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A PANTERA -‐ peça em 1 ato, 80’-‐
2009
REVISADO EM 2011
CAMILA APPEL * todos os direitos reservados. texto registrado no Escritório
de Direitos Autorais da Fundação Biblioteca Nacional*
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POEMA “A PANTERA” – RAINER MARIA RILKE
The Panther (In Jardim des Plantes, Paris) Tradução do original em alemão de Stephen Mitchell. His vision, from the constantly passing bars, has grown so weary that it cannot hold anything else. It seems to him there are a thousand bars; and behind the bars, no world. As he paces in cramped circles, over and over, the movement of his powerful soft strides is like a ritual dance around a center in which a mighty will stands paralyzed. Only at times, the curtain of the pupils lifts, quietly-‐-‐. An image enters in, rushes down through the tensed, arrested muscles, plunges into the heart and is gone. Rainer Maria Rilke A Pantera (No Jardin des Plantes, Paris) Tradução de Tercio Redondo Seu olhar, de tanto contemplar as grades, está cansado e já nada vê. É como se o cercassem milhares de barras e por trás delas nada mais houvesse. O corpo forte se move com suavidade perfazendo um círculo diminuto; executa uma dança de força em torno a um ponto onde uma férrea vontade jaz entorpecida. Por vezes as pupilas se abrem silenciosas. Atravessa-‐lhes então uma imagem que percorre a tensa serenidade dos membros e se exaure no coração.
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A PANTERA
PERSONAGENS: ELA: aprox. 30 anos. ELE: aprox. 30 anos. PANTERA: rugido/jogo de luz e sombra, à critério da direção. TEMPO: presente. LOCAL: supermercado de classe média alta. CENA 1 -‐ COMPRAS NO SUPERMERCADO
Há três corredores paralelos. O primeiro (da direita para a esquerda) tem
produtos de limpeza, jardinagem e higiene. No segundo, há sucos e bebidas alcoólicas de um lado e condimentos e molhos do outro. No terceiro, há doces, bolos, velas e produtos de festas de aniversário, como bexigas, e uma mesa de vegetais no centro.
Sugere-‐se que o cenário não indique um supermercado de forma realística e os produtos não sejam identificáveis para o público. A cenografia pode abstrair dessa ideia de três corredores paralelos para sugerir um supermercado, contanto que mantenha uma sensação de claustrofobia no palco.
O supermercado está iluminado por uma luz branca. Há um sinal luminoso vermelho “SAIDA” (ou: Exit) no canto direito do palco. A luz dele está apagada.
ELE e ELA escolhem produtos e colocam-‐nos no carrinho, guiado por Ele. Conversam baixo, não é possível entender o que falam da plateia.
Começam o diálogo logo após o terceiro sinal.
ELE Não tem como sobreviver.
ELA E o que a gente deve fazer, deixar ele trancado num quarto?
ELE (irônico)
Não, dá para colocar grade em tudo.
ELA Eu não vou morar numa prisão.
ELE (Olha para a prateleira, se refere aos produtos, caixas coloridas)
Qual é a diferença?
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ELA Tem que ter outra saída.
ELE A gente morar num apartamento, ué.
ELA Não, eu sempre morei em casa, eu gosto de casa. Fiquei dois anos desenhando uma para a gente, como é que você fala isso?
ELE (pega uma caixa nas mãos, lê conteúdo, fala para si mesmo)
Passagem para a copa do mundo, vou levar esse. (Coloca o produto no carrinho).
Se deixar solto ele vai morrer.
ELA Ele vai morrer de qualquer jeito, um dia, e eu espero que antes da gente. Eu prefiro o que tem menos caloria.
ELE A coisa é simples: ou a gente mora numa casa e compra um cachorro, ou num apartamento com um gato. E esses daqui engordam igual, é a porcentagem de gordura que você precisa ver.
ELA Eu quero um gato, na casa, e livre!
ELE Sei, só que se ele ficar solto, ele não vai sobreviver.
ELA Você percebe o absurdo do que tá falando?
ELE (pensa um pouco e diz...)
Não.
ELA Como é que um bicho tem que ficar preso para sobreviver?
ELE É assim que as coisas são.
ELA Vamos logo com isso. A gente não tem muito tempo. Me passa a lista?
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ELE Tá aqui.
Ele oferece a lista de compras para ela, ela não pega, se perde no próprio discurso.
ELA (rápido)
Ah, eu to ansiosa, eu sei que é normal, todo mundo passa por isso, bom, quase todo mundo, tadinha da minha tia, tantos namorados, tava sempre quase lá. Tem um buraco no meu estômago, e não é a dieta para ficar bem no vestido, é ansiedade. E se não aparecer ninguém? Não, ninguém não é possível.
(suspira, tom poético) E hoje eu ainda acordei estranha... Parece um daqueles dias que ameaça chover o dia inteiro mas não chove. A água fica presa lá em cima, a umidade suspensa no ar.
Ela pega a lista de compras das mãos dele.
ELE
Tem gente que chama isso de nuvem.
ELA Você nunca vai entender essa sensação, é muito sutil. O frio na barriga de que algo grande está para acontecer. Eu sinto ele chegando... e eu sei que eu to preparada. Eu to preparada para o bum!
ELE Eu sinto isso desde criança e até agora o grande bum ainda não veio...
Ela passa uma garrafa de suco de cramberry para ele colocar no carrinho.
ELA
Tó, vamos levar só dois desse daqui.
ELE Esse aí que é o super suco?
ELA Dizem que cramberry faz muito bem à saúde.
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ELE Parece groselha, quem fala isso?
ELA A Doutora Vania.
ELE (zombando)
Sua ginecologista?
ELA É ué. Tem bichinhos anti-‐oxidantes aí dentro...
ELE Ha, bichinhos anti-‐oxidantes. Mas deixa os sucos aí porque eles ocupam muito espaço e deixam o carrinho mais devagar. No final eu pego enquanto você vai para a fila do caixa.
ELA Ele já tem tuuuudo esquematizado.
ELE Tem que ter um plano para otimizar o tempo e o espaço. Agora os vegetais.
ELA
Vamos pegar mais tomate, não acho que você comprou o suficiente.
ELE Tomates a caminho!
Ele dá uma corrida com o carrinho.
ELA
Espere por mim meu leopardozinho!
Ela agarra o braço dele.
ELE Leopardozinho? Essa é nova, hein...
ELA Tá na hora da gente ter um apelido mais nosso.
ELE Ah, o tempo dos nomes normais expirou?
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ELA Ah... Eu quero mais intimidade.
ELE Tá à venda ali no corredor 8... minha linda.
ELA Linda não, é muito genérico.
ELE Posso dar uma olhada na lista, minha borboleta?
Ela passa a lista para ele.
ELA Borboletas são muito frágeis, elas vivem só um dia. Nosso amor é forte e eterno!
ELE (olhando a lista)
Seis pacotes de papel higiênico? Por que a gente não compra só o que tá faltando para a festa? Não tem muito tempo e você colocou aqui até a comida do gato que a gente ainda nem tem.
ELA Isso! Posso te chamar de gato, meu gato...
ELE Aí eu nunca vou saber se você tá chamando ele ou eu.
ELA Ele eu vou chamar pelo nome, Ígor.
ELE O bicho tem nome de gente e eu tenho nome de bicho.
Ela pega uma barra de chocolate grossa, dessas para cozinhar.
ELA
Tem sobremesa suficiente para todo mundo?
ELE Tem.
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ELA Ah, vou levar de qualquer jeito. Quero fazer um bolo para você.
(conotação de quem sabe que é o bolo predileto dele) Nega maluca, hum?
ELE Tem estudos seríssimos sobre isso.
ELA Sobre o quê?
ELE O casal engorda depois do casamento, porque um fica querendo agradar o outro com comidas prediletas. A mulher normalmente engorda mais do que o homem.
ELA Estraga-‐prazeres, eu aqui querendo agradar...
ELE (sobre o estudo)
É verdade...
ELA (colocando a barra no carrinho)
Vem.
Chegam à mesa de vegetais. Ela pega uma cenoura nas mãos.
ELE
Já sei do que eu vou te chamar: coelhinha.
ELA Eu não gosto de cenouras tanto assim.
ELE Coelhos têm um monte de filhos...
ELA E daí?
ELE (pega na barriga dela)
Um monte de filhotinhos nessa barriguinha linda.
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Ela tira a mão dele da barriga dela e vai colocando tomates num saquinho plástico transparente.
ELA Então porque você não me chama de galinha logo de uma vez, se é isso que eu vou ficar fazendo, botando ovo.
ELE Mas não é qualquer galinha.... A minha gostosa, bronzeada, suculenta galinha.
ELA Eu não gosto de galinha, muito menos de galinha assada.
Ela coloca os tomates no carrinho, não fecha o saco. Ela pega a lista da mão dele, uma caneta na bolsa e risca.
ELA
Adoro riscar as coisas na lista de compras. Sensação de missão comprida. Mais molho para a carne.
ELE Mais ainda?
ELA Nada pode faltar para a sua família.
ELE É, não pode. Vamos por...
ELA (interrompendo)
Ah, eu preciso de desodorante, vem cá.
ELE A mostarda para o molho tá aqui do lado. Não vai querer comprar todas suas necessidades básicas agora, vai?
Chegam à prateleira da mostarda.
ELA
Não tem nada de básico nas minhas necessidades. É essa a mostarda que você tá usando?
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ELE
É.
Ele põe 2 potes de mostarda no carrinho e pega uma lata de molho nas mãos.
ELA
Olha esse molho pronto, tá em promoção. Pode ser bom para uma emergência.
ELE Ah não, esse aí é o que me faz ir para uma emergência. Foi por isso que você tirou do menu.
ELA Menu de hoje?
ELE Não... do casamento.
ELA Menu do nosso casamento meu pão de mel?
ELE Do nosso casamento meu algodão doce. Ah, para com isso que eu já tô me sentindo ridículo.
Ela coloca o molho dentro do carrinho de compras. Ele não percebe.
ELA
O amor é ridículo, vem cá meu noivo. Ela beija a bochecha dele.
ELE
Detesto esse título, noivo. Um negócio intermediário que não quer dizer nem solteiro, nem casado. Você não tá nem feliz, nem fudido. Eu tô no estado do nada. Noivo no dicionário deveria tá assim: o que se encontra em constante espera, no limbo.
ELA Eu não mudei o menu. Foi a mãe. A mãe estava responsável por isso.
ELE A minha mãe?
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ELA É que eu gosto de chamar ela de mãe, ela é nossa mãe. Minha mãe estaria responsável. Se ela tivesse viva, claro. Vamos pegar o desodorante agora?
Ele pega uma vela.
ELE Dá um minuto? Eu queria pegar um negócio aqui.
ELA Pega o negócio aí.
ELE
É uma surpresa para você... Será que...
ELA Tá bom, tá bom, eu te dou espaço. Ele quer privacidade até no supermercado.
Ela sai, vai para o corredor 1. Ele pega um bolo pronto, esconde embaixo dos outros produtos. Ela volta segurando um monte de pacotes de papel higiênico.
ELA
Aqui está. Esse não dava para faltar.
ELE Tanto assim? A gente já vai viajar.
ELA Aqui quem não otimiza tempo e espaço é você. Eu, sento lá, faço o que tenho para fazer e vou embora. Você não, fica hoooras... pensando na vida... É que os homens tem zonas erógenas lá trás...
ELE Os homens é?
ELA Cadê seu senso de humor? Você fica entediado no supermercado, vem cá que eu vou fazer seus olhos brilharem.
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Ela fecha os olhos dele com dois tomates, daqueles que tem o cabo em estrela. Cantarola a marcha nupcial, andam como se entrando na igreja, ele sem enxergar, gesticulando cego. Ela está atrás dele segurando os tomates. Ela tira os tomates. Podem simular essa entrada nupcial com outros elementos do supermercado ao invés do tomate. Como um vegetal no lugar do buque. Param de braços dados, de frente para a plateia, como se no altar da igreja.
ELE
Com quem que a Liza vai no casamento?
ELA Hã?
ELE A Liza. Com quem ela vai ao casamento?
ELA Por que?
ELE Eu tava pensando em apresentar ela pro Sérgio.
ELA Ah. Você acha que ele gostaria dela?
ELE Claro.
ELA Por que claro? Porque ela é gostosa?
ELE Claro que... sim.
ELA
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Bom, ela com certeza vai tá linda. Mandou fazer o vestido especialmente para a ocasião. O modelo chama tatuagem.
ELE Porque, é impossível de tirar?
ELA Não bobo, porque fica colado no corpo.
ELE (para si)
Hummm...
Ela passa as mãos pelos potes de especiarias, procurando alguma coisa. Se agacha, olha para os da última prateleira.
ELA
Olha quem tá aqui! A pimenta mais nobre do reino.
Ela se levanta segurando o produto.
ELE
(pensativo) Ela mesma, a mais nobre do reino.
ELA Um puta produto legal, diferenciado... quem mais faz pimenta orgânica? Quero ver um que tenha coragem de inventar condimentos orgânicos com todas as... todas as vantagens auto-‐sustentáveis como você faz.
ELE É isso aí, quero ver um!
ELA Tá um pouco caro, não?
ELE
As vendas tão caindo, não posso diminuir a margem. Só que aí tá foda, o consumidor tem que abaixar para pegar o produto!
ELA E qual é o problema disso?
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ELE A maior parte das compras é feita por impulso, decididas na hora, e as pessoas são preguiçosas, só vai abaixar quem estiver procurando por essa marca especificamente.
ELA Eu estava procurando por essa marca especificamente.
ELE Porque foi você quem fez o design dela.
ELA Para você vender.
ELE Obrigado minha luz.
ELA Luz é brega, hein meu anjo?
ELE Meu anjo e minha luz não dá. Meu leopardozinho tá fora de cogitação. Minha linda é ordinário, minha borboleta é muito frágil. Tá vendo?
ELA Vamos ficar com o meu e minha então.
ELE Hã? Meu e minha?
ELA Eu te chamo de meu e você me chama de minha.
ELE Essa é boa! Seu pai vai adorar me escutar te chamando de minha. Mas é isso mesmo, toda minha. Vem cá.
Ele a abraça, possessivamente.
ELA Não me aperta assim que eu tô com vontade de fazer xixi.
Ele solta.
ELE
Vai ao banheiro ué.
ELA
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É...
Ela sente alguma coisa estranha no ar.
ELA
Será que tem banheiro aqui?
ELE * Não. Funcionário não mija, não caga, não faz nada.
ELA Tá. Não vai deixar o carrinho desgovernado por aí, hein meu?
ELE Ninguém vai roubar nosso carrinho, minha.
ELA (olhando em volta)
É... o lugar não está exatamente cheio. Não tô vendo uma só pessoa.
Ela sai do palco. Ele vê se não tem ninguém olhando e troca os produtos da marca concorrente pelos seus, colocando-‐os na prateleira que está à altura dos olhos.
Ela volta, observa ele trocando os últimos itens. Ele se vira.
ELE
(constrangido por ser pego no flagra) Já?
Ela está imobilizada, assustada.
ELA
E-‐eu não achei ninguém.
ELE Hum?
ELA (cochichando)
Não tem ninguém nesse lugar além de nós dois.
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ELE Até parece.
ELA Vamos embora?
ELE Eu vou lá ver o outro lado.
ELA Não...
ELE
Um minuto.
ELA Deve ter acontecido alguma coisa muito grave. Vou ligar para sua mãe.
Ele sai. Ela tira o celular da bolsa. Disca. A ligação não se completa. Anda pelo supermercado, tentando ver onde há sinal. Tira os produtos do carrinho, coloca-‐os no chão. Repara no bolo. Sobe dentro do carrinho para tentar sinal no alto. Tenta se equilibrar. Ele volta.
ELE
O que você tá fazendo?
ELA O celular não pega!
ELE Desce daí macaca, vai acabar caindo...
ELA Achou alguém?
ELE Não, não achei ninguém.
ELA
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(descendo do carrinho) Vamos embora.
ELE É sábado à noite, o supermercado deve fechar no mínimo umas onze.
ELA Alguém muito famoso deve ter morrido, vem.
ELE Deixa as coisas aqui? Ah, e eu ia fazer uma surpresa para você...
Ele joga a vela dentro do carrinho e sai do palco. Música. As luzes diminuem, só é possível ver a silhueta do interior do supermercado.
CENA 2 -‐ PRESOS NO SUPERMERCADO
Eles começam a falar da coxia. As luzes vão voltando ao normal conforme entram no palco.
ELA
Essa é boa! Como é que trancaram a gente aqui dentro?!
ELE Não faço idéia.
Entram no palco. Luzes acesas.
ELA Não faz sentido, você já viu isso acontecer?
ELE (pode só balançar a cabeça negativamente)
Não.
ELA Peloamordedeus, faz alguma coisa!
ELE Putz, eu tô...
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ELA Completamente paralisado, eu tô vendo.
(gritando, para o teto) Alô! Oie! Alôoo!
ELE Calma meu amor, não é tão grave assim.
ELA Como não?
ELE Eu vou ver se as portas do fundo estão abertas.
Ele vai sair, escuta ela berrando, volta.
ELA (para algum lugar não específico do supermercado)
Alô, alô, tem gente aqui dentro! Alô!
ELE É mais fácil usar o celular.
ELA (respira fundo)
O meu não tá pegando, me empresta o seu?
Ele tira o celular do bolso, passa para ela e sai do palco. Ela sobe no carrinho, tenta achar sinal de novo. Disca alguma coisa, a ligação não se completa.
ELA
Sem noção. Não vai essa merda!
Ela se empurra, apoiando no corredor, até a frente do palco. Aponta o celular para a platéia, olha o visor.
ELA
Não tem nada aqui. Que saco. (bufa)
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Alô! Tem alguém aí?
Ela senta dentro do carrinho, abraça as pernas, segurando o celular dele. Começa a fuçar lendo as mensagens de texto. Reage negativamente ao que lê. Ele entra. Ela disfarça, coloca o celular na bolsa.
ELA E aí?
ELE Nada.
ELA (irônica)
Nada...
ELE Não consegui abrir uma porta, é muito estranho, a gente tá tranc...
ELA Que incompetência, hein?
ELE Que é isso, a culpa não é minha. Não tem saída.
ELA
É impossível não ter saída. Você é que não achou uma. Se não consegue tirar a gente de uma situação que nem é tão grave assim...
ELE Simples também não é...
ELA ... só quero ver como vai ser com filhos.
ELE Associação livre essa hein? De presos num supermercado para filhos.
ELA Não quero discutir isso agora.
ELE Só faltava...
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ELA (suando frio)
Amor, eu tenho fobia dessas coisas. Tá tudo girando, eu vou desmaiar.
Ele faz massagem nos ombros dela (ela ainda está sentada dentro do carrinho). Ela respira fundo, vai relaxando.
ELE
Calma... Nunca vi você desse jeito. Não me deixa aqui sozinho não.
Ela tira um remédio da bolsa.
ELE Para que que é esse aí?
ELA Para qualquer coisa.
Ela toma o remédio.
ELA Como é que a gente sai daqui?
ELE Você conseguiu falar com alguém?
ELA (ainda suando frio)
Não tem sinal. (Olha em volta, sente claustrofobia)
Ai, ai...
ELE Isso é psicológico. A gente tá aqui há um tempão e você não tava passando mal. Para quem que você tentou ligar?
ELA 190.
ELE Vou fazer papel de palhaço na frente da polícia? Deixa de ser neurótica!
ELA Estúpido.
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ELE Desculpa.
ELA Por que você não vai até o caixa e procura algum botão de emergência?
ELE Tá.
ELA (tira o celular da bolsa)
Vou ver se o sinal volta.
ELE Que saco, não tô vendo botão nenhum.
ELA (para si mesma)
Ai, eu tô muito tonta... (para ele, lá trás)
Com certeza tem um botão de emergência aí, algum vermelho, anti-‐ladrão, emergência pôxa.
ELE Putz, vou tentar esse aqui. Acendeu aqui no caixa, deve ser de chamar o gerente.
ELA Anda logo. Lerdo. Eu to passando mal!!!
ELE Então por que você não liga para a Doutora Vânia, hein?
ELA O que que minha gineologista tem a ver com isso?
ELE Ela deve ser sua clínica geral também, você não sai de lá.
ELA Ela é muito mais do que isso. Você achou o botão?
ELE Vários, mas nenhum que sirva.
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Ele volta segurando um rádio.
ELE Vocês duas tem segredos, é?
ELA Olha quem fala! Não sou eu que faço planos secretos sem te avisar.
ELE Pirou?
ELA (saindo de dentro do carrinho)
Vi uma mensagem do Sérgio no seu celular. Todo feliz porque você quer apresentar a Liza para ele. Você falou com ele sem me consultar. O que você vai fazer com esse rádio?
ELE Qual é o problema de eu querer apresentar os dois?
Ele coloca o rádio no chão e fica tentando sintonizar uma estação.
ELA
“Ela é seu tipo, não tem erro”, você escreveu.
ELE Desde quando você fuça no meu celular?
ELA “Não tem erro” por quê?
ELE Desde quando você fuça no meu celular?
ELA Você acha impossível um homem não gostar da Liza?
ELE (fala ou gesticula)
Dá para parar?!
ELA Não, tudo bem... ela é linda mesmo. Qualquer um baba nela, homens e mulheres. Lá no altar, ela de vermelho e eu ao lado toda de branco parecendo uma mãe de santo*. O que que seus amigos vão pensar? Esse aí se deu bem, com uma melhor amiga dessas até eu casava.
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ELE
Quanta merda...
ELA (sensação de claustrofobia. Para si mesma)
Ai, ai... tô suando frio. Será que eu já tomo outro?
ELE Acho que eu consegui sintonizar alguma coisa.
ELA Notícias?
ELE Notícias de Deus. É uma rádio evangélica. Vou bem devagar para ver se pega outra.
ELA Sua mãe escuta o religioso.
ELE Ela gosta da música, diz que anima.
ELA Foi para ela que eu tentei ligar, de novo, não para a polícia. Ela virou número 1 na minha discagem rápida do meu celular.
ELE (compreensivo, lembrando que a mãe dela já morreu)
É, eu sei meu amor.
Ele a abraça.
ELE Você tá melhor? Daqui a pouco vai aparecer alguém para tirar a gent...
ELA Ela até me disse que eu deveria ser uma mulher muito compreensiva, por não me importar com suas tantas super amigas.
ELE Ah, não começa com ciúmes. Você precisa aprender a controlar isso.
Ele pega o rádio nas mãos.
ELA
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É sim, controlar muito bem. Com quem você sai, aonde você vai, que horas vai, que horas chega.
ELE Peloamordedeus, essa bosta não funciona!
Ele joga o rádio no chão. Escuta um barulho maior do que o que seria a queda do rádio.
ELE
Você escutou isso?
ELA Você detonando sua grande ferramenta para tirar a gente daqui? A-‐hã.
ELE Tem mais alguém aqui dentro. Já volto.
Ele vai para o corredor 3 e fica escutando barulhos, indeciso sobre o que fazer, mas acaba não saindo do lugar. Só escuta sons (audíveis só para ele e não para ela ou para a platéia) e reage com estranhamento.
ELA
Não me deixa aqui sozinha... Eu tô passando mal...
Ela olha em volta, se dá conta de que está sozinha. Se abraça, como se sentindo frio.
ELA
Eu não acordei legal. Eu sei que te afasto de mim quando te trato assim. Por que que eu faço isso?
Ela abaixa a cabeça angustiada. Ele volta.
ELE
(bufando) Você não vai acreditar.
ELA
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Me abraça?
ELE (impaciente)
Não tem tempo para isso agora, isso é aqui é uma emergência! Eu acho que tem mais alguém aqui dentro. E tava fazendo um barulho muito estranho. Você acredita que não consegui abrir uma porta sequer? A gente tá trancado e tem mais alguém aqui. Você tá me escutando?
ELA (cabisbaixa, nem ouvindo)
Estou.
ELE Faz alguma coisa, não fica aí parada com essa cara de coitada.
ELA Não joga a tua incompetência para cima de mim.
ELE Ué, você não tá sempre dizendo que é mulher-‐maravilha? Agora é hora de mostrar seus poderes.
ELA (grita)
Ah! Mulher-‐maravilha era o apelido da Liza! Eu era a mulher-‐gato! Mulher-‐gato! Você tem fantasias sexuais com a mulher maravilha, é? Me diz que você prefere ela. Admite!
ELE (calmo)
É. É sim. Eu tenho fantasias sexuais com a mulher maravilha sim. (grita)
E ela é a Liza!
Escutam o RUGIDO da Pantera. Se aterrorizam, se escondem debaixo do corredor, ou em algum lugar no palco, visível para a platéia. As luzes diminuem. Vê-‐se a silhueta dos objetos de cena e dos dois escondidos. Ele mexe a cabeça procurando alguma coisa. Ela está paralisada.
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CENA 3 -‐ A PANTERA
Respiram alto e ofegante. As luzes ainda estão baixas.
ELA O que foi isso?
ELE Não faço idéia.
ELA O que foi isso!
ELE Shiiiii, fica quieta.
A pantera ronrrona.
ELA Putaquepariu, tem um bicho aqui dentro?
ELE Tem.
ELA Tem um bicho aqui dentro!
ELE Shiii! Fica quieta.
A pantera para de fazer barulho. As luzes voltam ao normal.
ELE
(se levantando) Vem.
ELA Tá louco?
ELE Ele tá no fundo do supermercado. Escuta.
Pequena pausa, escutam o som de “cachorro revirando lixo”.
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ELE
É onde ficam as carnes.
ELA (se levantando)
É um animal selvagem, eu tenho certeza que é um animal selvagem, (tom de: aonde já se viu?)
Quem é que faz um barulho desses?
ELE A gente precisa se proteger para quando ele voltar.
ELA Voltar? Por que voltar?
ELE Os animais atacam por fome ou auto-‐defesa.
ELA Tem carne para meses lá trás.
ELE Mas tem uns que atacam só por diversão.
ELA Socorro! Socorro!
Ele tapa a boca dela com as mãos.
ELE
Shii, pára de chamar atenção. Os animais também atacam quando sentem o medo na presa. Eles cheiram o medo. Vão primeiro no mais frágil. Você precisa tomar cuidado.
ELA
(tirando a mão dele da boca) E a mais frágil aqui sou eu?
ELE Me ajuda a pegar umas caixas. A gente precisa fazer uma base nossa, separar o território.
Eles começam a empilhar caixas, formando um círculo pequeno (mal cabem duas pessoas).
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ELA Eles têm visão raio X das emoções. O bicho vê você tentando disfarçar o medo. Ele vê que meu barulho é superficial e que o seu é muito mais perigoso. É barulho de homem reprimido *.
ELE Obrigado meu amor. Olha, vamos fazer uma arma. Os animais têm medo do fogo.
Escutam mais barulho vindo do fundo do supermercado.
ELA
Tem álcool no corredor ao lado. É a área da limpeza. Lá na área de limpeza tem um pano, um rodo e um isqueiro. Você pode ir lá...
ELE Não, eu tenho uma idéia melhor. E se eu for lá na área de limpeza e pegar um álcool, um rodo, um pano e um isqueiro? Aí, eu trago para cá, você enrola o pano no rodo, joga álcool e se prepara para acender, entendeu?
ELA Entendi.
Ele entra pela passagem, ela segura o braço dele.
ELA
É bom te ver liderando situações. Você é meu homem.
ELE Toma cuidado, sem movimentos bruscos e nem pense em sair dai.
Ele entra na passagem no meio de prateleiras e chega no corredor 1. Passa um rodo para ela. Passa o pano. Ela enrola o pano no rodo. Ele passa o álcool. Ela coloca álcool no pano. Ele volta, pela passagem, para corredor 2, onde ela está.
ELE (tentando animar a si mesmo)
Ótimo. (com praticidade)
Agora a gente entra na base e fecha a entrada.
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Eles entram. Estão muito apertados. Mal conseguem se mexer.
ELA
Ok, eu tô pronta, eu posso fazer isso. Passa o isqueiro?
ELA O isqueiro!
Ele olha para baixo.
ELA Puta que pariu! Vou fazer o que com isso? Dar uma rodada na cabeça do bicho?
ELE (“fudeu”)
Eu não vi nenhum isqueiro.
ELA Sou eu que preciso fazer tudo. O que mais assusta esses bichos?
ELE É...
ELA (zombando dele)
É...
Se levanta para pegar o isqueiro na sua bolsa.
ELE Fogo...
ELA Ah-‐tá.
ELE Calma! Fogo, água! Cadê o tal suco?
ELA (pega o suco)
Tá aqui.
Ela abre a garrafa.
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ELE Ele vem, a gente joga isso, ele foge...
ELA Ah é, ele desaparece. Barulho! Vê se tem alguma coisa por aí que faz barulho.
ELE (como se a ideia tivesse sido dele)
Barulho! Vê se tem alguma coisa aí que faça barulho.
A pantera ronrrona, mas não num tom agressivo. A sombra dela passa devagar, não em ameaça.
Ela joga suco de cramberry em direção à sombra. No restante da peça, o suco permanece no chão e eles acabam espalhando esse líquido vermelho no chão branco do supermercado. A sombra se assusta e saí rápido.
ELA
Putaquepariu, é grande.
ELE Ela é enorme.
ELA Por que ela?
ELE Pela sombra parece uma pantera.
ELA Toda sombra é preta. Mania de ver mulher em tudo.
Ela tira um isqueiro da bolsa, acende. Pega a garrafa de álcool na outra mão.
ELA
Vem panterinha, vem. Vou colocar fogo em você sua criaturazinha...
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ELE
Agora entrou no modo ‘exterminar toda fêmea do caminho’.
ELA É isso mesmo.
(como que chamando um gato) Vem, tisk, tisk, tisk. Ei, onde você arrumou esse isqueiro?
Ela continua chamando um gato, não responde. Ele pega no braço dela, ela aproxima o isqueiro do rosto dele.
ELE
Eu não tinha falado para você parar de fumar?
ELA (sim)
Hum-‐hum.
ELE (arranca o isqueiro dela)
Você voltou a fumar?
ELA Nunca parei. Já dei um tempo, mas parar nunca parei.
ELE Fumar é a coisa mais estúpida que alguém pode fazer.
ELA Não parece ser a ameaça mortal do momento.
A sombra da Pantera volta, com um ar curioso, mas não agressivo. Eles olham para a sombra. Ela coloca mais álcool no pano, com pressa, acende o isqueiro. O pano não pega fogo. A sombra se assusta e vai embora, irritada.
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ELA Ah!
ELE Não tá legal, isso aqui não tá legal.
ELA Você pegou um pano não-‐inflamável?
ELE Já viu pano inflamável para vender?
ELA Ótimo, sem água, sem fogo, sem barulho...
ELE Dá para colocar fogo numa dessas caixas...
ELA E no supermercado inteiro com a gente preso aqui dentro.
Pausa, eles suspiram.
ELA Você acha que ela fugiu?
ELE * Não. Liberaram ela para fazer compras.
ELA Tem um zoológico aqui perto, não tem?
ELE É possível.
Ela caminha para fora da base com o rodo.
ELA Ela passou a vida toda na prisão...
ELE (não seguro em concordar com o termo prisão)
É.
ELA (com dor)
Deve tá se sentindo sozinha.
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ELE Por pouco tempo. Já já aparece alguém para levar de volta para a cela e se unir à família toda.
ELA Por que você acha que ela fugiu?
Ele volta para a base.
ELE Como é que eu vou saber? Sei lá, deve ser o diferenciado da sua espécie.
ELA Hã?
ELE (zombando)
Toda espécie tem um que nasce curioso, quer espiar o que tem lá fora, quer explorar. Aí ele vai embora, e vai acontecendo mutações que fazem com que ele sobreviva, é a evolução das espécies. Os répteis saíram da água...
ELA Não fala besteira. Ela deve ter escutado a voz.
ELE (zombando)
A voz da evolução.
ELA Não. A voz lá dentro dizendo que tem alguma coisa errada. Não dá para saber o que tá errado, só que está errado. Ela não pertence aquele lugar. Um grande ser contraído, sufocando seu potencial. Ela reclamou, berrou, mas as pessoas riam da fúria da pantera. Até que um dia, ela desistiu.
ELE Pronto, se identificou com a pantera.
ELA Aí a voz começou a crescer, crescer, até que ela percebeu que tinha que ir embora dali. Tomou coragem para buscar a selva.
ELE E acabou no supermercado, quase igual.
Escutam um som, a pantera está brava.
34
ELE (ansioso)
O que sobrou de arma?
Ela, com ar de hipnotizada, não responde. Olha para o fundo do supermercado, de onde vem o som.
ELE
Sobe no meu ombro, se a gente parecer ser um animal maior do que ela, vai assustar. Os animais calculam essas coisas.
A sombra aparece.
ELE Sobe, sobe rápido!
Ele a puxa em direção à base. Ela não se move, hipnotizada pela sombra.
ELA
(em transe) Ela nasceu numa jaula. Está assustada. Sozinha. Nunca viu a floresta, nunca se sentiu em casa. Infeliz.
ELE Se liga! Você quer morrer?
Ela não reage e Ele resolve se proteger: volta para base, fechando a porta com o carrinho. Deixa a namorada do lado de fora.
ELA
(saindo do transe) Você me deixaria aqui? Você seria capaz disso, eu sei. Você nunca se sacrificaria por mim. Eu sei que não tô casando com nenhum herói, mas...
ELE Herói? Eu é que preciso ser o herói mas você quer mostrar que é melhor do que eu o tempo todo, parece que pede que eu te pare, que eu te coloque no seu lugar,
(acende o isqueiro) E é isso que eu vou fazer. Eu vou lá matar essa coisa, me dá o rodo.
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Ele sai da base.
ELA Não!
ELE Me dá isso aí.
ELA Eu vou com você.
ELE (pega o rodo dela)
Você fica aqui. Vai cuidar da base.
Ele a empurra para dentro. Ela cai.
ELA Não.
ELE Cala a boca e faça o que eu digo. Eu vou, mato a besta e volto.
ELA O próprio homem das cavernas!
ELE É isso aí, homem das cavernas.
ELA Volta aqui!
A sombra da Pantera reaparece.
ELE
(voltando para a base) Putaquepariu, ela tá lá em cima. Subiu num corredor e tá lá espiando a gente.
ELA É o que os gatos fazem.
ELE Não se mexe para ela não ver ameaça.
Pausa. Se perdem em pensamentos. Ele abaixa a cabeça, triste.
36
ELE
Você acha que tá todo mundo lá?
ELA Acho.
ELE O que eles devem tá fazendo?
ELA Sua avó contando a história de como ela conheceu seu avó. Sua mãe chamando a polícia sem avisar ninguém, fingindo que tá tudo bem. Meu irmão... atrasado.
(triste) Ele tem uma encomenda importante para essa semana.
ELE É?
ELA Hum... uma casa de campo perto de São Paulo. Feita em volta de uma árvore. No topo... com uma escada espiral de madeira...
ELE Parece com a que você desenhou para a gente morar.
ELA É a própria.
ELE Não entendi.
ELA Eu dei o desenho para ele.
ELE Por quê?
ELA Porque foi ele quem virou arquiteto de verdade. Agora eu só faço design dos seus produtos agora.
ELE Porque você quer.
ELA Não. O que eu queria mesmo era construir casas.
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ELE Como você fala besteira... Queria construir casas! Fala sério, você tá sempre em dúvida, você não sabe o que quer.
ELA (se referindo a ele)
É, talvez não saiba mesmo. Eu tô sempre em dúvida.
ELE Que olhar é esse? Você tá falando de mim agora?
Ela acena que sim com a cabeça.
ELE Aceitou casar comigo por quê, então?
ELA Ia dar muito trabalho começar tudo de novo com outra pessoa. Não dá mais tempo.
Ele caminha para fora da base.
ELE Eu sei que isso não é verdade.
ELA Você não me leva a sério.
ELE Essa pantera tá afetando sua cabeça, você tá com medo.
ELA Hum-‐hum, é isso então. Você acha que ela tá espiando a gente?
ELE Acho que sim. De algum lugar lá em cima.
ELA Eu vi na TV que tem que ficar de lado na presença de um animal selvagem, significa não-‐confrontamento.
Ele vira de lado para a namorada.
ELE
Assim?
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ELA Ficar de lado para ela.
ELE Só que a gente não sabe onde ela tá. Sua sugestão é inútil, completamente inútil.
ELA E você tem uma melhor?
Pequena pausa.
ELE Ia dar muito trabalho começar... Sabe do que eu lembrei agora? De um sonho seu.
ELA Um sonho meu?
ELE É... um sonho seu. Aquele que você me levou para visitar sua mãe no hospital.
ELA Você nunca conheceu minha mãe, não tem o direito de falar sobre ela.
ELE Era um quarto muito branco, num dia claro... a gente ao pé da cama, você tentando me apresentar para ela. Você falava meu nome, só que ela não respondia, tava com a cabeça voltada para janela e um olhar vazio.
ELA Fica quieto, não te dei o direito de falar sobre ela!
ELE Aí você levantou o lençol para tentar animar ela... e percebeu que ela estava morta. E já fazia muito tempo, porque o corpo já estava em decomposição. Você gritava chamando algum enfermeiro, mas ninguém vinha. Sabe porque? Nem tinham percebido ela ali. Ela tava sozinha. E você chorava, chorava. E sabe porque você chorava?
ELA Cala a boca.
ELE Porque você tinha medo de um dia acabar igual a ela. Sozinha.
Ela se enfurece, começa a desfazer a base.
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ELA Cala a boca!
ELE (tom de aviso)
Você tá quebrando a base, chamando atenção...
ELA Foda-‐se!
A pantera começa a ronronar.
ELA (para a sombra)
Pode vir! Que eu já to de saco cheio de ficar aqui esperando!
Ele tenta segurar a namorada.
ELA Não encoste em mim!
ELE Para quieta!
Ele a segura pelos ombros. Ela pára, ofegante. Eles ficam um de frente para o outro. Pausa.
ELA
Seu filho da puta, seu bichado, seu verme! (pausa, ele vai tentar falar, ela o corta)
Verme! É isso que você é porque é isso que você passou para mim! Um verme.
ELE Hã? Do que que você tá falando?
ELA Por que você acha que eu não saio da doutora Vânia, hein? Porque ela tá tentando me curar. Porque você passou doença para mim. Seu órgão sexual injetou bactérias do mal no meu útero.
ELE Hã?!
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ELA (calma)
É sério... isso é sério. De verdade. Tô fazendo tratamento. Peguei doença sua. Por que você acha que a gente tá usando camisinha?
ELE Porque você disse que anda esquecendo a pílula!
ELA Claro que não. É porque você passou doença para mim.
ELE Mentira!
ELA Pergunta para a Doutora Vania. Minha xoxota era o lugar mais saudável do mundo até você aparecer!
Ele sai do palco.
ELA
Aonde você vai?
ELE (em off, berrando)
Do que que você tem mais medo no mundo?
ELA Quê?
ELE (em off, voz normal)
Do que que você tem mais medo no mundo? (barulho dele procurando alguma coisa)
ELA Não sei do que você tá falando...
(se dá conta do que ele vai fazer) Não! Não faz isso!!! Tá louco? Vai...
ELE (em off, voz bem tranquila)
Não tô nem ai... Isso. Achei. Porque eu sei o que te dá mais medo no mundo, sua pior fobia.
(pequena pausa). O escuro.
Black out.
41
Ela berra junto com o rugido da pantera. Silêncio. O sinal luminoso vermelho “EXIT” / “SAÍDA” se acende. É a única luz o palco.
SEGUNDO ATO
CENA 4 -‐ A ARMADILHA
ELA Acende de volta... Vai! Acende logo! Acho que eu vou desmaiar... Tô passando muito mal.
(se recompõe) Você é imbecil? A pantera enxerga bem melhor do que a gente no escuro! Você quer mesmo que eu morra?
ELE Eu tô tentando...
ELA (relacionando o “tentando” à morte dela)
Quê?
ELE Já apertei todos os botões aqui, a luz não volta!
ELA Espero que se sinta bem responsável pela minha morte.
ELE Eu consigo ver um pouco. Vou arrumar umas lanternas. Não sai daí.
ELA (irônica)
Farei o possível.
Ela acende uma vela.
ELA (decidida)
Vou ter que me virar sozinha.
As seguintes falas são feitas cada um para si, ou para a platéia, como se estivessem dando um depoimento sobre o relacionamento. Não se escutam.
42
Ela vai montando uma armadilha para a pantera. Coloca o carrinho na frente do palco, de ponta cabeça, com o rodo sustentando a frente dele para cima. Pega alguma comida e faz um rastro até a armadilha.
ELA
Olha para isso aqui. Bizarro. Brrrr (de frio). Joga tudo na minha cara como se fosse ponto para ele. Tá querendo vencer o quê?
Ele acende uma lanterna no canto.
ELE
Muito poderosa essa mulher. Pelo menos deixa ela achar que é.
ELA
Ele não me leva a sério.
ELE Ela fica com essa neurose, achando que tá em crise.
ELA Ele quer controlar a situação mas não dá conta de nada.
ELE Ela precisa acalmar e confiar em mim.
ELA Ele tenta abafar, fica pedindo calma.
ELE Ela tá sempre irritada ou já fica histérica e sou eu que preciso manter o equilíbrio. Aí ela me acha fraco.
ELA Ele é covarde.
ELE O que eu deveria fazer?
ELA Ele paralisa.
43
ELE
Gritar também?
ELA Ele foge.
ELE Falar tudo o que eu realmente penso?
ELA Ele não se posiciona.
ELE Para ela usar o que eu falo contra mim mesmo.
Pequena pausa.
ELA Eu só preciso de segurança.
ELE Eu só quero fazer isso dar certo.
Ele abre uma garrafa de uísque.
ELA
Eu não quero ser deixada para trás.
Ele dá um gole grande na garrafa de uísque.
ELE
Eu não admito fracasso.
ELA E seu eu escutar a voz? Ir embora...
ELE Isso tem que ser uma parceria, uma sociedade.
ELA (triste)
For embora e ficar como ela... (se referindo a pantera)
Deslocada e sozinha.
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ELE Comecei, vou até o fim.
ELA Eu não sei me despedir. E também não tem nada de poético na solidão.
Ele a ilumina com a lanterna.
ELE Achei umas lanternas...
ELA Hum.
ELE (oferecendo a bebida)
Quer?
Ela aceita, bebe. Ele olha em volta notando a armadilha que ela montou.
ELE
O que que você fez aqui?
ELA Decidi me virar sozinha. Você não consegue fazer nada direito.
ELE Não começa...
ELA É verdade.
ELE Vai se virar sozinha então, vai. To indo para o outro lado do supermercado. Vai virando aí, fica de cabeça para baixo. To fora.
ELA (segura o braço dele)
Não! Eu... eu fiz uma armadilha, olha. Pode não caber o bicho inteiro, mas dá para assustar.
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ELE (desdém)
Dá é?
ELA Quem mandou apagar a luz desse lugar? Eu pelo menos fiz alguma coisa. Ah, vai embora mesmo, se mete no frigorífico então, vai. Tchau.
ELE Vou para bem longe de você sua histérica!
ELA Duvido você ir embora, seu covarde!
ELE (se aproxima dela)
Ah, é?
ELA (se aproxima dele, dedo em riste)
Você não tem coragem de dar um passo!
ELE Melhor não provocar...
ELA (dedo em riste, desafiadora)
Você não tem coragem, a iniciativa, a força, as vísceras, a masculini...
Ele dá um tapa no dedo em riste dela e a agarra com força.
ELE
(firme) Cala a boca.
Transam dentro da armadilha, na medida do possível. Acabam de transar, exaustos. Ele está relaxado, ela ta pilhada. Ela se levanta.
ELA
Será que sexo atiça os bichos? Deixa eles mais violentos?
46
ELE Claro que não. Deita aqui comigo.
ELA Como assim? A gente se esqueceu completamente do perigo.
ELE E nada aconteceu.
ELA Ainda.
ELE E não vai acontecer.
ELA Ah, é? E como é que você sabe?
ELE Porque não tem pantera nenhuma aqui.
As luzes do gerador se acendem.
47
CENA 5 -‐ O PRESENTE
ELA (estranhando)
Por que o gerador só acendeu agora?
ELE Tava aquecendo. Vem cá, a gente só precisa esperar alguém aparecer.
ELA Você enlouqueceu?
ELE Por quê?
ELA Como é que você diz que não tem pantera nenhuma aqui?
ELE Ué, porque não tem.
ELA Claro que tem! Você viu junto comigo! A sombra, o barulho!
ELE A sombra pode ser de qualquer coisa. O barulho também.
ELA Você tava morrendo de medo.
ELE Tava nada! Tá maluca?
ELA Você viu um bicho aqui dentro!
ELE Não vi.
ELA Tem um bicho aqui dentro!
ELE Não tem.
ELA Que raiva de você!
48
Ela anda de um lado para o outro, nervosa, sem saber o que fazer.
ELE
Pára quieta, daqui a pouco chega alguém.
ELA Tô com vontade de deixar essa pantera me arrancar um braço, só para você parar com essa palhaçada.
ELE (calmo)
Tá pirando hein? Acho bom a gente ocupar a mente com alguma atividade, senão você vai sair de órbita já já.
ELA Olha como ele tá tranquilo. Gozou tudo o que tinha pra gozar e de repente a pantera sumiu.
ELE Tem que ocupar a mente senão vai enlouquecer.
ELA Hummm....
ELE Tive uma ideia genial! Vamos colocar os produtos do supermercado em ordem alfabética.
ELA (cética)
Ordem alfabética.
ELE É um bom exercício, posso até usar em algum projeto meu depois.
ELA (sarcástica)
Ah, é ótimo. Uma biblioteca contemporânea. E você sugere essa ordem por ... o quê? Tipo de produto, nome da marca, do fabricante...
ELE Pelo nome do produto! Ou é melhor pela marca?
ELA Você quem sabe.
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ELE Eu nem sempre sei a marca que eu quero comprar, então vamos pelo nome, assim... o nome na embalagem.
Ele vai trocando alguns produtos de posição.
ELA
Praticamente um serviço social à população.
ELE (desdém)
É isso aí.
Ele continua mudando produtos de lugar. Ela abre um pacote de chips, ou chocolate, começa a comer compulsivamente,.
ELE
Você tá nervosa?
ELA Claro que eu tô nervosa, a gente tá preso num supermercado com um animal selvagem, carnívoro, e meu namorado enlouqueceu.
ELE Amor...
ELA Resolveu colocar todo o supermercado em ordem alfabética.
ELE Não tem...
ELA (se recompõe)
Mas eu não vou desistir.
Ela termina o pacote de chips, joga o saco no chão.
ELE
Eu tô faland...
ELA Eu não vou me alienar como você.
50
ELE
Eu não acho que...
ELA Eu vou fazer alguma coisa.
ELE (desistindo de falar)
Ok...
Ela pega um saco de bexigas.
ELA Achei nosso barulho.
Ela pega uma bexiga e começa a encher de ar.
ELE
(tirando um pouco de sarro) Você pode levar umas para a festa.
ELA (enchendo a bexiga)
A festa já acabou.
ELE Eles não iam embora sem a gente aparecer.
ELA Sua família já deve ter falado bastante besteira, espero que tenham se tocado e ido embora sim.
ELE Se tocado de quê?
ELA De que eles são insuportáveis!
ELE Ah, eles são insuportáveis?
ELA É. São. Com exceção da sua mãe.
ELE (tentando dissimular a raiva que sentiu do que ela acabou de falar)
Para de encher esse negócio. Tá me dando aflição!
51
ELA
Ah, é?
Ela enche com mais força.
ELE Muita aflição.
Ela enche com mais força ainda, na cara dele. Ele pega a bexiga e estoura.
ELE
Você é que é insuportável!
A sombra da pantera passa por eles. Ela vê.
ELA
Olha ali, olha ali, a pantera!
Ele escala prateleiras até o topo do corredor, pega uma caixa e atira para longe. A sombra se assusta e vai embora.
ELE
(abre os braços em vitória) Viu? Viu?
ELA (sarcástica)
É... vi. Machão. Vai continuar dizendo que não tem pantera nenhuma aqui?
ELE Não enche o meu saco meu amor.
Ele desce. Pausa. Ele cheira alguma coisa.
ELE
Tá cheirando xixi aqui.
ELA Não tô sentindo.
52
ELE
Tá muito forte esse cheiro.
ELA Não tô sentindo.
ELE Você mijou na calça?
ELA Não.
ELE Você tava querendo ir ao banheiro!
ELA Tava mas não fui.
ELE Você mijou na calça!
ELA Não. Fiz xixi no chão.
Ela aponta para a armadilha.
ELE Ali? Antes ou depois?
ELA (gostando disso)
Antes. Bem pouquinho antes.
ELE Vem cá que eu vou te levar até o banheiro.
ELA Não!
Ele a puxa pelo cabelo, desfazendo o penteado dela. Ela senta no chão. Ele tenta arrastá-‐la pelo cabelo. Ela resiste, abraça a perna dele.
ELA
Não saio daqui.
53
Ela coloca uma mão dentro da calça dele e puxa os pêlos da canela dele.
ELE
Ai, porra!
Ele se afasta dela.
ELE (na canela)
Ai...
ELA Arranquei dois pelos e olha que bebê chorão.
ELE (leve, percebendo a própria fragilidade)
Isso não se faz. Dói mesmo pô.
Pequena pausa.
ELA
(contendo a raiva) Você me machucou.
ELE Desculpa. É que xixi atrai a Pantera. E você fica me provocando, falando mal da minha família.
ELA (vai aprontar alguma)
Eu gosto muito da sua mãe...
ELE Eu sei.
ELA Ela só tem um defeito...
ELE Hã?
ELA Não soube educar o filho direito.
ELE Que é isso?
54
ELA
Não soube educar o mínimo, falar para o filho cuidar bem do coiso dele, ser limpinho, usar camisinha...
ELE Cala a boca.
ELA O que acontece? O filho pega coisa no coiso... mas não percebe. Por quê? Porque a graça de Deus deu esse presente para os homens. Eles pegam as coisas e ficam anos sem perceber. Até que um dia ele passa a coisa para a esposa, que passa a coisa para o filho deles -‐ quer dizer, talvez, não é certeza, só se o negócio estiver por aqui enquanto eu estiver parindo, caso eu tenha uma crise no meu sistema imunológico -‐ o que é bem provável de acontecer enquanto se está tentando tirar um outro ser humano do meio das costelas...
ELE Em primeiro lugar, você não está grávida.
ELA Não, não estou.
ELE Em segundo, você não é minha esposa.
ELA Ainda.
ELE Em terceiro: minha mãe não gosta de você. Ela me aconselhou a não te pedir em casamento, a não me casar com você. Tá me escutando? Minha mãe te odeia.
ELA Até parece.
ELE Por que eu ia inventar uma coisa dessas? Ela te acha uma perdida. Ela falou: NÃO CASA COM ESSA MULHER. Tá me escutando?
Ela não consegue digerir essa informação imediatamente. É muito forte para ela, sempre achou que o carinho que ela sentia pela mãe dele era recíproco (e ela já perdeu a mãe dela). Nas próximas falas ela vai digerindo que a mãe dele “o
55
aconselhou a não se casar com ela”, enquanto tenta falar de outras coisas.
ELA
(Engole seco) Sim, estou.
A pantera faz um som nervoso.
ELA Estamos.
O som cessa. Ela pega o bolo (que ele tinha colocado no carrinho no começo da peça).
ELA
Você disse que tinha uma surpresa para mim. (apontando para o bolo com a vela)
Era essa?
ELE Hoje faz quatro anos que eu te beijei pela primeira vez, e... eu queria comprar o bolo e as velas para fazer uma surpresa...
ELA Hum-‐hum...
ELE E... te dar um presente.
ELA (sem empolgação)
Um presente?
ELE Um colar. Tá no meu bolso.
Ele tira uma caixinha de jóias do bolso e abre a caixinha. É um colar antigo, muito bonito, com pedras que brilham bastante.
56
ELE É uma tradição na verdade, passada entre as mulheres da minha família. Esse colar foi da minha avó, passou para minha mãe... e agora... da minha mãe para você.
ELA Sei.
ELE Mas...
ELA Mas?
ELE (ele não quer que ela aceite)
Eu entendo se você não quiser aceitar.
ELA Eu quero.
Pausa. Agora ela começa a internalizar o que ele disse anteriormente.
ELA
Foi sugestão da sua mãe?
ELE (desconsertado)
Foi. Ela me deu quando a gente marcou a data do casamento.
ELA (magoada)
Não deve ter sido fácil para ela.
ELE Foi sim.
ELA (magoada mas já com raiva)
Dar algo tão especial para uma pessoa que ela odeia.
ELE Eu posso ter exagerado um pouco...
ELA (orgulhosa)
Eu fico com o presente.
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Ela tira a caixinha das mãos dele. Ela vira de costas para ele e coloca o colar. Ele fica olhando para ela como se ela estivesse trocando de roupa.
ELA
Eu não quero ser olhada.
Ele vira de costas.
ELA Não é possível que sua mãe falou para você não se casar comigo. Ela me trata tão bem...
ELE A gente tinha brigado, ela quis dar um apoio, dizer alguma coisa do tipo: não fica aí chateado meu filho, eu nem gostava dela mesmo, com certeza tem mulheres melhores por aí.
ELA E por que você não escutou? As mães estão sempre certas, sabe.
ELE É fácil para alguém que está de fora dizer “não faça isso, não faça aquilo”. Eu e você temos coisas em comum, a gente se gosta.
ELA (irônica)
Ah é, eu te amo.
ELE Foi o pior eu te amo que eu já ouvi na vida.
ELA Vai se acostumando.
ELE Que atitude é essa? A gente tá junto nessa. Resolvemos nossos problemas em casa, a quatro paredes, e pronto.
ELA Como é que eu vou conseguir olhar na cara da sua mãe sabendo disso, hein?
ELE Fiquei com pena de você, chamando ela de mãe...
58
ELA
Pena? Você tem pena de mim?
Ela tira o colar e joga para longe.
ELE
(absolutamente desiludido) Eu não acredito que você fez isso...
ELA Pois é.
ELE (calmo)
Seu blefe é imperdoável.
ELA Não é blefe.
ELE Imperdoável. Cada um tem o seu ‘ponto-‐do-‐não-‐retorno’.
ELA Vai lá pegar, não é da sua família? Da avó para a mãe para a filha? Vai lá pegar, bem perto do bicho.
ELE Vai lá você que eu não sou cachorro. Minha mãe estava certa sobre você.
ELA Por que você não casa com ela, então?
ELE (silêncio)
ELA
Eu odeio você.
ELE (silêncio)
ELA
Ah, eu odeio muito você, quer saber o quanto eu odeio você?
ELE (silêncio)
59
ELA
Eu odeio tanto você que eu seria capaz de me destruir só para te levar para o chão junto comigo.
ELE Cheia de frases de efeito...
ELA Essa não é minha. É da Gilda.
ELE (se lembrando)
Ha! Do filme? Você se compara com ela? Que dó. Sua queda não é poética, sua queda não é nada. Você pode sofrer o quanto quiser, que ninguém vai perceber.
ELA Ah, você vai! Porque eu vou fazer da sua vida um inferno para você perceber bastante, o quanto eu to sofrendo.
Ela tira o celular dele da bolsa, joga no chão, pula em cima, despedaça.
ELE
Isso não me atinge.
Ela pega um produto dele da prateleira e joga no chão.
ELA
Essas porcarias...
ELE Isso não me atinge.
ELA (berra na cara dele)
Ahhhh!
ELE Isso não me atinge querida.
60
ELA Eu odeio os seus produtos!
ELE Isso não me atinge porque eu contratei você por pena...
ELA Me contratou porque você precisa de uma esposa-‐secretária, alguém que te represente, o rosto do casal... uma esposa que melhore sua imagem para a sociedade.
ELE Te contratei porque você não sabe o que quer, achei que seria um favor. Até você se decidir, tomar um rumo. O que você não vai fazer nunca -‐ já é uma decisão em si.
ELA Eu vou sim.
ELE Você tem qualidades, não me leva a mal, mas não sabe usar nenhuma delas para nada.
ELA Ah, é?
ELE O que seria de você sem mim?
ELA É exatamente o que eu poderia descobrir!
ELE (resmungando para si mesmo)
Você nem faz questão de ser feliz. E eu me aproveito disso.
Escutam um som peculiar. É o choro da Pantera. Ficam um tempo em silêncio, escutando o som. É triste e forte.
ELE
Parece que ela tá chorando.
ELA Faz uns dez anos que aconteceu.
61
ELE Do que que você tá falando?
ELA (devagar)
Eu tava num restaurante, sozinha. Era uma cidade de campo, pequena. Sentei numa mesa com vista para a montanha, já cansada de não ter ninguém para conversar. Aí eu vi que em cima de mim tinha uma gaiola. E dentro dela, um passarinho amarelo. Tão bonitinho, mas com um olhar triste de cortar o coração de qualquer um, pelo menos cortou o meu. Nós dois, sozinhos.
Começa o som da pantera andando em volta de si mesma, como que dentro da cela.
ELA
Não segurei o impulso e abri a gaiola do passarinho. Ele enfiou a cabecinha para fora, espiou. Quando percebeu que estava livre, voou. Foi batendo asas como que espantando o tédio, usando a energia contida, com toda a força da liberdade. Foi voando bem rápido, a jato, direto na porta de vidro do restaurante. Caiu duro no chão. Morto.
ELE Ela tá andando em volta si mesma.
ELA Eu?
ELE Não, a pantera. Escuta...
ELA Hum.
Som aumenta.
ELE Hábito de cela.
ELA Todo mundo se acostuma com alguma coisa.
ELE Acostuma sim.
As luzes do supermercado se acendem -‐ a luz branca do
62
início da peça. Escutam vozes. A porta abre.
ELE
Até que enfim!
ELA E agora?
ELE E agora a gente vai embora.
ELA Será que ela sobrevive aqui fora, sozinha...
ELE Não tem como sobreviver.
Ele estende a mão para ela.
Se dão as mãos e saem do supermercado.
Ela volta. Procura alguma coisa. Encontra, se abaixa, pega o colar que está no chão.
Coloca o colar.
Olha fixo para frente.
Black-‐out.
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