos deputados eslavos do parla-mento austríaco de 1848 pertencia aos círculosliberais da burguesia e dos proprietários rurais,que aspiravam a resolver a questão nacional pelocaminho da conservação e fortalecimento da mo-narquia Habsburgo por meio de sua conversãoem uma federação de nacionalidades com direi-tos iguais.73. Em 9 de novembro de 1848 a Assembléia Nacionalprussiana foi notificada de um comunicado supre-mo do rei sobre o adiamento da Assembléia e suatransferência de Berlim para Brandenburg. Em conse-qüência disso, a maioria dos deputados da ala direitaabandonou obedientemente a sala de sessões, entreeles também dois deputados de Colônia (Haugh eVon Wittgenstein).

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    A NOVA GAZETA RENANA

    A burguesia transforma o inebriantepela graça de Deus em um sóbrio títu-lo jurídico, o domínio do sangue no do-mínio do papel, o sol real numa burgue-sa lâmpada astral.

    Por isso a monarquia não se dei-xou persuadir pela burguesia, e respon-deu à sua meia revolução com uma com-pleta contra-revolução. Rebaixou a bur-guesia a braço da revolução, do povo,gritando-lhe:

    Brandenburg na Assembléia e a As-sembléia em Brandenburg.

    Se admitimos não esperar da bur-guesia nenhuma resposta adequada àsituação, não podemos deixar de ob-servar, por outro lado, que também aCoroa, em sua insurreição contra aAssembléia Nacional, recorreu à suahipócrita imperfeição e ocultou a cabe-ça sob a aparência constitucional, nomesmo momento em que procurava sedesfazer dessa incômoda aparência.

    Brandenburg permitiu ao podercentral alemão dar a ordem para seugolpe de Estado. Os regimentos daGuarda foram mobilizados em Berlimpor ordem do poder central. A contra-revolução em Berlim ocorreu por or-dem do poder central alemão. Bran-denburg deu a Frankfurt a ordem paralhe dar esta ordem. Frankfurt negousua soberania no momento em que quisestabelecê-la. O sr. Bassermann74 natu-

    ralmente agarrou com ambas as mãosa oportunidade de o lacaio brincar desenhor. Mas ele tem a satisfação de queo senhor, por seu lado, brinque de la-caio.

    Também em Berlim a sorte estálançada: o dilema está posto, rei oupovo e o povo vencerá com o gri-to: Brandenburg na Assembléia e a As-sembléia em Brandenburg.

    Podemos passar ainda por umadura escola, mas é a pré-escola darevolução plena.

    (NGR, nº 141, 12/11/1848, 2ª edição)

    A revolução européia percorre umciclo. Começou na Itália, em Paris as-sumiu um caráter europeu, Viena foio primeiro eco da Revolução de Feve-reiro, Berlim o eco da Revolução deViena. Na Itália, em Nápoles, a con-tra-revolução européia assestou seuprimeiro golpe, em Paris as jorna-das de junho assumiu um carátereuropeu, Viena foi o primeiro eco dacontra-revolução de junho, em Berlimela se consumou e se comprometeu.De Paris novamente o galo gaulês des-pertará a Europa.75

    Mas em Berlim a contra-revolu-ção se comprometeu. Em Berlimtudo se comprometeu, mesmo acontra-revolução.

    74. Bassermann, Friedrich Daniel (1811-1855): li-vreiro em Mannheim, político liberal moderado;em 1848-49, foi representante do governo deBaden na Dieta; membro do Parlamento Prepara-tório e da Assembléia Nacional de Frankfurt (cen-tro-direita).

    75. O canto do galo gaulês Heinrich Heine, emtexto de 1831, diz em relação à revolução france-sa de 1830: O galo gaulês cantou agora pelasegunda vez, e também na Alemanha fez-se dia.

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    Em Nápoles o lúmpen, aliado coma monarquia, contra a burguesia.

    Em Paris a maior luta histórica quejá ocorreu. A burguesia, aliada com olúmpen, contra a classe trabalhadora.

    Em Viena todo um enxame de na-cionalidades, que viram na contra-re-volução sua emancipação. Além disso,secreta perfídia da burguesia contra ostrabalhadores e a Legião Acadêmica.Luta na própria Guarda Civil. Final-mente ataque do povo, que deu opretexto para o ataque da corte.

    Em Berlim nada disso. A burgue-sia e o povo de um lado os suboficiaisdo outro.

    Wrangel76 e Brandenburg, dois ho-mens sem cabeça, sem coração, sem ten-dência, meros bigodes eis a oposi-ção a essa Assembléia Nacionalquizilenta, hesitante, incapaz de deci-dir.

    Vontade! Ainda que seja a vontadede um asno, de um boi, de um bigode vontade é o único requisito dosabúlicos quizilentos em face da Revo-lução de Março. E a corte prussiana,que não tem qualquer vontade, assimcomo a Assembléia Nacional, procuraos dois homens mais estúpidos da mo-narquia e diz a estes leões: Representaia vontade. Pfuel tinha ainda algumaspartículas de cérebro. Mas por trás da

    estupidez absoluta se ocultavam oscriticastros das conquistas de março.

    Com a estupidez mesmo os deuseslutam em vão,77

    exclama a perplexa Assembléia Na-cional.

    E estes Wrangels, estes Brandenburgs,estes cérebros sem tino, que podemquerer, porque não têm nenhuma von-tade própria, porque querem o que lhesé ordenado, que são estúpidos o sufi-ciente para se enganar quanto às or-dens que se lhes dá com vozestremecida, com lábios trêmulos, tam-bém eles se comprometeram, à medi-da que não vêm para quebrar cabeças,a única tarefa da qual estes rompe-muros estão à altura.

    Wrangel não vai além de admitirque só conhece uma Assembléia Naci-onal, a que obedece a ordens!Brandenburg toma aulas de decoroparlamentar, e, depois de exasperar aCâmara com seu grosseiro e repugnan-te dialeto de suboficial, deixa o tira-no ser tiranizado e obedece a ordensda Assembléia Nacional, pedindo apalavra que havia pouco queria tomar.

    Melhor ser um piolho na lãde uma ovelhaDo que uma tão valente estupidez!78

    A atitude tranqüila de Berlim nosdiverte; contra ela quebram-se os ide-ais do suboficialato prussiano.

    76. Wrangel, Friedrich Heinrich Ernst, conde de(1784-1877): general prussiano, um dos líderesda camarilha militar reacionária; em 1848, gene-ral-comandante do 3º Corpo de Exército emBerlim, participou do golpe de Estado contra-re-volucionário em novembro de 1848.

    77. Schiller, A donzela de Orléans, Ato 3, cena 3.78. Shakespeare, Tróilo e Cressida, Ato 3, cena 3.

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    MARGEM, SÃO PAULO, No 14, P. 229-259, DEZ. 2002

    A NOVA GAZETA RENANA

    Mas e a Assembléia Nacional? Porque não pronuncia o mise hors de loi,79

    por que não declara os Wrangels fora-da-lei, por que nenhum deputado entraem meio às baionetas de Wrangel e odeclara proscrito e arenga à soldadesca?

    A Assembléia Nacional de Berlimfolheia o Moniteur,80 o Moniteur de1789-1795.

    E o que fazemos nós neste momento?Recusamos os impostos. Um

    Wrangel, um Brandenburg compreen-dem pois estas criaturas estudamárabe dos Hyghlans81 que trazemuma espada e um uniforme e recebemsalários. Mas de onde vêm a espada, ouniforme e o salário, isso eles não com-preendem.

    Só há um meio de derrotar a mo-narquia isto é, até a época da anti-Revolução de Junho em Paris, que ocor-rerá em dezembro.82

    A monarquia não desafia apenas opovo, desafia a burguesia.

    Derrotemo-la, pois, à maneiraburguesa.

    E como se derrota a monarquia àmaneira burguesa?

    Fazendo-a morrer de fome.E como fazê-la morrer de fome?Recusando os impostos.Refleti bem nisso! Todos os prínci-

    pes da Prússia, todos os Brandenburgse Wrangels não produzem nenhumamunição de boca. Vós, vós produzismesmo a munição de boca.

    (NGR, nº 142, 14/11/1848)

    Como outrora a Assembléia Naci-onal francesa encontrou trancada suasala de sessões oficial e precisou con-tinuar suas deliberações no Salão deBaile, assim a Assembléia Nacionalprussiana no Clube de Atiradores.83

    79. Declarar fora-da-lei.80. Le Moniteur Universel jornal diário francês,publicado em Paris de 1789 a 1901. De 1799 a1814 e de 1816 a 1868 foi o órgão oficial do gover-no. Durante a Revolução Francesa, o jornal publi-cou as atas das sessões parlamentares assim comoas leis e atos do governo revolucionário.81. Em 3 de novembro de 1848, a Gazeta de Colôniaescreveu sobre a linhagem africana imaginária dosHyghlans, uma forma intermediária entre ho-mem e macaco. Muitos deles, dizia-se ali, es-tudam a língua árabe. A Nova Gazeta Renana de5 de novembro zombou dessa notícia e observou,entre outras coisas, que esta descoberta (...) temde qualquer modo o maior significado para o par-tido dos criticastros, que encontra nos Hyghlansum superlativo apropriado.82. Em dezembro de 1848, de acordo com a Consti-tuição, deveriam ocorrer, na França, eleições

    presidenciais. A Constituição francesa de 4 denovembro de 1848 concedeu ao presidente, comochefe supremo do poder Executivo, plenos pode-res e depôs em favor do fortalecimento de atitu-des contra-revolucionárias da burguesia dominan-te desde a insurreição do proletariado parisienseem junho de 1848. Como resultado das eleiçõesde 10 de dezembro, Luís Bonaparte tornou-se pre-sidente da República