Download - A PESTE - Sobre o Medo | Ensaios sobre Literatura do Medo · PDF filecuriosidade de saber por quem tão tristes ... As pernas tremem. Eu tenho medo, oh ... tratar do enterro dos que

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  • A PESTE Joo do Rio1

    E de sbito, um indizvel pavor prega-me ao banco. um dia brumosamente

    invernal. O azul do cu parece tecido de filamentos de brumas. O sol como que

    desabrocha, entre as brumas. O ar, um pouco mido e um pouco cortante, congela as

    mos, tonifica a vegetao, e o mar, que se v distncia num recanto de lodo, tem

    reflexos espelhentos de grandes escaras de chagas, de leo escorrido de feridas,

    superfcie quase imvel. O cheiro de desinfeco e cido fnico, o movimento sinistro

    das carrocinhas e dos automveis galopando e correndo pela rua de mau piso, aquela

    sujeira requeimada e manchada das caladas, o ar sem pingo de sangue ou

    supremamente indiferente dos empregados da higiene, a sinistra galeria de caras de

    choro que os meus olhos vo vendo, pem-me no peito um apressado bater de

    corao e na garganta como um lao de medo. A bexiga! A bexiga! verdade que h

    uma epidemia... E eu vou para l, eu vou para o isolamento, eu!

    Um ms antes ria dessa epidemia. Para que pensar em males cruis, nesses males

    que deformam o fsico, roem para todo o sempre ou afogam a vida em sangue podre?

    Para que pensar? E Francisco, o meu querido Francisco, a quem eu amava como a

    melhor coisa do mundo, pensava todo o dia, lia os jornais, tomava informaes. "A

    mdia de casos fatais de trinta por dia. Ela vem a, a vermelha", dizia. E j organizara

    um regime, tomara quinino, tinha o quarto cheio de anti-spticos, os bolsos com

    pedras das farmcias para afastar o vrus. Coitado! Era impressionante. Eu bem lhe

    dizia:

    - Mas criatura, no tenhas medo. Andamos todo o dia pelas ruas, vamos aos

    teatros. Qual varola! V como toda gente ri e goza. Deixa de preocupaes.

    De manh, porm, ns lamos juntos, ao almoo, os jornais. Para que mentir?

    Havia, havia sim! A sinistra rebentava em purulncias toda a cidade. Um dia em que

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    RIO, Joo do. A peste. Digital source. Disponvel em:

    . Acesso em: 24 nov. 2013.

  • passava por uma igreja, Francisco ouviu os sinos a badalar sinistramente. Teve a

    curiosidade de saber por quem to tristes badalavam e perguntou a um velho.

    - promessa, meu senhor, para que Santo Antnio no mate a todos ns de

    bexiga.

    Francisco ficou como desvairado. Ao jantar encontrou-se comigo.

    - Ah!, filho, falta-me o apetite. Estamos perdidos. impossvel lutar. Ela est a.

    - Acabas doido.

    - Antes! - fez, no orgulho da sua beleza.

    H uma semana, indo por uma rua de subrbio, encontrou com gritos e

    imprecaes um bando de gente que arrastava ao sol um caixo. Era uma pobre

    famlia levando igreja o cadver de uma criana em holocausto, para que Deus

    tivesse piedade e misericrdia. A impresso prostrou-o. Chegou casa ainda mais

    assustado.

    - Sabes! Estamos perdidos. A polcia j deixa arrastarem os variolosos pela rua.

    Dentro em pouco s lepra, a lepra de dentro encher as ruas. Cada dia aumenta mais,

    cada dia aumenta. Quando chegar a nossa vez?

    - Mas vai embora, homem, sobe a montanha, afasta-te...

    E comecei eu tambm a indagar, a querer saber. Ento, continuava? Como era?

    Como se morria de bexigas? As pessoas ficavam muito coradas, sentiam febre. Havia

    vrias espcies. A pior a que matava sem rebentar, matava dentro, dentro da gente,

    apodrecendo em horas! Palavra, no era para brincadeiras. O Francisco abalara para o

    Corcovado, uma noite, sem me falar, sem me dar um abrao, e de repente naquela

    manh, hoje, sabia por uma nota que ele estava no So Sebastio, com bexiga tambm,

    talvez morto! Deu-me um grande mpeto! Covarde! Fora o medo. E agora? Era preciso

    v-lo, no era possvel deixa-lo morrer sem um amigo ao lado. Nunca tive medo de

    molstias, morre quem tem de morrer. Depois a cidade estava to alegre, to

  • movimentada, to descuidosa. Tomei o tramway quase tranqilo. Mas ali, tudo indica

    a morte, a angstia, o horror, ali impossvel, e eu sentia um frio, um frio...

    "- Estamos no ponto terminal; no salta?" diz-me o condutor, virando os bancos.

    Fao um esforo, salto. E vou. Vou devagar, vou no querendo ir. A impresso de fim,

    de extino violenta! Aquele recanto, aquele hospital com ar de cottage ingls aviltado

    por usinas de porcelana, bem o grande forno da peste sangrenta. Como deve morrer

    gente ali, como devem estar morrendo naquele instante. Deso a rua atordoado, com

    um zumbido nos ouvidos. O mar um vasto coalho de putrefaes, de lodo que se

    bronzeia e se esverdinha em gosmas reluzentes na praia morna. O cho est todo sujo,

    e passam carroas da Assistncia, carroas que vm de l, que para l vo. Quase no

    h rumor. como se os transeuntes trouxessem rama de algodo nos ps. S as

    carroas fazem barulho. E quando param - como elas param! - o pavor de ver descer

    um monstro varioloso, desfeito em pus, seguindo para a cova... Espero que no haja

    nenhuma carroa porta, precipito-me pela alameda que sobe ao hospital. Vou quase

    a correr, paro porta de uma sala que parece escritrio.

    - O diretor?

    - alguma coisa de urgente? - indaga um jovem.

    - . e no .

    - Vou preveni-lo. Sente-se. O senhor est plido.

    Caio numa cadeira. Sinto as mos frias. As pernas tremem. Eu tenho medo, oh!

    muito medo... E aquele trecho da secretaria no para acalmar o destrambelhamento

    dos meus nervos. Tudo branco, limpo, asseado, com o ar indiferente nas paredes,

    nos mveis sem uma poeira. Os empregados, porm, movem-se com a precipitao

    triste a que a morte obriga os que ficam. Retintins de telefones repicam seguidamente

    nos quatro cantos. Os dilogos cruzam-se, dilogos em que as vozes falam para dores

    indizveis.

    - Mais um doente?

  • - Ah! sim, ciente.

    - Qual? No h mais lugar. O de nome Jos Bernardino? Vou ver.

    E mais adiante:

    - Olhe, 425? Morreu ontem noite. Se j seguiu? J.

    Enquanto essas notcias so dadas s bocas dos fones, h mulheres plidas e

    desgrenhadas que esperam novas dos seus doentes, h velhos, h homens de face

    desfeita, uma srie de caras em que o mistrio da morte, l fora, entre as rvores,

    incute um apavorado respeito e uma sinistra revolta. Quantas mes sem filhos!

    Quantos pais espera da certeza da morte dos filhos! Quantos filhos ali, apenas para

    tratar do enterro dos que lhe deram o ser. Ela no respeita idade, passa a foice

    purulenta em tudo, est l reinando, fora, no jardim, entre as rvores, morro acima. Os

    funcionrios tm uma delicadeza fria.

    - Que deseja, minha senhora?

    - Saber do meu filho. o 390.

    - H quantos dias?

    - H quatro. Ainda elas no tinham sado. Foi o mdico que disse. Ai! O meu

    pequeno!

    - Est decerto no pavilho de observao. Vou mandar ver.

    - Meu senhor, a minha mulherinha, diga-me por Deus, diga-me.

    - Espere, homem. Nada de barulho.

    Os retintins telefnicos continuam. Algumas faces no dizem nada. Esto l

    sentadas, esperando, esperando, esperando. E h marcados, marcados do terrvel mal,

    que vo sair, no morreram, estaro dentro em pouco na rua com a fisionomia torcida,

  • roda, desfeita para todo o sempre. E ele? E Francisco? Ficar assim? Assim, horrvel,

    horrvel... preciso v-lo! preciso!

    O rapaz volta, faz-me um gesto, sigo-o, dou no gabinete do diretor, muito louro,

    com a sua face inteligente vincada de tristeza.

    - Ento, por c? No teve medo? Est com a mo fria. Ah! meu amigo, a apostar

    que no acreditava na devastao do mal? Pois horrvel, inaudito. Tenho

    presentemente no hospital setecentos e vinte doentes, desde varola hemorrgica,

    que mata em horas, at a bexiga branca, que nem sempre mata. J no h lugares.

    Nunca So Sebastio esteve assim. Mandei construir s pressas mais dois pavilhes.

    Estou arrasado de trabalho e desolado. Afinal, por mais que se esteja habituado,

    sempre se tem corao para sentir a dolorosa atmosfera de desgraa... Mas que

    deseja? Diga.

    - Eu desejava tomar uma informao. Est aqui no hospital um rapaz do norte,

    Francisco Nogueira, estudante...

    - Francisco? H tanta gente que entra e to pouca que sai. Em que dia entrou?

    - Creio que anteontem.

    - Vou mandar ver.

    Tocou um tmpano. Apareceu um funcionrio. Falaram ambos.

    O funcionrio saiu, e desde que saiu, um tremor apoderou-se do meu corpo.

    Estaria morto? Estaria vivo? Aquela carne feita de ouro e de rosas j teria se

    transformado numa chaga purulenta? E se estivesse morto? Uma criana to cheia de

    esperanas, to entusistica, to pura, sem os pais aqui, sem ningum a no ser eu,

    que tremia. Nossa Senhora! Que me viriam dizer? E ao mesmo tempo, o desejo de

    encobrir tamanha emoo forava-me a fingir um sorriso, a dizer mundanamente

    coisas frvolas ao homem bom cujos olhos tinham tanta piedade.

  • - o diabo. A epidemia tem impedido vrios prazeres da season. As grandes

    estrelas mundiais, os teatros...

    - Pouca gente.

    - Menos do que se devia esperar. No freqenta?

    - No tenho tempo.

    - Ningum dir entretanto que a varola...

    - Nas grandes cidades as pestes do uma impresso muito menos dolorosa do que

    outrora...

    - Na Idade Mdia, no, doutor?

    Mas um n subitneo estrangula-me a frase. O funcionrio voltara, dava

    informaes baixo ao diretor. O mdico ps-se de p e diante de mim.

    - Est c. Entrou anteontem. Est vivo. O mdico da enfermaria diz que h

    esperanas.

    - Quero v-lo, doutor.

    Houve uma pausa grave.

    - vacinado?