4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
A PAISAGEM CULTURAL DE PELOTAS ATRAVÉS DO MICROCINEMA1
MORELATTO, NATÁLIA B. (1); YUNES, GILBERTO S. (2)
1. Universidade Federal de Santa Catarina. Mestranda, Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo - PósARQ Campus UFSC – Trindade, PósARQ/CTC, Caixa Postal 476, 88040-900 Florianópolis – SC
2. Universidade Federal de Santa Catarina. Professor associado, Departamento de Arquitetura Urbanismo
Campus UFSC – Trindade, PósARQ/CTC, Caixa Postal 476, 88040-900 Florianópolis – SC [email protected]
RESUMO
A complexidade inerente às cidades e as múltiplas dimensões que constituem a paisagem urbana, revelam a necessidade de aproximações interdisciplinares no sentido de ampliar a sua compreensão enquanto paisagem cultural. Nesse contexto, diferentes abordagens vem sendo incorporadas na investigação em arquitetura e urbanismo, entre elas, a assimilação de filmes, documentais ou ficcionais, como fonte de pesquisa, entendidos enquanto produtos e registros de uma sociedade e de um tempo que os produziu. A representação da cidade no cinema, e os estudos que se dedicam à sua compreensão e interpretação, com intuito de contribuir à reflexão sobre a paisagem urbana, apresentam enfoque, recortes temporais e geográficos diversificados, porém, predominam os estudos sobre paisagens de grandes metrópoles a partir de filmes consagrados ou de grande circulação. O presente trabalho é um desdobramento da pesquisa de mestrado em andamento, que se insere nessa lacuna, e emprega o uso do microcinema realizado em uma cidade de médio porte, Pelotas, Rio Grande do Sul. O microcinema é caracterizado pela curta duração, formatos de baixo custo e/ou linguagem compatível com os circuitos atuais, oferecendo no caso em específico, um recorte possível de revelar o conceito de paisagem cultural e sua relação com o contexto histórico. Para isso, empreende a análise de quatro curtas-metragens realizados em Pelotas a partir de 2010, com intenção de destacar os diferentes setores da cidade utilizados no microcinema, em contrapartida ao patrimônio edificado da área central, já reconhecido e caracterizado especialmente pela arquitetura eclética. Tais filmes evidenciam a paisagem cultural a partir da articulação de elementos materiais e imateriais, culturais e naturais, e contemplam: a área portuária, seus lotes e edifícios ociosos e a apropriação dos mesmos pela população, expressa através de intervenções; e a relação com a borda d’água, tanto pelos canais São Gonçalo e Santa Bárbara, quanto pela Lagoa dos Patos.
Palavras-chave: Paisagem cultural; cinema; Pelotas.
1 Este artigo foi desenvolvido com apoio financeiro da CAPES, através de concessão de bolsa.
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Introdução
Este trabalho busca evidenciar contextos urbanos com potencial para complementar a
configuração da paisagem cultural da cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul, frequentemente
associada aos conjuntos arquitetônicos que representam o período de opulência econômica
da cidade. Esses contextos são observados em registros audiovisuais do cinema universitário
local, e podem ser caracterizados como fragmentos capazes de ampliar a compreensão sobre
a paisagem urbana, visto que são portadores de retratos, marcas e indícios significativos do
tempo e da sociedade que os produziu (Nóvoa; Barros, 2012, p.67). Para isso, foram
priorizados os filmes que evidenciam articulações entre elementos culturais e naturais,
materiais e imateriais em diferentes áreas da cidade, passíveis de constituir a paisagem
cultural. Nesse sentido, serão apresentados quatro filmes que abordam aspectos
relacionados à interação do homem com a natureza, ao longo das margens dos canais São
Gonçalo, Santa Bárbara e da Lagoa dos Patos.
Referido em inúmeros estudos e discussões anteriores, o conceito de paisagem cultural ainda
é amplamente discutido em função de sua complexidade, já que trata-se de um sistema que
agrega diversas manifestações entre o homem e o ambiente natural, compreendendo valores
distintos em contextos específicos. Foi institucionalizado enquanto patrimônio mundial,
através da criação da categoria paisagem cultural pelo Comitê de Patrimônio Mundial da
UNESCO em 1992, e em 2009 no âmbito nacional através da criação da chancela da
paisagem cultural brasileira pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional – IPHAN
(Portaria 127/2009), que assimila diferentes aspectos trabalhados historicamente de maneira
isolada, como culturais e naturais, materiais e imateriais.
A atribuição de valor patrimonial à paisagem amplia as possibilidades de ação dos órgãos de
preservação do patrimônio cultural e ao mesmo tempo impõe desafios, desde a identificação
até sua gestão, visto que as possíveis abordagens devem ser realizadas a partir de um
conjunto abrangente, que compreenda os aspectos constituidores das paisagens e seu
dinamismo, através de todos os seus elementos formadores e transformadores (Mongelli,
2016, p.4), sejam eles sociais, econômicos ou culturais.
Dessa forma, não se pretende discutir a aplicabilidade da chancela ao contexto em questão,
mesmo porque, essa atribuição é conferida aos órgãos de proteção e realizada por uma
equipe multidisciplinar. Mas é evidente que a pauta sobre paisagem cultural se fortaleceu a
partir de seu enquadramento enquanto bem patrimonial, e suscitou aproximações
diversificadas, como a aqui proposta, em que a intenção é ampliar o reconhecimento da
paisagem cultural de Pelotas a qual, comunidade e o meio acadêmico atribuem valor. Assim,
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através de filmes realizados na cidade, será apresentada uma contrapartida à ideia
consagrada da paisagem como patrimônio, geralmente vinculada ao centro fundacional e sua
arquitetura eclética, e às áreas das antigas charqueadas.
O Patrimônio Consolidado
No âmbito de Pelotas iremos abordar inicialmente a ideia de patrimônio cultural que
compreende os conjuntos correspondentes ao século XVIII, XIX, e início do século XX,
expressos pelas charqueadas e pela arquitetura eclética. Estes, reconhecidos como tal, serão
caracterizados brevemente com intuito de evidenciar o conceito dominante em relação à
contrapartida proposta.
Situada na planície costeira no extremo sul do estado brasileiro do Rio Grande do Sul, a
cidade de Pelotas se consolida em decorrência da implantação do polo charqueador
escravista, iniciado nas últimas duas décadas do século XVIII, situado às margens do canal
São Gonçalo e do arroio Pelotas (Gutierrez, 1993, p.4). Diversos fatores possibilitaram a
criação e desenvolvimento desse polo e ''ao longo desse processo, introduziram-se as
fábricas de carne salgada e a infraestrutura necessária à produção e exportação do charque,
comercialização do gado, importação de escravos, etc.'' (Gutierrez, 1993, p. 109).
A partir da acumulação de riquezas desenvolveu-se o assentamento urbano inicial, localizado
nos terrenos entre o canal São Gonçalo e os arroios Santa Bárbara e Pelotas, visto que os rios
eram fundamentais para a atividade charqueadora, que ocorria às suas margens. Delimitado
por esses cursos d´agua, esse assentamento está situado nos terrenos mais elevados de uma
extensa planície (Soares, 2002, p.28,33). O 1º loteamento, de 1813, aonde se ergueu a
capela, foi traçado ortogonalmente, contendo doze ruas no sentido norte-sul e sete no sentido
Leste-Oeste. O 2º loteamento, determinante para a consolidação da morfologia urbana no
que se refere ao seu traçado, constituiu sua primeira ampliação e, assim como o núcleo inicial,
apresenta traçado ortogonal, porém com vias mais largas e um diferencial, o sentido de
crescimento, Norte-Sul. As quadras, por sua vez, foram parceladas de maneira simples e
regular, gerando lotes com áreas semelhantes, testadas estreitas e grande profundidade
(Soares, 2002, p. 33,48).
Em função da prosperidade do comércio do charque, Pelotas representava no século XIX uma
das cidades mais importantes do Rio Grande do Sul, e entre os séculos XIX e XX foram
implantados diversos melhoramentos urbanos, como as canalizações d'água, redes de
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esgoto, iluminação pública, pavimentação das ruas, entre outros. A navegação marítima,
fluvial e lacustre possibilitou, além da exportação do charque e derivados, a chegada de
construtores estrangeiros, sobretudo italianos, que por sua vez, introduziram na região o
ecletismo historicista (Santos, 2007, p. 8). Caracterizado pela utilização de novos materiais e
técnicas de engenharia e arquitetura advindos da industrialização, o ecletismo arquitetônico
atribuía ''grande valor às caixas murais dos prédios através de ornamentações e empregavam
diferentes elementos/fragmentos da arquitetura do passado, de culturas próximas ou
longínquas, para compor suas fachadas'' (Santos, 2007, p.2).
Através do porto fluvio-lacustre chegavam equipamentos urbanos, como os chafarizes
franceses e o reservatório de água escocês, destinados a distribuição de água potável, assim
como elementos ornamentais que ''enriqueceram e deram imponência às edificações,
atenderam ao interesse da classe dominante em exteriorizar as suas ideologias e o seu poder
econômico'' (Soares, 2007, p. 9). O conjunto dessas edificações, localizadas principalmente
no 1º e 2º loteamento, é reconhecido por seu valor arquitetônico, artístico e cultural, tendo
parte integrada ao do Programa Monumenta 2 , destinado à recuperação e fomento às
questões patrimoniais.
Os elementos do contexto natural da região, representam portanto, condições fundamentais
para a implantação da cidade, especialmente devido a associação da configuração de seu
relevo ao sistema hídrico, que atuam como condicionantes, tanto pelos cursos de água e
áreas sujeitas a inundações, quanto pela necessidade de proximidade dos mesmos, para
controle e funcionamento da atividade saladeiril. Posteriormente, também através das águas,
pelo porto fluvio-lacustre, houve a importação da cultura europeia sob os fundamentos da
modernidade, materializada na urbe Pelotense, através dos melhoramentos urbanos e do
ecletismo historicista na arquitetura.
A Paisagem Cultural através do Microcinema
Filmes podem ser caracterizados como fragmentos capazes de ampliar a compreensão sobre
a paisagem, visto que são portadores de retratos, marcas e indícios significativos do tempo e
da sociedade que os produziu (Nóvoa; Barros, 2012, p.67). Esse entendimento associado à
oferta de material, constituído principalmente por filmes independentes, possibilita a
2 O Monumenta é um programa do Ministério da Cultura, que procura conjugar recuperação e preservação do patrimônio histórico com desenvolvimento econômico e social em cidades históricas protegidas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
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realização de uma abordagem diferenciada sobre a paisagem cultural de Pelotas, produzida
por habitantes a partir de sua experiência da cidade, que revelam situações de alteridade
interessantes, em que o passado e o presente, as relações humanas com o ambiente natural
e toda sua complexidade, apresentam uma contrapartida em relação à noção de valor mais
frequentemente atribuída ao conjunto arquitetônico da área central.
A realização cinematográfica em Pelotas reporta ao início do século XX, num contexto em que
os produtores detinham o complexo de exibição. Nesse período destacou-se a Guarany
Fábrica de Fitas Cinematográficas (1912-1914), de Francisco Santos, que indexou cerca de
41 títulos3, entre eles o curta-metragem Os óculos do vovô, a obra de ficção brasileira mais
antiga prospectada (Póvoas, 2009, p. 18,34). Após o encerramento das atividades da
companhia, a produção na cidade ocorre de forma esporádica, até recentemente, quando
verifica-se um incremento a partir da criação de novas produtoras, como a Moviola, e da
abertura do curso de Cinema e Animação na Universidade Federal de Pelotas-UFPel, no ano
de 2007. A cena cinematográfica local apresenta, portanto, etapas de pioneirismo, declínio, e
recente retomada, conforme o escritor e crítico Joari Reis (Rodrigues, 2011).
Durante esse intervalo técnicas e linguagem se transformaram, assim como os modos de
produção, distribuição e exibição cinematográfica. O desenvolvimento de mídias digitais
favoreceu o surgimento de diversas configurações e modalidades, bem como permitiu ampliar
o número de realizadores e a circulação em diferentes canais. A produção cinematográfica
universitária de Pelotas está inserida nesse âmbito, e é referida aqui como microcinema,
conceito que pode ser apropriado a partir de diversas acepções, porém empregado neste
trabalho no sentido de caracterizar produções em formatos de baixo custo, que não são
distribuídos em circuitos convencionais (Bambozzi, 2009, p. 4), independentes e/ou sem fins
institucionais ou comerciais, e ainda, em que a temática é definida pelos realizadores.
O processo de seleção dos filmes utilizados neste trabalho foi realizado a partir de consulta ao
acervo fornecido pelo colegiado do curso de Cinema e Audiovisual da UFPel, que apontou 97
curtas-metragens finalizados e indexados entre 2007 e 20144. Esses títulos foram submetidos
à uma análise individual, que considerou como critério inicial, a possibilidade de observar
espaços públicos de Pelotas, resultando em 47 filmes e 70 locações5 identificadas. Em
seguida foram isolados os filmes realizados no centro histórico, e os demais novamente
3 11 desses títulos ainda precisam ter exibição comprovada. PÓVOAS, Glênio Nicola. Confusões, entraves, desafios na história da Fábrica Guarany. In: GUTFREIND, Cristiane Freitas; GERBASE, Carlos (Org.). Cinema Gaúcho: diversidades e inovações. Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 33.
4 O acervo indica um total de 144 curtas-metragens, no entanto, 47 destes são cinema de animação e foram portanto, desconsiderados, resultando em um total de 97 curtas-metragens.
5 Locação no sentido de cena fora do estúdio cinematográfico, e nesse caso, externa em local pré-existente.
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submetidos à uma análise em que o critério foi a possibilidade de observar aspectos que
podem ser relacionado à paisagem cultural, indicando assim, 3 documentários 6
curtas-metragens. Foi adicionado ainda, um quarto título, também produzido por
universitários, mas não vinculado à universidade. Os filmes selecionados estão indicados no
mapa a seguir, em ordem cronológica de realização: Cotada (2010); Manjoada (2011); Barro
Duro (2013); e Debaixo da ponte ou na beira do rio (2016).
Figura 01: Mapa urbano de Pelotas e trecho do distrito Z3, com localização dos curtas-metragens e
centro histórico. Fonte: autores sobre Mapas do III Plano Diretor de Pelotas.
A interpretação desses filmes foi realizada a partir do objetivo da análise, que é evidenciar os
aspectos relacionados à constituição da paisagem cultural. Portanto, serão apresentadas
informações gerais sobre o filme e uma breve análise considerando aspectos externos ao
contexto de sua realização, e também aspectos internos, em seu sentido narrativo e
ideológico, ou seja, a forma como a história é contada, por quem, e qual a mensagem em
relação ao tema abordado (Penafria, 2009, p. 8-9).
6 Considera-se os filmes selecionados enquanto gênero cinematográfico documentário em função da indexação
efetuada por seus realizadores.
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Cotada
Realizado em 2010, o documentário Cotada, foi um projeto coletivo sob orientação da
professora Cíntia Langie (UFPel), e registrou uma atividade de extensão ocorrida no prédio da
antiga Cotada, coordenado pelo professor José Pellegrin (UFPel), que reuniu os projetos Eles
Estão Chegando II e Arte no Porto III. De acordo com depoimento do coordenador no próprio
documentário, esses projetos são oportunidades para que jovens artistas e artistas com uma
trajetória mais consolidada exponham seu trabalho.
No prédio em que a exposição foi realizada funcionava uma fábrica de biscoitos e massas, a
Cotada S.A, que está localizada no Bairro Porto, próximo ao centro da cidade, às margens do
canal São Gonçalo. A área se desenvolveu a partir do estabelecimento do polo charqueador
escravista, e mais tarde, em função do declínio da atividade, iniciou-se a criação de um núcleo
fabril, acompanhado por melhorias na infraestrutura da área (Al-Alam, 2011, pg.86), bem
como a instalação de residências e diversas fábricas, desativadas posteriormente.
Desocupado e deteriorado no momento da realização do documentário, o prédio da Cotada
S.A foi adquirido e reformado pela UFPel e funciona atualmente como centro de engenharias.
Em função de sua localização, em frente a praça Domingues Rodrigues, conhecida como
pracinha do Porto, que é frequentemente utilizada para manifestações artísticas e musicais
(Al-Alam, 2011, pg. 130), foram realizadas diversas intervenções e exposições no edifício
durante o período em que esteve abandonado, assim como ocorreu e vem ocorrendo em
outros edifícios ociosos na área.
O bairro Porto é representativo dos diversos períodos de transformação da cidade,
especialmente por seus edifícios e configuração urbana. Vários desses edifícios, antes
ociosos, foram adquiridos ela UFPel e convertidos em unidades universitárias, o que vem
transformando novamente o caráter do bairro, que vai assumindo as diversas camadas de
tempo. A relação das pessoas com esse espaço, também é expressiva sobre essas
transformações e novas possibilidades, como demonstra o documentário, que registra a
apropriação de um edifício vazio do período industrial, e atribui outro significado a esse
espaço, através da arte.
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Figura 02: Frames do curta metragem Cotada, de 2010. Visuais do Canal São Gonçalo e das
construções portuárias.a partir do edificío Cotada e sua inserção no contexto da praça do Porto.
Manjoada
Manjoada é um documentário curta-metragem realizado em 2011, com direção de Márcio
Costa. O local de gravação é a Colônia Z3, uma sociedade de pescadores profissionais
artesanais fundada na década de 1920, localizada no 2º Distrito da cidade de Pelotas, a 20 km
do centro, que ''se caracteriza por uma relação muito particular entre cultura e natureza já que
se encontra às margens da Lagoa dos Patos'' (Figueira,2009, p.37).
Para Figueira (2009, p.40-41) com o passar dos anos, os diferentes grupos que se
estabeleceram no local se organizaram de maneira particular em um ambiente também
particular, o que confere uma perspectiva única ao lugar, onde se desenvolveram técnicas e
preservaram valores e tradições passadas, como culinária, folclore, mitos, crenças religiosas
e tantos outros, sempre articulados e organizados com base na atividade de pesca artesanal
na Lagoa dos Patos.
No documentário é perceptível a importância dessa atividade para a comunidade de forma
geral, a partir de planos que exibem a rotina de trabalho dos pescadores, fragmentos da
paisagem local e entrevistas com os moradores. Sendo assim, no âmbito do imaterial, a
principal manifestação apresentada no documentário refere-se à pesca artesanal enquanto
modo de fazer/ofício, tanto que, o termo que dá nome ao filme, explicado durante um dos
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depoimentos, refere-se à uma expressão particular utilizada pelos moradores para designar o
ato de colocar a rede de pesca num dia, e retirar no outro.
A dependência da prosperidade da atividade pesqueira, diretamente vinculada aos processos
socioeconômicos da Colônia Z3 faz com que períodos de baixa safra afetem toda a
comunidade. Esse aspecto é apresentado no documentário a partir de depoimentos, em tom
de preocupação e denúncia, sobre o prejuízo para a atividade a medida em que a água doce
predomina sobre a água salgada, consequência de alterações climáticas. Esse prejuízo no
entanto, não gera consequências de ordem econômica apenas, ele afeta a comunidade em
diversos níveis, inclusive na preservação de características próprias que conferem identidade
ao lugar, seus modos de fazer e suas tradições, diretamente relacionadas às águas da Lagoa
dos Patos.
Figura 03: Frames do curta metragem Manjoada, de 2011. Visuais Colônia Z3, com o conjunto das
residências dos pescadores e a partir da Lagoa dos Patos.
Barro Duro
Com direção de Caio Mazzilli, o documentário Barro Duro, nome popular do Balneário dos
Prazeres na Praia do Laranjal, foi realizado em 2013 e apresenta cenas da atividade de pesca
artesanal, da tradicional celebração anual de Iemanjá e Nossa Senhora dos Navegantes e
também, depoimentos dos locais, que contemplam diferentes aspectos.
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Inicialmente referem-se à descrição e constituição do lugar como fruto das relações sociais e
econômicas de um período anterior, de sesmarias e fazendas, seguidas pelas transformações
da natureza, como o problema do assoreamento da Lagoa dos Patos, apresentada a partir de
diferentes pontos de vista, inclusive religioso, atribuído à Iemanjá. Também são feitas
referências à falta de assistência da prefeitura, tanto em função da precariedade da
infraestrutura local, quanto pela falta de fiscalização e controle na destruição da mata nativa e
poluição dos cursos d'água.
Essa praia, contam os moradores entrevistados, era uma área frequentada por negros em
uma época em que negros e brancos não podiam frequentar os mesmos lugares. Toda esse
contexto configura a cultura local, em que são celebrados diversas religiões e festividades,
especialmente de matriz africana, como Iemanjá, juntamente à Nossa Sra. dos Navegantes,
que são exibidas no documentário.
Nesse sentido o Barro Duro, assim chamado pela característica do solo à beira da praia,
constitui um testemunho histórico da cidade, tanto a partir da segregação racial e social,
quanto pelo saber/fazer/ofício tradicional da pesca artesanal, e da religiosidade e festividades
que lá se desenvolveram, fortemente ligadas à presença da água, que se refletem na
configuração paisagem.
Figura 04: Frames do curta metragem Barro Duro, de 2013. Visuais da atividade de pesca artesanal e
da celebração à Iemanjá e Nossa Sra. Dos Navegantes.
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Debaixo da ponte ou na beira do rio
Ainda em fase de finalização, o curta-metragem Debaixo da ponte ou na beira do rio foi
gravado em 2015, dirigido por Andruz Vianna. Diferente dos outros curtas-metragens
utilizados, ele é fruto de uma iniciativa independente que mais tarde obteve financiamento
pelo programa municipal de incentivo cultural, o Procultura. Foi considerado para esse
trabalho por ter sido desenvolvido por universitários e por sua representatividade da paisagem
cultural.
O documentário é realizado a partir da captação de imagens de contemplação e de
entrevistas com a comunidade, em grande parte composta por pescadores artesanais em
estado de vulnerabilidade socioeconômica, instalados às margens do arroio Santa Bárbara.
Próximo à confluência no canal São Gonçalo, logo abaixo da ponte desativada que liga a
cidade de Pelotas à Rio Grande, essa área, de preservação permanente, é atingida pela
degradação ambiental, especialmente pela poluição do canal.
O nome do curta-metragem refere-se a uma pergunta que os realizadores dirigiam à
comunidade, sobre como eles preferiam indicar sua moradia, em baixo da ponte ou na beira
do rio, sendo que foi dada preferência à última. De acordo com os moradores as ocupações
iniciaram ainda na década de 1950, e observam que a tranquilidade do lugar e a relação entre
a comunidade local são fatores positivos.
Nessa área, o rio atua como limite e como sustento da comunidade ali instalada, a ponte como
passagem, através da ligação rodoviária, e como marco visual em função de suas dimensões
e da planície natural do seu entorno. Há uma definição visual clara entre o meio ambiente
natural e a cidade. Acima da ponte, é possível ver no horizonte o contorno dos edifícios em
altura de Pelotas, seguido pelas fábricas e instalações da área portuária, o canal e depois a
vastidão dos campos. É possível também ver abaixo da ponte, uma parcela da população que
está às margens, do rio e da sociedade.
Esse ponto é especial, pois ele possibilita visualizar de forma abrangente os tempos históricos
através da configuração urbana, as relações do homem com o ambiente natural,
especialmente com a água, através do canal, e também os problemas sociais de uma cidade
contemporânea. Ele é representativo da paisagem cultural de Pelotas.
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Figura 05: Frames do curta metragem Debaixo da ponte ou na beira do rio, de 2016. Visuais das
atividades e usos dos espaços no contexto, e abaixo da ponte Alberto Pasqualini, sob o canal São
Gonçalo.
Considerações Finais
As paisagens apresentadas nos curtas-metragens analisados, enquanto paisagens culturais,
tem seu valor reconhecido pela produção acadêmica de áreas como antropologia e geografia,
mas ainda assim, são apresentadas de forma mais específica. Buscou-se através desse
trabalho expor uma possível abertura para a interpretação da paisagem de Pelotas enquanto
paisagem cultural através de registros e impressões produzidas por seus habitantes, a partir
de sua experiência da cidade, que revelam situações de alteridade interessantes, em que o
passado e o presente, as relações humanas com o ambiente natural e toda sua
complexidade, apresentam um contraponto à noção de valor mais frequentemente atribuída
ao conjunto arquitetônico da área central e às charqueadas.
Através dessa abordagem foi possível estender a ideia de paisagem cultural de Pelotas,
assim como apontar um fator comum, imprescindível para a fundação, configuração e
constante transformação da cidade: as águas. Elemento que representava a riqueza da
cidade entre os séculos XIX e XX, através da rede moderna de abastecimento de água e de
esgoto, e dos chafarizes importados da Europa, vieram também através das águas, pelo seu
porto, os costumes, os materiais, as técnicas e os construtores responsáveis pelo
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desenvolvimento da arquitetura eclética historicista, que constitui um conjunto com valor
patrimonial reconhecido.
Já nos curtas-metragens apresentados, a configuração específica das águas no contexto da
cidade é associada à simplicidade, e caracteriza também, a perpetuação de práticas
tradicionais e de conhecimentos adquiridos a partir de gerações anteriores, como a pesca, a
religiosidade e as celebrações. Hoje associada à problemas ambientais que afetam as
comunidades que vivem às margens da Lagoa dos Patos e dos canais São Gonçalo e Santa
Bárbara, que dependem dessa relação para sobreviver e perpetuar seus costumes e valores,
é evidente a indissociabilidade da preservação cultural e ambiental.
Por fim, acrescentamos que para melhor compreensão do trabalho os curtas-metragens
sejam visualizados integralmente, seus links encontram-se disponíveis junto às referências da
filmografia.
Referências
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SOARES, Paulo Roberto Rodrigues. DEL PROYECTO URBANO A LA PRODUCCIÓN DEL ESPACIO: MORFOLOGÍA URBANA DE LA CIUDAD DE PELOTAS, BRASIL (1812-2000). 2002. 513 f. Tese (Doutorado) - Curso de Programa de Doctorado Pensamiento Geográfico y Organización del Territorio, Universidad de Barcelona, Barcelona, 2002.
Filmografia
BARRO DURO. Direção de Caio Mazzilli. Pelotas: Filme Universitário, 2013. (15 min.), Digital, son., color. Disponível em: <http://wp.ufpel.edu.br/curtas/filmes/barro-duro/>. Acesso em: 08 jul. 2016
COTADA. Direção de Projeto Coletivo. Pelotas: Filme Universitário, 2010. (10 min.), Digital, son., color. Disponível em: <http://wp.ufpel.edu.br/curtas/filmes/cotada/>. Acesso em: 08 jul. 2016.
DEBAIXO DA PONTE OU NA BEIRA DO RIO. Direção de Andruz Vianna. Pelotas: Filme em fase de finalização, Digital, son., color. 2016.
MANJOADA. Direção de Márcio Costa. Pelotas: Filme Universitário, 2011. (14 min.), Digital, son., color. Disponível em: <http://wp.ufpel.edu.br/curtas/filmes/manjoada/>. Acesso em: 08 jul. 2016.
OS ÓCULOS DO VOVÔ. Direção de Francisco Santos. Pelotas: Guarany Fábrica de Fitas Cinematográficas, 1913. Película, P&B.
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