IVAN ZANATTA KAWAHARA
A produção do espaço na favela
elementos para a análise do mercado imobiliário
Dissertação de mestrado apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Planejamento Urbano e Regional.
Orientador: Prof. Dr. Fabrício Leal de Oliveira
Rio de Janeiro 2018
CIP - Catalogação na Publicação
Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidospelo(a) autor(a), sob a responsabilidade de Miguel Romeu Amorim Neto - CRB-7/6283.
K22pKawahara, Ivan Zanatta A produção do espaço na favela: elementos para aanálise do mercado imobiliário / Ivan ZanattaKawahara. -- Rio de Janeiro, 2018. 238 f.
Orientador: Fabrício Leal de Oliveira. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal doRio de Janeiro, Instituto de Pesquisa ePlanejamento Urbano e Regional, Programa de PósGraduação em Planejamento Urbano e Regional, 2018.
1. favela. 2. mercado imobiliário. 3. renda daterra. 4. propriedade fundiária. 5. urbanização. I.Leal de Oliveira, Fabrício, orient. II. Título.
IVAN ZANATTA KAWAHARA
A PRODUÇÃO DO ESPAÇO NA FAVELA:
elementos para a análise do mercado imobiliário.
Dissertação de mestrado apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Planejamento Urbano e Regional.
Orientador: Prof. Dr. Fabrício Leal de Oliveira
Aprovado em: BANCA EXAMINADORA
____________________________________ Prof. Dr. Fabrício Leal de Oliveira Instituto de Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – IPPUR-UFRJ ____________________________________ Prof. Dr. Adauto Lúcio Cardoso Instituto de Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – IPPUR-UFRJ ____________________________________ Prof. Dr. Cristina Lontra Nacif Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense – EAU-UFF ____________________________________ Prof. Dr. Rafael Soares Gonçalves Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica – DSS-PUC
Aos que resistem à barbárie fascista
Agradecimentos
Sempre há muitos a agradecer e pouco espaço para isso. Dessa forma,
espero que o próprio resultado desse trabalho possa retribuir à altura.
Os primeiros a quem devo a própria possibilidade de desenvolver este
trabalho são os seres humanos que compõem o todo complexo aqui estudado.
Os que, mesmo sob duras condições impostas à sua existência, conseguem
constituir um modo de vida diverso e contraditório, nem composto apenas de
virtudes, nem completamente precário, mas absolutamente complexo; o que
nos permite após mais de meio século de estudos ainda encontrar
possibilidades de desenvolvimento. Dentre os moradores das favelas devo um
agradecimento especial aos entrevistados que apresentaram seus
depoimentos, sendo uns muito agradáveis, outros assustadores, alguns
entediantes, parte deles animadores; uns confirmaram premissas, outros
abriram campos completamente novos de estudo. Mas posso dizer que no
todo, tive acesso, com a realização das entrevistas, a um material bastante
esclarecedor e com informações que possibilitaram a maior parte do conteúdo
original dessa dissertação.
À Luciana, companheira de vida que, além de parte importante do
cotidiano é influenciadora direta dos meus trabalhos e deu grande apoio na
realização das entrevistas. Aos meus pais e irmãos que sempre deram apoio
às minhas escolhas. Ao Richard, Bia, Toni e Vitor companheiros com quem
divido casa pelas longas divagações políticas e teóricas nos almoços, jantares,
faxinas, viagens de ônibus, etc. Ao orientador Fabrício pelas longas e
atenciosas orientações. À orientadora do curso de sociologia urbana da UERJ
Lia da Mattos Rocha. À companheira de estudos de longa data, Cristina Nacif.
Aos companheiros do GEPOC (e puxadinho) e do NIEP-Marx que têm
modificado toda a minha forma de ver a ciência. Ao IPPUR que me propiciou
um processo de onde certamente eu saí melhor. À turma de 2016 que tornou
menos solitário esse processo. Ao CnPQ que financiou esses estudos.
Você já ouviu falar da febre amarela? Tem a febre negra que é bem pior! Espalha rápido e quase todo mundo já tem! Fica no sangue e tem que se vacinar! As coisas estão ruins, mas bota dinheiro para ver se não funciona. O capitalismo está em todo lugar!
(Depoimento coletado no trabalho de campo)
Seu poder social, assim como seu nexo com a sociedade, [o indivíduo] traz consigo no bolso.
Karl Marx
RESUMO
O presente trabalho busca complexificar a análise das relações entre os
agentes locais e entre os agentes locais e os supralocais que estabelecem a
dinâmica do mercado imobiliário nesses territórios. Essas relações são
constituídas por conflitos, coalisões e diversas formas de sombreamento a
depender da conjuntura no espaço e no tempo. Defendemos que as estruturas
de poder local são de suma importância na configuração desse mercado, mas
que elas, ao mesmo tempo, são altamente dependentes dos processos
desenvolvidos em outras escalas e da dinâmica geral imposta pelo capitalismo
(e sua dinâmica específica em cada território).
A singularidade do desenvolvimento sócio-histórico de cada favela torna
necessário mesmo em estudos mais gerais considerar uma diversidade inter-
favelas que não é resultante somente da sua inserção na malha urbana. Ao
mesmo tempo, é necessário não perder de vista que os seus desenvolvimentos
singulares são, em grande medida, dependentes da cidade como um todo e
que a favela é parte intrínseca da urbanização moderna brasileira, também
sendo modificador de sua estrutura.
A partir de experiência em campo no Turano, Manguinhos, Tijuquinha,
Rocinha, Babilônia e Chapéu Mangueira, e entrevistas realizadas em duas
favelas localizadas na zona sul do Rio de Janeiro, que por questão de
segurança das fontes não serão identificadas, esse estudo busca debater
sobre as condições impostas pelos territórios de favela que diferenciam esse
mercado imobiliário do restante da cidade. Ao mesmo tempo, busca a
identificação de aspectos que estão no campo do desenvolvimento singular de
cada favela, a fim de levantar elementos para a análise do mercado imobiliário.
Para enfrentar este desafio, foram eleitos como eixos de análise: as formas de
instituição e regulação da propriedade da terra nas favelas, a formação dos
estoques imobiliários e os agentes estruturadores do espaço.
Palavras Chave: Favela. Mercado imobiliário. Renda da terra. Propriedade fundiária. Urbanização.
ABSTRACT
The present work seeks to enrich the analysis of the relations between
the local agents and between the local and supralocal agents that establish the
dynamics of the real estate market in these territories. These relations are
constituted by conflicts, coalitions, depending on the conjuncture in space and
time, with various forms of shading. We argue that local power structures are
extremely important in the configuration of this market, but that they are at the
same time highly dependent on the processes developed at other scales and
the general dynamics imposed by capitalism (and its specific dynamics in each
territory).
The singularity of the socio-historical development of each favela makes
it necessary, even in more general studies, to consider an inter-favela diversity,
which is not only the result of its insertion into the urban fabric. At the same
time, it is necessary to keep in mind that, to a large extent, its singular
developments are dependent on the city as a whole and that the favela is an
intrinsic part of modern Brazilian urbanization, also modifying its structure.
Based on field experience in Turano, Manguinhos, Tijuquinha, Rocinha,
Babilônia and Chapéu Mangueira, and interviews conducted in two favelas
located in the southern zone of Rio de Janeiro, which due to security of sources
will not be identified, this study seeks to discuss the conditions imposed by
favela territories that differentiate this real estate market from the rest of the city.
At the same time, it seeks the identification of aspects that are in the field of the
singular development of each favela, in order to raise elements for the analysis
of the real estate market. To meet this challenge, the following were chosen as
axes of analysis: the forms of institution and regulation of land ownership in
favelas, the formation of real estate stocks and the structuring agents of space.
Keywords: Slum. Real estate market. Land rent. Land ownership.
Urbanization.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1: Favelas do Rio de Janeiro. ................................................................ 21
Figura 2: Favelas onde o autor trabalhou no âmbito do programa de regularização urbanística e fundiária (não foi realizado o trabalho de campo em Borel, Formiga, Tijuaçu e Mata Machado). ...................................................... 22
Figura 3: Área onde se localizam as favelas onde ocorreram as entrevistas. .. 23
Figura 4: Município do Rio de Janeiro: distribuição das indústrias e favelas em 1960. ................................................................................................................ 83
Figura 5: morfologia - área loteada do Bairro Barcelos em contraste ao restante da Rocinha. .................................................................................................... 130
Figura 6: morfologia - área loteada da Formiga em contraste ao restante da favela. ............................................................................................................. 131
Figura 7: Formiga - o problema da inserção do traçado reticulado em favelas íngremes. ....................................................................................................... 132
Figura 8: Morro do Turano - o problema da inserção do traçado reticulado em favelas íngremes. ........................................................................................... 132
Figura 9: Paraisópolis - o problema da inserção do traçado reticulado em favelas íngremes. ........................................................................................... 133
Figura 10: Sobreposição de lotes (caso 1). .................................................... 134
Figura 11: Sobreposição de lotes (caso 2). .................................................... 135
Figura 12: Subdivisão da UH, fotos dos porões. ............................................ 169
Figura 13: Subdivisão da UH, possibilidade de ventilação dos porões. ......... 170
Figura 14: Subdivisão do lote (caso 1). .......................................................... 173
Figura 15: Subdivisão do lote (caso 2). .......................................................... 173
Figura 16: Esquema de venda de laje. ........................................................... 177
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Concentração de imóveis na Tijuquinha. ........................................ 185
Tabela 2: Concentração de imóveis na Babilônia. ......................................... 186
Tabela 3: Imóveis alugados na Tijuquinha e Babilônia .................................. 186
Tabela 4: Quadro síntese de aspectos levantados para as duas favelas. ..... 223
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 13
1.1 Problema central ...................................................................................................... 18
1.2 Recorte espacial ...................................................................................................... 21
1.3 Caracterização das Favelas e dos entrevistados no trabalho de campo . 24
1.4 Construção do objeto de pesquisa e estruturação do trabalho de campo ............................................................................................................................................. 28
1.5 Estrutura .................................................................................................................... 34
1.6 Quadro categorial utilizado ................................................................................... 35
2 CARACTERIZAÇÃO DO OBJETO: EM BUSCA DE UM PONTO DE PARTIDA ..... 39
2.1 Notas sobre a renda da terra .................................................................................... 39
2.2 Sobre o mercado imobiliário .................................................................................... 53
2.3 Periferia, informalidade, zonas de exceção e espaços cinzentos .................. 63
2.4 A favela como categoria ............................................................................................ 67
2.4.1 Das caracterizações correntes à sua crítica ...................................................... 68
2.4.2 Notas sobre o papel das favelas na urbanização brasileira ............................ 80
2.4.3 As Frações de classe no interior da favela......................................................... 87
2.5 O mercado imobiliário em favelas .......................................................................... 92
2.5.1 O acesso à terra e a estruturação do espaço urbano ...................................... 93
2.5.2 Caracterização do mercado imobiliário nas favelas ......................................... 97
2.5.3 Formação dos estoques imobiliários ................................................................. 100
2.5.4 Notas críticas sobre a caracterização do mercado imobiliário nas favelas . 102
3 CONDIÇÕES NECESSÁRIAS PARA A FORMAÇÃO DE UM MERCADO IMOBILIÁRIO EM FAVELAS ............................................................................................... 105
3.1 A propriedade da terra ............................................................................................. 105
3.1.1 Notas sobre a relação entre Estado e favela ................................................... 109
3.1.2 Breves notas sobre a renda fundiária na favela .............................................. 120
3.1.3 Condicionantes precedentes .............................................................................. 125
3.1.4 Segurança da relação entre compradores e vendedores .............................. 135
3.1.5 Os limites ............................................................................................................... 138
3.1.6 Mecanismos de endividamento .......................................................................... 144
3.2 Contratos de aluguel ................................................................................................ 145
3.2.1 Documentos .......................................................................................................... 145
3.2.2 Inadimplência ........................................................................................................ 149
3.3 Regulação da construção ........................................................................................ 153
3.3.1 O direito ampliado da “cria da comunidade” .................................................... 161
4 FORMAÇÃO DOS ESTOQUES IMOBILIÁRIOS .......................................................... 164
4.1 Ocupação ..................................................................................................................... 165
4.2 Subdivisão ................................................................................................................... 168
4.2.1 Subdivisão da unidade habitacional .................................................................. 168
4.2.2 Subdivisão do lote ................................................................................................ 171
4.2.3 Aproveitamento da laje ........................................................................................ 174
4.3 Promotores imobiliários .......................................................................................... 178
5 AGENTES ESTRUTURADORES DO ESPAÇO ........................................................... 190
5.1 Associações de Moradores .................................................................................... 190
5.2 Narcotráfico varejista ............................................................................................... 200
5.3 Estado ........................................................................................................................... 207
5.4 As cisões permanentes e conjunturais na “comunidade” ............................. 216
6 CONCLUSÃO ...................................................................................................................... 224
7 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 231
13
1 INTRODUÇÃO
Pode-se dizer que a existência de um mercado imobiliário em favelas está
conectada com suas origens. Além da autorização dos militares para a ocupação do
morro da Favela, hoje conhecido como morro da Providência, essa mesma favela,
assim como diversas outras, tiveram a ocupação autorizada por proprietários de
terrenos que passaram a explorar o aluguel no alto dos morros, devido à restrição
cada vez mais intensa à exploração dos alugueis em cortiços (GONÇALVES, 2011).
Há, na realidade, um longo processo onde, ao que parece, as primeiras favelas
tiveram algum tipo de autorização ou mesmo incentivo (SILVA, 2005). Com o passar
dos anos a mediação por um suposto proprietário das terras ou mesmo pelo Estado
vai deixando de existir, em especial por conta das medidas que passaram a
restringir a exploração dos alugueis nas favelas, tendo como marco o código de
obras de 1937. Por fim, a generalização do mercado imobiliário, dessa vez não mais
mediada por proprietários oficiais (ou ditos proprietários oficiais) ou pela autorização
direta do Estado, parece estar relacionada à queda do modelo remocionista e crise
da produção habitacional dos anos 80. No fim dos anos 90 e início dos anos 2000,
Abramo e Faria (1998) já assumem que o acesso à moradia nas favelas é
estruturalmente mediado por um mercado imobiliário.
Mesmo observando a existência de um mercado imobiliário na gênese das
favelas, podemos considerar que a generalização do acesso à moradia por um
mercado imobiliário definido, em grande medida, por agentes locais que produzem e
regulam o espaço é um fenômeno relativamente recente. Os estudos que
buscassem entender o mercado imobiliário em favelas no final do século XIX ou no
início do século XX, provavelmente poderiam fazê-lo a partir da análise do mercado
imobiliário em geral. No entanto, a partir de determinado momento esse mercado
passou a assumir formas próprias de produção e regulação. Em meados do século
XX, certamente o mercado imobiliário das favelas já assume uma dinâmica própria,
na qual ganham importância os agentes locais e suas formas de regulação e
produção nesse ramo. Nos últimos 30 ou 40 anos, podemos considerar a
consolidação dessa dinâmica interna de produção e regulação no mercado
imobiliário como forma dominante de acesso à habitação nas favelas.
O poder público, por mais que os técnicos não acreditem mais nisso, trata as
14
favelas como bolsões de pobreza compostos exclusivamente por proprietários1 e
com todos os tipos de precariedade, sejam elas de natureza legal, urbanística ou
social. Com essas premissas, mesmo não sendo pouca coisa, bastaria a
regularização urbanística, fundiária e de serviços para garantir a consolidação dos
direitos universais para os favelados e a “integração” do território à cidade “formal”.
A única preocupação fora desse escopo seria uma possível atuação predatória de
especuladores imobiliários na favela “urbanizada”. No entanto, a existência de um
mercado imobiliário interno consolidado, indica que o acesso à terra nas favelas já é
mediado pelo valor2 e que a ação dos agentes locais interfere na forma como se
distribuem as riquezas e o acesso à terra. O não reconhecimento da dinâmica desse
mercado imobiliário e de uma concentração de recursos e terra pré-estabelecida,
frequentemente gera uma série de problemas que já se apresentam no momento da
implementação das políticas.
O primeiro problema que chama a atenção nos trabalhos de campo realizados
já é consolidado por alguns autores (DAVIS, 2006, p. 51 e 52) como a
“invisibilização” dos locatários das favelas. Os locatários das favelas são
sistematicamente escamoteados em processos que envolvem remoção, como
“urbanização de favelas”, controle de risco geotécnico ou proteção de áreas de
preservação ambiental. Nesses casos, os locatários não recebem indenização3, nem
sequer a promessa de benefício por qualquer programa público de moradia. O
mesmo acontece nos programas de regularização urbanística e fundiária. As
prefeituras têm como meta o maior número de titulações possível, enquanto as
empresas contratadas buscam cumprir os contratos com o menor custo possível.
Dessa forma, os contratos tendem a exigir apenas o cadastramento de situações
1 Por entender que as relações sociais concretas se sobrepõem às formas jurídicas nas dinâmicas de produção do espaço e do mercado imobiliário, nesta dissertação trataremos como propriedade, a terra que assim se apresenta no mundo, ou seja, o monopólio de uma porção do globo que tenha seu uso direto separado do direito de uso. Quando a propriedade como relação social e a propriedade jurídica coincidirem na figura de um proprietário ou conjunto de proprietários, trataremos como “propriedade oficial”, ou “propriedade jurídica”. Foi considerado o uso do termo “posse” na ausência da propriedade jurídica, porém o conceito é inapropriado para tratar a separação entre uso e direito de uso. 2 No capitalismo, o valor é o quantum de trabalho mensurado pelo tempo e intensidade que progressivamente se interpõe nas relações sociais. Segundo Duayer e Araújo (2015): “O valor é a forma específica que a riqueza assume no capitalismo e, simultaneamente, uma forma de mediação social singular”. Assim sendo, a generalização da inserção do valor como forma de mediação de algum aspecto da vida significa a sua mercantilização e tem por consequência a intensificação da dominação do homem pelo tempo. 3 Nesses casos os proprietários das benfeitorias são indenizados. Há uma sobreposição do direito de propriedade sobre o direito a moradia.
15
passíveis de regularização, enquanto do ponto de vista da empresa contratada, o
trabalho não exigido em contrato significa um desperdício e, portanto, não é
efetuado. O resultado é o cadastramento exclusivo dos proprietários das
benfeitorias4, ou seja, se já não havia política específica direcionada para o locatário
do imóvel em favela, a forma de cadastramento tende a reforçar o desconhecimento
das suas condições, o que dificultará a inserção desse sujeito em ações futuras.
Além disso, as situações de inabitabilidade costumam ser registradas, mas sem o
cadastramento do proprietário da benfeitoria ou do inquilino. Outro resultado
importante, e que torna o inquilino ainda mais invisível, é a distribuição de imóveis
entre parentes. Os programas de regularização urbanística e fundiária limitam a
titulação a uma unidade por beneficiário. Ao saberem disso, os proprietários de mais
de uma unidade contornam esta situação nomeando parentes próximos como
proprietários no momento do cadastro junto à equipe técnica. Esse arranjo, que
ocorre rotineiramente, acaba por esconder a situação de aluguel de grande parte
dos imóveis e a centralização destes sob o domínio de alguns proprietários. Como
exemplo, relata um morador de favela entrevistado no processo de pesquisa sobre o
momento do cadastramento.
É... na verdade, pra fazer a legitimação da posse, você só pode ter um. Aí aqui eu botei o nome do meu filho e lá no prédio eu botei o meu nome. Vou botar uma bronca nele e falar: — “a casa é minha hein?”. Botei no nome dele e do meu mais novo. Eu devia ter dado pra mãe, porque automaticamente no futuro era deles. Dando pra eles, eles casam... No meio do caminho pode dar confusão. Eles brincam comigo... Solteiro, mas imagina uma nora aí que não se entenda bem5.
Em 2015, durante o trabalho de regularização urbanística e fundiária realizado
para a Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, em reunião na Gerência de
Regularização Urbanística e Fundiária da Secretaria Municipal de Habitação (GRUF-
SMH-PMRJ), recebemos orientação para que, em casos onde todas as unidades
habitacionais de um lote (sejam elas dez ou cinquenta) fossem de um único
proprietário, se cadastrasse o lote todo como uma única unidade6. É muito comum a
4 “Proprietários das benfeitorias” é a forma como são tratados os beneficiários dos projetos de regularização urbanística e fundiária ou indenizados em casos de remoção. Essa definição se dá pelo entendimento que sujeito é proprietário da edificação, porém não o é da terra onde se encontra sua edificação. 5 Para resguardar a identidade dos entrevistados, eles serão apresentados pela categoria desenvolvida para as entrevistas seguida por um número que diferencie entrevistados de uma mesma categoria, conforme será apresentado mais adiante. 6 Nessa reunião a gerência deu a entender que essa era uma prática que já acontecia há mais tempo.
16
ocorrência de edificações com duas ou três unidades habitacionais e um único
proprietário, fazendo com que seus inquilinos desapareçam dos cadastros oficiais.
No entanto, em determinados casos essa orientação significa o desaparecimento de
dezenas de famílias e unidades habitacionais que compõem uma única edificação
de um único proprietário.
Quando o Estado investe na urbanização ou em equipamentos públicos nas
favelas, a possibilidade de valorização dos imóveis7 torna necessário desenvolver
estratégias e políticas para a manutenção da população nessas áreas. Grosso
modo, a lógica é a seguinte: se o Estado investe intensivamente em determinada
área da cidade, essa melhoria pode ser capturada via valorização fundiária pelos
proprietários de terra. É prática sistemática do incorporador imobiliário a antecipação
dessa valorização para auferir ganhos fundiários. Isso significa que as áreas em
valorização da cidade, seja em função do investimento do Estado ou da mudança de
uso promovida pelo próprio capital imobiliário, estão propícias a auferir esse tipo de
ganho, pelo menos até a consolidação da área quando os proprietários passam a ter
capacidade de antecipação desses ganhos. Nessa lógica, a intervenção estatal nas
favelas as tornaria um possível alvo para a ação do capital imobiliário.
Uma das formas mais difundidas de combater a atividade predatória do
capital imobiliário nas favelas é a delimitação de Áreas de Especial Interesse Social
(AEIS), cuja regulamentação pode incluir a limitação de gabarito e remembramento
de lotes a fim de impedir a realização de grandes empreendimentos e até mesmo o
interesse de uma classe mais alta que exigiria lotes maiores. Mesmo que não haja
uma fiscalização sistemática de remembramento de lotes, ou mesmo um franco
interesse do capital imobiliário em atuar em alguma favela, o estabelecimento de
parâmetros urbanísticos que reforcem um caráter de lotes individuais deve ter uma
eficácia relativa. Porém, o que as políticas públicas não têm levado em consideração
é que as favelas já têm um mercado imobiliário consolidado. As pesquisas de
Abramo (2005) identificaram um mercado regular nas favelas do Rio de janeiro e
com uma rotatividade ligeiramente superior ao dos bairros da cidade. Isso significa
que o acesso à moradia nas favelas já é regulado por um mercado que deve
responder às mudanças de posição relativa da favela nos mapas de acessibilidade
da cidade e, dessa forma, coordenar a localização das famílias segundo seus
7 Mais tarde desenvolveremos como os investimentos públicos podem ser capturados pelos proprietários de terra na forma de renda fundiária.
17
rendimentos.
Com esses elementos apontados, pode-se concluir que, se o Estado de
alguma forma pretende investir na melhoria das condições de moradia nas favelas e
ao mesmo tempo impedir a substituição da sua população, é necessário não apenas
entender a forma de atuação dos agentes externos que podem se impor de forma
predatória nas favelas, mas, também entender a forma de atuação dos agentes
locais. Através de mecanismos mais gerais de uma sociedade capitalista, ou mais
específicos em substituição, por exemplo, às formas jurídicas inexistentes nas
favelas, esses agentes locais devem cumprir um papel no mercado imobiliário e na
produção do espaço na favela.
O relativo silenciamento8 sobre o mercado imobiliário em favelas não está só
presente no discurso do Estado e na formulação de políticas públicas, mas a própria
academia, apesar de ter uma tradição quase secular de estudos sobre a
estruturação urbana e grande volume de estudos (ainda que mais recentes) sobre o
mercado imobiliário e sobre favelas, deu pouca atenção ao fenômeno. Segundo
Abramo:
Ainda que os trabalhos sobre a lógica de mercado e o uso do solo tenham uma grande tradição e um enorme número de instituições (revistas, centros de pós-graduação, institutos de pesquisa e governamental, etc.) praticamente a totalidade desses estudos tem como objeto o mercado fundiário e imobiliário formal ou legal. Apesar do mercado informal de terras existir na maior parte das cidades latino-americanas e ser o mecanismo de acesso à terra urbana de uma parte considerável da população pobre dessas cidades, praticamente não há estudos sistemáticos e abrangentes sobre esse tema. Com exceção de algumas reportagens de natureza jornalística e estudos monográficos de âmbito bastante restrito, constata-se um grande vazio nos estudos urbanos, e em particular de economia urbana, sobre o mercado informal de terras urbanas. A importância atual desse mercado e a perspectiva do seu crescimento em função da redução expressiva dos processos de ocupação de terras urbanas impõem a urgência de trazê-lo como uma das prioridades de objeto de estudo (ABRAMO, 2003, p. 4).
Dentre a bibliografia pesquisada, os trabalhos mais sistemáticos sobre o
mercado imobiliário em favelas foram os desenvolvidos pelo professor Pedro
Abramo e a rede Observatório Imobiliário e de Políticas do Solo (OIPSOLO).
Entretanto, esses trabalhos se concentraram no estudo da demanda por habitações
em favelas, ou seja, na racionalidade dos demandantes e suas preferências
8 Existem algumas produções mais sistemáticas dos quais destaco o trabalho desenvolvido pela rede OIPSOLO e que serão trabalhadas mais afrente. Mas, ao que parece, o reflexo dessa produção na formulação de políticas públicas ainda é restrito.
18
locacionais e no seu reflexo na transformação da estrutura sócio-espacial,
considerando uma estrutura dada. Pouca atenção foi dada ao desenvolvimento da
propriedade da terra nas favelas, à dinâmica de formação dos estoques e aos
agentes produtores do espaço, seja pelo entendimento de que eles mobilizam seus
recursos apenas para complementar renda, seja por entender que estes não teriam
poder de intervenção na estrutura dos territórios de atuação.
Como mostram os trabalhos de campo em favelas, é possível identificar certa
concentração de recursos. Há uma pequena parcela da população capaz de
acumular recursos monetários, políticos e simbólicos. Essa fração da população
favelada foi identificada por Machado da Silva (2016 [1967], p. 35) como uma
“burguesia favelada”. É evidente que essa acumulação, ainda que por vezes
apresente um caráter monopolista, não é capaz de formar verdadeiros capitais.
Longe disso, são agentes pulverizados que concentram comércios, imóveis, às
vezes serviços e controle de instituições como igrejas, Associações de Moradores
etc. e que são altamente dependentes de recursos externos e incapazes de
concorrer com os grandes capitais da cidade como um todo. Dessa forma, nossa
primeira hipótese é que parte dos imóveis ofertados para venda ou para aluguéis
têm origem em operações já identificadas por Abramo (subdivisão de lotes,
subdivisão de edificações e venda de laje), porém, há uma parcela, não sem
importância, de operações imobiliárias que por vezes resultam em prédios com
dezenas de apartamentos. Havendo um movimento de produção e/ou de
centralização dos estoques imobiliários, torna-se importante o estudo da atuação
dos agentes locais e supralocais que produzem e regulam o espaço e do
desenvolvimento das formas específicas de propriedade. Esses estudos podem
revelar elementos importantes do mercado imobiliário em favelas.
1.1 Problema central
Através da análise da dinâmica dos agentes produtores e reguladores do
espaço em nível local em duas favelas do Rio de Janeiro, buscamos complexificar a
leitura desses territórios a fim de dar suporte a análises do mercado imobiliário nas
favelas. O fato de as favelas, de forma geral, terem uma regulamentação precária
(mesmo que às vezes mais restritiva) por parte do Estado, sobrepuja a importância
dos agentes locais se comparados aos agentes que atuam localmente em outros
espaços da cidade. Dessa forma, ainda que, em condições particulares que as
19
determinam9 em grande medida, as singularidades de cada favela tem uma
importância inflada. Entendendo essa importância, buscamos compreender como se
constituem as relações entre os agentes locais e entre agentes locais e supralocais
(em especial o Estado e seus agentes especializados). Daí, pretendemos extrair a
forma como as coalisões e conflitos determinados nas diversas escalas, em especial
a escala local, influenciam na produção de habitação e no mercado imobiliário das
favelas.
O objetivo do presente estudo não é, e nem poderia ser a apreensão do
funcionamento da dinâmica imobiliária nas favelas. A insuficiência dos dados
levantados por instituições públicas ou por grupos de pesquisa no Brasil exigiria um
esforço empírico que está fora do alcance do desenvolvimento de uma dissertação
de mestrado. Tampouco é um estudo de caso, que não permitiria a incorporação de
uma experiência diversificada em campo para nos concentrarmos em uma área (e,
ainda assim, não teríamos condição de levantar dados empíricos suficientes para a
análise da dinâmica imobiliária em um caso específico). Esse estudo busca reunir
elementos que não podem a princípio ser entendidos como características de toda e
qualquer favela, mas que podem se mostrar como contraponto à visão simplificadora
do mercado imobiliário nessas áreas, em especial a que resume a produção
imobiliária à autoconstrução e ignora a influência das relações de poder
estabelecidas no território na dinâmica imobiliária. Dessa forma, buscamos levantar
elementos da relação particular entre Estado e favelas e do desenvolvimento
singular de cada favela que influenciem na dinâmica do mercado imobiliário.
O estudo está concentrado em três elementos que consideramos de
fundamental importância para a compreensão da dinâmica imobiliária das favelas.
Em primeiro lugar, as condições impostas pelos territórios de favela que determinam
um desenvolvimento particular da propriedade e das relações de poder e
diferenciam este mercado imobiliário do restante da cidade. Se pudermos, ao longo
do estudo, identificar essas condições, podemos fazer um esforço para diferenciar
quais delas são resultados do tratamento particular dado às favelas pelo Estado e
pelo conjunto da sociedade e quais delas se apresentam como singularidades
9 Consideramos determinação, nessa dissertação, no sentido marxiano. Como partes constitutivas dos ser. Dessa forma, um determinante não é algo que sozinho define o objeto concreto, singular, mas esse objeto é síntese de múltiplas determinações. Sendo assim, quanto mais determinações têm o objeto observado, mais se aproxima do concreto/singular quanto menos, mais se aproxima do abstrato/universal.
20
decorrentes do desenvolvimento da estrutura local de poder e suas relações com a
estrutura de poder oficial e formas jurídicas de cada território.
De partida, podemos considerar a hipótese de que a constituição de um
mercado imobiliário regular necessita da instituição de uma forma de propriedade
que, se não é oficialmente reconhecida pelo Estado, depende de uma relação mais
complexa entre as formas de poder estabelecidas no território e o Estado. Mas não
qualquer forma de propriedade, é necessária a constituição, de fato, da forma da
propriedade privada específica do capitalismo, ou seja, ela deve garantir o direito de
monopólio sobre uma porção do globo, deve ser alienável e deve ter o seu uso
direto separado do direito de propriedade, de forma que, em troca de dinheiro, o uso
possa ser cedido sem que ocorra a cessão do direito. Essa forma de propriedade
deve ter um nível de segurança que permita a confiança no contrato entre
compradores e vendedores, ou locadores e locatários, ou seja, o direito de
propriedade na favela não pode ser facilmente abalado pelas mudanças na estrutura
de poder.
Em segundo lugar, os meios de formação dos estoques imobiliários. Ainda
que a bibliografia pesquisada sobre o mercado imobiliário em favelas pouco toque
nesse assunto, as observações feitas no trabalho de campo demonstram que a
produção imobiliária em diversas favelas (e não apenas o mercado secundário)
também é dinâmica, dessa forma, tentar apreender a dinâmica imobiliária das
favelas sem esse aspecto significa se ater a uma fração desse mercado.
Em terceiro lugar, a configuração do poder local, os seus agentes e a relação
desses poderes e agentes com os poderes e agentes supralocais. Essas relações
vão, em grande medida, determinar a constituição de mecanismos de instituição e
regulação da propriedade privada, assim como da produção imobiliária. Dessa
forma, é importante enfatizar que os três elementos se inter-relacionam em todos os
momentos.
Esses são os três elementos que foram considerados importantes destacar,
tanto pela importância na apreensão da dinâmica do mercado imobiliário, como por
terem sido pouco explorados nos trabalhos pesquisados sobre o mercado imobiliário
das favelas. É nesse sentido que o título da presente dissertação busca ser preciso
na descrição do tema proposto. Não pretendemos aqui produzir uma análise do
mercado imobiliário das favelas como um todo, das favelas do Rio de Janeiro ou das
duas favelas onde foi realizado o trabalho de campo, mas, a partir das análises já
21
produzidas, buscamos identificar as lacunas e complexificar os pressupostos
estabelecidos adicionando novos elementos que contribuam para futuras análises do
mercado imobiliário nas favelas.
1.2 Recorte espacial
Figura 1: Favelas do Rio de Janeiro.
Fonte: IBGE (Aglomerados Subnormais), Google Earth.
São necessárias algumas considerações sobre o recorte espacial do presente
trabalho, pois tivemos à nossa disposição, materiais de campo de qualidades
distintas.
O primeiro foi resultado do que chamamos de reconhecimento de campo e foi
realizado em seis favelas do Rio de Janeiro (Babilônia, Chapéu Mangueira,
Manguinhos, Rocinha, Tijuquinha e Turano) no âmbito de programa de regularização
urbanística e fundiária onde o autor trabalhou como arquiteto no período de 2013 a
2015. A Figura 2, a seguir, representa a localização dessas favelas no Rio de
Janeiro.
22
Figura 2: Favelas onde o autor trabalhou no âmbito do programa de regularização urbanística e fundiária (não foi realizado o trabalho de campo em Borel, Formiga, Tijuaçu e Mata Machado).
Fonte: IBGE (Aglomerados Subnormais), Google Earth.
O segundo foi resultado das entrevistas semiestruturadas realizadas em 2017
e 2018 em duas favelas da Zona Sul do Rio de Janeiro, não identificadas para
resguardar a identidade dos entrevistados.
23
Figura 3: Área onde se localizam as favelas onde ocorreram as entrevistas.
Fonte: IBGE (Aglomerados Subnormais), Google Earth.
Dessa forma, já há aqui duas delimitações qualitativamente distintas. Nas seis
favelas incluídas no reconhecimento de campo a presença nos locais foi muito maior
(de segunda feira a sexta feira durante vários meses em cada uma delas), mas o
trabalho não tinha um olhar direcionado para essa dissertação. Ou seja, o material
levantado sobre essas favelas é o reaproveitamento de um trabalho executado
tendo em vista a sua regularização urbanística e fundiária. Nas favelas onde foram
realizadas as entrevistas, foram feitas cerca de cinco visitas em cada uma delas,
porém, como as visitas e as entrevistas foram planejadas e realizadas visando o
presente trabalho foi gerado um material mais amplo que serviu como material
principal da dissertação. Dessa forma, as visitas e as entrevistas semiestruturadas
formam a espinha dorsal do material empírico de fonte primária, sendo por diversas
vezes complementada pelo material levantado no reconhecimento de campo. As
complementações não se restringem aos dados empíricos primários, tendo sido
utilizados dados secundários de fontes públicas, de caráter acadêmico ou
jornalístico. As complementações acontecem: 1) quando há a necessidade de
demonstrar algo que não foi possível observar nas favelas onde foram realizadas as
entrevistas; 2) quando o material do reconhecimento de campo ou das fontes
secundárias é mais adequado, seja por ter a informação de forma mais clara, seja
24
pela possibilidade de identificar a favela; 3) quando foi necessário demonstrar a
existência do mesmo fenômeno em outras favelas; 4) quando foi necessário
demonstrar que o mesmo fenômeno foi observado por outros autores.
Apesar desses dois limites do trabalho de campo, consideramos em diversos
momentos a possibilidade ampliação do conjunto fenomênico a ser explicado. Por
exemplo, se identificamos uma tendência que tem sua fonte na política do Estado
nacional para as favelas ao longo da história, podemos considerar que essa
tendência está presente em todas as favelas do país, ainda que ela tenha
expressões diversas para cada favela e em cada tempo histórico. Para deixar o
exemplo mais concreto, Boaventura de Sousa Santos (1999) defende que, devido à
centralidade da mercadoria terra no capitalismo e frente à precariedade com que o
Estado atua na instituição e defesa da propriedade privada nas favelas, há uma
tendência geral a que as favelas busquem através de mecanismos próprios a
compensação dessa precariedade, ainda que essa tendência se expresse de
maneiras distintas para cada contexto.
Outra forma de ampliação do universo do fenômeno apresentado (sempre
buscando entender os seus limites) foi a busca por dados secundários. Por exemplo,
notícias de jornal, dados levantados no reconhecimento de campo e outras
pesquisas acadêmicas foram utilizados para destacar a presença de agentes
especializados na produção imobiliária em outras favelas, caracterizando esse
fenômeno como um fenômeno mais amplo que as favelas onde foram realizadas as
entrevistas.
O capítulo 1 e a primeira parte do capítulo 2 buscam questões mais gerais
sobre as favelas a partir da bibliografia pesquisada, enquanto o restante da
dissertação busca complexificar os aspectos da escala local, por vezes, apontando
para a possibilidade de ampliação do poder explicativo de determinado argumento
para um número mais expressivo de fenômenos, sempre com a cautela apontada.
1.3 Caracterização das Favelas e dos entrevistados no trabalho de campo
Com o objetivo de resguardar a identidade dos entrevistados, adotamos
designações para as duas favelas onde houve entrevistas, a cada uma delas
correspondendo designações específicas para os entrevistados, segundo sua
relação com o mercado imobiliário ou inserção social.
25
Favela 1 e Favela 2
As favelas, onde foi realizado o trabalho de campo, foram designadas “Favela
1” e “Favela 2”. As duas favelas se localizam na Zona Sul, principal área de
concentração da população de alta renda do município do Rio de Janeiro. A Favela
1 é uma favela populosa, tendo mais que o dobro da população da Favela 2. As
duas favelas têm Associações de Moradores presentes nos seus cotidianos. Apesar
de a Associação de Moradores da Favela 2 parecer ser mais legitimada pela
população em geral que a da Favela 1, a Associação de Moradores da Favela 1
parece exercer maior poder. Houve indicações de uma coalisão estabelecida entre
Associação de Moradores e narcotráfico varejista na Favela 1, enquanto na Favela 2
essa relação não foi nem cogitada pelos entrevistados. As duas favelas têm como
característica a presença do narcotráfico varejista com relativa estabilidade, tendo
mantido as suas atividades mesmo com a instalação das Unidades de Polícia
Pacificadora (UPPs), ainda que de forma mais restrita. O narcotráfico varejista na
Favela 1 parece ser maior e exercer um poder mais constante que na Favela 2,
tendo interferência maior no mercado imobiliário, mediação de conflitos, etc. Ambas
as favelas têm certo movimento turístico e são consideradas por seus moradores
como favelas com o custo de vida elevado. São favelas que têm a maior parte de
seus territórios em declive e com áreas de alta densidade populacional, sendo que a
Favela 2 apresenta áreas com baixa densidade.
Proprietário 1 Favela 1
O Proprietário 1 da Favela 1 é uma antiga liderança da favela. Essa posição o
garantiu certo acesso a instituições supralocais, tendo ocupado cargo público e
sendo chamado para auxiliar ou trabalhar em projetos que aconteceram na favela. O
Proprietário 1 da Favela 1 possui cerca de 11 imóveis na Favela 1 sendo que mora
em um deles e aluga o restante.
Proprietário 2 Favela 1
O Proprietário 2 da Favela 1 é representante de uma distribuidora de gás na
Favela 1. Localizamos, também, em pesquisa por Cadastro Nacional de Pessoa
Jurídica (CNPJ), duas lojas de material de construção em seu nome, porém não
sabemos se estão ativas. O entrevistado foi candidato não eleito a deputado
26
estadual em 2014 e possui cerca de 25 imóveis na Favela 1, sendo todos alugados,
visto que ele mora fora da favela. Segundo o Proprietário 1 da Favela 1, o
Proprietário 2 é um “testa de ferro” do narcotráfico varejista na produção de imóveis.
A entrevista foi realizada em condições bastante adversas. Esperamos mais
de duas horas pelo entrevistado e a entrevista foi realizada de pé no galpão da
distribuidora de gás, onde havia muito barulho da carga e descarga dos caminhões.
Como a entrevista não pôde ser gravada, pudemos apenas capturar o conteúdo
geral da entrevista transcrevendo apenas alguns trechos no momento da entrevista.
Imobiliária 1 Favela 1
O corretor da Imobiliária 1 da Favela 1 mora nela desde 1972 . Já possuiu
outros estabelecimentos comerciais na favela, mas hoje possui apenas a imobiliária.
Foi candidato não eleito a vereador em 2012 e deputado estadual em 2014 e
pretende ser candidato em 2018. Assumiu cargo na Associação de Moradores de
2008 a 2010. A imobiliária tem 10 anos de atividade na favela.
Imobiliária 2 Favela 1
O corretor da Imobiliária 2 da Favela 1 mora desde que nasceu na mesma
casa na Favela 1, onde atua com administração de imóveis há 19 anos na Favela 1.
Imobiliária 3 Favela 1
O corretor da Imobiliária 3 da Favela 1 nasceu na Favela 1 onde morou na
maior parte da vida, tendo morado fora apenas para trabalhar ou estudar, mas diz
que nunca deixou de frequentar a favela. Atua com administração de imóveis há 12
anos na Favela 1.
Associação de Moradores 1 Favela 1
A Associação de Moradores 1 da Favela 1 é uma associação atuante no
cotidiano da favela, principalmente em relação à fiscalização e mediação de
conflitos, porém, ao que parece, tem uma legitimidade mais questionada se
comparada à Associação de Moradores 2 da Favela 2.
Como não foi autorizada a gravação da entrevista da entrevista à Associação
de Moradores 1 da Favela 1, o conteúdo geral e alguns trechos foram registrados à
27
mão no momento da entrevista. Tivemos que aguardar cerca de 40 minutos
enquanto a Associação realizava um atendimento e a entrevista foi interrompida
para outro atendimento. Mesmo assim, o questionário foi integralmente realizado,
ainda que as últimas questões não tenham sido desenvolvidas da melhor forma.
Proprietário 3 Favela 2
O Proprietário 3 da Favela 2 nasceu em outra favela do Rio de Janeiro, mas
já frequenta a Favela 2 desde pequeno. Vendeu sua casa na favela onde nasceu
para comprar um terreno na Favela 2, favela onde hoje vive com os pais e trabalha
em uma loja de materiais construção própria, em um bar de propriedade do pai e em
uma academia onde troca os serviços pelas aulas dos dois filhos. O entrevistado
possui, em sociedade com o irmão, a loja de materiais de construção onde trabalha
e um terreno onde estão sendo construídos 4 quitinetes e 2 apartamentos. Em
acordo com um terceiro que está auxiliando na construção, foi decidido que um dos
apartamentos ficará com esse terceiro e, em troca, sua casa que se localiza em
outra parte da Favela 2, será dividida em duas quitinetes que serão de propriedade
do entrevistado e seu irmão.
A entrevista foi interrompida em determinado momento por uma demanda da
loja de materiais de construção, mas o questionário já havia sido cumprido em sua
integridade.
Proprietário 4 Favela 2
O Proprietário 4 da Favela 2 foi presidente da Associação de Moradores 2 da
Favela 2 e funcionário público. Ele nasceu na Favela 2 e vive lá desde então. Em um
terreno comprado de um cunhado, ele construiu um hostel que após um mês foi
convertido em seis apartamentos que hoje aluga. Na laje da sua casa está
construindo mais dois apartamentos destinados ao aluguel.
Proprietário 5 Favela 2
O Proprietário 5 da Favela 2 apontou como de sua propriedade cerca de cinco
apartamentos, sendo um deles onde mora, um pequeno mercado e lanchonete e um
espaço cedido para a igreja. Outro morador indicou outros espaços como de sua
propriedade. O entrevistado é aposentado pelas forças armadas. Outro morador
28
havia indicado que o entrevistado foi chefe do narcotráfico varejista na favela, mas
que não é mais envolvido há muitos anos.
A entrevista foi realizada em uma de suas propriedades, mas não pudemos
gravar e a entrevista foi interrompida. Há uma “boca de fumo” localizada em frente à
propriedade, onde foi realizada a entrevista. Segundo o entrevistado, em um conflito
do narcotráfico varejista com a polícia uma bala atingiu alguma estrutura de
fornecimento de energia. Em poucos minutos, a partir do início da entrevista, a Light
chegou para resolver o problema e tivemos que abandonar a entrevista, pois se
estabeleceu um momento de negociação entre funcionário da Light, o entrevistado e
o narcotráfico varejista.
Essa entrevista não foi utilizada na dissertação pela quantidade de
contradições entre o discurso do entrevistado e de outros informantes sobre o
entrevistado e pelas condições em que a entrevista foi realizada.
Associação de Moradores 2 Favela 2
A Associação de Moradores 2 da Favela 2 parece ter uma legitimidade
perante a população maior que a Associação de Moradores 1 da Favela 1 apesar
de, em nossa impressão, ela ser mais questionada a partir desse último ano (2018).
A Associação de Moradores 2 da Favela 2 tem um poder de fiscalização e regulação
menor que a da Favela 1, em grande medida limitada pela atuação do Estado e do
narcotráfico varejista.
A entrevistada é secretária eleita da Associação de Moradores 2 da Favela 2.
É nascida e mora desde então na Favela 2.
Comerciante 1 Favela 2
O Comerciante 1 da Favela 2 é nascido e mora desde então na Favela 2. É
filho de uma antiga liderança da favela. O entrevistado mora em uma casa térrea
com a mãe e possui um imóvel de dois andares onde funciona o restaurante que é
proprietário e administra.
1.4 Construção do objeto de pesquisa e estruturação do trabalho de campo
A construção do objeto de pesquisa foi feita em conjunto com a estruturação
do trabalho de campo. Dessa forma, para não alongar o texto de forma
29
desnecessária e torná-lo mais fluído, resolvemos expor os dois processos em
conjunto.
O procedimento pode ser dividido nas seguintes atividades: reconhecimento
de campo; levantamento de artigos acadêmicos que tratam do mercado imobiliário
em favelas; coleta de entrevistas não estruturadas com pesquisadores da área;
coleta de entrevistas não estruturadas com moradores das favelas selecionadas e
coleta de entrevistas semiestruturadas com os agentes selecionados de cada favela.
O presente trabalho nasce da identificação em campo dos problemas
causados pelo relativo silenciamento sobre a dinâmica do mercado imobiliário nas
favelas na formulação de políticas públicas voltadas para esses territórios. Deparei-
me com esses problemas principalmente quando estive atuando como estagiário ou
arquiteto urbanista em programas de regularização urbanística e fundiária no Rio de
Janeiro. Fui estagiário durante o ano de 2009 no programa de regularização
urbanística e fundiária da Rocinha e, depois de formado, atuei nos programas de
regularização urbanística e fundiária do Complexo da Tijuca (Turano, Borel,
Formiga, Tijuaçu e Mata Machado), Manguinhos, Tijuquinha e Babilônia e Chapéu
Mangueira entre 2013 e 201510.
Como o presente trabalho é fruto também de experiências passadas, o
próprio cotidiano em campo durante a execução dos projetos de regularização
urbanística e fundiária que participamos foi um ponto de partida para a estruturação
do objeto e para as estratégias de pesquisa. O contato inicial com o campo
aconteceu nas favelas Rocinha, Turano, Manguinhos, Tijuquinha, Babilônia e
Chapéu Mangueira e não teve um olhar direcionado para esse estudo. Porém, a
experiência trouxe elementos que tiveram grande importância na formulação do
objeto de pesquisa e serão acionados durante o texto indicando de qual favela se
trata. No trabalho de campo nessas favelas, foram realizados os cadastros dos
moradores, o levantamento de suas casas e lotes, pesquisa fundiária, reuniões com
a Gerência de Regularização Urbanística e Fundiária da Secretaria Municipal de
Habitação (SMH) da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro e outras atividades de
menor importância para o nosso estudo11. Com esse primeiro contato que durou
10 Não foi realizado trabalho de campo em Borel, Formiga, Tijuaçu, Mata Machado e Chapéu Mangueira nesse período. 11 Os dados coletados não nos interessam muito, apenas os que serão apresentados na próxima nota de rodapé e os apresentados no capítulo 3, subcapítulo 3.3, mas este trabalho foi importante para as escolhas do trabalho de campo e alguns casos observados durante esse cadastramento serão
30
cerca de três anos, foi possível identificar: 1) a grande proporção de locatários12; 2) a
existência de proprietários com estoques imobiliários de 20 a 50 apartamentos; e 3)
a concentração do contato com autoridades supralocais em determinados sujeitos
ou organizações locais. O contato com o campo permitiu, de partida, uma ruptura
com o senso comum, tanto popular como acadêmico, que vê a favela como um
espaço predominantemente de proprietários autoconstrutores cuja formação de
estoque imobiliário é limitada à subdivisão de casa ou lote, verticalização ou
herança.
Durante o primeiro trabalho de campo13, chamou atenção os recentes
investimentos feitos pelo poder público na Babilônia em policiamento e urbanização
e a sua capacidade de atrair pequenos investidores privados com interesse no
potencial turístico proveniente de sua beleza natural, localização no Leme (bairro
nobre da zona sul do Rio de Janeiro) e do próprio “ser favela” como um “exotismo”
atraente. Assim, foram distribuídos hostels, restaurantes e pontos de apoio aos
turistas por toda a Babilônia. Se já havia sido identificada uma alta taxa de locatários
e certa concentração de recursos (imóveis, estabelecimentos comerciais, etc.), os
investimentos tenderiam a por em concorrência o uso habitacional predominante
com os novos usos, o que tenderia a aumentar o preço dos imóveis e, dessa forma,
acirrar a relação entre proprietários e locatários. Nessa relação, os locatários
tenderiam a ter o seu custo com habitação e outros bens relacionados,
progressivamente aumentados, o que geraria a diminuição do seu poder de
consumo e, no limite, a evasão do território.
O segundo passo foi o levantamento dos trabalhos produzidos sobre o
mercado imobiliário em favelas. Nesse momento, houve um primeiro contato com os
trabalhos produzidos por Pedro Abramo, Nelson Baltrusis e outros pesquisadores
vinculados à rede OIPSOLO. Esse levantamento foi importante para a confirmação
do mercado imobiliário em favelas como objeto de estudo viável, através da
identificação de um mercado volumoso e regular, e para dar um primeiro passo na
caracterização das relações intra e inter favelas e com o mercado imobiliário da
cidade como um todo na conformação do mercado imobiliário em favelas.
acionados ao longo da dissertação. 12 Na Babilônia, em uma amostra de 165 imóveis, foram identificados pelo menos 76 (46%) imóveis alugados. Já na Tijuquinha, foram levantados 674 imóveis, dos quais 435 (65%) estavam alugados. 13 Todo o trabalho desenvolvido pelo autor de 2013 a 2015 no âmbito de programas de regularização urbanística e fundiária em favelas cariocas.
31
Entretanto, os trabalhos levantados deram ênfase à estrita relação entre
compradores e vendedores e à análise do mercado imobiliário pela demanda e,
dessa forma, abriram mão das especificidades do mercado imobiliário em favelas
que resultam das relações específicas de poder, reduzindo a abrangência da
produção imobiliária a subdivisões e pequenas verticalizações, quando já se pode
identificar pelo trabalho de campo a produção de prédios de apartamentos e
quitinetes (LEITÃO, 2004).
Dessa forma, aparece como questão a relação particular de poder em cada
território e os agentes que estruturam o espaço e o seu reflexo na dinâmica de
produção dos estoques imobiliários. Outra questão que surge da própria busca de
particularidades da produção habitacional em favelas é o desenvolvimento singular
das formas de propriedade. Se a propriedade privada capitalista não é plenamente
assegurada pelo Estado, a constituição de um mercado imobiliário regular exige a
criação de mecanismos locais que garantam essa forma de propriedade.
Com o primeiro contato em campo e com uma primeira análise dos trabalhos
mais sistemáticos sobre o mercado imobiliário em favelas, realizamos entrevistas
não estruturadas com os professores pesquisadores Gerônimo Leitão e Maria Laís
Pereira da Silva, ainda em busca de um delineamento melhor do objeto de pesquisa
e de formas de acesso ao trabalho de campo. Essas entrevistas resultaram na
ampliação da bibliografia a ser analisada, no contato com outros trabalhos de campo
em favelas e estratégias para o início do trabalho de campo. Uma indicação de
fundamental importância para este trabalho foi o contato de uma pessoa que nos
levou aos corretores imobiliários da Favela 1. A concentração de informações sobre
o mercado imobiliário nessas empresas garantiu um ponto de partida para o trabalho
de campo.
Antes de partir propriamente ao trabalho de campo, realizamos duas
entrevistas não estruturadas, uma na Favela 1 e outra na Favela 2 em busca dos
agentes a serem entrevistados. Foi entrevistado na Favela 1 um líder comunitário
que mora na favela há mais de 30 anos. Na Favela 2, foi entrevistada uma
integrante de uma família que é moradora desde a década de 1950 e que guarda
relações familiares com alguns ex-presidentes da Associação de Moradores. O
resultado dessas entrevistas foi o levantamento de cinco imobiliárias na Favela 1
das quais três foram entrevistadas, um proprietário de apartamentos que foi indicado
32
por ser ligado ao narcotráfico varejista e exercer um papel de “testa de ferro”14 para
os investimentos imobiliários da organização, um representante de Associação de
Moradores localizada na Favela 1 e o próprio primeiro entrevistado da Favela 1, que
é um pequeno proprietário, possuindo cerca de 10 imóveis alugados. Na Favela 2,
foram levantados três proprietários de imóveis (dois deles historicamente ligados à
Associação de Moradores), a própria associação de moradores e um comerciante
(também historicamente ligado à associação) e um corretor imobiliário15.
A partir do levantamento dos agentes a serem entrevistados, foram
formulados quatro roteiros de entrevistas, para proprietários de imóveis, para
Associação de Moradores e outras instituições, para corretores e administradores de
imóveis e para comerciantes. Os roteiros foram estruturados em seis partes: 1)
caracterização do entrevistado; 2) vínculo com o território; 3) propriedade da terra e
formalização das transações; 4) formação dos preços imobiliários; 5) formação dos
estoques imobiliários; e 6) regulação do território. Os roteiros foram aplicados sem
grande rigidez, mas houve o cumprimento de todo o questionário em todas as
entrevistas. Nas oportunidades em que apareceram elementos que interessam à
pesquisa e que não foram previstos no roteiro, esses elementos foram incentivados
com novas perguntas. Ao mesmo tempo, quando as respostas para determinadas
perguntas do roteiro não foram completas ou satisfatórias elas foram refeitas, ou
reformuladas no momento da entrevista. As entrevistas duraram cerca de uma hora
cada.
As entrevistas foram transcritas e os trechos selecionados de acordo com a
estrutura do trabalho. A partir desse painel foi possível contrapor de forma constante
as entrevistas com o desenvolvimento do texto.
Considerando as observações feitas no trabalho de campo, nas entrevistas
com pesquisadores, nas entrevistas não estruturadas com moradores da Favela 1 e
da Favela 2 e no levantamento bibliográfico, o objeto de pesquisa sofreu diversas
alterações. Em primeiro lugar, a pesquisa deixa de estar centralizada nos possível
processo de valorização e acréscimo dos custos relacionados à habitação em
decorrência de diversificados tipos de investimentos públicos nas favelas da zona
14 Na Favela 1, foi apontada a atuação do narcotráfico varejista no mercado imobiliário. Para dificultar a identificação dessa atividade o narcotráfico atua através de agentes que não atuam no varejo. A esses agentes que interpõem a relação entre locatário/comprador de imóveis e narcotráfico varejista com o objetivo de esconder a relação, os moradores da favela 1 designam “testas de ferro”. 15 Este corretor não foi entrevistado, pois não compareceu para a entrevista em nenhuma das três oportunidades agendadas.
33
sul e passa a estar centrada na dinâmica imobiliária como um todo da favela. Por
outro lado, a pesquisa deixa de estar centrada nos locatários, como possíveis
despossuídos no processo de valorização, e passa a estar centrada nos agentes
produtores e reguladores do espaço.
A escolha pela entrevista de caráter qualitativo se deu pela adequação ao
objeto pesquisado e pelos limites impostos pelas condições materiais em que a
pesquisa foi realizada. Considerando a busca pelos agentes locais e a dinâmica de
funcionamento configurada por esses agentes e o caráter exploratório da pesquisa
torna-se necessário o levantamento de um material que permita a extração das
categorias e da lógica de produção do espaço do próprio campo.
Por questão de segurança das fontes, decidimos não identificar as duas
favelas. Foram entrevistados na favela 1 dois proprietários, três imobiliárias e uma
associação de moradores, enquanto na favela 2 foram entrevistados três
proprietários, uma associação de moradores e um comerciante, totalizando 11
entrevistas.
Foram também realizadas revisões bibliográficas sobre a renda da terra
baseada, sobretudo, na análise de David Harvey; sobre o mercado imobiliário, tendo
como base a produção de Pedro Abramo; sobre as categorias de análise para o
estudo da favela, com base em Ananya Roy; sobre a produção da categoria “favela”,
com base em Maria Laís Pereira da Silva, Luiz Antonio Machado da Silva, Gerônimo
de Almeida Leitão e Rafael Soares Gonçalves; sobre o mercado imobiliário em
favelas, baseado na produção de Pedro Abramo e do grupo OIP-SOLO; e sobre a
relação entre estado e favela com base, sobretudo, em Boaventura de Sousa
Santos.
Diversos autores destacam a importância quantitativa da produção
habitacional das favelas para o acesso à moradia nas grandes cidades brasileiras.
Para esses autores, o acesso à moradia nas favelas se dá, sobretudo, via mercado
imobiliário.
Na produção acadêmica brasileira sobre o mercado imobiliário das favelas
pouco foi produzido sobre a estrutura de poder local, ainda que, como defendemos,
essa seja uma escala de fundamental importância no entendimento da sua
dinâmica. Pouco também foi produzido, sobre as estratégias dos agentes locais na
produção de moradias em função do entendimento de que esses agentes não
interferem na estrutura espacial das favelas.
34
Nesse trabalho, pretendemos contribuir para a caracterização dos agentes
produtores do espaço na favela e suas relações. Para isso, é necessário avançar no
que diz respeito ao mapeamento dos interesses permanentes ou conjunturais de
cada agente e sua forma de atuação. Porém, além disso, é importante entender
como esse conjunto conforma uma dinâmica imobiliária própria.
1.5 Estrutura
O trabalho foi estruturado em cinco capítulos, além dessa introdução:
O capítulo 2: “Caracterização do objeto, em busca de um ponto de
partida” trata da caracterização do objeto de pesquisa e está dividido em: 1)
levantamento teórico-bibliográfico sobre a natureza da renda fundiária, buscando as
condições mínimas para a apropriação da renda, as formas de apropriação e o seu
papel na estruturação do espaço e na acumulação do capital (MARX, 2017;
HARVEY, 2013; CARCANHOLO, 2013; TOPALOV, 1984; BOTELHO, 2008); 2)
levantamento teórico bibliográfico sobre a articulação entre as frações do capital
imobiliário, suas formas de ganho e lógica de atuação sob o comando do
incorporador, indicações sobre a estruturação do espaço pelo capital imobiliário e as
disputas e alianças entre proprietários, incorporadores e o Estado (ABRAMO, 1988;
LOGAN; MOLOTCH, 1987; DAVIS; 2007); 3) discussão sobre informalidade em sua
pluralidade de condições e a transitoriedade entre o formal e o informal (ROY, 2011;
YIFTACHEL, 2011; ROLNIK, 1997; CARDOSO, 2003); 4) a construção da favela
como categoria através da crítica ao senso comum das instituições do Estado e
debate sobre o seu papel como fenômeno constituinte e permanente na urbanização
capitalista brasileira (MACHADO DA SILVA, 2016; PEREIRA DA SILVA, 2009;
LEITÃO, 2009; SOUZA E SILVA, 2009; VALLADARES, 2005; GONÇALVES, 2013;
OLIVEIRA, 2003, 2006; ARUTO; TONIN, 2016; SANTOS, 1979; LOPES, 2006;
ABRAMO, 2001); e 5) levantamento do “estado da arte” sobre o mercado imobiliário
em favelas, em especial com base no trabalho mais sistemático desenvolvido por
Abramo e a rede OIP-SOLO (ABRAMO, 2001,2003, 2003b, 2005, 2007, 2007b,
2012; BALTRUSIS, 2004, 2004b, 2009; LONARDI, 2007).
O capítulo 3: “Condições necessárias para a formação de um mercado
imobiliário em favelas” trata das instituições necessárias para a formação de um
mercado imobiliário em favelas e está dividido em: 1) a análise do desenvolvimento
da forma da propriedade da terra, buscando inserir os agentes produtores e
35
reguladores do espaço e seus mecanismos de regulação com base, sobretudo, na
análise de Magalhães (2010) sobre o debate em torno do direito de pasárgada de
Sousa Santos (1999); 2) os contratos de aluguel e sua segurança jurídica, onde
tratamos da separação da propriedade da terra e seu uso através dos mecanismos
de registro e de recuperação dos imóveis em caso de inadimplência; 3) os agentes e
mecanismos que atuam na regulação da construção.
O capítulo 4: “Formação dos estoques imobiliários” trata da formação dos
estoques imobiliários e está dividido em: ocupação, subdivisão, venda da laje e
promoção imobiliária. Na segunda parte serão tratados os limites impostos pelas
formas específicas de propriedade nas estratégias dos proprietários investidores.
O capítulo 5: “Agentes estruturadores do espaço” trata dos agentes
estruturadores do espaço e suas inter-relações e está dividido em: associação de
moradores, narcotráfico varejista e Estado. O último subcapítulo está destinado à
análise das rupturas permanentes ou conjunturais no interior da “comunidade”.
Esses cortes determinam grupos dentro das favelas que podem se opor ou formar
coalisões a depender do contexto.
O capítulo 6: “Conclusão” é um esforço de identificar, na caracterização
desenvolvida no curso da pesquisa, quais elementos se apresentam como
particularidades das favelas e quais se apresentam como singularidades das favelas
pesquisadas e que devem se desenvolver de forma diferenciada a depender de
aspectos geográficos, sociais e históricos de cada favela.
1.6 Quadro categorial utilizado
Não pudemos desenvolver de forma detida algumas categorias que foram
utilizadas ao longo da dissertação. Não nos propomos a fazê-lo nesse momento,
porém algumas advertências são importantes para que essas categorias não sejam
entendidas apenas como um uso fortuito e descuidado das palavras.
Forma e conteúdo, aparência e essência16
Marx (MARX; ENGELS, 2011 [1844]) demonstra como a partir das maçãs,
peras, amêndoas, etc. podemos chegar na substância “fruta”, porém apenas a partir
da constatação da substância “fruta” podemos entender que essa totalidade possui
16 (Cf. MARX, 2013 [1867]; MARX; ENGELS, 2011 [1844])
36
um conteúdo próprio e a essência “fruta” aparece na forma de maçãs, peras,
amêndoas, etc. Marx (2013 [1867]) apresenta essa diferenciação em diversos
momentos ao longo d’O Capital ela está na diferenciação entre valor e valor de troca
ou preço, entre mais-valor e lucro, valor da força de trabalho e salário, etc.
Um exemplo largamente usado está no primeiro parágrafo d’O Capital, onde
Marx afirma que “A riqueza das sociedades onde reina o modo de produção
capitalista aparece como uma ‘enorme coleção de mercadorias’” (MARX, 2013
[1867], p. 113). O termo “aparece” não é fortuito. Ao construir a frase dessa forma,
Marx aponta que na aparência a riqueza nas sociedades onde reina o modo de
produção capitalista são mercadorias. Ao longo da obra o autor vai demonstrar que
a mercadoria representa a riqueza apenas como suporte de valor, ou seja, a riqueza
no capitalismo é valor em essência ou uma relação social fundada no tempo de
trabalho socialmente necessário. Daí a constatação de Postone (2014) que o
imperativo lógico do capital (o valor em valorização) é a dominação do homem pelo
tempo.
Com isso constatado, podemos destacar que a essência não é algo que sai
da mente do pesquisador e serve como instrumental para a análise dos fenômenos,
mas é parte da realidade que não pode ser constatado empiricamente, mas tem que
partir do empírico. Ainda, aparência e essência ou forma e conteúdo estão sempre
em relação e são partes imprescindíveis da realidade. A aparência não é uma
mentira que esconde a essência, mas as duas são partes da unidade que é o ser
concreto, ainda que se contradigam. Ninguém negaria que a gravidade continua
operando sobre um balão de ar quente ou de gás hélio que se distancia da terra,
ainda que a gravidade opere no sentido contrário, isso porque múltiplas
determinações operam sobre o fenômeno.
Universal, particular e singular17
O singular coincide com o fenômeno, ou seja, com o empiricamente
apreensível. Dessa forma, tudo que o mundo nos oferece de forma imediatamente
sensível é algo singular. Ocorre, porém, que o fenômeno não oferece a totalidade
dos processos. Há múltiplas determinações e legalidades que não podem ser
empiricamente reconhecidos, mas que unem os fenômenos em uma mesma
17 (Cf. PASQUALINI; MARTI, 2015; MOSELEY, 2016)
37
totalidade. Essas legalidades que operam sobre os fenômenos estão na dimensão
do universal que coincide com a essência. O particular é, dessa forma, a mediação
entre o singular, aparente, fenomênico, etc. e o universal, essencial, conteudístico,
etc.
Podemos voltar ao exemplo da fruta e considerar que a fruta, como um
universal, se apresenta nas formas particulares de maçãs, peras, amêndoas, etc. e
que cada maçã, pera, amêndoa, etc. é uma expressão singular do universal fruta.
Da mesma forma, podemos considerar que o universal capitalismo tendo como
imperativo o valor em valorização apresenta como tendência a acumulação pela
urbanização. No entanto, o fenômeno urbanização vai se apresentar de forma
particular em cada país até chegarmos em cada caso singular. Da mesma forma,
podemos entender como parte particular da urbanização a favela e cada exemplar
de favela como um singular.
Importante destacar que o universal é sempre relativo, é questão de grau.
Ainda que o universal capitalismo compreenda um amplo leque de fenômenos, é
apenas uma das formas em que as sociedades se organizaram ao longo da história
da humanidade.
Absoluto, relativo e relacional18
As concepções de absoluto, relativo e relacional utilizadas nessa dissertação
são baseadas na divisão tripartite de espaço-tempo desenvolvida por David Harvey
em “O espaço como palavra-chave”. Harvey (2015) considera espaço absoluto, o
espaço cartesiano do mapeamento cadastral ou da propriedade privada. Nessa
concepção o espaço é fixo, ou seja, nenhum espaço coincide com outro. Esse é o
espaço livre de abstrações, é a dimensão do singular na leitura do espaço. O espaço
relativo põe diversos pontos em relação. Aqui, já é necessário um nível de
abstração, pois só podemos ver a relação entre pontos no espaço de os isolarmos e
assumirmos um ponto de vista. Nesse nível de abstração, diferentes espaços podem
ocupar o mesmo espaço relativo. Se formos considerar a distância em linha reta a
partir de um ponto, por exemplo, teremos um círculo de espaços relativos iguais. No
entanto, o espaço relativo não se dá apenas pela distância geométrica. Podemos
considerar da mesma forma a distância pelos eixos rodoviários, se formos pensar
18 (HARVEY, 2015)
38
diversos modais podemos pensar pelo tempo de transporte, custo, etc. Se
quisermos pensar um extremo para essas relações, podemos admitir que, para
determinadas atividades, a rede mundial de computadores colocou todas as partes
do mundo que têm livre acesso a rede no mesmo espaço relativo. Enquanto no
espaço relativo podemos ver como um ponto no espaço se põe em relação a outro,
no espaço relacional podemos ver como dois pontos no espaço se relacionam.
Dessa forma, os eventos não aconteceriam no espaço, mas definiriam o seu próprio
quadro espacial. Se quisermos retornar ao exemplo da rede mundial de
computadores veremos que nem todos os espaços com acesso à rede estão em
relação, mas apenas os que se conectam durante determinado evento. Da mesma
forma, uma atividade posta no espaço não se relaciona com todas as atividades
postas no entorno, apenas com algumas e de forma determinada.
Aqui, utilizaremos essa divisão tripartite não apenas para a análise espaço-
temporal de determinados fenômenos, mas também no estabelecimento de relações
entre categorias concebidas como duais. Esse é parte do significado do método
marxiano entender o movimento do objeto a partir de suas relações.
Local, supralocal e externo
Este conjunto categorial foi utilizado para o estudo das relações entre a favela
e o restante da cidade. Consideramos “locais” os eventos, fenômenos, agentes, etc.
que tem uma abrangência interior à favela. Isso não significa negar a relação com os
eventos, fenômenos, agentes, etc. em outras escalas, mas quando chamamos
atenção para essa escala, estamos atentos para os seus efeitos nela. Podemos
considerar os diversos agentes enraizados no território como Associação de
Moradores ou narcotráfico varejista e, mesmo que estejam articulados em centrais
ou facções em escalas mais amplas, consideramos sua atuação prioritariamente na
escala local. Consideramos “supralocais”, os eventos, fenômenos, agentes que têm
uma abrangência maior (município, estado, país), mas que atuam diretamente na
escala local. Podemos considerar os fiscais como agentes do município que atuam
na escala local ou a UPP como agentes do estado que atuam na escala local. Como
“externo”, consideramos algo de fora que não estabelece relação direta à priori com
o interior das favelas. Podemos dar como exemplo os incorporadores, onde a sua
atuação predatória têm sido uma preocupação para as políticas públicas nas
favelas, mas essa relação não está de fato estabelecida.
39
2 CARACTERIZAÇÃO DO OBJETO: EM BUSCA DE UM PONTO DE
PARTIDA
Se vamos analisar o funcionamento do mercado imobiliário em favelas, é
necessário, antes de tudo, apresentarmos as nossas bases teóricas fundamentais, a
fim de lançarmos um ponto de partida que possa ser reconhecível ao leitor. Algumas
categorias como “favela” e “informalidade” foram apropriadas de diversas formas por
estudos acadêmicos, políticas de Estado ou pelo senso comum. Sendo assim, é
necessário apresentar a nossa perspectiva de análise para esses objetos.
Este capítulo pode ser dividido em três partes abrangentes que agregariam
tópicos mais específicos: 1) o lançamento da base teórica com algumas notas sobre
a renda da terra e o funcionamento do mercado imobiliário; 2) a análise mais detida
das categorias “favela” e “informalidade” e 3) a apresentação crítica da produção
existente sobre o mercado imobiliário em favelas.
2.1 Notas sobre a renda da terra19
O estudo sobre renda da terra é fundamental para qualquer análise da
estruturação do espaço urbano capitalista. A renda fundiária é elemento essencial
das estratégias de atuação dos capitais imobiliários, como também da distribuição
das atividades no espaço. Dessa forma, a produção do espaço no capitalismo deve,
em todos os momentos e em todos os lugares, sofrer pressão coordenadora dessa
forma de ganho. Evidentemente, essa força “encarnada” no proprietário fundiário
apresentará contradições conjunturais ou permanentes com as demais classes e
outras formas de mediação da sociabilidade, como, por exemplo, o caso da
segregação racial no espaço, tema bastante explorado pela literatura norte
americana.
A terra aparece no capitalismo como uma mercadoria especial, uma
mercadoria imóvel, irreprodutível, e indispensável para qualquer atividade humana20.
Ora, se pretendemos partir da teoria do valor de Marx, não basta que o objeto de
uso possa ser levado ao mercado, lá sejam estabelecidas as relações de
equivalência e que esse objeto de uso seja trocado para ser uma mercadoria. Esse
movimento contemplaria a órbita da circulação de mercadorias, porém, é necessário
19 A abordagem desse subcapítulo está, em grande medida, baseado em Harvey (2013 [1980]). 20 Seja ela produtiva ou não. O próprio ser exige uma ocupação no espaço que é ancorada na terra.
40
a substancia valor na constituição da mercadoria. Para Marx, a fonte de todo o valor
é o trabalho abstrato socialmente necessário para a produção do objeto de uso. A
terra como um bem irreprodutível não pode ter trabalho incorporado na sua
produção, pois não há trabalho que produza terra, ainda que haja a possibilidade de
incorporar mercadorias a ela. O resultado disso é que, para Marx, a terra não é uma
mercadoria. Não contendo valor, o pagamento efetuado ao proprietário da terra, seja
por transação ou arrendamento, deve ter a sua origem no processo de produção de
mercadorias, ou seja, para Marx (2017 [1894], p. 675): “uma parte do mais valor
produzido pelo capital recai no proprietário da terra”.
Outra característica fundamental da terra no capitalismo é o fato dela ser
monopolizável. Essa característica é ao mesmo tempo um desdobramento de sua
irreprodutibilidade e da propriedade do direito privado de uso da terra21. Mas não é
qualquer propriedade do direito de uso da terra. Para ser monopolizável, a terra
deve poder ter seu direito de uso separada de seu uso direto. Essa é uma
característica fundamental da propriedade no capitalismo e, para Marx, é o que
caracteriza a conversão da propriedade fundiária em propriedade moderna e é
condição essencial para o desenvolvimento do modo de produção e da sociabilidade
típicas do capitalismo22. Em sua análise final, a renda é simplesmente um
pagamento feito aos proprietários pelo direito de uso da terra e seus recursos
naturais e incorporados (HARVEY, 2013 [1980], p. 428). Ela é um adiantamento dos
ganhos futuros associados ao uso da terra.
Harvey (2013 [1980], p. 447) chama a atenção para a grande diversidade de
proprietários de terra, desde o Estado e igrejas, passando por instituições
financeiras, até os próprios trabalhadores. Mas, em meio a essa diversidade, vemos
que há uma caraterística que direciona o comportamento de todos esses agentes
econômicos, que é a tendência crescente de tratar a terra como um bem financeiro.
21 A irreprodutibilidade não é absolutamente necessária para extração de renda. Leda Paulani (2016, p. 17) nos demonstra como a renda extraída no caso da propriedade do conhecimento pode ser produzida por uma escassez artificial. A autora se apoia no exemplo da distribuição de softwares. Mesmo o produto tendo sua reprodução a custo zero, ou seja, sem produção de valor, o direito jurídico pode gerar a escassez necessária para a extração de renda. Comparando o caso da terra com o caso dos softwares vemos que o aspecto essencial da geração de renda na propriedade privada não está no direito de uso, mas na negação desse direito para o restante da sociedade. Entretanto a irreprodutibilidade da terra é importante por diversos outros aspectos a serem trabalhados. 22 No capítulo 24 do livro 1 d’O Capital, Marx explora o papel da propriedade moderna na separação do trabalhador direto dos seu meios de produção. A criação de um exército de reserva seria essencial para generalizar o trabalho sob o domínio do capital e, dessa forma, a sociabilidade mediada pelo valor.
41
Isso porque qualquer fluxo de renda pode ser considerado um juro sobre o capital
fictício, já que se trata de receita sobre os lucros futuros, ou seja, sobre o trabalho
futuro. Mas o recolhimento da renda não é uma escolha, ele é inexorável à condição
de proprietário. Dessa forma, todos os esforços em problematizar a especulação
imobiliária desvinculando-a da dinâmica de acumulação capitalista e da propriedade
moderna, e individualizando a análise, dividindo especuladores e proprietários que
destinam a terra a um uso, recai numa dimensão moral, que pode ser útil para uso
político em casos específicos, mas como categoria de análise cria mais confusão do
que explica. Mesmo que a terra seja tratada como um mero bem financeiro, ela não
pode ser despojada de seu poder de monopólio sobre qualidades especiais. Esse
poder de monopólio cria oportunidades para a apropriação da renda que não surgem
para outros tipos de bens financeiros, a não ser em casos muito especiais
(HARVEY, 2013 [1980], p. 449).
Apesar de irreprodutível, a terra pode ser modificada de diversas formas, seja
melhorando sua qualidade para o plantio, fixando construções ou melhorando sua
conexão com outros atributos (naturais ou produzidos) fixados à terra. As melhorias
na terra são, certamente, fruto do trabalho humano, ou seja, a atividade capaz de
modificar a terra deve ser atividade produtora de valor. Um componente da renda
pode então ser tratado como caso especial de juros sobre o capital fixo23 aprisionado
à terra ou sobre o fundo de consumo (HARVEY, 2013 [1980], p. 428). Mas, por
enquanto, vamos manter o foco de análise no pagamento à terra bruta, na renda
fundiária.
Os atributos especiais da terra podem ser extraídos na forma de valores de
uso (extração), utilizados como força motriz para a movimentação de máquinas ou
geração de energia (eólica ou hidráulica, por exemplo) ou utilizados como base na
reprodução contínua (como na agricultura ou silvicultura). Nos dois primeiros casos a
terra é fonte dos meios de produção, no último, além de fonte dos meios de
produção (nutrientes da terra) a própria terra funciona como um meio de produção
(HARVEY, 2013 [1980], p. 432).
23 O capital fixo é a parte do capital constante que corresponde aos meios de produção que permanecem na produção, ou seja, não circulam na forma de mercadoria. Essa forma de capital transmite valor para a mercadoria na mesma medida em que o valor se desprende de seu valor-de-uso, ou seja, o valor do capital fixo circula aos poucos enquanto o restante se mantém por períodos maiores ou menores na esfera da produção. Parte desse capital fixo está aprisionado à terra, seja por ser naturalmente imóvel, ou por sua movimentação ter um preço mais alto que a sua produção. Para maiores informação ver Marx (2014 [1885], p. 239-266).
42
Esses atributos especiais da terra são em grande parte variáveis em sua
quantidade e qualidade. A produtividade da força de trabalho varia sob
circunstâncias monopolizáveis e não reprodutíveis. Essas qualidades podem ser
acumuladas por capitalistas que vão poder auferir mais-valor relativo. Entretanto, o
mais-valor relativo aqui é permanente e não efêmero como no caso da vantagem
tecnológica (HARVEY, 2013 [1980], p. 433). Quando o mais-valor relativo é
proveniente de uma vantagem determinada pelo acesso a um recurso natural
monopolizável, os proprietários fundiários ficam em condições de reivindicar os
lucros extras, convertendo-os em renda fundiária, sem de modo algum diminuir o
lucro abaixo da média. Porém, quando a tecnologia que determina a produtividade
média de determinado ramo torna obsoleto o acesso a determinado recurso, essa
vantagem tende a desaparecer junto com o mais-valor relativo. Dessa forma, não é
o atributo da terra em si que determina o mais-valor relativo, mas a atividade
produtiva e a forma como ela se relaciona com os atributos da terra.
Deve ser enfatizado que a força natural “não é a fonte do lucro excedente, mas sua base natural”, e os lucros excedentes existiriam mesmo sem sua conversão em renda fundiária. A circulação do capital, e não a propriedade da terra, é o fator ativo nesse processo (HARVEY, 2013 [1980], p. 434).
Na agricultura, os investimentos em melhorias do solo, se adequados, tentem
a se acumular, ao contrário da indústria, onde o investimento em novas tecnologias,
com frequência, envolvem a desvalorização de equipamentos antigos. Outra
característica importante é que o investimento em melhoria do solo pode criar
propriedades como se a pertencessem naturalmente. Capital fixo incorporado à
terra, nesse caso, se confunde com sua produtividade natural. Marx conclui que os
recursos provenientes da terra são tanto produto da história como da natureza
(HARVEY, 2013 [1980], p. 435).
Outro atributo que deve ser considerado na caracterização da terra é a
localização. A princípio, a propriedade privada da terra como poder exclusivo sobre
determinada porção do globo envolve uma concepção absoluta do espaço.
Nenhuma propriedade da terra no capitalismo pode ocupar o mesmo espaço que
outra24. No entanto, as diversas atividades relacionam pontos diferentes no espaço
24 Ainda que haja exceções que nos mostram que o monopólio de uma porção do globo não é a única forma de demarcação possível. Segundo Porto Gonçalves, “A Reserva Extrativista consagra todos os princípios ideológicos que Chico Mendes propugnava posto que, ao mesmo tempo, que cada família
43
de diferentes formas. A atividade produtiva, por exemplo, deve trazer meios de
produção e força de trabalho para o local da produção e levar o produto acabado ao
mercado. Da mesma forma, o trabalhador deve ir da sua casa ao trabalho onde
recebe o seu salário, vai ao mercado onde gasta o seu salário, etc. Esses
movimentos podem ser mais bem definidos por uma concepção relativa do espaço.
Nessa concepção, apesar de não ocuparem o mesmo espaço absoluto, várias
indústrias podem se fixar à mesma distância do mercado, ocupando o mesmo
espaço relativo. Da mesma forma, vários trabalhadores podem transitar da casa
para o trabalho com a mesma facilidade. O espaço relativo não vai necessariamente
ter base na distância absoluta. Para o capitalista que não paga as horas de
translado do trabalhador, mas o custeia, o custo vai ser mais importante, enquanto
para o trabalhador o tempo é dimensão essencial. Dessa forma, não apenas as
características imanentes à terra, como a fertilidade, mas também a sua posição
relativa, podem ser convertidas em vantagens. Produtores com menor custo de
transporte podem auferir lucros extraordinários passíveis de serem convertidos em
renda fundiária. Lembremos que há múltiplas atividades humanas e cada uma delas
converte condições específicas em vantagens, sejam elas características imanentes
da terra ou localizações relativas (HARVEY, 2013 [1980], p. 438).
Se o salário é estabelecido em um nível necessário para garantir a reprodução do trabalhador que vive mais longe (como pode às vezes acontecer em condições de escassez de mão de obra), todos os outros trabalhadores recebem um salário um pouco acima do valor. Em consequência disso, aqueles que são proprietários de terra podem converter o excesso do salário em renda fundiária sem de modo algum perturbar o valor da força de trabalho (HARVEY, 2013 [1980], p. 438 e 439).
Podemos concluir que os atributos imanentes e as localizações relativas da
terra são específicos para cada atividade humana. Dessa forma, além dos atributos
imanentes variarem de acordo com o investimento de capital fixo incorporado à terra
e as localizações variarem de acordo com o investimento de capital em terras
próximas ou com a instalação de meios de comunicação e transporte, cada
vantagem só serve a determinadas atividades humanas que também são resultado
sócio-histórico e geográfico. Essa dimensão da localização pode ser mais bem
detinha a prerrogativa de usufruto da sua colocação com sua casa e com suas estradas de seringa, a terra e a floresta eram de uso comum, podendo mesmo cada um caçar e coletar nos espaços entre as estradas de cada família, ideia comunitária inspirada nas reservas indígenas” (PORTO-GONÇALVES, 2005).
44
definida por uma concepção relacional do espaço. Sendo assim, na medida em que
atividades humanas podem desaparecer, surgir ou se modificar, as vantagens
relacionadas à terra estão sujeitas ao mesmo movimento. As vantagens se
modificam tanto pelo investimento de capital como podem ser afirmadas ou negadas
socialmente. Considerando que diferentes atividades disputam entre si o uso do
espaço, essa dimensão ganha importância. Esses fatores vão aparecer de forma
combinada na atuação do capital incorporador imobiliário, em especial nos ganhos
fundiários.
As características especiais presentes na terra e sua natureza são
determinantes nas formas que a renda assume no capitalismo. Marx (2017 [1894])
identifica quatro formas diferentes: monopolista, absoluta e dois tipos de renda
diferencial (RD-1 e RD-2). As formas de renda em Marx são classificadas de acordo
com a fonte do valor que pode ser convertido em renda fundiária.
Toda a renda é um poder monopolista, porém, os proprietários competem
livremente por terras de qualidades e localizações diferentes e, dessa forma,
disputam a renda que podem controlar. Ao mesmo tempo os usuários têm um
grande leque de opções onde dispõem de grande variedade de condições. A renda
monopolista aparece quando essas condições competitivas não prevalecem. Harvey
(2013 [1980], p. 451) aponta duas situações em que a renda monopolista pode
aparecer: em primeiro lugar, quando alguns proprietários controlam terras de
qualidade ou localização tão especial para determinada atividade, que podem extrair
renda de monopólio pela falta de opções dos que desejam usar a terra; em segundo
lugar, em casos de escassez de terra, os proprietários podem se negar a
disponibilizar terras improdutivas, pressionando o preço acima do normal (HARVEY,
2013 [1980], p. 451).
A renda absoluta surge como barreira ao fluxo de mais-valor proveniente do
movimento de equalização das taxas de lucro. Por exemplo, há uma forte
probabilidade que a composição orgânica do capital25 na agricultura seja menor que
25 O capital empregado na produção pode ser decomposto em capital constante e capital variável. A parte variável desse capital é a responsável pela produção do valor, dessa forma, os ramos produtivos que empregam proporcionalmente maior quantidade capital variável que os outros, produzem, consequentemente, quantidade maior de valor em relação ao capital aplicado. Se admitirmos uma equalização das taxas de lucro, os capitais que produzem quantidade maior de valor em relação ao capital investido tendem a receber menos lucro do que o referente ao valor produzido, enquanto os que produzem quantidade menor de valor se apropriam de uma porção maior de lucro do que o referente ao valor produzido. Isso se dá porque a produção de valor se dá pela quantidade de capital variável aplicado enquanto o lucro pelo capital total. A composição orgânica do capital, em
45
a média social. Se for admitida uma equalização na taxa de lucro, um capital na
agricultura produz mais-valor maior do que recebe na forma de lucro; isso porque os
setores contribuem com a massa social de mais-valor segundo a força de trabalho
que empregam, mas recebem o lucro segundo o capital que adiantam. Mas essa
suposição admite que não há barreiras para a equalização das taxas de lucro e se
baseia “na distribuição proporcional em constante mutação do capital social total
entre as várias esferas da produção, na entrada e saída contínuas dos capitais”
(HARVEY, 2013 [1980], p. 452). A renda absoluta pode surgir quando a propriedade
fundiária ergue uma barreira sistemática a esse fluxo de mais valor. Em
consequência disso, os produtos agrícolas podem ser comercializados de forma que
o lucro se ponha acima da taxa média de lucro e produzir renda absoluta, embora
vendendo abaixo ou no nível dos valores produzidos. Uma renda absoluta pode
existir sem infringir a lei do valor. Parte do mais-valor excedente produzido é
capturada pelo proprietário da terra de forma que não entra na equalização das
taxas de lucro (HARVEY, 2013 [1980], p. 452).
A renda absoluta depende então do poder dos proprietários de terra para criar
uma barreira à equalização da taxa de lucro e da persistência de uma composição
orgânica do capital abaixo da média. Se a composição orgânica se tornar igual ou
mais alta que a média social a renda absoluta desaparece (HARVEY, 2013 [1980],
p. 453).
A renda diferencial é uma forma que encontra similaridades com o mais-valor
extraordinário. De forma simplificada, os atributos específicos de cada porção de
terra do globo, seja ela produto do trabalho (capital fixo incorporado à terra), ou não
(localização, fertilidade natural, rios, etc.), podem ser apropriados pelos capitalistas
como vantagens capazes de reduzir o custo de produção, gerando26 mais-valor
extraordinário que pode ser convertido em renda fundiária. “Em outras palavras, ela
[a renda diferencial] é entendida como a diferença entre a rentabilidade das terras de
distinta qualidade (considerando também a distância ao mercado), com relação à
pior terra” (CARCANHOLO, 2013, p. 162). A renda diferencial na obra de Marx é
separada em dois tipos: renda diferencial de tipo 1 (RD-1) e renda diferencial de
suma, é a razão entre o capital constante e o capital variável. 26 Segundo Carcanholo (2013, p. 160), dependendo da relação entre o preço e valor do produto, parte do mais-valor que flui na terra sob a forma de renda diferencial, pode ser produzida em outro setor da economia, como pode também ser produzida no próprio setor, dessa forma, não se aplica o conceito de produção nem de apropriação à renda. O autor propõe o conceito de geração.
46
tipo-2 (RD-2).
A renda diferencial de tipo 1 (RD-1) aparece como a forma mais simples de
renda. Suponhamos a aplicação igual de capital e trabalho em terras de igual
extensão. Se o produto final de cada capitalista ao final do processo produtivo for o
mesmo, podemos assumir que não há lucro extra e as terras, mesmo sendo
qualitativamente distintas, têm efeitos semelhantes sobre a produção. Quando há
uma diferenciação de produtividade para estas mesmas condições, pode-se dizer
que essa diferenciação está relacionada aos efeitos distintos que cada terra
qualitativamente distinta tem sobre a produção. Nesse caso, a diferença de
produtividade é relativamente permanente e pode ser convertida em lucro extra que,
na medida em que o mesmo capital empregado apresenta resultados diferentes para
cada terra, pode ser convertido em renda da terra, no caso, RD-1. O valor de
mercado dos produtos onde a terra é utilizada como um meio de produção básico é
fixado pelo preço da pior terra, por isso os produtores das terras melhores recebem
lucros excedentes. Podemos desdobrar o mesmo raciocínio para os casos em que
quantidades desiguais de capital e trabalho aplicados em terras de extensão
desigual, basta que comparemos os resultados de partes alíquotas de mesma
grandeza, isto é a taxa de lucro (MARX, 2017 [1894], p. 713).
As causas gerais dos resultados desiguais, no exemplo clássico de Marx, que
geram RD-1 são fertilidade27 e localização. As duas causas têm movimentos
independentes, ou seja, um terreno bem localizado pode ser mais fértil ou menos
fértil, o mesmo pode ocorrer com o de pior localização. Além disso, localização
relativa e fertilidade, como já vimos, são resultados sócio-históricos. A geração de
mercados locais e a distribuição de meios de comunicação e transporte podem ter
efeito nivelador sobre a localização, assim como a criação de grandes centos de
produção podem aumentar a diferenciação (MARX, 2017 [1894], p. 715). Da mesma
forma, fertilidade pode variar com investimento de capital e desgaste do solo.
A renda diferencial de tipo 2 (RD-2) é resultado dos investimentos de capital
incorporados na terra para aumentar a produtividade. A economia extensiva cresce
de acordo com o aumento da área produtiva, enquanto o desenvolvimento da
economia intensiva exige sucessivos investimentos de capital (fertilização,
aperfeiçoamento de maquinário, etc.) nas mesmas terras. O caso que poderíamos
27 Podemos entender a fertilidade como um atributo natural da terra que representa qualquer vantagem natural no interior da terra.
47
considerar mais simples da renda diferencial de tipo 2 (RD-2), se expressa nas
aplicações diferenciadas de capital em terras de igual fertilidade. As terras onde
houve um investimento maior de capital tendem a constituir uma base melhor para o
próximo investimento. Aí, há uma relação com os contratos de arrendamento, pois,
na medida em que o capitalista investe, o proprietário fica à espera do fim do
contrato para incluir a renda adicional relativa às benfeitorias no próximo contrato.
Assim como, se todas as terras fossem de igual fertilidade e a localização não
fizesse diferença, a RD-1 deixaria de existir, também se todos os produtores
investissem exatamente o mesmo capital em suas terras, a RD-2 deixaria de existir.
Se alguns produtores investirem acima do normal e receberem retorno em escala
sobre o capital que investem, toda ou parte dessa diferença pode ser apropriada
como RD-2. A diferença está no preço de produção individual que será inferior ao
dos demais (HARVEY, 2013 [1980], p. 456).
A RD-2 é proveniente do mais valor relativo gerado pelo investimento de
capital. Assim, quando esse investimento de capital torna-se suficientemente geral
para ser considerado normal, o preço normal de produção cai e o mais valor relativo
deixa de existir junto com a base para a RD-2. Dessa forma, RD-2 tem um caráter
transitório assim como o mais valor relativo gerado pela inovação tecnológica.
O investimento de capital que gera a base para RD-2 pode destruir o
investimento anterior ou não. Há investimentos em que o capital gera melhorias
permanentes, ou seja, o capital implementado não desvaloriza o anterior. Essas
melhorias apesar de fruto do investimento de capital passam a ter o mesmo efeito
que as diferenças naturais das terras, e, dessa forma, se tornam base para a
apropriação da RD-1. RD-2 se torna RD-1 (HARVEY, 2013 [1980], p. 458). Torna-se
impossível para o proprietário distinguir de onde é proveniente a renda diferencial,
ou seja, qual se deve ao fluxo de capital e qual se deve aos efeitos permanentes das
diferenças naturais.
A propriedade da terra aparece até o momento como negatividade sobre a
circulação de capital. Ela tira do capitalista parte do valor que seria reinvestido e
retornaria à circulação e pode retirar parte das terras da produção apenas para em
seguida exigir preços extorsivos. Segundo Harvey (2013 [1980], p. 462), Marx
apresenta três papeis para a propriedade privada da terra: transferir parte do mais
valor para o bolso dos proprietários; exercer pressão sobre o capital no processo de
produção e negar a terra para os trabalhadores. Esse último papel é de grande
48
importância no livro 1 d’O capital, quando Marx expõe as formas históricas de
acumulação primitiva do capital. Evidentemente, se a produção capitalista necessita
da separação do trabalhador de sua terra, essa condição deve se manter.
Para Harvey, embora o capital fundiário imponha uma barreira para o fluxo de
capital e cause impactos negativos para a acumulação, verifica-se um importante
papel a desempenhar na pressão para a alocação adequada do capital à terra. Se o
proprietário da terra aufere a renda segundo o uso mais lucrativo para aquela terra,
a tendência é que o preço da terra limite seu uso apenas para aquele mais favorável
à acumulação de capital. Topalov identifica esse papel. Para o autor, a função
primordial da renda da terra é o uso capitalista do espaço na sua forma mais
lucrativa, ou seja, dispor as atividades humanas pelo território de forma a criar as
melhores condições para o lucro dos capitalistas individuais. Para o autor, ainda, a
propriedade não é fonte de contradições, mas carrega as contradições da lógica do
capital.
Esta propriedade do solo é totalmente interna ao modo de produção capitalista. Constitui a mediação que garante o uso capitalista ótimo do espaço urbano: constrange cada capital particular a localizar-se nos pontos do espaço onde se maximiza o nível do sobrelucro privado. Por conseguinte, a propriedade capitalista do solo não é a fonte das contradições no processo de urbanização. Reflete de maneira mais ou menos fiel, a lógica mesma do capital. Porém essa lógica, ela sim é a fonte de profundas contradições sociais, especialmente a segregação das atividades e das classes sociais (TOPALOV, 1984, p.658 e 659)28.
Apesar de carregar fortes contradições da lógica mais geral da produção de
valor, a propriedade no capitalismo carrega contradições próprias resultantes da
oposição do proprietário fundiário ao usuário da terra (o capitalista, o rentista e o
próprio trabalhador).
Quando apontamos para a alocação adequada do capital no espaço, não
significa que cada atividade específica irá localizar-se no seu local de melhor
rendimento. As localizações mais adequadas para diversas atividades podem
28 Esta propiedad del suelo es totalmente interna al modo de producción capitalista. Constituye la mediación que garantiza el uso capitalista óptimo del espacio urbano: constriñe cada capital particular: a localizarse en los puntos del espacio donde se maximiza el nivel de la sobreganancia privada. Por consiguiente, la propiedad capitalista del suelo no es la fuente de las contradicciones en el proceso de urbanización. Refleja de manera más o menos fiel, la lógica misma de capital. Pero esta lógica, ella sí es la fuente de profundas contradicciones sociales: especialmente la segregación de las actividades y de las clases sociales.
49
coincidir e essa coincidência deve acontecer sempre ou quase sempre com
capitalistas do mesmo ramo. Dessa forma, há concorrência entre as classes, entre
as frações de classe e entre capitalistas e trabalhadores individuais pelo espaço. O
resultado dessa concorrência tende a ser a alocação dos indivíduos e suas
atividades no espaço de forma que cada terra receba o seu uso mais lucrativo, mas
não que cada atividade se aloque na terra que garante a maior produtividade. Se
formos pensar na distribuição das atividades no espaço de forma a garantir maior
qualidade de vida para os cidadãos, acesso aos direitos fundamentais, manutenção
de tradições, etc. podemos concluir que a propriedade fundiária moderna e a renda
da terra atuam de forma autônoma em relação a esses valores, podendo ser
radicalmente hostis a alguns deles. As mazelas que essa tendência pode causar
podem ser mais ou menos controladas dependendo do momento histórico e da luta
de classes.
As rendas absoluta e monopólica devem ser consideradas sempre negativas
sobre a alocação adequada do capital a terra, formação de preços de mercado
válidos e à sustentação da acumulação, por isso o capital em geral tem interesse de
mantê-las sob controle. Já as duas formas de renda diferencial podem ter efeitos
positivos, negativos ou neutros sobre “a formação dos preços de mercado, a
concentração e a dispersão de capital e a acumulação” (HARVEY, 2013 [1980], p.
464).
Há um sentido na renda diferencial que melhora a competição ao invés de
limitá-la. O proprietário da terra opera para igualar a taxa de lucro entre os
produtores concorrentes. Dessa forma em vez de se aproveitar das vantagens
naturais, os produtores que concorrem devem fazê-lo tendo por base novos
métodos. Porém não há como assegurar que cada um vai recolher o que lhe é
devido. A opacidade antes demonstrada da distinção entre RD-1 e RD-2 torna
confusa, contraditória e irracional a luta entre proprietários de terra e capitalistas
(HARVEY, 2013 [1980], p. 464).
A renda da terra surge com os papéis positivos, para a acumulação de capital,
de separar os trabalhadores de seus meios de produção e coordenar a alocação do
capital no espaço de forma adequada à produção de valor e o papel negativo de
criar uma barreira ao reinvestimento produtivo. Munidos dessas formulações
preliminares podemos pensar como essas contradições aparecem na produção da
cidade.
50
O espaço é produção sócio-histórica, onde cada processo tem como ponto de
partida a base natural-geográfica e o trabalho passado incorporado. A cidade, que
tem como característica específica a aglomeração de população humana, tem esse
processo intensificado e o resultado é alta concentração de trabalho incorporado à
terra. Para Marx, a renda fundiária urbana seria elevada em função dessas duas
características específicas da cidade.
Não só o crescimento populacional e, com ele, a crescente necessidade de moradias, mas também o desenvolvimento do capital fixo – que se incorpora à terra ou nela cria raízes, nela repousa, como todos os edifícios industriais, as ferrovias, os armazéns, os galpões de fábricas, as docas etc. -, aumentam necessariamente a renda imobiliária (MARX, 2017 [1894], p. 834).
Segundo Botelho (2008), para Marx, a renda diferencial tem influência
decisiva da localização e o desenvolvimento da cidade é continuamente capturado
pelos proprietários de terra por essa forma de renda. Já a aglomeração progressiva
leva a um aumento de demanda por terra que favorece a apropriação da renda a
preços de monopólio.
Marx, ainda que de forma resumida, analisou o papel da renda nos terrenos urbanos para construção, sendo que ela se caracterizaria: 1) pela influência decisiva da localização sobre a renda diferencial; 2) pela exploração pelo proprietário do progresso do desenvolvimento social para o qual nada contribui e no qual nada arrisca; 3) pelo predomínio do preço de monopólio (MARX, 1989). A renda fundiária urbana seria elevada pelo rápido e intenso crescimento da população nas grandes cidades, e pela consequente necessidade crescente de habitações daí resultante e também pela implementação de capital fixo que se incorporaria à terra (como edifícios, rodovias, ferrovias, armazéns, estabelecimentos fabris e comerciais, docas etc.) Nas cidades de grande crescimento, o que constituiria o objeto principal de especulação no setor imobiliário não seria o imóvel construído, mas a renda fundiária cobrada pelos proprietários (MARX, 1988) (BOTELHO, 2008, p. 26).
Ainda que a aglomeração progressiva não seja mais uma realidade para parte
importante das grandes cidades, a progressiva incorporação de capital à terra que
configura a acumulação pela urbanização, ainda terá importantes desdobramentos
na produção do espaço e na forma como se distribuem as rendas fundiárias. Adiante
desenvolveremos mais sobre a relação entre os investimentos de capital e as rendas
fundiárias, mas podemos adiantar aqui que a concentração da aplicação de capital
em determinados espaços da cidade tende a aumentar a importância das rendas
diferenciais como coordenadoras da localização dos indivíduos na cidade pelo seu
51
poder aquisitivo. A concentração mais radical dos investimentos no espaço pode
chegar ao ponto de criar situações análogas às das rendas de monopólio. Por serem
sensíveis a esse fato, os proprietários e investidores urbanos podem aplicar os seus
capitais de forma concentrada, assim como pressionar o Estado a fazer o mesmo.
A renda individual da terra no mercado fundiário urbano está em grande
medida relacionada com atividades realizadas em outros terrenos que tenham
relação com o seu uso, ou seja, é determinada por fatores externos e relacionais. A
localização, dessa forma, é atributo crucial na formação das rendas fundiárias
urbanas, e mais, sendo ela relacional, o grande volume de capital e trabalho
intensivamente incorporados na terra nas cidades, dá um caráter dinâmico à renda
da terra na cidade. Para Cunha e Smolka (1980), a cada mudança de uso de um
terreno, modificam-se as características de todos os outros. Grandes investimentos
de capital e trabalho fixados à terra, obsolescência, criação ou modificação de
atividades humanas; ou mudanças relacionadas às preferências da sociedade ou de
parte dela podem modificar completamente a configuração das localizações relativas
dos terrenos da cidade.
O caso clássico dos grandes investimentos está ligado à atuação do poder
público na implementação de infraestrutura, obras de aterramento, contenção e
construção de redes de transporte e comunicação. É inegável o papel do poder
público na expansão da malha urbana do Rio de Janeiro, por exemplo, nos
aterramentos que levaram a aristocracia carioca para a rua do Lavradio, nos
desmontes do morro do Senado, Santo Antônio e do Castelo, na canalização do
Saco de São Diogo ou na modernização do Porto e do Centro da cidade. O
investimento do poder público tem especial importância na literatura, pois expõe a
forma como os proprietários e incorporadores se apropriam sistematicamente dos
investimentos públicos pelo valor que circula na terra. Mas não são somente os
investimentos públicos que operam na reestruturação das localizações relativas dos
terrenos. Podemos recordar, por exemplo, o papel das associações
bonde/loteamento que deram resultado a bairros como Vila Isabel (ABREU, 2010). É
evidente que, mesmo para esses casos, foram necessários investimentos públicos
em aterramentos, o que demonstra como investimentos públicos e privados podem
ser apropriados indiscriminadamente. Apesar da especulação sobre os
investimentos públicos terem grande importância nas estratégias de apropriação
pela terra do valor produzido, a ação combinada de agentes privados também
52
aparece como fator relevante na mudança de localização relativa. A mudança do
perfil social da população, a proximidade de centros comerciais, supermercados,
“polos gastronômicos”, etc. podem refletir na apropriação progressiva da renda nos
terrenos impactados. Esse fator é importante, pois demonstra uma tendência à
concentração dos investimentos.
Sobre a obsolescência, criação ou modificação de atividades humanas, há
também um caso clássico: a mudança tecnológica. Podemos ilustrar esse caso com
a transformação da atividade de carregamento e descarregamento de navios pelo
advento do container. No Rio de Janeiro, a mudança tecnológica tornou obsoleta
toda estrutura de capital fixo incorporada na região do antigo porto, transferindo a
atividade para o bairro do Caju. O abandono da atividade portuária nessa região foi
um dos fatores que influenciou o processo de franca desvalorização da terra em
uma das áreas mais centrais da cidade durante quase cinquenta anos.
As mudanças de localização relativa relacionadas às preferências da
sociedade se aplicam principalmente ao caso da habitação, ainda que outras
atividades sejam recorrentemente atraídas pela produção habitacional. Essas
mudanças podem ser causadas por mudanças externas à dinâmica produtiva dos
capitais imobiliários, como no caso de mudanças culturais. Um exemplo é a
mudança da preferência da burguesia carioca da aglomeração do centro para o
clima ameno das praias. O fato de a burguesia passar a frequentar as praias fez a
diferença. Mas essas preferencias podem também ser direcionadas por
incorporadores através de inovações, como no caso dos condomínios fechados em
áreas periféricas, onde a fonte da mudança de preferencia é a campanha publicitária
dos capitais imobiliários na valorização do novo modelo (que vende privacidade,
tranquilidade, exclusividade, etc.) e degradação dos estoques existentes
(representados em seus discursos pela violência, barulho, usos indesejados no
entorno, etc.). Mesmo que a habitação seja um exemplo mais recorrente, o interesse
da sociedade por determinadas atividades culturais, seja por modismo ou de forma
mais permanente, podem mover uma demanda considerável por comércios e
serviços diversos.
É evidente que as causas para as mudanças de localização relativa não se
encerram por aí; surtos de violência, acidentes naturais, etc., podem causar o
mesmo efeito. Além disso, os fatores não limitam um ao outro, eles podem se
combinar das mais variadas formas. Um exemplo é a combinação entre as obras de
53
urbanização, aumento da sensação de segurança aos visitantes e a gradativa
transformação das favelas em locais de visitação turística. A ampliação da demanda
que deixa de ser apenas local por determinados serviços e comércios e passa a
atender visitantes, tende a transformar o uso mais lucrativo de determinados
terrenos (lembremos que a renda é determinada pelo seu uso mais lucrativo), além
de modificar o acesso de outros terrenos a esses serviços, alterando a renda. As
dimensões relativas e relacionais da localização como atributo gerador de renda
diferencial para a terra apresentam uma dinâmica específica para a terra urbana.
Essa dinâmica como veremos a seguir será determinante nas estratégias dos
capitais imobiliários.
2.2 Sobre o mercado imobiliário29
A construção civil tem especificidades em relação ao processo produtivo de
outras mercadorias no capitalismo. Enquanto para outras mercadorias a maior parte
do capital fixo está aprisionado à terra e o capital circulante é transportado para o
mercado, no caso do capital imobiliário ocorre exatamente o oposto: o capital fixo
(barracões de obra, tratores, betoneira, ferramentas, etc.) tem que se locomover a
cada processo produtivo, se estabelecendo no local onde a mercadoria oferecida
pela construção civil (edificação) será incorporada à terra de forma inseparável. O
capital fixo é móvel e o capital circulante é imóvel na construção civil. Essa
característica específica da construção civil determina uma dinâmica para esse
setor, onde em cada processo produtivo a terra entra como meio de produção e sai
para a circulação de mercadorias. Em cada processo produtivo uma nova terra é
transformada.
Toda atividade produtiva tem necessidade de uma base espacial; portanto, todo produtor deve dispor de um poder de propriedade do solo. Segundo o caso, o solo pode ser um elemento da produção - como no caso da agricultura ou pode ser uma simples base da produção - como na maioria das indústrias, porém, a produção habitacional é o único setor para o qual cada processo produtivo implica o uso de um novo solo; ao terminar a obra a empresa construtora deve dispor de um novo terreno (TOPALOV, 1979, Apud, ABRAMO, 1988, p. 44).
Se o proprietário fundiário e o capitalista concorrem pela apropriação do mais
29 A abordagem desse subcapítulo está, em grande medida baseado na dissertação de mestrado de Pedro Abramo (1988).
54
valor produzido pelo conjunto da sociedade, para os capitais imobiliários este
confronto não aparece apenas a cada vencimento do contrato de arrendamento
como nas outras indústrias, mas a cada processo produtivo. No entanto, o confronto
entre capitalistas e proprietários fundiários, que para os outros capitais aparece
como uma barreira para o processo produtivo, para o capital imobiliário vai aparecer
como uma oportunidade para o surgimento de uma forma de ganho diferente da
extração direta de mais-valor: o ganho fundiário. Essa forma de ganho permite o
surgimento de uma fração do capital imobiliário: o capital incorporador. Dessa forma,
a atividade construtiva aparece já nesse momento, dividida em dois capitais que
exercem dois tipos ganhos diferentes. O capital industrial/construtor recebe o lucro
sobre a produção da edificação, enquanto o capital incorporador recebe a renda
decorrente da mudança de uso do solo realizada pela atividade construtiva e/ou pela
mudança na localização relativa do terreno durante o tempo de incorporação. Mas,
se a renda é o pagamento pelos rendimentos futuros de um terreno, esses
rendimentos não poderiam ser apropriados por alguém que não o proprietário, a não
ser que ele não pudesse prever todo ou parte desse rendimento futuro.
Abramo (1988) demonstra em seus esquemas analíticos como, para o capital
imobiliário, a equação de Marx D-M-D’30, se desdobra em duas equações que
indicam a atuação de duas frações diferenciadas do capital: o capital construtor, que
opera com o processo industrial clássico D-M-D’ e o capital incorporador, que opera
com a mudança de uso do solo, resultando em D-T-MU-T’-D’, onde “T” representa a
terra e MU a mudança de uso.
O incorporador-promotor dispõe de capital monetário (DI), do qual uma parte será imobilizado na aquisição do terreno (T). De posse do direito de uso do solo, os incorporadores redefinirão este uso através da produção de um edifício (E). Os capitais construtores serão contratados para produzirem o edifício, mas somente poderão produzi-lo se os incorporadores colocarem o terreno a sua disposição. Liberado o terreno, os construtores transformarão seu capital dinheiro (DC) em força de trabalho e meios de produção como o processo de produção do edifício foi encomendado pelos incorporadores, serão estes a efetuarem a transformação de (E) em sua expressão monetária (D’C), ou seja, uma parte do capital adiantado pelos incorporadores (DI) assumirá a forma de (D’C).
De posse do edifício e seu suporte terra transformado (E+T’), (imóvel), o
30 Que pode ser desdobrada em D-MP+FT-P-M’-D’ onde o capitalista aplica o dinheiro inicial (D) em meios de produção (MP) e força de trabalho (FT), seguido do processo de produção (P) que resulta na mercadoria M’, que será por fim vendido por um D’, onde a diferença entre D e D’ corresponde ao mais-valor extraído do processo produtivo. Ver Marx (2013 [1867]).
55
incorporador procurará realizar a passagem para sua expressão monetária (D’I) onde D’I>DI. (ABRAMO, 1988, p. 49 e 50).
O processo de mudança de uso operado pelo capital incorporador passa
necessariamente por uma operação de edificação envolvendo, portanto, a atuação
dos capitais construtores. Contudo, são os incorporadores que assumirão o “controle
econômico” do processo de produção da moradia, “definindo as características da
mercadoria produzida, sua demanda potencial, estratégias de realização (venda),
localização, etc. enquanto os capitais construtores irão deter o ‘controle técnico da
produção’” (ABRAMO, 1988, p. 46 e 47). O poder sobre a definição das
características do produto é fundamental, pois sua mercadoria é imóvel, o que faz
com que incorpore as externalidades de seu entorno e produza relativa rigidez na
estrutura espacial. “A particularidade do capital incorporador é então determinada
por sua prática de ‘definir o produto certo para o lugar certo no momento certo’”
(ABRAMO, 1988, p. 47). A partir desse controle, esse capital busca definir uma
estratégia em que o produto incorpore as vantagens locacionais de forma mais
significativa. Essas vantagens se expressarão como rendas fundiárias, maximizando
as possibilidades de gerar ganhos excepcionais31. Os capitais construtores, nos
processos que envolvem a incorporação, não têm autonomia sobre as decisões de
produzir, dependendo das decisões dos capitais incorporadores em operarem
mudanças de uso do solo. Isso tem grande importância, pois se os incorporadores
comandam o processo de produção imobiliária, essa produção tende a ser
direcionada prioritariamente para as áreas e uso do solo que garantam a maior
geração da renda fundiária.
O alto valor e o longo processo produtivo habitacional e, ainda, o alto valor do
produto final moradia, tornam necessário o aparecimento de uma terceira fração do
capital: o capital de circulação. Esse capital financia uma parte do volume inicial da
forma dinheiro das outras frações de capital envolvidas e, como contrapartida, se
apropria de uma parcela do ganho de incorporação e construção que aparecerá na
forma de juros. Como o valor individual do produto moradia supera em muito o valor
individual dos rendimentos de sua demanda potencial, o credor também se torna
31 A decisão de investir do capital incorporador acontece em um contexto que Abramo (2007b) nomeou de “incerteza urbana radical”, ou seja, assume um caráter de aposta que pode ser ou não sancionada pelo mercado. Logan e Molotch (1987) demonstram como, para diminuir a incerteza os capitais imobiliários muitas vezes intervêm ativamente nas decisões do Estado. Parte do trabalho de Abramo (1988) está dedicado a demonstrar que a ação coordenada dos incorporadores podem causar o mesmo efeito.
56
necessário no momento da circulação do produto, pois a transformação do capital
mercadoria em capital dinheiro, no geral, se realiza ao longo da vida útil da
edificação (ABRAMO, 1988, p. 50).
O capital de circulação assume duas formas: o capital imobiliário rentista e o
capital de empréstimo, que, por sua vez, se articulam com as duas formas de
circulação: o aluguel e o acesso à propriedade (ABRAMO, 1988, p. 50 e 51).
Por mais que o incorporador possa assumir o controle sobre os ganhos de
comercialização e ganhos fundiários, podemos identificar duas frações distintas do
capital, uma que aufere ganhos pela mudança de uso do solo e apropriação de
externalidades e outro que aufere ganhos da comercialização de mercadorias, ou
seja, da transformação de M’ em D’.
Finalizamos o círculo imobiliário com a participação de quatro frações do
capital com suas formas de ganho distintas: 1) o capital industrial-construtor que
aufere ganhos industriais (lucro); 2) o capital comercial que aufere ganhos
comerciais; 3) o capital de circulação que aufere ganhos financeiros (juros); e 4) o
capital incorporador que aufere ganhos fundiários (renda). O incorporador, por
exercer um papel coordenador do processo produtivo, pode, em diversos momentos,
se apropriar de ganhos de outra natureza.
O ganho industrial apresenta a forma clássica da produção de valor e está
sujeita à mesma dinâmica apresentada anteriormente: a apropriação direta de mais-
valor. Dessa forma, o ganho industrial é determinado pela taxa média de lucro da
sociedade sobre o capital adiantado, podendo se apropriar de lucros extraordinários
de duas formas: por inovações tecnológicas ou pela apropriação de vantagens
oferecidas pela terra para a produção32 (sem abrir mão de formas de acumulação
primitiva como intensificação e extensão do trabalho, sub-remuneração, etc.). O fato
de o processo produtivo ser contratado e controlado pelo incorporador permite a
esse agente, em determinados momentos, apropriar-se de ganhos provenientes de
inovações aplicadas pelo capital industrial construtor. O ganho comercial surge da
especialização do capital comercial na aceleração da transformação da mercadoria
(M’) em dinheiro (D’). O retorno à liquidez no processo produtivo permite o
reinvestimento reiniciando o processo. A aceleração da circulação da mercadoria
32 É importante chamar a atenção que o capital industrial só pode se apropriar de vantagens oferecidas pela terra se essas vantagens aumentarem a produtividade da atividade construtiva e se essas vantagens, não puderem ser previstas pelo capital incorporador que comanda o processo.
57
permite o encurtamento temporal do ciclo dos capitais, favorecendo a acumulação.
O ganho comercial normal será determinado pelo tempo normal de circulação e, se
o empreendimento for vendido em um tempo inferior, surgem ganhos
extraordinários. Porém, o tempo pode mudar os qualificativos de uma edificação,
como, por exemplo, por meio de melhorias de infraestrutura, construção de
equipamentos públicos ou privados, etc. Como o incorporador tem o poder de
comando sobre os outros capitais imobiliários, se o ganho fundiário da venda em um
momento futuro for maior do que o ganho comercial da venda imediata, o capital
incorporador pode retirar as mercadorias de circulação até o momento em que
considerar mais vantajoso. No fim, o poder de coordenação do capital incorporador
permitirá o controle do tempo dos outros capitais a fim de aumentar os seus ganhos.
Os ganhos financeiros se dão pelo diferencial entre a taxa de juros ofertada na
capitação dos recursos e em sua aplicação. Essa forma de ganho aparece em dois
momentos diferentes, na mudança de uso33 e na realização da mercadoria. No
primeiro momento, se configura uma operação de curto ou médio prazo, e, no
segundo, uma operação financeira de longo prazo. Sobre os ganhos fundiários,
como já indicamos, a luta entre proprietário fundiário e comprador ou arrendatário
pela renda, se dará pela capacidade de previsão/realização desses ganhos. No
momento da venda o proprietário buscará cobrar o preço referente ao uso mais
lucrativo para o terreno que ele consegue prever. Se o incorporador conseguir
realizar um empreendimento mais lucrativo que o previsto pelo proprietário (seja se
apropriando de externalidades ou pela mudança de uso empreendida, ou mesmo
pela previsão de modificações futuras) ele poderá se apropriar da diferença entre o
previsto e o realizado. Sendo assim, a possibilidade de apropriação da renda
fundiária pelo incorporador, dependerá da incapacidade de o proprietário prever o
uso mais lucrativo (além de todas as formas coercitivas econômicas ou extra
econômicas). Porém, o capital incorporador tende a estabelecer uma taxa de lucro
mínima de viabilidade para realizar a mudança de uso do solo. Como em grande
parte dos casos a renda futura que estabelece o preço mais alto necessita da ação
dos capitais imobiliários articulados pela figura do incorporador na transformação do
uso do solo, o proprietário fundiário está coagido a abrir mão de parte da renda para
realizar a outra parte. Dessa forma, na transação entre proprietário e incorporador,
33 Financiamento para o incorporador na compra do terreno e financiamento para o capital industrial construtor para a aquisição de meios de produção e força de trabalho.
58
parte da renda se encontra em disputa entre proprietário e incorporador, mas outra
parte deve estar reservada para o incorporador para garantir a transação entre
proprietário e incorporador e a realização da renda (ABRAMO, 1988, p. 56-97).
A renda fundiária, que será disputada entre proprietário fundiário e o
capitalista incorporador, apresenta, além das formas apresentadas anteriormente,
duas formas adequadas à análise da dimensão temporal das rendas: a renda
fundiária real e a renda fundiária prevista. Do ponto de vista do proprietário
vendedor, os ganhos provenientes da compra e da venda do terreno (D-M-D’)
aparecem sob duas formas: a diferença entre a renda prevista pelo proprietário
anterior e a renda real proveniente das mudanças ocorridas no tempo em que
manteve os direitos sobre a terra somada à renda prevista no momento da venda34
(ABRAMO, 1988, p. 99). Do ponto de vista do incorporador, a dinâmica é a mesma,
porém a transformação da renda prevista no início do processo em renda real deve
acontecer a curto ou médio prazo. O incorporador é ativo no processo de
transformação e, para esse agente, o processo só faz sentido na medida em que ele
aufere ganhos fundiários, enquanto para o proprietário as motivações são múltiplas.
Nessas condições, o capital incorporador atua prioritariamente em áreas onde
podem alterar os padrões de ocupação e com baixo poder de previsão dos
proprietários com relação às rendas futuras.
Como o capital incorporador comanda o processo de produção da habitação,
as formas de atuação do capital imobiliário serão definidas por um conjunto
complexo de interesses que é direcionado prioritariamente pela busca de ganhos
fundiários extraordinários. Partindo da natureza dos ganhos fundiários e do poder de
comando do capital incorporador, Abramo (1988) monta um esquema analítico, onde
o processo de transformação de determinada área abre um campo de atuação para
o capital imobiliário, onde seria possível auferir ganhos fundiários extraordinários, e
sua atuação seria limitada pelo crescente poder de previsão das rendas futuras dos
proprietários dessa mesma área. O poder de previsão dos proprietários é dado pelo
grau de consolidação da área. Abramo denomina “ciclo de vida” o período entre o 34 A renda prevista na primeira transação não precisa ser completamente realizada, ou completamente transformada em renda real, ela pode continuar sendo, em parte ou por completo, renda prevista. Para o proprietário vendedor obter ganho fundiário, basta que a renda prevista somada a renda real na segunda transação seja maior que a renda prevista somada a renda real na primeira. Dessa forma, mesmo que a renda prevista na primeira transação seja superior à renda real na segunda, o proprietário vendedor ainda pode obter ganhos, mas quanto maior a relação entre renda prevista e renda real no segundo momento, mais o vendedor vai depender de sua capacidade de previsão para obter ganhos.
59
início da transição e a consolidação da transformação empreendida na área. A partir
do momento de consolidação, os ganhos fundiários seriam limitados aos ganhos
normais, com esporádicas possibilidades de ganhos extraordinários provenientes de
transformações em outras áreas, mas esse tipo de ganho extraordinário é bem mais
limitado. Para Abramo, o capital imobiliário tem papel ativo no deslocamento da
demanda. Esse papel ativo se dá pela necessidade de transformar constantemente
diferentes áreas da cidade para auferir ganhos fundiários extraordinários. Dessa
forma, a cidade deveria ser analisada, não de forma estática, mas dinâmica, onde
cada área se encontra em um ponto diferenciado do “ciclo de vida” e cada um
desses ciclos modifica permanentemente os mapas de acessibilidade da cidade. A
dinâmica do capital imobiliário se apresenta como um movimento constante de
homogeneização-heterogeneização dos estoques imobiliários, onde a difusão de
uma forma específica do produto moradia indica um processo de homogeneização,
permeado por inovações que diferenciam os novos estoques dos antigos e
deterioram “moralmente” a produção anterior (ABRAMO, 1988, p. 97-180).
Abramo descreve a estrutura interna do capital imobiliário e um padrão de
ação coordenada, mas há importantes agentes que não se apresentam como
compradores ou vendedores, e que influenciam na distribuição das rendas fundiárias
e devemos considerar que o capital imobiliário considera esses agentes e suas
formas de atuação na formulação de suas estratégias. Para a inclusão desses
agentes, mais a frente lançaremos mão das leituras de Logan e Molotch (1987) e
Davis (2009 [1990]).
Não pretendemos nos aprofundar mais no padrão de transformação da cidade
empreendida pelo capital imobiliário, pois o objetivo aqui é encontrar aspectos da
natureza do mercado imobiliário que deem suporte para a análise da sua dinâmica
nas favelas. As duas formas que ganham importância na leitura de Abramo sobre as
estratégias dos capitais incorporadores são: a atuação coordenada do capital
incorporador na mudança de uso do solo de determinada área e a inovação através
do investimento em novas formas de morar. Nesses casos, um capitalista do setor
imobiliário pode atuar isoladamente “puxando” outros capitalistas que buscarão
aplicar a mesma inovação. Porém, na prática, o capital imobiliário tem outras formas
de atuação que não podem ser explicadas apenas pela livre concorrência entre
capitais ou entre capitalistas do mesmo setor. Há importantes agentes que não se
apresentam nessa relação estrita e que influenciam na distribuição das rendas
60
fundiárias, como o Estado, e devemos considerar que o capital imobiliário interage
com esses agentes e processos. O próprio Abramo, que não se propõe a fazer uma
análise detida do papel do Estado no mercado imobiliário, destaca sua importância.
Quando o autor expõe as formas de ganho fundiário extraordinário, o Estado
aparece de forma ativa em duas das três formas apresentadas pelo autor.
O ganho fundiário aparecerá sob a forma de sobrelucro de urbanização se a mudança de uso for da ocupação agrícola para urbana, o ganho assumirá a forma de sobrelucro de antecipação se as mudanças forem entre usos urbanos, com a intervenção do Estado modificando o ambiente construído e/ou as normas da legislação urbanística e, se a mudança de uso alterar o ambiente construído a partir da ação transformadora do incorporador, a forma do ganho imobiliário fundiário será a de sobrelucro de inovação comercial (ABRAMO, 1988, p. 103 e 104).
Vemos que na classificação de Abramo dos sobrelucros fundiários, no caso
do sobrelucro de urbanização e de antecipação, o sobrelucro é diretamente ligado à
ação do Estado e, no sobrelucro de inovação, essa relação pode ser direta ou
indireta. Se o Estado aparece como agente ativo da mudança da distribuição das
rendas fundiárias, a atividade do Estado é elemento chave para a previsão das
rendas futuras. Dessa forma, o Estado é um componente de grande importância a
ser incorporado na nossa analise. Outro fato importante é que, se a renda da terra é
influenciada por aspectos sociais e culturais, as mudanças de preferência podem ser
induzidas e exercerão forte influência sobre o mercado imobiliário. A valorização ou
depreciação dos espaços por esse mecanismo pode ser exercida pelo Estado ou
instituições privadas, como a mídia. O terceiro componente a ser incorporado são as
formas de acumulação primitiva (MARX, 2013 [1867]) que percorrem toda a história
do capitalismo e se apresentam de forma estratégica no mercado de terras urbano.
Outro fator importante é a luta entre incorporadores e proprietários de terras. Nem
sempre o uso mais lucrativo da terra coincide com seu uso mais nobre. Por vezes, a
intensificação do uso do solo, por exemplo, pode acirrar os conflitos entre
proprietários ricos e incorporadores. O Estado aparece, dessa forma, não apenas
como o agente que promove a valorização da terra a ser incorporada pelos
incorporadores, mas também um defensor do modo de vida dos proprietários. Mas
os proprietários também buscam defender o valor de suas propriedades. Eles
recorrem frequentemente ao Estado, pois as formas que podem surgir como
negativas para o valor da propriedade, de forma geral, são de administração do
61
poder público, como riscos naturais, violência ou a presença da população pobre no
entorno. Dessa forma, a população com maior poder político tende a atrair os
investimentos do Estado na defesa do valor de suas propriedades (DAVIS, 2009
[1990]).
O agente mais essencial nas estratégias dos agentes do mercado imobiliário
é o Estado. O papel mais fundamental do Estado para a formação de um mercado
imobiliário, chamam a atenção Logan e Molotch (1987, p. 27), é a garantia do direito
de monopólio de uso sobre uma porção específica do globo. Mas o papel do Estado
não se limita a isso. É preciso lembrar que o mercado imobiliário é muito mais
regulado se comparado à produção de mercadorias em geral e o Estado é um
componente importante na produção do espaço urbano. O Estado, dessa forma,
pode redistribuir a renda urbana por mudança da regulamentação, redistribuição de
serviços ou incorporação de trabalho a terra, ou seja, na alocação direta de recursos
do conjunto da sociedade na terra urbana. Esse componente da atuação do Estado
já foi trabalhado ao longo do texto. O importante aqui é chamar a atenção para a
tendência do Estado, como regulador e importante produtor de espaço
(infraestruturas, serviços, atividades culturais, etc.), para criar as bases mais
adequadas à acumulação de capital. Logan e Molotch (1987), através da alegoria da
máquina de crescimento fazem uma caracterização dos diversos usuários da cidade
e seus interesses específicos no crescimento urbano. Demonstram que, apesar do
crescimento levar com frequência ao aumento do custo e piora das condições de
vida (poluição, desemprego, violência, etc.), todos esses usuários têm motivos
(relacionados à ampliação de poder político, dos seus negócios ou do valor de suas
propriedades) para defender o crescimento. Agentes cruciais como o Estado ou a
mídia são essenciais para a construção do que os autores chamaram de consenso
pelo crescimento. Davis (2009 [1990]), como contraponto, apresenta os movimentos
de Los Angeles pelo crescimento lento. O estudo é importante aqui porque os
usuários da cidade frequentemente reagem ao crescimento ao tentarem manter os
seus modos de vida. A remoção e outras formas de acumulação primitiva são uma
alternativa frequente para derrubar esse tipo de barreira, mas Davis vai tratar em
especial dos subúrbios enriquecidos de Los Angeles, onde essa contradição
aparece como um problema de mais difícil resolução para políticos locais. Davis
(2009 [1990]) demonstra como a defesa do valor das propriedades e da “utopia
burguesa” - “criação de enclaves econômica e racialmente homogêneos glorificando
62
a moradia de família individual” (DAVIS, 2009 [1990], p. 187 e 188) -, põem em
conflito proprietários fundiários entre si e o capital imobiliário com proprietários
fundiários. O conflito entre proprietários fundiários aparece na redefinição de limites
dentro da cidade. Se tivermos, por exemplo, dentro de um mesmo bairro, áreas com
valores imobiliários diferenciados, a divisão desse bairro poderia redistribuir os
valores favorecendo a área mais cara em detrimento do restante (Cf. DAVIS, 2009
[1990], p. 168-176)35. O conflito entre proprietários fundiários e incorporadores está
relacionado à manutenção da “utopia burguesa” e a defesa do valor da unidade
habitacional. A ação dos capitais imobiliários na promoção da aceleração do
crescimento, com frequência significa a intensificação do uso do solo, o que resulta
que, por mais que o valor do solo tenda a crescer, o padrão habitacional tende a
diminuir nas áreas abastadas de subúrbio, e o senso burguês de comunidade
apontado por Davis tende a desaparecer.
Logan e Molotch (1987) nos propõem também dar maior atenção aos
proprietários fundiários, dessa forma, classificam os “empresários da terra” em três
tipos: empreendedores acidentais, são os que se tornaram coletores de renda por
herança ou outras condições fortuitas, são agentes essencialmente passivos;
empresários ativos, compradores de terra que especulam sobre o futuro, buscam a
renda em lugares estratégicos e buscam antecipar as tendências de
desenvolvimento; e os especuladores estruturais, que não apenas antecipam o
futuro, mas o fazem sobre sua própria capacidade de intervenção na preferência da
demanda e nas decisões governamentais (lobby) (LOGAN; MOLOTCH, 1987, p. 23-
28). As categorias desenvolvidas por Logan e Molotch são importantes para chamar
a atenção à possibilidade dos proprietários de terra assumirem um papel ativo
mesmo perante o capital imobiliário. No entanto, podemos considerar essas
categorias, não de forma estanque, enquadrando determinados indivíduos em uma
categoria específica, mas de forma dinâmica, onde cada uma das categorias é parte
do comportamento dos proprietários fundiários em geral, a depender da conjuntura e
sua capacidade de atuação. Por exemplo, um “empresário acidental” pode mover
recursos contra uma intervenção estatal que ameace o valor de sua propriedade.
Para nós, basta a ideia que o proprietário fundiário tende a usar os meios ao
35 Davis mostra que parte dos moradores de Canoga Park fizeram uma petição para renomear a área onde moram como West Hills, o boato era que se suas residências 400 mil dólares fossem separadas na designação oficial das outras de 200 mil dólares, o valor de suas residências aumentaria automaticamente em 20 mil dólares.
63
seu alcance para defender o valor de suas propriedades e tem um papel ativo na
estruturação das cidades, e que esses meios, com frequência, incluem a previsão da
atuação do mercado imobiliário e do Estado e a influência direta sobre as decisões
dos poderes de Estado.
É necessário, principalmente se vamos falar de favelas, dar uma atenção
maior aos agentes e dinâmicas que estruturam a produção do espaço. A
concorrência entre proprietários fundiários, entre capitalistas, entre capitalistas e
proprietários, os agentes centralizadores das decisões políticas e a estruturação de
poder são aspectos importantes dessa dinâmica.
2.3 Periferia, informalidade, zonas de exceção e espaços
cinzentos36
Ananya Roy, em seu artigo “Slumdog cities: rethinking Subaltern Urbanism”,
busca romper com o caráter estanque e topológico das categorias que qualifica
como “metonímias do subdesenvolvimento”, das quais enumera: “megacidade, a
favela, a política de massa e o habitus dos despossuídos”. Para isso, a autora utiliza
as categorias de periferia (SIMONE, 2010; HOLSTON e CALDEIRA, 2008),
informalidade (ROY; ALSAYYAD, 2004), zonas de exceção (ONG, 2006) e espaços
cinzentos (YIFTACHEL, 2011). Esses conceitos funcionariam, segundo a autora,
como “pontos de fuga” que, apesar de inalcançáveis, podem servir para
deslocarmos o ponto de vista e chegarmos a uma visão mais apropriada do objeto.
Para a autora, cada categoria funciona como um “exterior constitutivo”, ou seja, são
categorias de fora e que se aplicam para muito além da favela, mas que também
são determinantes constitutivos da favela.
Para a autora, periferia é uma categoria que assume um caráter multivalente
e se refere tanto às cidades que se encontram às margens da “teoria urbana”, como
ao nunca inserido nas trajetórias de desenvolvimento que caracterizam o centro
(ROY, 2017, p. 15). Nessa concepção, periferia não é um lugar, mas “fraturas” ou
“dobradiças” disseminadas pelo espaço urbano. Informalidade para Roy, não se
restringe às favelas e ao trabalho desproletarizado/empreendedor, mas é um modo
de produzir o espaço que conecta favela e subúrbio. Ao mesmo tempo, esse modo
de produzir o espaço não se restringe ao mundo dos pobres. Ricos e pobres 36 A abordagem desse subcapítulo está, em grande medida baseado em artigo de Ananya Roy (2017).
64
produzem informalidade, no entanto, o poder político os distingue ao atender apenas
as exigências por “infraestrutura, serviços e legitimidade” dos mais ricos (ROY, 2017,
p. 16). A autora destaca a arbitrariedade com que o Estado trata a relação
cambiante entre o formal e informal, o que confere à informalidade um caráter
heurístico (ROY, 2017, p. 16 e 17). As zonas de exceção são fragmentações
espaciais orientadas pelo Estado. Essa fragmentação possibilita o emprego desigual
do poder estatal (ROY, 2017, p. 17). Os espaços cinzentos são caracterizados por
serem potencialmente legalizado/aprovado/assegurado e potencialmente
despejado/destruído/morto. O espaço cinza evidencia a arbitrariedade do poder
estatal. Esses espaços também podem ser mantidos e tolerados como espaços
cinzentos, mas apenas “enquanto encarcerados dentro de discursos de
‘contaminação’, ‘criminalidade’ e ‘ameaça pública’ para a desejada ‘ordem das
coisas’” (YIFTACHEL, 2009, p. 89, Apud, ROY, 2017, p. 18).
Mas como podemos trabalhar a favela nesse arcabouço categorial? Segundo
Roy (2017), apesar de Simone (2010) caracterizar a zona entre o rural e o urbano
como uma periferia, o seu significado não topológico parece mais interessante, o
que se confirma para o nosso estudo. Dessa forma, a favela não se apresenta como
a periferia de uma cidade partida, dicotômica, mas as favelas podem apresentar
níveis diferentes de acesso a serviços, às instituições de Estado ou na maior ou
menor capacidade de interferência em disputas políticas. Ao mesmo tempo, os
indivíduos ou grupos no interior das favelas apresentam níveis diferentes de
inserção no que poderíamos considerar o centro da sociedade e da sociabilidade.
Essa configuração, onde surge uma diferenciação intra e inter favelas, nos permite
complexificar o problema. Podemos considerar que alguns estratos mais altos de
determinadas favelas ocupam um espaço mais central na sociedade que estratos
mais baixos do restante da cidade, ainda que essa não seja a regra.
Sobre a informalidade, podemos fazer um paralelo com a irregularidade
urbanística e fundiária trabalhada por Adauto Lúcio Cardoso (2003) em pesquisa
sobre o município do Rio de Janeiro37. O autor complexifica a dicotomia entre regular
37 A pesquisa conduzida por Adauto Cardoso no início dos anos 2000 tinha como universo, diversos tipos de processo em tramitação na Secretaria Municipal de Urbanismo da Prefeitura do Rio de Janeiro (SMU/PCRJ) que permitiram a caracterização de diferentes situações de irregularidade (fundiária, documental, urbanística, edilícia, etc.). Como as situações localizadas em favela apenas muito raramente geram algum tipo de processo administrativo na SMU, as irregularidades observadas referem-se a situações observadas na produção de loteamentos irregulares ou clandestinos e, também, nas áreas caracterizadas como parte da cidade “formal”.
65
e irregular apresentando uma série de situações de irregularidade. Segundo o autor:
A partir da literatura existente e dos resultados da pesquisa pode-se sugerir a existência dos seguintes tipos: 1 A irregularidade da propriedade da terra ou do imóvel como resultado de processos de ocupação de terra ou de ocupação de imóveis construídos; 2 A irregularidade parcial ou inadequação da documentação de propriedade existente que não configure processos de ocupação, mas que apresentam problemas de registro ou assemelhados; 3 A irregularidade de processos de produção de loteamentos (diferenciando-se os clandestinos – aqueles que não contam com processo de licenciamento na Prefeitura; e irregulares – aqueles que apresentam problemas na tramitação do processo de licenciamento, sem conclusão efetiva); 4 A irregularidade da edificação, por sua inadequação à legislação urbanística (e que também pode ser diferenciada entre edificações clandestinas – aquelas que não contam com processo de licenciamento na Prefeitura; e irregulares – aquelas que apresentam problemas na tramitação do processo de licenciamento, sem conclusão efetiva); 5 Um outro tipo, complementar, refere-se aos casos de superposição dos diferentes tipos de irregularidade, fundiárias e edilícias (CARDOSO, 2003, p. 11 e 12)38.
Segundo o autor, em 70% da irregularidade analisada o fator que a define é a
falta de licença. Para o autor, isso significa que a maior parte da irregularidade se dá
por falta de conhecimento do poder público pela população e falta de capacidade de
enforcement da legislação. Ou seja, a deslegitimação do poder público, encorajada
pela impunidade, configura um quadro quase geral de irregularidade.
Dessa forma, a informalidade urbana não é uma exclusividade das favelas
ainda que somemos a elas os loteamentos clandestinos. A informalidade permeia
todos os estratos da sociedade. Sendo assim, ainda que a informalidade seja em
parte explicativa da condição das favelas as áreas informais não necessariamente
são favelas. Há uma ampla variedade de situações de informalidade.
Outro elemento interessante trazido por Roy é que a relação entre
informalidade e formalidade é sempre cambiante e tem um fator de arbitrariedade.
Para a autora a informalidade é um lugar indefinido entre a legitimação e a
criminalização, sendo assim, o poder político define se tratará a área informal no
sentido da legitimação ou da criminalização. Segundo a autora:
A urbanização informal é tanto a competência dos citadinos ricos quanto dos favelados. Essas formas de informalidade urbana – das casas de campo de Delhi e das novas cidades de Calcutá aos shoppings de Mumbai – não são mais legais do que a favela metonímica. Mas elas são
38 Segundo o autor, os números alarmantes de informalidade se dão em parte pela indiferenciação entre os diferentes casos e a consequente indiferenciação do peso dado para cada tipo de caso.
66
expressões de poder de classe e, portanto, podem exigir infraestrutura, serviços e legitimidade. Mais importante, elas são designadas como “formais” pelo Estado, enquanto outras formas de informalidade continuam sendo criminalizadas (ROY, 2017, p. 16).
Segundo Roy (2017), para Ong (2006) as zonas de exceção são
fragmentações do espaço urbano que permitem o emprego desigual do poder
estatal. Sendo assim, a formação de zonas de exceção pode criar desde espaços de
privilégio até espaços criminalizados. O exemplo mais comum da formação de zonas
de exceção está no zoneamento funcional moderno, mas podemos considerar ainda
como um exemplo o espaço privilegiado de investimento intensivo pelo Estado
formado pelas Operações Urbanas Consorciadas (OUCs). No entanto, o que nos
importa aqui é o outro lado da formação de zonas de exceção. Para as favelas do
Rio de Janeiro, por exemplo, podemos pensar nas Áreas de Especial Interesse
Social (AEIS). Apesar dessa forma de zoneamento ser frequentemente defendida
como forma de democratização do acesso à terra, de legitimação das formas de
morar encontradas na favelas e de criação de barreiras para a atividade predatória
do capital imobiliário, ela assume, via flexibilização dos parâmetros urbanísticos, que
aquela população pode viver sob parâmetros de qualidade ambiental abaixo do
presente no restante da cidade. É também comum que a regulamentação de AIES
estabeleça parâmetros urbanísticos e normas mais restritivos que na cidade formal,
como o congelamento da produção habitacional ou a proibição de remembramento,
o que impediria a entrada de investidores mais ricos, mas isso, contraditoriamente
pode, em grande medida, impedir a melhoria dos espaços internos das habitações,
visto que alguns lotes com muito pouca área necessitam de remembramento para a
melhoria dos espaços internos e que a proibição da produção de novas unidades
pode gerar subdivisões internas para suprir necessidades familiares ou
complementar rendimento via aluguel.
Podemos dar diversos exemplos da criação de zonas de exceção para os
espaços de favelas e nem sempre elas envolvem a forma tradicional de
zoneamento, como os mandados de busca coletivos, a proibição de alugueis em
favelas pelo código de obras de 1937 (Decreto Municipal n° 6000 de 1º de julho de
1937), entre outros. No entanto, podemos chamar a atenção que o próprio status de
favela, ou seja, o fato de o Estado caracterizar como favela ou aglomerados
subnormais - entre outras denominações - determinadas partes da cidade, já indica
um tratamento diferenciado. A diferença da atuação do Estado na resolução de
67
situações de risco (por exemplo, deslizamentos de encostas) na área formal onde o
risco é extinto (contenção de encosta) e nas favelas onde, com frequência, as
edificações ameaçadas são removidas é um dos exemplos mais claros das
implicações da definição de uma determinada área como favela.
Segundo Roy (2017), a categoria espaços cinzentos atravessa as outras
categorias. É essa categoria que evidencia a flexibilidade do poder do Estado sobre
os espaços. Yiftachel (2009) está interessado em compreender como os espaços
cinzentos podem caminhar para a legitimação ou destruição total e observa que,
apesar de parte importante das irregularidades serem relacionadas à construção de
edificações de alto padrão, as ameaças de remoção atingem apenas espaços
empobrecidos e criminalizados.
Quando desenvolvemos alguns argumentos sobre a informalidade,
chamamos a atenção para a arbitrariedade apontada por Roy (2017) que definiria
sobre a criminalização ou legitimação do espaço informal/irregular. Não podemos
considerar, no entanto, essa arbitrariedade como uma autocracia desvinculada das
condições materiais que a envolvem. Por exemplo, o processo histórico de
criminalização da classe trabalhadora, dos pobres urbanos, dos negros, dos
favelados é fator fundamental da constituição de uma política permanente de
remoções. Já a mesma política para áreas ricas ou de classe média (mesmo que
irregulares) seria inimaginável. Dessa forma, um governo ou o bloco dominante
inserido no governo define de forma arbitrária sobre diversos assuntos, porém
limitado às possibilidades sócio-historicamente constituídas.
No entanto, consideramos importante também refletir sobre como pode ser
importante a manutenção de espaços cinzentos, sem legitimá-los completamente e
sem destruí-los completamente. Após mais de um século de criminalização, as
favelas permanecem, mesmo com as diversas investidas remocionistas. Isso indica
que a favela não é apenas uma forma de resistência ou um problema de gestão e
planejamento, mas está ligada de forma visceral à urbanização e à forma de
desenvolvimento do capitalismo brasileiro. É uma necessidade que se desenvolve
de formas diversas nos diferentes países do capitalismo periférico.
2.4 A favela como categoria
Falar sobre favelas acarreta já a princípio um problema conceitual que tem
68
gerado bastante debate no meio acadêmico (MACHADO DA SILVA, 2016 [1967];
SILVA, 2009; LEITÃO, 2009; SOUZA E SILVA, 2012; VALLADARES, 2005;
GONÇALVES, 2013). Para Maria Laís Pereira da Silva, o conceito de favela na sua
história tem sido “‘escondido’ ou ‘escamoteado’ por uma série de representações,
imagens e estigmas” (2009, p. 30) que dificultam um olhar mais adequado sobre a
questão. Nossa intenção aqui não é construir um conceito de favela, muito menos
esgotar essa discussão, mas podemos aqui identificar alguns desses estigmas,
mesmo sem nos aprofundarmos nas suas construções históricas, apenas para
questioná-los em seguida. Trata-se aqui de produzir um delineamento mínimo do
objeto de pesquisa apresentando alguns pressupostos que conduzem a análise.
2.4.1 Das caracterizações correntes à sua crítica
Jailson de Souza e Silva (2012, p. 8) nos mostra que a definição oficial trata a
favela primordialmente através da ideia de precariedade. O autor chama a atenção
que, por exemplo, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)39
estabelece que o “aglomerado subnormal”40 é um:
Conjunto constituído por no mínimo 51 unidades habitacionais (barracos, casas etc.), ocupando – ou tendo ocupado – até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular); dispostas, em geral, de forma desordenada e densa; e carentes, em sua maioria, de serviços públicos e essenciais41.
A definição do Instituto Pereira Passos (IPP)42 também aborda a favela pela
precariedade, tratando-a como uma:
Área predominantemente habitacional, caracterizada por ocupação clandestina e de baixa renda, precariedade da infraestrutura urbana e de serviços públicos, vias estreitas e alinhamento irregular, ausência de parcelamento formal e vínculos de propriedade e construções não licenciadas, em desacordo com os padrões legais vigentes43.
Na definição oficial, a precariedade aparece tanto como característica das
39 O IBGE é o órgão federal responsável pelo Censo Demográfico e principal provedor de dados e informações do Brasil (https://www.ibge.gov.br/). 40 Denominação institucional dada às favelas. 41 http://censo2010.ibge.gov.br/materiais/guia-do-censo/glossario.html 42 O IPP é uma autarquia criada no âmbito do poder executivo municipal que tem, entre outras atribuições, a sistematização, produção e disponibilização de dados sobre o Município do Rio de Janeiro (http://www.rio.rj.gov.br/web/ipp). 43 http://www.rio.rj.gov.br/web/ipp/exibeconteudo?id=4782931
69
unidades habitacionais, como decorrente da falta de serviços básicos. Além da ideia
de precariedade já exposta por Souza e Silva, as definições apresentadas ainda
revelam outros aspectos importantes, sejam elas: a ilegalidade da terra, a densidade
habitacional, a “desordem” do aspecto morfológico e a predominância habitacional
de baixa renda.
Outra representação dominante da favela é apresentada no Programa de
Integração de Assentamentos Precários Informais – Morar Carioca, definido pelo
Instituto de Arquitetos do Brasil, núcleo do Rio de Janeiro (IAB-RJ)44, da seguinte
maneira:
O Programa de Integração de Assentamentos Precários Informais – Morar Carioca foi concebido para integrar-se ao Plano Municipal de Habitação de Interesse Social do qual será instrumento de regularização urbanística e fundiária, articulado a ações que contribuam para a integração efetiva dos assentamentos atendidos, em consonância com o disposto no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Sustentável do Município do Rio de Janeiro45.
Aqui aparece uma questão fundamental estruturante do senso comum e das
intervenções do poder público: o paradigma da integração. A noção de integração
pressupõe que a favela é um território a parte da sociedade global46, assim como as
pessoas que lá vivem. Da mesma forma que a integração, a urbanização de favelas
também pressupõe que algo é necessário para que a favela se torne urbe, se torne
cidade. Aparentemente, a “solução” para a “integração” necessária passaria
prioritariamente pelo tratamento morfológico e infraestrutural das favelas. É uma
constante no discurso institucional a questão das favelas ser vinculada a um suposto
abandono histórico do Estado que deve ser compensado.
A percepção de que o Estado não está presente nas favelas não aparece
apenas nos discursos que enfatizam a precariedade infraestrutural e construtiva,
mas também nos que identificam a favela como um lugar onde o crime se
desenvolve de uma forma específica. Ideia também presente no discurso
institucional. Segundo o site da Unidade de Polícia Pacificadora do Rio de Janeiro
(UPP-RJ), o programa visa a “retomada” do território.
44 Organizador do concurso que selecionou os escritórios que se responsabilizaram por desenvolver os projetos urbanos referentes ao programa. 45 http://www.iabrj.org.br/morarcarioca/o_programa/ 46 Machado (2016 [1967]) considera sociedade global a sociedade como uma totalidade, em oposição aos cortes de classe, raça, gênero e, em especial o corte que distingue favelados e não favelados.
70
O Programa engloba parcerias entre os governos – municipal, estadual e federal – e diferentes atores da sociedade civil organizada e tem como objetivo a retomada permanente de comunidades dominadas pelo tráfico, assim como a garantia da proximidade do Estado com a população.
A pacificação ainda tem um papel fundamental no desenvolvimento social e econômico das comunidades, pois potencializa a entrada de serviços públicos, infraestrutura, projetos sociais, esportivos e culturais, investimentos privados e oportunidades (o grifo é meu)47.
Aqui a imagem da precariedade se repete, mas dessa vez justificada pelo
domínio territorial pelo narcotráfico varejista e apontando como solução a “retomada
permanente” do território. A imagem da favela como um “reduto dos criminosos”
aparece desde os primeiros relatos de escritores e jornalistas sobre as favelas
(VALLADARES, 2000), mas vai ganhar a dimensão do domínio territorial pelo tráfico
de drogas a partir do final da década de 80 e início dos anos 90 no Rio de Janeiro.
Dessa forma, apenas no discurso institucional recente, podemos enumerar
algumas características da construção imagética da favela pelo Estado, sendo elas:
1) o traçado orgânico e desordenado, 2) a alta densidade demográfica, 3) a
ilegalidade da terra, 4) a falta de saneamento, 5) a autoconstrução e a baixa
qualidade construtiva das habitações, 6) a predominância habitacional e a ideia que
a favelas se constituem em bolsões homogêneos de pobreza, 7) o domínio territorial
por grupos criminosos, 8) a ausência histórica do Estado e 9) a falta de integração
entre o desenvolvimento das favelas e o de outros espaços da cidade.
Apresentadas algumas características gerais do discurso do próprio Estado
sobre as favelas buscaremos, em alguns autores que questionam total ou
parcialmente alguns desses pontos, elementos que possam ajudar a construir uma
visão mais adequada do objeto em questão tendo em vista os propósitos dessa
dissertação.
Maria Laís Pereira da Silva nos apresenta elementos importantes para a
delimitação do nosso objeto. Para a autora, os diversos estigmas construídos
historicamente sobre as favelas impedem a visão do desenvolvimento das favelas
como parte da urbanização brasileira (SILVA, 2009, p. 30). Aqui há dois fatores
importantes a serem destacados: a noção de que é necessário que nos
concentremos em identificar as representações estigmatizadas, para que possamos
enxergar o objeto com maior rigor; o segundo se trata do desenvolvimento das
47 http://www.upprj.com/index.php/faq
71
favelas e da cidade como um todo como processos conectados de forma
inseparável. Deixaremos as considerações mais gerais para um momento posterior
e, por enquanto, nos concentraremos na forma como os autores tratam os aspectos
específicos levantados.
Silva (2009), numa abordagem histórica, parte de aspectos que particularizam
e assemelham as favelas com relação ao restante da cidade e busca uma
generalização dessas formações no ponto de vista histórico. Gerônimo Leitão (2009)
busca desfazer os mesmos estereótipos associados às favelas destacando as
transformações que ocorreram ao longo da história, principalmente ao longo das
décadas de 80 e 90. Na sua visão, alguns estereótipos são resultado da
manutenção no imaginário popular e do poder público de algumas características
que já existiram em algum momento, mas que deixaram de existir total ou
parcialmente.
Silva (2009, p. 32) busca um primeiro indicador da particularidade das favelas
em aspectos ligados à morfologia. A autora afirma que muitas favelas surgiram a
partir de traçados regulares, seja porque se desenvolveram a partir de loteamentos
ou parques proletários, ou porque foram ocupações dirigidas e planejadas na sua
totalidade ou em parte.
Leitão (LEITÃO, 2009, p. 38), apresenta a visão de diversos autores (BOSCHI
e GOLDSCHIMIDT, PERLMAN) que, sob perspectivas diferenciadas, também
apontam para uma grande diversidade nas favelas. O estudo de Boschi e
Goldschimidt apresenta a diversidade morfológica das favelas segundo o clima, a
topografia e a inserção na cidade e demonstra que as favelas das áreas centrais
podem se diferenciar muito das favelas de áreas periféricas chegando a apresentar
modos de vida rural nos limites da cidade. Já Pearlman indica que as morfologias
em favelas são as mais diversas: há favelas com ocupação mais densa ou mais
rarefeita, com o traçado relativamente regular e espaços livres, além daquelas com
maiores investimentos nas habitações e nas áreas públicas. Para Pearlman, a
grande diferença das favelas para a cidade oficial é a propriedade formal da terra
(LEITÃO, 2009, p. 38).
Sobre a situação legal, as favelas apresentam certa diversidade histórica.
Segundo Silva (2009, p. 33), a característica de invasão e ilegalidade se generalizou
como característica de qualquer favela, especialmente no final da década de 40 e
início da década de 50, acompanhando a expansão do mercado imobiliário e as
72
disputas por terra que se aceleraram junto às pressões sociais no meio urbano e
rural.
Sobre essa diversidade histórica, Rafael Gonçalves (2011) apresenta
exemplos de favelas que foram ocupadas com o consentimento de autoridades
militares ou de supostos donos dos terrenos.
Desde o fim do século XIX, as favelas são associadas à ilegalidade e à marginalidade. Diante das medidas higienistas de erradicação dos cortiços e às diferentes reformas urbanas das primeiras décadas do século XX, os favelados teriam pouco a pouco ocupado os terrenos vazios, principalmente aqueles situados nos morros próximos ao Centro da Cidade. Ora, se é incontestável que uma grande parte das favelas se estruturou a partir da ocupação dos terrenos abandonados na cidade, o processo de formação das primeiras favelas foi, na verdade, muito mais complexo, e não se resumiu simplesmente a essas ações. Amplamente difundida, a história, daquela que é considerada como a primeira favela da cidade, revela que os soldados provenientes de Canudos se instalaram no morro da Providência com o consentimento do Exército. Este mesmo consentimento das autoridades militares permitiu, igualmente, o surgimento da favela de Santo Antônio (Gonçalves, 2010: 37). Em suma, esses primeiros habitantes só permaneceram ali em virtude do apoio ativo das autoridades militares. Da mesma forma, como afirma Vaz (1988: 48-50), inúmeras favelas foram formadas por iniciativa dos próprios donos de terrenos. É o caso, especialmente, da favela da Providência, após a erradicação do cortiço Cabeça de Porco, em 1893. Para escapar ao controle higienista, os proprietários de cortiços continuaram suas atividades em áreas dos morros, alugando o solo ou os casebres. De fato, as primeiras favelas se assemelhavam muito aos cortiços da época (GONÇALVES, 2011, p. 116).
Na verdade, “há fortes indícios, segundo Maria Laís Pereira da Silva (2005, p.
101), de que cerca de 40% das favelas do Rio de Janeiro, antes de 1964, se
desenvolveram graças a certo tipo de autorização prévia, concedida pelos ditos
proprietários ou, no caso de terrenos públicos, por funcionários” (GONÇALVES,
2011, p. 127). A complexidade das formas de acesso à moradia em favelas parece
demonstrar que a identificação de favelados como invasores é errônea. Outro
aspecto importante é que, segundo Gonçalves, a criminalização da situação
fundiária na favela tem uma construção histórico-jurídica. O primeiro marco jurídico a
ser destacado é o Código de Obras de 1937 (Decreto Municipal n° 6000 de 1º de
julho de 1937), que procurou combater os aluguéis em favelas. Segundo o autor “um
dos meios de se manter o aspecto provisório e precário das favelas era justamente
recusando toda e qualquer apreciação judicial dos contratos de locação no interior
das favelas” (GONÇALVES, 2011, p. 118).
Segundo Silva (2009), a visão da favela como área de habitações “precárias”
ou “degradadas” a torna facilmente sujeita à “erradicação”. Mas não é somente uma
73
visão externa de precariedade, pois parte das precariedades é concreta e é
resultado do déficit de investimento do Estado. Essa é uma das faces do que
consideramos anteriormente como a manutenção das favelas como espaços
cinzentos. Isso diminui os custos políticos de uma ação negativa do Estado sobre
esses espaços. Podemos considerar também que esse tipo de poder permite ao
Estado manter a população sob controle em possíveis convulsões sociais e facilita a
formação de “currais” eleitorais.
Por vezes, a tensão entre a resolução de determinada forma de precariedade
e a remoção de edificações em favelas aparece de forma mais evidente. Se o
contra-laudo do Fórum Comunitário do Porto48 estiver correto, o custo das remoções
previstas pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro na Providência superam em
muito o custo da extinção do risco via tratamento das encostas. Da mesma forma, o
teleférico previsto pela prefeitura para amenizar os problemas de transporte da
favela envolve remoções e um custo mais alto de construção e manutenção do que
o elevador proposto pelo fórum que não envolveria nenhuma remoção.
Em contraposição à visão de degradação e sujeição à erradicação, a autora
argumenta que a favela, mesmo sendo vista pelo Estado como um fenômeno
passageiro, permanece na urbanização brasileira e que, como parte da cidade,
como espaço produzido socialmente, também vai ter um sentido de representar um
patrimônio, construído tanto pelo trabalho dos moradores, como pelos investimentos
públicos.
Essa ideia da construção de um patrimônio no interior das favelas, para
Boaventura de Sousa Santos, vai aparecer não apenas como a busca pela melhoria
da qualidade de vida no interior das favelas, mas também como uma estratégia
coletiva de manutenção do assentamento. Segundo o autor, o desenvolvimento
interno das favelas faz crescer os custos políticos das remoções.
Perante isto, os habitantes das favelas sempre procuraram organizar-se de modo a melhorar as condições de habitabilidade, criando várias redes de água e de electricidade administradas pelos utentes, constituindo brigadas de trabalho (sobretudo nos fins de semana) para melhoria das ruas e outras infrastruturas colectivas. Procuraram, sobretudo, maximizar o desenvolvimento interno da comunidade e garantir a segurança e a ordem
48 Relatório sobre as visitas técnicas realizadas nas comunidades do Morro da Providência e da Pedra Lisa nos dias 23/8 e 7/9/2011 e Parecer Técnico sobre os motivos alegados pela Prefeitura do Rio de Janeiro para a remoção de 832 famílias nessas duas comunidades, acessível no site: https://forumcomunitariodoporto.files.wordpress.com/2011/12/relatc3b3rio-morro-da-providc3aancia_final-1.pdf
74
nas relações sociais entre os habitantes com o objectivo de, fortalecendo as estruturas colectivas, fazer subir os custos políticos e sociais para o aparelho de estado de uma eventual destruição ou remoção forçadas (SOUSA SANTOS, 1988, p. 13).
Gerônimo Leitão (2009) chama a atenção para o fato de as favelas não serem
mais um espaço residencial, mas um espaço complexo, com as mais variadas
formas de uso e um mercado bastante diverso. Outro ponto destacado por Leitão é a
qualidade das habilitações: a favela deixa de ser o lugar da precariedade construtiva
e passa a ter uma predominância de casas de alvenaria que não se via nas suas
origens. Da mesma forma, as habitações não são mais autoconstruídas como foram
em outros tempos. Apesar da autoconstrução ainda ter importância, a provisão de
habitação assume as mais diversas formas (contratação e mão de obra, construção
para aluguel ou venda, divisão de casas, sessão de lajes etc.). Há um mercado
imobiliário expressivo que ao mesmo tempo se assemelha e se diferencia do
mercado da cidade “oficial”. Pode-se observar também uma crescente diferenciação
intrafavela. Para o autor, a entrada de uma determinada classe média nas favelas
“empurra as classes mais pobres para as áreas mais precárias enquanto [as classes
médias] se apropriam das mais servidas” (LEITÃO, 2009, p. 36). Esse movimento
seria responsável tanto pela segregação interna quanto pelo crescimento do
mercado imobiliário.
Tomando esses aspectos mais gerais, Silva (2009) busca o que seria então
mais específico nas favelas em relação ao restante da cidade e aponta um aspecto
importante: a representação da propriedade e da posse da terra assumem formas e
agentes que por vezes diferem da ordem jurídica oficial. Para a autora:
De fato, o que representa a propriedade, a posse, ou o que é reconhecido como legítimo/legal, as várias formas e contratos referentes a lajes ou formas de locação, significam, por vezes, outras ordens ou conceitos que diferem da ordem jurídica e envolvem novos atores: a Associação de Moradores, agentes imobiliários específicos, formas particulares de definição de lotes, entre outros, e que parecem expressar a diversidade da favela (SILVA, 2009, p. 34).
Esse aspecto apresentado por Maria Laís Pereira da Silva demonstra que a
dificuldade da busca pelas determinações da categoria “favela” não se encontra
apenas nas representações diversificadas e às vezes contrapostas ou nos estigmas
e estereótipos. O fenômeno se apresenta de forma bastante distinta para cada caso
e, frequentemente, de forma semelhante às áreas que não são consideradas como
75
favelas. Seja no aspecto morfológico, jurídico, infraestrutural ou social podemos
demonstrar que as representações institucionais são apenas parcialmente
verdadeiras porque elas não conseguem dar conta da diversidade em que o
fenômeno se apresenta e, ao que parece, o que define os aspectos empíricos nas
favelas é, de fato, a sua diversidade. É evidente que essa diversidade apresenta
certos limites, pois jamais poderíamos considerar um conjunto de arranha-céus
comerciais como uma favela, independente de sua condição jurídica, mas esses
aspectos não definem por si só a favela. Mas retornemos ao último aspecto
levantado pelas definições institucionais sobre a favela: o paradigma da integração.
A ideia da favela como um espaço apartado do restante da cidade é bastante
presente no senso comum e incorporado em diversos estudos e na formulação das
políticas públicas. Num breve resgate histórico, vemos que as favelas no fim do
século XIX e nas primeiras décadas do século XX, foram tratadas pelo discurso
hegemônico como situação indesejada, em contraste à ordem urbana e, dessa
forma, excluídas das ações públicas e privadas. Ao longo da primeira metade do
século XX, a favela passa a ser efetivamente tratada como um “problema” pelo
poder público, sendo mencionada pela primeira vez em uma legislação no código de
obras de 1937, sendo alvo de recenseamento municipal entre 1947 e 1948, e
incluídas como categoria no censo demográfico de 1950. Com o golpe de 1964 e a
instauração do regime militar, passa a dominar a ação direta do Estado na extinção
das favelas. Na segunda metade da década de 60, no Rio de Janeiro, acontecem as
primeiras iniciativas do Estado para a manutenção das favelas nas experiências da
Operação Mutirão e da Companhia de Desenvolvimento das Comunidades
(CODESCO)49. Na década de 70, começa a ganhar projeção e escala nacional a
ideia de que o modelo excludente imposto pelas remoções deveria ser substituído
por um modelo de manutenção das famílias em suas localidades. A remoção como
modelo predominante não deixa de existir, mas outras formas de atuação passam a
ser discutidas e executadas em paralelo ou mesmo integradas às remoções.
Mesmo a ideia de “integração” da favela aos demais espaços da cidade
pressupõe uma separação que pode ser assumida em parte, já que sua relação com
o restante da cidade não se dá de igual para igual, mas esconde a relação intrínseca
e complementar da favela a processos mais globais.
49 O único projeto finalizado pela CODESCO foi o projeto de Brás de Pina, realizado pelo grupo “Quadra” integrado pelo arquiteto urbanista Carlos Nelson Ferreira dos Santos.
76
Para este tema iremos nos basear em estudo desenvolvido em 1967 por Luiz
Antonio Machado da Silva. No entanto, é necessário chamarmos a atenção para
dois aspectos que são de fundamental importância no texto em questão e que são
fortemente marcados pelo contexto histórico, exigindo maior cautela ao transpor
para o nosso estudo. Em primeiro lugar, a posição hegemônica das teorias da
marginalidade nos estudos sobre favelas. Machado as combate dando ênfase à
diversificação interna e ao nível de qualificação de determinados estratos das
favelas. Em determinados momentos essa ênfase pode soar como uma
indiferenciação entre favela e o restante da cidade, o que não invalida sua crítica ao
conceito de marginalidade. Em segundo lugar, a política da “bica d’água” que
limitava deliberadamente o acesso dos favelados às instituições de Estado,
condicionando-o à intermediação de determinados agentes. Essa configuração
favorece o controle territorial por determinados candidatos ou agentes eleitos do
Estado a fim de formar “currais eleitorais”. Apesar de muito da prática da política da
“bica d’água” ainda se manter e de ainda haver bloqueios entre favelados e
instituições de Estado, o nível e as forma de acesso se modificaram
substantivamente do momento em que Machado desenvolve seu estudo até hoje.
Isso desloca a forma de atuação do que Machado identificou como “burguesia
favelada”50.
Para Machado da Silva, a forma como a questão das favelas é tratada em
políticas públicas e em estudos acadêmicos costuma ter um viés pragmático e,
segundo o autor, estão sob dois tipos de análise: “a que pretende propor ‘soluções’
para o ‘problema social das favelas’ e a que pretende traçar linhas de ação político-
ideológicas − esta em muito menor quantidade”51 (MACHADO DA SILVA, 2016
[1967], p. 33). Machado da Silva segue afirmando que a primeira abordagem parte
do pressuposto de que é preciso “integrar” a favela à comunidade nacional, o que
implica em entender a favela como autônoma, expressa em termos de
“marginalidade”.
Machado da Silva imediatamente refuta essa abordagem. Para o autor há
50 A “burguesia favelada”, para Machado, é constituída por sujeitos que concentram os recursos internos da favela e utilizam seu poder político e acesso às instituições de Estado para assumir uma posição privilegiada, seja para atender a interesses próprios ou coletivos. Esse termo em nada se assemelha à burguesia que se opõe ao proletariado na teoria marxiana, a identificação serve apenas como analogia. 51 Importante ressaltar que no momento em que Machado escreve esse artigo, os estudos específicos sobre favelas ainda eram escassos.
77
certa razão no conceito de marginalidade pela dificuldade de acesso aos meios de
consumo coletivo, mas a favela tem íntimas vinculações com o sistema global,
dependendo mais de condições estruturais da sociedade global do que dos
mecanismos internos para mantê-la, Além disso, a noção de “comunidade marginal”
caracteriza um julgamento de valor que dá origem a uma atitude paternalista
assistencialista e fornece as bases para a tentativa de imposição de soluções por
grupos que detém maior poder de escolha. Nas palavras do autor:
A favela não é uma comunidade isolada: sua própria existência depende muito mais de determinadas condições estruturais da sociedade global do que dos mecanismos internos desenvolvidos para mantê-la. Em segundo, porque a noção de que a favela é uma “comunidade marginal” não passa de um julgamento de valor que, por um lado, dá origem a uma atitude paternalista e assistencialista e, por outro, fornece as bases “teóricas” para tentativas de imposição das normas e valores dos grupos de classe média que detêm o poder de escolha das “soluções” adotadas por eles (e não pelos próprios favelados), consideradas as mais adequadas para aquele “problema social das favelas”. Trata-se, assim, de uma visão deformada da realidade desses locais (MACHADO DA SILVA, 2016 [1967], p. 33).
Entretanto, a condição de dependência é insuficiente para o entendimento da
relação das favelas com a sociedade global. As favelas devem ser entendidas como
parte da urbanização brasileira. Não à toa, mesmo com constantes formas de
criminalização e tentativas de extermínio via Estado, elas se apresentam como um
fenômeno permanente e generalizado nas grandes cidades do chamado capitalismo
dependente. A permanência das favelas é uma questão importante na obra de Maria
Laís Pereira da Silva. Para a autora:
Uma das importantes hipóteses discutidas pela literatura, e em parte comprovada, é a de que, dependendo das conjunturas políticas, prevaleceram ou medidas de repressão, ou atitudes de maior tolerância que permitiram a permanência das favelas na cidade. Vamos enfatizar o contrário disso: como foi possível essa permanência, mesmo em momentos de extrema repressão? (SILVA, 2005, p. 22).
Parece importante destacar que se entendemos a favela como forma
permanente e estruturante das grandes cidades brasileiras, elas não devem ser
vistas como simples reflexo conjuntural (ineficiência da produção habitacional ou
permissividade de determinado governo) ou como simples consequência de
processos como o rápido êxodo rural. É evidente que esses fatores são de flagrante
importância, mas não podem ser explicativos do fenômeno. Dessa forma, a questão
levantada por Silva ganha importância fundamental, pois ela chama a atenção para
78
a existência de tendências permanentes que atuam na reprodução das favelas e que
se impõem mesmo em momentos de fortes contratendências. Essa formulação nos
faz repensar a ideia da favela como uma herança de processos passados e
entender que o fenômeno é parte da urbanização e da reprodução do capitalismo
periférico. É necessário, portanto, tratar a favela de modo integrado à cidade,
mesmo que de forma subordinada, mas com o seu papel ativo no processo global de
acumulação e na estruturação do espaço urbano carioca. As favelas devem ter,
dessa forma, um papel ativo no desenvolvimento do capitalismo brasileiro.
Desafio maior é identificar essas tendências em meio às particularidades de
cada cidade. As favelas como parte desses processos particulares, vão surgir e se
desenvolver como parte do processo de urbanização, “tanto no que se refere ao seu
caminhar geográfico e no tempo histórico, quanto nos processos em que se
inserem” (SILVA, 2009, p. 31).
Portanto, são áreas que tiveram (e tem) uma produção e uma densidade sócio-espacial, política e cultural. Em algumas áreas desenvolveram um capital social importante, e que vai dar base para movimentos sociais de décadas mais recentes. Portanto, produziram (e produzem) o espaço social da cidade (SILVA, 2009, p. 32).
Mas não apenas as particularidades dos processos de urbanização das
diferentes cidades determinam as favelas. As singularidades das condições
materiais em que cada favela se constituiu e se reproduz determinam aspectos
peculiares para cada favela, ainda que sejam muito próximas e numa mesma
cidade52. Ou seja, dentro de uma mesma cidade a localização e o desenvolvimento
sócio histórico específico de cada favela devem ser aspectos importantes a serem
considerados.
Para Gonçalves (2011, p. 114), “não existe a favela, mas uma miríade de
favelas exibindo, cada uma, um diversificado dinamismo econômico, uma acentuada
estratificação social e uma diversidade de estatutos fundiários”. No caso da
propriedade fundiária, que é de especial interesse para nosso estudo, se o Estado,
que é o agente garantidor do direito de propriedade, não atua sistematicamente na
sua manutenção nas favelas, mecanismos próprios devem ser criados. E esses
52 Quem teve a oportunidade de conhecer, por exemplo, Babilônia e Chapéu Mangueira consegue entender o impacto de processos sócio históricos distintos em favelas de localização muito próxima. Podemos observar o mesmo nas distintas áreas dentro das grandes favelas, como em Manguinhos, Rocinha ou nos Complexos do Alemão e da Maré.
79
mecanismos serão resultado do desenvolvimento sócio-histórico singular de cada
favela53. Dessa forma, um dos aspectos que se apresenta como particular das
favelas (a criminalização da situação fundiária) apresenta, ao mesmo tempo, grande
diversidade entre as favelas.
Outra questão da categoria e suas determinações é o seu deslocamento no
tempo e no espaço. O que é considerado uma favela hoje na zona sul do Rio de
Janeiro é diferente do que é considerado uma favela na Baixada Fluminense dos
dias de hoje ou no próprio Rio de Janeiro de tempos passados54. Dessa forma, é
necessário entender a categoria de forma relativa a fim de não desloca-la do seu
contexto. No entanto, em alguns casos, a favela apresenta aspectos muito parecidos
com o seu entorno. Se nos mantivermos no exemplo do Rio de Janeiro, a
diferenciação entre favela e entorno é clara na área central ou na zona sul da
cidade, porém, quanto mais nos afastamos dessas áreas em direção aos bairros
periféricos, essa diferença diminui55. Nesses casos, a indiferenciação entre favela e
entorno torna insuficiente entender a favela apenas de forma relativa. É necessário
também entender as relações dos diversos agentes com a favela.
Rafael Soares Gonçalves (2013) analisa o processo histórico de construção
do conceito jurídico de favela e identifica um processo permanente de criminalização
da situação fundiária da favela. Já Adrelino Campos (2005) apresenta a
criminalização das favelas como uma “transmutação” da criminalização dos espaços
quilombolas, um processo também permanente que intitula de “produção do espaço
criminalizado”, no qual a mesma população continuaria a ser criminalizada, primeiro
no quilombo depois na favela. É importante chamar a atenção que as análises de
distintos aspectos do processo histórico apresentam a reprodução da favela como
um espaço subalterno é resultante de um processo permanente de criminalização, o
53 Aqui não se trata de um descolamento dos processos sócio-históricos das favelas com relação ao restante da cidade ou mesmo do capitalismo de forma geral, mas de reconhecer que, se o Estado abre mão de cumprir determinadas funções no interior das favelas, surge uma autonomia relativa local. A autonomia é relativa porque o Estado, mesmo sem uma atuação condizente com o restante da cidade, atua sistematicamente de forma direta e indireta. Formas de dominação ideológica aqui são de fundamental importância. Boaventura de Sousa Santos (1988, p.14) já havia observado a tendência do direito da favela mimetizar o direito oficial. 54 Essa parece uma constatação simples, mas trabalhos de grande difusão como o Planeta Favela de Mike Davis assumem um conceito absoluto de favela o que tem como resultado a afirmação de populações faveladas de mais de 90% “na Etiópia (espantosos 99,4% da população urbana), Tchade (também com 99,4%), Afeganistão (98,5%) e Nepal (92%)”. 55 Por exemplo, o aspecto morfológico se aproxima tanto pelo aumento das dimensões das propriedades individuais nas favelas, quanto pela diminuição dos investimentos nas edificações da não favela, mas poderíamos ver essa aproximação também pelo nível de renda, infraestrutura, serviços etc.
80
que nos trás de volta a ideia da permanência como resultado de processos que não
cessaram ao longo da história. Mais importante aqui é a noção de processo
permanente de criminalização, que traz a dimensão relacional do nosso objeto, cujo
agente mais importante certamente é o Estado. No entanto, tanto Gonçalves (2013),
que, apesar de estar focado na relação entre Estado e favela, também apresenta
muitos relatos da grande mídia, quanto Campos (2005) trabalham a relação não
apenas do Estado, mas da sociedade em geral com as favelas.
Para diminuirmos o risco que corremos de isolarmos nossa análise do
mercado imobiliário em favelas dos processos acumulação do capital e da
estruturação das grandes cidades brasileiras e retomarmos a questão da
permanência das favelas, buscaremos construir algumas notas preliminares, através
da leitura de alguns autores que discutem os diversos papéis que as favelas
desempenham nesses.
2.4.2 Notas sobre o papel das favelas na urbanização brasileira
Uma das interpretações mais difundidas e também das mais polêmicas é a de
Francisco de Oliveira, apresentada primeiro no ensaio “A economia brasileira: crítica
à razão dualista”, publicado em 1972, e reforçado em “O vício da virtude:
Autoconstrução e acumulação capitalista no Brasil”, publicado na revista Novos
Estudos Cebrap em 2006. Francisco de Oliveira (2003 [1972]; 2006) se contrapõe à
representação de que a favela é simplesmente um espaço depositário do
lumpenproletariat. Haveria um exército de reserva, ocupado em atividades informais
e responsável pela autoconstrução, uma forma de produção de habitações
amplamente atribuída às favelas. Para o autor, a autoconstrução teria um papel
essencial no rebaixamento do custo da reprodução da força de trabalho, para ele,
um dos pilares da aceleração da industrialização no Brasil.
(...) Daí derivou uma explicação para o papel do “exército de reserva” nas cidades, ocupado em atividades informais, que para maior parte dos teóricos era apenas consumidor de excedente ou simplesmente lúmpen, e para mim fazia parte também dos expedientes de rebaixamento do custo de reprodução da força de trabalho urbana. O caso da autoconstrução e dos mutirões passou a ser explicativo do paradoxo de que os pobres, incluindo também os operários, sobretudo os da safra industrializante de 1950, são proprietários de suas residências – se é que se pode chamar assim o horror das favelas -, e assim reduzem o custo monetário de sua própria reprodução. (OLIVEIRA, 2003 [1972], p. 130).
81
Nos termos de Marx, se o valor da força de trabalho equivale ao tempo de
trabalho socialmente necessário para produzir determinados bens que fazem parte
de um mínimo determinado sócio-historicamente para a sua reprodução, haveria
duas formas de aumentar o mais-valor absoluto: 1) aumentando a jornada de
trabalho, já que o valor da força de trabalho não é sensível à extensão da sua
exploração, ou 2) diminuindo o valor da força de trabalho (além é claro das formas
de acumulação primitiva). A solução que Marx dá para essa segunda forma é a
inovação tecnológica nos ramos industriais que produzem os bens necessários para
a reprodução da força de trabalho. No processo descrito por Francisco de Oliveira,
as duas formas aparecem de modo complementar. O trabalho além das horas
contratuais empregado na construção da casa seria uma forma análoga à extensão
da jornada de trabalho, enquanto o auto empreendimento barateia a produção da
habitação pelo fato de, por vezes, se livrar da apropriação de parte do mais-valor
pelo capital industrial-construtor, fundiário e pelo Estado, além da possibilidade de
produzir habitações com padrão abaixo do normal (sócio-historicamente definido).
Oliveira (2006) nos mostra como realmente o item habitação vai quase
desaparecer dos cálculos governamentais para a determinação do salário mínimo.
Nas pesquisas sobre custo de vida, hoje bastante amplas (naquele tempo já eram suficientemente sofisticadas, feitas em diversos níveis e graus de abrangência diferentes), o item habitação quase desaparece. Isso vai se refletir diretamente na avaliação do custo de sobrevivência. (...) Quando os governos, para orientar a política econômica, calculam o salário mínimo, o custo da habitação desaparece e influencia na fixação do valor. É isso que tem o efeito de rebaixar o salário. (...) Desse ponto de vista, a autoconstrução era estranhamente um mecanismo de acumulação primitiva, pois a casa construída daquela forma não se transformava em capital (OLIVEIRA, 2006, p. 68).
A percepção de que há uma massa de trabalhadores remunerados abaixo do
valor da sua força de trabalho, nesse caso, funciona da seguinte forma: a habitação
é sócio-historicamente consolidada como um dos bens mínimos para a reprodução
da força de trabalho, o que, do ponto de vista do capitalista, é um custo a ser pago
na forma de salário. Se abre-se um precedente para que o trabalhador passe horas
além das suas horas normais de trabalho construindo sua própria casa em uma terra
não remunerada, o custo de reprodução da força de trabalho é diminuída no que se
refere ao trabalho incorporado na construção da casa, à remuneração que
normalmente é paga pelo uso da terra ao seu proprietário e os outros custos já
82
comentados. Dessa forma, o capitalista pode baixar os salários no que seria
referente a esses itens, porém, o trabalhador é obrigado a trabalhar horas a mais
que o normal socialmente estabelecido, além de arcar ele próprio com toda forma de
risco que pode representar a terra (“ilegal”, “informal”) não remunerada. Isso, no fim
das contas quer dizer que as horas trabalhadas a mais foram indiretamente
apropriadas pelo capitalista.
Nesse sentido, a superexploração da força de trabalho mediante a não inclusão da moradia na cesta de consumo dos trabalhadores e a transferência de fundos dos trabalhadores aos fundos do capital configuram as principais determinações da renda da terra no espaço urbano nos países dependentes.
Diante do fato de que a moradia, enquanto mercadoria central para a reprodução da força de trabalho, não entra no consumo dos trabalhadores, a solução da habitação por parte deles passa por uma série de mecanismos que variam conforme o padrão de reprodução do capital, o papel do Estado e o contexto histórico-social (TONIN, 2015; MIOTO, 2015). São exemplos desses mecanismos a habitação em cortiços, favelas, coabitação, autoconstrução, loteamentos clandestinos, entre outros. O resultado é uma permanente segregação sócio-espacial e periferização da classe trabalhadora. Sob essas condições, o grau de exploração dos trabalhadores latino-americanos é ampliado, seja porque a periferização aumenta o tempo de deslocamento casa - local de trabalho, seja porque muitas vezes o trabalhador tem que destinar parte do seu tempo livre para prover sua habitação. Mais do que isso, essas formas concretas de superexploração se tornam fontes primordiais de lucro para frações de capital, como no caso do transporte e comércio (TONIN e ARUTO, 2016, p. 10).
A tese de Oliveira que as favelas se tornam meio essencial de barateamento
da força de trabalho parece se confirmar pelo desenvolvimento do espaço urbano
carioca no período de grande industrialização da década de 1950 e 1960. Se
observarmos os mapas desenvolvidos por Maurício Abreu, veremos que a
localização das favelas coincide com a das indústrias. Evidentemente, os eixos
ferroviários são grandes condutores da localização tanto das indústrias como das
favelas, mas a industrialização também parece conduzir a formação de favelas. É
conhecido o fato de os trabalhadores buscarem a moradia em favelas pela
proximidade do trabalho (ABRAMO, 2001, p. 1566) e a correspondência entre a
localização das favelas e das indústrias no momento de franca industrialização
parece um sinal afirmativo das premissas de Oliveira. Com baixo poder de
mobilidade, a classe trabalhadora só poderia se instalar próximo aos postos de
trabalho ou aos eixos de mobilidade que os levariam ao trabalho.
.
83
Figura 4: Município do Rio de Janeiro: distribuição das indústrias e favelas em 1960.
Fonte: Abreu (2010, p. 104 e 128), censo de 1960 e Google Earth.
Além dos já conhecidos esforços industrializantes promovidos pelo Estado, a
autoconstrução aparece em Oliveira como sua base fundamental.
Eu diria que a industrialização brasileira foi sustentada por duas fortes vertentes. A primeira foi a vertente estatal, pela qual o Estado transferia renda de certos setores e subsidiava a implantação industrial. E a segunda eram os recursos da própria classe trabalhadora, que autoconstruía sua habitação e com isso rebaixava o custo de reprodução (OLIVEIRA, 2006, p. 66).
Não se trata de aplicar a análise de forma individualizada: é evidente que
qualquer fenômeno que seja capaz de rebaixar o valor da força de trabalho só pode
fazê-lo se for capaz de se generalizar. O sujeito que autoconstrói terá êxito em
diminuir os seus custos com habitação e poupar ou priorizar outros gastos, porém, a
partir do momento em que essa atividade se generaliza para a força de trabalho de
determinado ramo, os seus salários estarão ameaçados. Tampouco a
autoconstrução é responsável pela industrialização ou pelo rebaixamento dos
salários, mas os três aspectos (autoconstrução, industrialização e rebaixamento dos
84
salários) tem como momento fundante a urbanização moderna brasileira.
É importante aqui chamar a atenção para a relação entre a classe dos
capitalistas e a classe dos proprietários fundiários. A terra é um componente de
grande importância no custo da habitação, ou seja, esse item específico que
compõe o valor da força de trabalho põe em confronto capitalista e proprietário
fundiário. Capitalista e proprietário fundiário, um pela redução dos salários e outro
pelo aumento do preço da terra ou dos aluguéis56, buscam a apropriação maior do
valor produzido pelo conjunto da sociedade, o primeiro na forma de lucro e o
segundo na forma de renda. Dessa forma, ainda que a autoconstrução retire do
custo de reprodução da força de trabalho o capital variável empregado na
construção da casa, o custo relativo à renda da terra só pode ser amenizado se
forem ocupados terrenos precários (geologicamente, juridicamente, etc.). Isso
explica porque a população pobre favelada cada vez mais contrate mão de obra
para construir, ainda que na favela. O resultado é que a fuga do confronto entre
essas duas classes apropriadoras do mais-valor pode ter uma importância maior do
que a autoconstrução nesse processo.
Oliveira, no entanto, prossegue seu argumento apontando que o problema da
autoconstrução seria que ela, no lugar de atacar o problema da habitação via capital,
ela o faz por meio dos trabalhadores pobres e dessa forma não cria um mercado
imobiliário.
O mutirão é uma espécie de dialética negativa em operação. A dialética negativa age assim: ao invés de elevar o nível da contradição, ela o rebaixa. Elevar o nível da contradição significaria atacar o problema da habitação pelos meios do capital. Rebaixar o nível da contradição significa atacar o problema da habitação por meio dos pobres trabalhadores. E aí se chega ao seguinte paradoxo: não se cria um mercado imobiliário. Mercado imobiliário no Brasil só existe da classe média para cima. Nas classes populares, não existe. É impossível existir, porque você está de posse exatamente daquilo que não é mercadoria. A casa não pode ser trocada, não tem valor de troca, tem apenas valor de uso, a finalidade de habitar (OLIVEIRA, 2006, p. 72).
E prossegue:
A habitação popular não tem valor de troca porque é impedida por dois processos. Impedida, em primeiro lugar, pelo próprio rebaixamento. Se
56 Importante lembrar que dentre os provedores dos insumos básicos para a reprodução da força de trabalho, o proprietário fundiário é o único que não pode buscar o aumento dos seus ganhos pelo aumento da produtividade, ou seja, o aumento dos seus ganhos sempre necessita do aumento da renda coletada por unidade.
85
decompusermos o custo de uma habitação popular, ele é basicamente força de trabalho do próprio futuro e feliz proprietário. Aí chegamos ao paradoxo de que isso não cria valor, não se constitui em mercadoria (OLIVEIRA, 2006, p. 72).
A casa autoconstruída não é resultado de uma forma de produção capitalista
e, por isso, o capitalista empregador do autoconstrutor pode se apropriar de uma
parte maior do valor, já que não assume mais o custo de remuneração dos
capitalistas envolvidos na produção da casa, mas a visão da casa autoconstruída
como não-mercadoria e não constituída de valor é bastante problemática. Parte do
que pode ser levantado sobre essa questão já foi feito por Sérgio Ferro em artigo de
resposta a Francisco de Oliveira também na revista Novos Estudos. Sérgio Ferro
mostra que há um mercado imobiliário de habitações autoconstruídas.
Em outro ponto de seu artigo, Chico deduz que, em função da autoconstrução e da pobreza, não há mercado imobiliário entre as classes populares. Quando escrevi o texto que citei, havia — e pelo que vi depois, há. Aluguéis de cômodos, barracos, extensões visando locação, vendas, etc. às vezes, trata-se de simples troca de serviços, mas aparece também dinheiro circulando. No começo, o autoconstrutor só pensa em si e sua família. Mas, pouco a pouco, espremido pela miséria, seu valor de uso passa a contar também como valor de troca.
Estudos da mesma época (ABRAMO, PULICI, BALTRUSIS), demonstram que
há um mercado imobiliário em favelas e, em muitos casos, com maior rotatividade
que o mercado imobiliário no restante da cidade. Além disso, é evidente que o
material empregado na construção é mercadoria em sua plenitude, que o trabalho
do autoconstrutor é um trabalho produtor de valor na medida em que é trabalho
socialmente necessário e que, o monopólio do direito de uso da terra gera renda
mesmo sem a existência de um documento jurídico oficial de propriedade57.
João Marcos Lopes, em artigo também em resposta a Francisco de Oliveira,
nos mostra como mesmo no momento da autoconstrução a casa pode ser
construída tendo em vista ganhos posteriores.
“Veja só, gastei quatro anos da minha vida, lutando e trabalhando por este projeto. Investi aqui mais ou menos 400 reais de dinheiro meu durante estes quatro anos. O financiamento vai ficar em 18.500 reais, aproximadamente, e quero pagá-lo no máximo em doze anos...”. E aí concluía: “e veja você: fácil, fácil vendo este apartamento, hoje, por 50 mil reais. Não é ótimo?” (LOPES, 2006, p. 223).
57 Esta discussão será mais desenvolvida ao longo do capítulo 2.
86
A declaração acima demonstra que esse tipo de cálculo não é uma atitude
esporádica e nem faz parte de um fenômeno recente. É evidente que se o
autoconstrutor citado por João Marcos Lopes tem a capacidade de calcular o preço
de venda do imóvel construído, só pode ser um palpite construído a partir de
experiências anteriores e minimamente regulares.
Para além da racionalidade dos indivíduos auto construtores, a realização do
trabalho incorporado à terra enquanto valor apresenta uma dinâmica diferenciada
com relação aos produtos em geral. Os valores de uso incorporados à terra, no
capitalismo, se realizam como valor na forma de renda. Marx (MARX, 2017 [1894], p.
684 e 709) anuncia que a coleta da renda não é uma alternativa do proprietário
fundiário e demonstra através do exemplo do capitalista proprietário. Segundo o
autor, o que aparece para o capitalista como um lucro a mais pelo não pagamento
de tributos na forma de renda a um terceiro, no movimento geral aparece como
renda que compõe os ganhos do proprietário capitalista. Da mesma forma, o
trabalhador que não paga o tributo na forma de renda a um terceiro, e por isso retêm
uma parte maior do salário, apenas tem os seus ganhos decompostos em salário e
renda. Essa renda contempla, tanto o exercício do monopólio sobre a terra em que
se assenta a casa auto construída como o valor do produto imobiliário.
Para Abramo, mesmo que a favela ou a construção mantenha suas
características, as alterações territoriais na cidade podem alterar as posições
relativas das favelas. Ou seja, a posição na cidade como um atributo da edificação é
fator de valorização ou desvalorização dos imóveis e, de alguma forma, devem estar
incorporadas nas estratégias familiares.
Uma favela pode apresentar uma melhoria/piora em sua posição relativa com as alterações territoriais da cidade ainda que ela mantenha ao longo do tempo suas características. Essa característica reflexa das favelas transforma a residência dos favelados (tal qual os ativos imobiliários da cidade formal) em um “capital locacional” que se valoriza/desvaloriza no tempo. A estratégia familiar incorpora esse elemento em seus cálculos inter-temporais orçamentários e passa a acompanhar a evolução da posição relativa do seu “capital locacional” (imóvel-residência) na hierarquia intra-urbana, avaliando, dessa forma, os possíveis benefícios/perdas de eventuais deslocamentos territoriais da unidade residencial familiar (mobilidade residencial) na estrutura intra-urbana. Assim, um reposicionamento desse capital locacional tanto pode significar uma mobilidade ascendente da família, quanto uma queda na qualidade da vida familiar (ABRAMO, 2001, p. 1574).
A imagem que Francisco de Oliveira faz da favela como um espaço
87
autoconstruído e habitado pelos mais pobres moradores das cidades é
extremamente simplificadora e torna sua análise insuficiente. Ela esconde a
heterogeneidade dos moradores e a dinâmica dos mercados existentes na favela.
Os dados levantados pela rede OIPSOLO (ABRAMO, BALTRUSIS) demonstram
justo o contrário do que Oliveira apresenta sobre o acesso à moradia nas favelas, ou
seja, que o acesso à moradia em favelas se dá principalmente por relações
comerciais (compra e venda ou aluguel).
Mesmo com os problemas apresentados, a formulação onde a favela aparece
como forma necessária para o rebaixamento do valor da força de trabalho é de
essencial importância para a nossa análise. Afinal, mesmo que o trabalhador acesse
a moradia na favela por outros meios, como aluguel, aquisição, contratação de
serviço para a construção, etc., acreditamos que os custos relacionados à moradia
tendem a ser menores nas favelas se comparados a outros imóveis com posição
semelhante no mapa de acessibilidade da cidade. Dessa forma, além da
autoconstrução em terrenos ocupados (sem relações comerciais), o acesso à
moradia em favelas se dá através de uma classe de proprietários que age dentro
das favelas, algo que Machado (2016 [1967]) optou por chamar de “burguesia
favelada”. Pensar a redistribuição do mais-valor, resultado e resultante da
generalização da favela na urbanização brasileira, tornaria necessário pensar a sua
apropriação por uma pequena burguesia favelada rentista-fundiária, industrial-
construtora, comercial, de serviços etc. Algo no sentido que Milton Santos (2009)
atribuiu aos circuitos inferiores do capital.
2.4.3 As Frações de classe no interior da favela
Para entendermos as lutas em torno do ambiente construído no capitalismo, é
necessário partirmos das contradições de classes. Ainda que existam outros pontos
de partida importantes, entendemos que, devido à tendência à priorização da
dimensão econômica no capitalismo, a divisão de classes estabelecida por ela tem
certo destaque. Partiremos do corte econômico da sociedade que contém menos
determinações, seja ela: capitalistas e trabalhadores.
Para Harvey (1982, p. 7), o capital tende a tratar o espaço construído como
meio de produção e acumulação de capital, e, como o próprio ambiente construído
exige um processo produtivo, ele se torna um dreno para o capital excedente. Em
contraposição, o trabalhador trata o ambiente construído como meio de consumo e
88
reprodução de sua vida. Isso produz a tendência à produção de capital fixo a ser
utilizado na produção e circulação em contraposição à produção de fundo de
consumo, a ser utilizado no consumo. No entanto, essa relação apresenta já num
primeiro momento uma série de contradições. Em primeiro lugar, capital e trabalho
não podem existir fora de sua relação. Dessa forma, ainda que o capital trate o
ambiente construído como mero meio de acumulação de capital, todas as formas
específicas de produção de valor exigem a aplicação de trabalho vivo (ou seja, da
mercadoria força de trabalho), por isso, o capital não pode destruir por completo os
meios de reprodução da força de trabalho, incluindo os fundos de consumo. Da
mesma forma, o trabalhador busca valorizar a sua mercadoria (força de trabalho)
para ter acesso a maior quantidade e variedade de bens e fundos de consumo. No
entanto, de forma geral, a luta pela valorização da força de trabalho exige a
produção de melhores condições para a acumulação, ainda que possa existir uma
luta direta pela apropriação do valor na forma de lucro ou salário. Assim, o
investimento em capital fixo pode ser legitimado perante os trabalhadores como
forma de gerar empregos e valorizar a força de trabalho e o investimento em fundo
de consumo pode ser legitimado perante os capitalistas como forma de desvalorizá-
la. Em segundo lugar, o capitalista também precisa reproduzir seu modo de vida, o
que exige o consumo de bens e de espaço, dessa forma, a produção de fundo de
consumo também é uma necessidade do capitalista. O consumo, ainda, é forma
importante de geração de demanda efetiva, isso significa que o capital
superacumulado pode encontrar no aumento dos salários uma forma de realizar o
valor dos seus produtos. Sendo o próprio fundo de consumo um produto do trabalho,
ele pode gerar o mesmo efeito.
Conforme descemos para o terreno do local/singular, torna-se necessário
adentrar as classes para entender como se dão as disputas em torno do ambiente
construído. Aumentando as determinações, veremos uma divisão já exposta por
Marx (2017 [1894], p. 877-894). Aqui, o autor inclui o proprietário fundiário como
uma das classes que se apropriam do montante de valor produzido pela sociedade.
Dessa forma, a apropriação do valor se daria na forma de salário, lucro e renda.
Essa conformação desvela novas contradições. Ao mesmo tempo em que, a
propriedade fundiária se apresenta como um empecilho para a acumulação
capitalista, já que a parte do lucro convertida em renda não pode ser reinvestida e
que aumenta o valor da força de trabalho, pois parte da reprodução da força de
89
trabalho necessita do acesso a terra; ela tem um papel positivo para a acumulação,
pois impede o acesso do trabalhador à terra como meio de produção e contribui para
que a terra tenha o seu uso mais produtivo. A partir disso, podemos observar que a
barreira que a propriedade cria ao trabalhador tem um caráter positivo e negativo
para o capital. Isso se dá pelo seu duplo caráter de meio de produção e condição de
vida.
No caso da habitação, a contradição pode transitar da relação entre
trabalhador e rentista (terra como condição de vida) para a relação entre capitalista e
rentista (terra como parte da inversão em capital variável) ou mesmo para a relação
entre capital e trabalho (valor da força de trabalho) a depender da luta de classes.
No caso do Rio de Janeiro, onde foi realizado o trabalho de campo, podemos
considerar uma constante fuga da contradição entre capitalistas e proprietários
fundiários, tensionando as relações entre capitalista e trabalhador e entre
trabalhador e proprietário fundiário e, consequentemente, pressionando de forma
violenta as condições de vida da classe trabalhadora. Harvey (1982, p. 10) aponta a
periferização como estratégia da classe trabalhadora para reduzir a apropriação dos
salários via renda. Poderíamos acrescentar para o nosso caso a formação de
cortiços que garante a altos rendimentos e baixos salários e a favela como fuga das
contradições entre renda e salário e renda e lucro.
A transformação de trabalhadores em proprietários de suas residências (seja
pela produção habitacional via Estado ou por empreendimentos dos próprios
trabalhadores em favelas) pode ser vista como vantajosa para os capitalistas, pois
possibilita aos capitalistas se apropriarem da parte do mais-valor que fluiria para as
mãos dos proprietários das casas dos trabalhadores; divide a classe trabalhadora
em proprietários e locatários e fortalece a propriedade privada como forma
dominante de mediação entre valor-de-uso e sua apropriação (HARVEY, 1982).
Finalmente nos deparamos com a contradição que pretendemos focar no
nosso estudo: uma fração da classe trabalhadora que é proprietária de sua
residência e outra que é sujeita ao inquilinato. Harvey (1982, p. 14) aponta que,
mesmo pertencendo à classe trabalhadora, o proprietário está preso no jogo da
coleta de renda e tende a agir em defesa do seu aumento. Mesmo aquele que não
pretende obter rendimentos através de sua propriedade deve buscar impedir a sua
deterioração, pois ela pode implicar em perda de mobilidade residencial ou mesmo
na depreciação dos valores-de-uso incorporados a terra. Essa primeira configuração
90
já coloca em lados opostos essas duas frações da classe trabalhadora, na medida
em que uma defende o aumento do fluxo de valor para o seu imóvel enquanto a
outra depende da sua manutenção ou queda para manter o seu modo de vida.
No entanto, essa não é a única decorrência possível da transformação de
parte dos trabalhadores em proprietários, parte deles pode alugar suas propriedades
para outros trabalhadores. Isso pode acontecer por que o trabalhador acumula mais
de um imóvel ou porque mesmo com apenas um imóvel o proprietário se põe na
condição de locador e locatário, seja para escolher o local e a estrutura da casa
onde vive ou para complementar renda com a diferença dos alugueis. Essa
configuração se diferencia da primeira, pois põe em confronto direto os
trabalhadores na condição de locadores e os trabalhadores na condição de
locatários, já que a renda do primeiro aumenta na medida em que reduz o salário
que o segundo consegue reter. Isso trás consequências adicionais, pois: 1) o
proprietário nesse caso está mais pressionado a agir em defesa da renda que
coleta, já que parte dos seus ganhos passa a depender disso; 2) o conflito torna-se
mais aparente, visto que o contrato de aluguel passa a definir qual parte do salário
de um trabalhador será convertida em renda para o outro e; 3) o proprietário pode se
utilizar de estratégias comerciais com base em seu poder de monopólio para extrair
renda adicional.
Nos dois primeiros casos, apesar de os proprietários se utilizarem de
manobras comerciais para acrescer a sua renda, a propriedade ainda aparece
apenas como reserva de valor com ganhos apenas esporádicos. Porém, assim
como em diversos outros setores (em especial os que dizem respeito à circulação) o
trabalhador toma uma roupagem empreendedora através da informalidade, parte
dos trabalhadores assume essa mesma roupagem e se especializa na produção de
edifícios e extração de renda se apropriando como pode do grande patrimônio
produzido informalmente pelo conjunto da classe trabalhadora, além da sua posição
relativa no restante da cidade. Para além do volume de investimentos, a diferença
qualitativa desse tipo de produção no segmento informal, em relação aos dois
modelos que trabalhamos até agora, se encontra na busca de ganhos construtivos
provenientes da produção do edifício e ganhos fundiários provenientes em especial
da intensificação do uso do solo. Isso tem reflexos importantes na produção do
espaço. Visto que os agentes aqui identificados são capazes de reinvestir os seus
ganhos, podemos conferir a eles uma capacidade de reprodução ampliada e, por
91
consequência, de transformação mais centralizada do ambiente construído. Outro
ponto importante a destacar é a busca por ganho fundiário. Em cada tempo-espaço
se estabelece uma tipologia mais lucrativa a depender da cultura, legislação
características geográficas, tecnologia, etc. Dessa forma, a renda da terra carrega a
tendência à homogeneização do produto imobiliário em um espaço-tempo
determinado. A identificação de um agente capaz de modificar de forma significativa
o espaço e que busca em sua atividade produtiva o ganho fundiário deve ter essa
mesma tendência de intervir de forma homogeneizadora sobre o espaço.
A “burguesia favelada”
Os conflitos no interior dos territórios favelados são sistematicamente
encobertos, não apenas no campo ideológico, mas também pelos processos reais
que envolvem o tema favela. Os confrontos diretos que envolvem a população
favelada trazem à tona com muito mais clareza a contradição entre trabalho e
Estado. Podemos exemplificar com os grandes ciclos de remoção, os projetos de
urbanização de favelas, as incursões policiais, a relação largamente estabelecida
entre o fracasso dos programas habitacionais e o crescimento das favelas, etc.
Grande mérito do Francisco de Oliveira (2003 [1972]; 2006) é encontrar na
contradição entre capital e trabalho outros determinantes ofuscados por essa
relação.
A centralidade na contradição entre trabalho e Estado, no caso das favelas,
frequentemente faz com que favela e Estado transformem, ao menos no discurso,
favela em um meio homogêneo. Podemos identificar essa tendência, por parte do
Estado, tanto nas ofensivas contra as favelas como na tentativa de legitimar projetos
que visem sua manutenção. Quando a pauta é a destruição das favelas, os
moradores são vistos como “vagabundos”, “invasores”, “bandidos”, etc. Diminui-se a
condição de cidadania de toda a população. Onde se busca a manutenção, o senso
de “comunidade” torna possível uma aparência de consenso em torno do projeto.
Mesmo em casos como o policiamento comunitário ou as incursões a ideia de
“comunidade” também é acionada, dessa vez em oposição aos “bandidos” ou “não-
cidadãos”. O consenso é criado destruindo a condição de cidadania da parte que se
deseja combater.
Já, do ponto de vista dos trabalhadores favelados, a ideia de “comunidade”
constrói uma cidadania e um poder de atuação que só é possível para eles em
92
organizações coletivas. Dessa forma, a construção de um senso de um consenso no
interior dos territórios favelados é útil na defesa de, ou na resistência contra
determinados projetos encampados pelo Estado. Para Machado da Silva (2016
[2002]), após a implementação do programa favela bairro, as favelas do Rio de
Janeiro entraram em uma conjuntura de concorrência pelos projetos de
infraestrutura que, entre outras coisas, fortalece a noção de “comunidade” no interior
das favelas e, ao mesmo tempo, dificulta a organização de um movimento das
favelas em geral.
No entanto, a população favelada contém grande diversidade, não apenas
inter-favelas, mas também intra-favela. Essa população diversa tem interesses
também diversos que em determinados contextos podem se opor. Não vamos aqui,
nos estender no debate sobre essa diversidade, porém para uma melhor análise da
relação entre inquilinos e proprietários é de fundamental importância entendermos o
processo onde uma fração da classe trabalhadora se destaca, se apropriando dos
recursos produzidos pelo conjunto dos trabalhadores nas favelas.
O conceito que mais se aproxima dessa ideia, é o de “burguesia favelada”,
cunhado por Machado da Silva (2016 [1967]). Esses seriam agentes capazes de
capitalizar os recursos internos das favelas através de pequenas produções,
comércios, serviços, ou, no nosso caso, a produção, venda e aluguel de imóveis.
É importante destacar que, por mais que Machado (2016 [1967]) caracterize
como “burguesia favelada” o agente local que concentra o acesso às instituições
supralocais e os meios de acumulação dentro da favela, nenhum dos agentes se
constitui num capitalista nos termos marxistas, para quem a cisão fundamental de
classe se dá entre os que vendem para comprar (M-D-M) e os que compram para
vender (D-M-D), ou trabalhadores e capitalistas. Dessa forma, a “burguesia favelada”
é uma fração da classe trabalhadora, e não uma fração do capital que atua nas
favelas.
Em meio à “burguesia favelada”, há uma fração que nos interessa
especialmente, a que explora o mercado imobiliário. Para cada setor em que opera a
“burguesia favelada”, os conflitos com o restante da população favelada, ou mesmo
com outros setores onde essa “burguesia” opera, aparecem de forma diferente. Para
o nosso caso podemos avançar a partir dos conflitos entre proprietários e inquilinos.
2.5 O mercado imobiliário em favelas
93
Neste subcapítulo trataremos da produção acadêmica sobre o mercado
imobiliário em favelas. Identificamos nos trabalho da rede OIPSOLO os trabalhos
mais sistemáticos sobre o assunto no Brasil, em especial os trabalhos de Pedro
Abramo e Nelson Baltrusis que serão tratados a seguir. A análise se desenvolverá
em torno dos seguintes eixos: (1) o acesso à terra e a estruturação do espaço
urbano; (2) caracterização do mercado imobiliário nas favelas e a (3) formação dos
estoques imobiliários. Em seguida traremos algumas notas críticas sobre a produção
acadêmica analisada.
2.5.1 O acesso à terra e a estruturação do espaço urbano
É bastante consolidada a representação do espaço urbano brasileiro como
espaço segregado, tanto no que diz respeito à diferenciação entre níveis de renda e
classes sociais, quanto à distribuição de meios de consumo coletivos públicos e
privados. A distribuição das pessoas ou grupos na cidade e o acesso a esses meios
de consumo coletivos estão diretamente relacionados, no capitalismo, às formas de
acesso à terra.
Sem negar a importância das heranças de um passado colonial,
patrimonialista-escravista e profundamente excludente58, Pedro Abramo (2003, p. 3)
identifica grande importância para a coordenação da ocupação do espaço urbano
em duas lógicas do mundo moderno: o Estado nacional e a generalização da lógica
mercantil. A primeira lógica põe o Estado como coordenador das relações entre
indivíduos e grupos e define a forma e magnitude de acesso à riqueza do conjunto
da sociedade. O acesso ao solo urbano por meio do Estado exigiria dos indivíduos
ou grupos algum acúmulo de capital, seja ele institucional, político, simbólico ou de
outra natureza, que permitisse o seu reconhecimento como sujeito no jogo da
distribuição de riqueza. A segunda lógica seria mediada unicamente pelas relações
de troca, o que no capitalismo resulta na produção ou apropriação do valor como
forma inexorável de acesso à riqueza. A lógica do mercado é unidimensional, a
possibilidade e magnitude do acesso à terra é mediada diretamente pelo acúmulo de
valor na forma monetária dos indivíduos ou grupos (ABRAMO, 2003, p. 1).
No interior da lógica de mercado, o acesso à terra urbana teria duas
expressões institucionais diferentes. “A primeira delas está condicionada por um
58 Evidentemente essas marcas não aparecem como cicatrizes de um passado colonial, mas são reproduzidos no Brasil moderno.
94
marco normativo e jurídico regulado pelo Estado na forma de um conjunto de direitos
(civil, comercial, trabalho, urbanístico, etc.) que estabelecem o marco das relações
econômicas legais” (ABRAMO, 2003, p. 1). A segunda se daria justamente pelas
relações econômicas que se encontram à margem do sistema legal e que definiriam
o campo da economia informal. “Assim, a lógica de mercado de coordenação social
de acesso à terra urbana se manifesta através de relações legais ou ilegais”
(ABRAMO, 2003, p. 1). Como vimos anteriormente, essa relação é bem mais
complexa do que as dualidades formal/informal ou legal/ilegal podem apreender.
Segundo o autor, nos países latino-americanos, bem como em parte da África
e da Ásia, devido à urbanização acelerada, disparidades sociais e dificuldades
financeiras dos Estados, além das condições políticas dos países e dinâmicas
globais, surge uma terceira lógica: a “lógica de necessidade”59. A lógica da
necessidade seria um impulsionador para uma forma de acesso à terra que não
exigiria capital político institucional ou monetário.
A lógica da necessidade é simultaneamente a motivação e a instrumentalização social que permite a coordenação das ações individuais e/ou coletivas dos processos de ocupação do solo urbano. A diferença das outras duas lógicas, o acesso ao solo urbano a partir da lógica da necessidade não exige um capital político, institucional ou pecuniário acumulado; a princípio, a necessidade absoluta de dispor de um lugar para instaurar-se na cidade seria o elemento para acionar essa lógica de acesso à terra urbana (ABRAMO, 2003, p. 2).
A lógica da necessidade moveria um conjunto de ações individuais e coletivas
que promovem a construção das “cidades populares” expressa pelo processo,
ocupação, autoconstrução, autourbanização e, por fim, consolidação dos
assentamentos populares. Em países onde o Estado de Bem-estar promoveu a
produção de habitação, temos a produção de moradias em conjuntos habitacionais
ou lotes urbanizados. Na maioria dos países da América Latina, onde a provisão
estatal de moradias é frágil e descontínua a lógica da necessidade na sua forma
ocupação popular paulatinamente se transformaria na forma dominante de acesso
dos pobres à terra urbana. As três lógicas operariam simultaneamente, sendo a
estrutura intra-urbana resultado do funcionamento das três lógicas de coordenação
social. Nesse modelo teórico, o mercado imobiliário em favelas seria uma variante
que une a lógica do mercado com a lógica da necessidade (ABRAMO, 2007, p. 26).
59 Apresentaremos em um momento posterior uma crítica à categorização apresentada por Abramo para as lógicas de acesso à terra urbana. Em especial à lógica da necessidade.
95
O tensionamento explicitado pelo autor entre a ocupação popular e a provisão
estatal de habitação apresenta sérios problemas se isolados de outros aspectos
impulsionadores da ocupação como forma de acesso à terra. Podemos exemplificar
com três momentos históricos no Rio de Janeiro. No final do século XIX, as primeiras
leis de incentivo à construção de vilas higiênicas populares vieram acompanhadas
da perseguição à forma predominante de habitação das classes populares, o cortiço.
A chamada “guerra aos cortiços” foi amplamente associada por estudos acadêmicos
(ABREU, 2010; VALLADARES, 2005; SILVA, 2005; GONÇALVES, 2013) à
consolidação das primeiras favelas do Rio de Janeiro. O Estado Novo de Vargas
(1930-1945) foi o principal promotor de habitações populares até então, mas a
industrialização acelerada, somada à sub-remuneração na cidade e destruição dos
empregos no campo acelerou o crescimento das favelas ao invés de diminuir. Da
mesma forma, o grande volume de habitações produzidas no Rio de Janeiro pelo
Banco Nacional de Habitação (BNH) e pelo Programa Minha Casa Minha Vida
(PMCMV) de forma alguma freou a demanda por habitação nas favelas e é
amplamente questionado quanto a localização e qualidade construtiva60. Em suma,
as políticas estatais de produção de habitação popular não significam
necessariamente a retração ou diminuição de demanda nas favelas. Nos temos do
Abramo: o crescimento do acesso à moradia popular pela lógica do Estado, não
necessariamente retrai o acesso à moradia pela lógica da necessidade ou pela
lógica do mercado informal.
É evidente que, mesmo que as políticas de provisão de habitação não
melhorem as condições dos trabalhadores nem freiem o processo de ocupação
popular, a sua retirada pode significar um agravamento desses processos, até
porque nada garante que o processo responsável pelo aumento de demanda por
habitação popular vai cessar junto com a produção habitacional, ainda que os
processos de remoção tenham sido em muitos casos apoiados em políticas de
produção de habitação popular. Para Abramo, a crise da produção estatal de
habiutações dos anos 80 nos países latino-americanos se apresenta como causa da
aceleração da ocupação das favelas e consolidação de um mercado imobiliário
informal.
60 Ainda que seja significativo o número de famílias retiradas de situações de precariedade e risco para os conjuntos do Programa Minha Casa Minha Vida as avaliações da localização dos conjuntos comparada com a das antigas residências apontam para um processo de precarização em contrapartida.
96
A crise dos anos oitenta e dos sistemas nacionais de provisão habitacional em praticamente todos os países latino-americanos terá duas grandes consequências. A primeira foi um incremento do ciclo de ocupação e sobretudo o seu aparecimento em alguns países onde esse fenômeno não era muito presente (Uruguai, Paraguai). A segunda consequência da crise dos anos oitenta foi a consolidação e a potencialização de um mercado informal de terras urbanas (ABRAMO, 2007b, p. 27).
Abramo (2003) subdivide o mercado de terras informal popular em dois
grandes submercados: o submercado de loteamentos e o submercado de áreas
consolidadas. O submercado de loteamentos opera nas periferias das cidades,
fracionando glebas e constituindo-se em principal vetor de expansão da malha
urbana e dinâmica de periferização marcada pela inexistência ou precariedade de
infraestrutura, serviços e acessibilidade urbana.
A estrutura oligopólica na formação dos preços é um dos fatores da alta rentabilidade mercantil dessa atividade, mas a flexibilidade no ajuste dos produtos e na adequação familiar às formas de financiamento informal é um fator de atratividade para os setores populares. Essas duas características articulam o aspecto de modernidade oligopólica e de flexibilidade pós-moderna em relação à oferta de lotes informais com uma dimensão tradicional de personalização da relação mercantil, definindo um nexo moderno-tradicional de natureza nova no mercado informal que assegura a sua atratividade tanto para os “urbanizadores piratas” quanto para a demanda popular. Os produtos desse sub-mercado de loteamentos são relativamente homogêneos, e os seus principais fatores de diferenciação nos remetem a dimensões físicas, topográficas e às externalidades exógenas relativas à posição do loteamento na hierarquia de acessibilidades e de infraestrutura urbana. Nesse sentido, a produção informal de lotes pode adquirir uma certa economia de escala, ainda que a temporalidade da venda destes lotes seja muito instável e depende de fatores externos às variáveis do próprio mercado informal (ABRAMO, 2007, p. 35).
O submercado de áreas consolidadas apresenta aspectos bem distintos do
submercado de loteamentos. Este submercado opera na compra, venda e aluguel
de imóveis existentes e sua ampliação se dá predominantemente pela intensificação
do uso do solo, ou seja, na densificação das favelas, seja por fracionamento de lotes
e edificações ou por verticalização. Abramo aponta dois processos que alimentam a
densificação das favelas: a transformação de moradores em locadores informais
através de ampliações e subdivisões e a preferência dos locatários informais por
imóveis pequenos devido a sua reduzida capacidade aquisitiva (ABRAMO, 2007, p.
39). A limitação apresentada para a ampliação desse mercado o torna um mercado
com estrutura concorrencial, porém com oferta racionada, ou seja, a oferta nas
áreas populares informais consolidadas é inelástica. Abramo (2007, p. 37) aponta
97
também que este mercado apresenta externalidades específicas e destaca duas
delas, a primeira é a liberdade construtiva, sem mediação do Estado; a segunda é o
que o autor chama de “externalidade comunitária”, está ligada aos laços de
vizinhança e vantagens relacionadas ao estabelecimento de uma rede social.
Essa divisão dos submercados informais têm se apresentado como uma
questão mais complexa. O fato de as novas favelas hoje surgirem, em sua maioria,
na periferia, torna difícil a diferenciação entre as duas tipologias. Ao mesmo tempo,
as periferias podem ter um processo de consolidação mais ou menos avançado e as
novas favelas apresentam características que tendem a ser distintas das
apresentadas por Abramo.
2.5.2 Caracterização do mercado imobiliário nas favelas
Abramo (2003, p. 7; 2005, p. 12); aponta para três resultados das pesquisas
empíricas61 sobre o mercado imobiliário nas favelas: 1) as favelas possuem um
volume de transações ligeiramente maior que o mercado imobiliário formal, 2) o
gradiente de preços do mercado imobiliário informal não acompanha o gradiente de
preços dos bairros legalizados contíguos às favelas e 3) não foi encontrado um
padrão absoluto de proximidade moradia-trabalho para os moradores de favelas.
O primeiro resultado é importante, pois demostra que há um mercado
consolidado, ou seja, ele não é ocasional. Outro aspecto, que se desdobra desse, é
que o mercado imobiliário informal em áreas consolidadas não é errático, ele
obedece a uma lógica.
Quando vemos o percentual de rotação do estoque imobiliário do mercado informal nas favelas, verificamos que ele apresenta, em média um patamar ligeiramente superior ao do mercado formal sinalizando uma relativa regularidade no funcionamento desse mercado. Da mesma maneira, quando tabulamos os preços praticados no sub-mercado de assentamentos consolidados confirmamos a hipótese de um mercado onde os preços não apresentam um comportamento errático; eles obedecem uma certa lógica e regularidade revelando que ha efetivamente um funcionamento não-aleatório no mercado informal em favelas. Em outras palavras, o volume e o patamar de preços das transações imobiliárias confirmam a sua existência enquanto mercado regular que regula o acesso a terra urbana nas favelas consolidadas, e portanto a possibilidade de definirmos um objeto de pesquisa (ABRAMO, 2005, p. 12).
61 Segundo o autor, “das 15 favelas de diferentes tipos e localização selecionadas em toda a cidade para compor um conjunto representativo das favelas cariocas, foram entrevistados moradores que estavam vendendo seus imóveis, e aqueles que haviam acabado de comprar ou alugar um imóvel” (ABRAMO, 2003).
98
Há polêmica sobre o segundo resultado. Segundo Abramo, haveria uma
lógica interna de formação dos preços e que deveria ser identificada e a partir de
variáveis e características do território das favelas. O descolamento da formação dos
preços nas favelas e em seus bairros contíguos se daria pela insubstitutibilidade
entre o produto moradia na favela e o produto moradia nos bairros contíguos. Isso
não quer dizer que quando intervenções modificam toda uma região da cidade os
preços não possam variar conjuntamente. Por exemplo, com a implementação das
UPPs, houve uma sensível valorização dos imóveis dos bairros do entorno. Seria
difícil imaginar que intervenções como o Porto Maravilha também não
influenciassem no mercado imobiliário das favelas do porto, mas realmente há de se
reconhecer uma barreira relacionada à insubstitutibilidade entre favela em área
central e seu entorno. No entanto, essa barreira deve diminuir em áreas mais
periféricas. Além disso, ao que parece, a amostra levantada por Abramo não permite
esse tipo de conclusão. Não teríamos aqui, condições de confrontar esses dados,
além de, esse não ser o ponto central da pesquisa.
O terceiro resultado, em parte pode ser associado à precarização dos
contratos de trabalho. Se o emprego não é garantidor da reprodução do trabalhador
de forma integral ou por um tempo mais prolongado, pode ser mais vantajoso estar
próximo a oportunidades de complementação da renda (que podem se tornar a
renda integral do trabalhador em determinados momentos), do que morar próximo
ao posto de trabalho. Ao mesmo tempo, o próprio posto de trabalho pode se alterar
num ritmo em que pode não ser vantajoso o processo de mudança. Outro fator
importante é que, apesar da atividade geradora de renda ter peso fundamental na
vida do trabalhador, há outras dimensões que podem pesar na escolha do local de
moradia, como laços familiares, redes sociais, atividades de estudo, de lazer,
religiosas, etc. A maior mobilidade do trabalhador, se relacionada a momentos
históricos passados, permite que o trabalhador considere outras dimensões da vida
na escolha do local de moradia.
Para uma parcela das novas gerações, a noção de proximidade de uma fonte de rendimento perde a sua dimensão territorial stricto senso e passa a adquirir uma conotação de rede de relações. A oportunidade de um eventual rendimento estaria vinculada a amplitude e as possibilidades abertas pela rede (de relações parentais, pessoais ou religiosas). Essa rede, em geral, se manifesta de forma difusa em termos territoriais. Nesse sentido, a oportunidade de emprego não estaria necessariamente vinculada a proximidade física de uma demanda por mão de obra como no caso de
99
uma fabrica (favela Nova Brasília nos anos 40 e 50 e favela Fernão Cardim nos anos 50 e 60), canteiro de obras da indústria da construção civil (favela da Rocinha e Vidigal nos anos 70 e 80), mercado de trabalho para domésticas (favelas da Zona Sul) (ABRAMO, 2001, p. 1567).
Em São Paulo e no Rio de Janeiro, segundo Abramo (ABRAMO, 2001, p.
1567 e 1568), verificou-se que importante parcela da população trabalhava na
própria favela. Isso implica que a favela não apenas tem uma concentração de
atividades no ramo produtivo, de comércio e de serviços, mas, também, que essas
atividades empregam preferencialmente os moradores da própria favela. Segundo o
autor, confiança e reciprocidade são importantes atributos nas atividades mercantis
endógenas nas favelas, o que reafirma a baixa impessoalidade das relações de
mercado nas favelas indicada por Machado.
Abramo62 constata que a renda dos compradores é um pouco mais alta que a
dos vendedores, “indicando uma tendência de consolidação das faixas
intermediárias nas favelas pesquisadas, isto é, uma tendência de redução do
percentual das faixas de rendimento dos extremos e uma perspectiva de maior
homogeneidade em termos de rendimento familiar (com a exceção das
comunidades que apresentaram o grau de violência sistemático e/ou sazonal forte)”
(ABRAMO, 2003, p. 10). O grau de instrução dos locatários é em média superior ao
grau de instrução dos compradores e vendedores, o que, segundo Abramo, pode ser
um fato explicativo para os altos preços dos aluguéis. No entanto, pode também
significar um reflexo das diferenças geracionais entre os segmentos analisados e a
diferença do grau de instrução entre as gerações. Outro aspecto está relacionado à
forma de pagamento, onde temos em 66,5% dos casos de compra nas favelas
pesquisadas o pagamento “à vista”, enquanto em 16% das transações há algum
mecanismo de parcelamento63. Quanto à origem dos recursos, predominam a venda
de outro imóvel (27%), empréstimos de parentes (25%) e poupança (18%), enquanto
que “a indenização trabalhista responde a apenas 11,5% da poupança para a
aquisição do domicílio nas favelas” (ABRAMO, 2003, p. 11). As operações de
compra e venda, no geral, predominam na razão de 2 para 1 em relação aos
aluguéis. Porém, em favelas pesquisadas onde o mercado de imóveis é
completamente inelástico, como Tijuquinha e Pavão-Pavãozinho, a relação se
62 Fonte dos Dados: Abramo,2002. OIPSOLO/IPPUR/UFRJ. 63 Abramo (ABRAMO, 2003) não deixa claro em que situação está o restante da porcentagem, mas dá a entender que se divide entre troca direta e “sem informação”.
100
inverte. Outro dado da pesquisa é que 72% dos compradores de imóveis obtiveram
informações do imóvel adquirido através de amigos e parentes. Reforçando nosso
pressuposto de que há uma lógica mercantil nas favelas anterior à existência de
práticas recorrentes de mercado, Abramo (2003), em seus resultados empíricos,
constata que os imóveis ofertados já haviam sido objeto de transação de
compra/venda no passado. Finalmente, a pesquisa informa que o padrão de
mobilidade residencial (tanto na favela como na cidade formal) se dá dentro da
própria área. Nas favelas, 57% dos compradores de imóveis tinham domicílios
anteriores na mesma favela.
2.5.3 Formação dos estoques imobiliários
Segundo Abramo (2007b, p. 40), “a oferta de locação, em geral, resulta de
fracionamentos e/ou extensão da unidade residencial ou da subdivisão do lote
original com edificação”. Assim, a resultante em ambos os casos seria a
intensificação do uso do solo. Abramo acaba descartando, já nos pressupostos, a
possibilidade de aquisição de lotes e unidades, ou seja, a centralização do estoque
já existente. É evidente que a maximização dos ganhos, mesmo nesse movimento
de centralização dos estoques, levaria a uma tendência de intensificação do uso do
solo, porém, a aquisição em condições favoráveis e a desproporção entre os preços
de aluguel e os preços de compra/venda podem em si gerar ganhos significativos. O
próprio autor chama a atenção para o fato de o preço dos aluguéis nas favelas do
Brasil, em 2006, ser, em média 2,37% do preço de comercialização, enquanto os
preços dos imóveis nos mercados formalizados tendem a estar abaixo de 1%
(ABRAMO, 2007b, p. 40 e 41).
Fato importante é que a locação ganha importância no acesso à moradia em
favelas. Segundo Abramo (2007, p. 39), a participação do mercado de locação
passa de 15%, em 2002, para 29%, em 2006. Esse crescimento estaria associado à
precarização do mercado de trabalho e à incapacidade de poupança familiar para
adquirir casa ou lote, mesmo no mercado informal.
Abramo (2007b) desenvolve uma caracterização do processo de formação
dos estoques imobiliários em favelas. Para o autor, a produção da moradia nas
favelas é resultado de um esforço familiar que pode envolver a autoconstrução ou a
contratação de mão de obra, mas, de qualquer forma, não envolve um agente
especializado na produção recorrente e sistemática de moradia nas favelas.
101
Nos APIs [área popular informal] a produção da moradia é o resultado do esforço familiar após a aquisição de um lote, uma laje ou um lote com alguma benfeitoria edificada. Esse esforço pode se realizar por um trabalho de autoconstrução, por uma poupança familiar que permite a contratação de mão de obra que edifica a moradia (produção por encomenda) ou por uma combinação dos dois procedimentos anteriores. Nesse caso, a oferta de moradias novas informais por um agente especializado na sua produção e comercialização e que atua de forma recorrente nesse mercado não é a forma mais corrente e a sua manifestação é uma exceção na maior parte dos MIS [mercado informal de solo] das grandes cidades latino-americanas. Assim, a oferta do bem habitacional no mercado informal é uma edificação que foi construída por um processo individualizado e sob o comando de uma família que normalmente habita ou habitou essa edificação como sua moradia (ABRAMO, 2007b, p. 5).
Na citação acima fica evidente que, para o autor, o mercado imobiliário em
favelas é alimentado por moradias construídas a priori para a moradia da própria
família construtora. Dessa forma, o autor aponta como forma única de expansão dos
estoques imobiliários informais o fracionamento e ocupação de glebas urbanas e
peri-urbanas.
Propomos como uma hipótese de trabalho que o mercado primário do MIS seja definido exclusivamente pelo mercado fundiário. Em outras palavras, o mercado primário do MIS é composto de um mercado que oferece lotes informais e irregulares a partir do fracionamento e/ou ocupação de glebas urbanas ou peri-urbanas.(...) Quando o acesso ao lote se realiza por comercialização (transação de compra e venda), podemos identificar um mercado primário do MIS. A atividade desse mercado primário não modifica o estoque edificado informal, porém cria as condições necessárias para o seu crescimento, pois permite o acesso das famílias pobres a um solo urbano (ABRAMO, 2007b, p. 6).
Isso implica que, para o autor, os imóveis do mercado primário informal são
vendidos apenas na forma não edificada. Dessa forma, o crescimento do estoque
edificado se daria por processos individuais após a compra de imóveis não
edificados em áreas peri-urbanas, enquanto o mercado secundário informal se daria
pelas operações de compra e locação de imóveis nas favelas consolidadas.
Essas famílias serão os agentes efetivos do crescimento do estoque edificado informal e esse crescimento, normalmente, não é motivado por uma comercialização imediata e recorrente que caracterize essas famílias como “produtores” de bens habitacionais para o mercado. O crescimento do estoque edificado informal é o resultado de uma infinidade de processos individualizados, descentralizados e autônomos de produção de habitações objetivando o uso privado e familiar por aqueles que comandam a sua edificação. (...) Assim, a comercialização de habitações informais, em sua grande maioria é com imóveis existentes do estoque imobiliário informal. Os imóveis novos informais produzidos para serem comercializados, geralmente, representam um fracionamento do lote original familiar, seja verticalizando, seja ocupando parte do lote e/ou casa (produção de
102
quartos), e a manutenção da residência da unidade familiar original (ABRAMO, 2007b, p. 6).
Dessa forma, Abramo identifica uma primeira grande diferença do mercado
informal em relação ao formal: a ausência de promotores imobiliários que atuem de
forma regular. Haveria uma grande circulação do estoque existente e um
considerável mercado primário de terras em áreas peri-urbanas, porém, a produção
das edificações seria pulverizada e individual pela falta de tal estrutura.
Em relação às características de funcionamento do mercado, o MIS apresenta uma primeira grande diferença em relação ao mercado formal. A inexistência de promotores imobiliários que atuem de forma regular na produção de imóveis novos informais para a comercialização em mercado e a pequena magnitude de imóveis novos informais produzidos por unidades familiares para comercialização, transforma as transações do estoque imobiliário informal na verdadeira oferta habitacional do MIS (ABRAMO, 2007b, p. 6).
2.5.4 Notas críticas sobre a caracterização do mercado imobiliário nas favelas
As notas críticas apresentadas a seguir giram em torno de um eixo: a relativa
homogeneização dos moradores das favelas.
Quando Abramo apresenta o que identifica como lógicas de acesso à terra
urbana coordenadas pelo Estado, pelo mercado e pela necessidade, imprime a
noção de necessidade aos assentamentos ditos informais e, dessa forma, ao
mesmo tempo em que associa toda a ilegalidade urbana à pobreza (já que os
pobres só poderiam acessar a terra pelo Estado ou pela necessidade enquanto os
ricos e a classe média acessariam pelo mercado), o autor os absolve identificando o
Estado como responsável pela falta de opção, já que a lógica do Estado seria a
única forma de acesso à moradia na cidade “formal” para as classes populares.
Porém, a ilegalidade da terra não é exclusividade dos assentamentos populares e,
como foi argumentado durante esse primeiro capítulo, há uma diversidade intra e
inter favelas para a qual a “lógica da necessidade” de Abramo se mostra suficiente.
Dessa forma, a caracterização de uma lógica da necessidade se torna um juízo valor
que obscurece os agentes que produzem o espaço na favela e vai ter
desdobramentos na análise de Abramo. Além disso, a necessidade é categoria
dinâmica e sócio-histórica condutora do metabolismo entre homem e natureza. No
capitalismo, a necessidade aparece como componente fundamental dos valores de
uso, ou seja, da lógica de mercado. Reduzir a necessidade a um mero componente
103
da pobreza, ou seja, da falta de acesso ao capital monetário, político, etc.
empobrece a categoria.
Como defendemos antes, as favelas devem ser entendidas como partes
imanentes da urbanização moderna brasileira. A formação das favelas carrega como
componentes históricos o racismo herdado pela sociedade escravista e reproduzido
de forma estrutural pela sociedade moderna e a criminalização (e em alguns casos a
extinção) das formas de habitação dos trabalhadores pobres da cidade. Porém, o
componente histórico não basta para explicar a manutenção e reprodução dessa
forma de organização ao longo de mais de um século. Sua manutenção deve ser
explicada pela própria estrutura da sociedade moderna. Dada a estrutura
extremamente desigual das grandes cidades brasileiras e os baixos níveis salariais,
podemos dizer que o alto valor das propriedades causado pela tradição rentista
patrimonialista somado ao histórico pressionamento para baixo dos níveis salariais
causa um conflito entre capitalistas produtivos e rentistas fundiários onde a produção
da habitação locados em terrenos frágeis ou de baixo valor comercial se apresentam
como opção de fuga do conflito estabelecido. Dessa forma, não se pode negar os
diversos aspectos da formação das favelas (culturais ou como forma de resistência)
que dão a elas seu caráter particular. Porém, a permanência histórica da favela
como fenômeno comum às grandes cidades do capitalismo periférico pode ser
entendida como forma de pressionar os salários para baixo impactando apenas
indiretamente no valor da terra.
Fica evidente no decorrer da produção de Pedro Abramo, que o levantamento
dos dados e a explicação para os resultados estiveram estruturados nas
preferências dos demandantes e essa preferência no mercado de trabalho. A
demanda estaria resumida aos trabalhadores com pouca mobilidade. No polo oposto
das transações se encontram vendedores e locadores fortuitos, meros
complementadores de renda. A formação dos estoques se limitaria a subdivisões e
pequenas ampliações. Essa simplificação na caracterização dos compradores e
vendedores das favelas faz com que Abramo dê pouca importância aos agentes
internos. A crença na impossibilidade de intervenção desses agentes na produção
do espaço transforma a favela em espaço estático, onde a única dinâmica possível
se encontra nas mudanças de preferência da demanda e na mobilidade residencial
dos moradores. Evidente que o mercado imobiliário nas favelas não é estruturado
por grandes capitais imobiliários, mas as diversas formas em que se desenvolvem
104
os poderes e se distribuem os recursos devem ter forte influência na dinâmica do
mercado. Dessa forma, é necessário caracterizar os agentes, os poderes e os
dispositivos de regulação, tanto para complexificar o estudo da forma mais geral de
funcionamento do mercado imobiliário em favelas quanto para lançar bases para
trabalhos específicos sobre cada território. Os próximos capítulos se dedicam a essa
tarefa.
105
3 CONDIÇÕES NECESSÁRIAS PARA A FORMAÇÃO DE UM
MERCADO IMOBILIÁRIO EM FAVELAS
Este capítulo está dedicado ao desenvolvimento da discussão sobre as
condições necessárias para o desenvolvimento de um mercado imobiliário regular,
que, não sendo providas de forma plena pelo Estado, apresentam desenvolvimento
particular nas favelas. Duas dessas condições foram identificadas no capítulo
anterior, sejam elas: a propriedade da terra e a separação entre propriedade e
usufruto. A terceira é a regulação da construção. Essas três condições identificadas
conformam três subcapítulos a serem trabalhados nesse capítulo.
3.1 A propriedade da terra
Como foi discutido no subcapítulo “1.1 notas sobre a renda fundiária”, a
propriedade fundiária moderna é condição indispensável para que parte do valor
produzido pelo conjunto da sociedade flua na terra. Isso significa que, de alguma
forma, devem ser criadas as condições mínimas para o desenvolvimento dessa
forma específica de propriedade, pelo menos nas favelas onde existe um mercado
imobiliário regular. Dessa forma, consideramos que, assim como a propriedade
fundiária moderna pôde se desenvolver de forma particular em cada país, o fato de
as propriedades nas favelas serem apenas parcialmente (muitas vezes
indiretamente) regulamentadas e fiscalizadas pelo Estado faz com que o
desenvolvimento da propriedade nessas áreas apresente particularidades com
relação à propriedade plenamente formalizada pelo Estado e ao mesmo tempo
apresente singularidades para cada favela. É importante destacar que não há uma
ausência absoluta do Estado no que diz respeito à regulamentação e fiscalização da
propriedade nas favelas, pois os valores éticos e morais que sustentam a
propriedade são mantidos pelo Estado. Além disso, instituições como a polícia e a
justiça são acionadas de forma recorrente pelos moradores das favelas para a
manutenção de suas propriedades. Como já apontamos no início do presente
trabalho, a propriedade fundiária aqui é entendida como relação social e não como
forma jurídica oficial. Assim, nessa dissertação, o proprietário da terra é quem detém
o monopólio de uma parte delimitada do globo e coleta renda, e não o proprietário
oficial que por algum motivo não exerce o direito sobre sua propriedade.
Apresentados esses primeiros pressupostos, é imperativo que a análise se
106
inicie pela precariedade da regulação da terra e da construção pelo Estado no
interior das favelas e as formas de “compensação” desenvolvidas na escala local.
Boaventura de Sousa Santos (1999, p. 2) defende que, devido à centralidade da
mercadoria terra em nossa sociedade, o mais esperado é que os desenvolvimentos
das formas jurídicas nas favelas busquem a compensação dessa precariedade.
Segundo o autor, “A intervenção da Associação de Moradores neste domínio visa
constituir como que um ersatz64 da protecção jurídica oficial de que carecem”
(SOUSA SANTOS, 1988, p. 14).
Em qualquer sociedade moderna ou em vias de modernização, a terra tende a ser considerada como um recurso de muito valor, tanto em áreas urbanas como em áreas rurais. Desta maneira, o sistema jurídico tende a desenvolver medidas e estratégias através das quais a segurança e a estabilidade das relações sociais que envolvem a terra estejam garantidas. Como diz W. S. Holdsworth, “as regras que regem a maneira pela qual a terra pode ser possuída, usada ou alienada devem ser sempre de muita importância para o Estado. A estabilidade do Estado e o bem-estar dos seus cidadãos em todas as épocas dependem consideravelmente do direito de propriedade sobre as terras”65. (An Historical Introduction to the Land Law, Oxford, 1927, p. 3.) Não admira, pois, que em Pasárgada se tenham desenvolvido mecanismos jurídicos informais e não oficiais destinados a garantir o mínimo de segurança e de estabilidade das relações sociais centradas na terra e na habitação, uma vez que, pelas razões apresentadas no texto, tal estabilidade e segurança não podiam ser garantidas pelo direito oficial brasileiro (SOUSA SANTOS, 1999, p. 2 e 3).
É importante ressaltar que, segundo o autor, esses mecanismos jurídicos
aparecem como uma mimese mais ou menos bem sucedida dos mecanismos
jurídicos oficiais, ou seja, não aparecem como formas divergentes do direito oficial.
Se considerarmos que as favelas são formadas por sujeitos inseridos dentro de uma
mesma sociedade que, mesmo com suas particularidades, compartilham da mesma
forma de sociabilidade, não é de se espantar que os mecanismos jurídicos locais
apresentem tendências a reproduzir a forma de sociabilidade típica do capitalismo
com as especificidades dos territórios em que estão inseridos66. Boaventura de
Sousa Santos aponta para essa tendência. Segundo o autor, o direito de
64 Algo que substitui, pode ter um significado pejorativo de suplência ou não. 65 Hodsworth descreve a propriedade privada moderna. Essa descrição não pode ser considerada trans-histórica como quer o autor. O uso da terra deve ser socialmente gerido “para o bem estar dos seus cidadãos”, porém o direito de propriedade não é trans-histórico, muito menos o Estado ou a necessidade de regras de alienação da terra (o que presume a propriedade privada). 66 As favelas brasileiras só podem tomar como referência o direito brasileiro, não por falta de conhecimento de outras formas, mas porque é o direito oficial que o legitima perante a sociedade em que está inserida (SOUSA SANTOS, 1988).
107
Pasárgada67 faz uma inversão da norma básica da propriedade, onde:
A ocupação ilegal (segundo o direito do asfalto) transforma-se em posse e propriedade legais (segundo o direito de Pasárgada). Efectuada esta inversão, as normas que regem a propriedade no direito do asfalto podem ser selectivamente incorporadas no direito de Pasárgada e aplicadas na comunidade (SOUSA SANTOS, 1988, p. 14).
Alex Magalhães (2010), em sua tese de doutoramento, resgata os conceitos
do direito de Pasárgada e busca uma atualização trazendo à tona o debate em torno
da posição de Boaventura de Sousa Santos. Um dos autores levantados para esse
debate é Luciano Oliveira (2003), autor que constrói apontamentos no mesmo
sentido. Para Oliveira (2003; MAGALHÃES, 2010, p. 121) o pluralismo jurídico ou
sociológico não se apresenta como uma positividade própria, mas como uma
consequência de uma negatividade, ou seja, o direito da favela não se põe em
contraposição ao direito oficial, mas o afirma, ocupando os seus vazios.
Magalhães (2010) traz também a posição de Eliane Junqueira, que, no
mesmo sentido de Oliveira, afirma que o direito da favela não tem a capacidade de
concorrer com o direito oficial.
No caso brasileiro, o fenômeno da pluralidade não constitui movimento originado a partir da necessidade de estabelecer polos de regulação concorrentes à regulação pelo Estado (como no caso dos EUA), nem de substituir um Estado regulamentador por outro tão somente regulador (como no caso da França). Aqui, o Direito só seria produzido de forma paralela à ordem jurídica estatal, em razão do profundo vazio de poder derivado da ausência de um Estado regulamentador, que nunca se preocupou em fazer-se presente nas áreas marginalizadas, a não ser através da polícia (MAGALHÃES, 2010, p. 123).
Para a autora, o sentido em que atua o “direito comunitário” é de fundamental
importância.
No caso europeu, aquilo que Boaventura Santos designou Direito comunitário representaria uma estratégia de saída do Estado, em direção à sociedade civil, formalizando-se um outro Direito, criado pelas camadas populares e não pelo Estado, num movimento centrífugo. Já no caso brasileiro, e também latino-americano, o movimento seria centrípeto, visto
67 Sousa Santos define o direito de pasárgada como: “um direito paralelo não oficial, cobrindo uma interacção jurídica muito intensa à margem do sistema jurídico estatal (o direito do asfalto, como lhe chamam os moradores das favelas, por ser o direito que vigora apenas nas zonas urbanizadas e, portanto, com pavimentos asfaltados)” (SOUSA SANTOS, 1988, p. 14). Apesar de trata-lo em sua definição como um direito paralelo, Sousa Santos estabelece relação entre o direito de Pasárgada e o direito jurídico estatal e constrói o conceito de direito de Pasárgada mais como um direito que ocupa as brechas do direito estatal do que como um direito que corre em paralelo.
108
que procura incorporar o Direito comunitário no ordenamento jurídico estatal (MAGALHÃES, 2010, p. 123).
Não queremos fazer uma discussão aqui sobre a validade ou não das teorias
da pluralidade jurídica ou mesmo debater sobre a capacidade emancipatória do
direito da favela, mas nos é muito importante a convergência desses autores na
ideia de que o direito se desenvolve aproximando-se do direito jurídico oficial. Ou
seja, o direito da favela tende a afirmar o direito de Estado68. Por exemplo, segundo
Magalhães, as pesquisas em Recife teriam mostrado que os invasores não
contestam o direito de propriedade, mas, sim, querem se tornar proprietários, do
mesmo modo que todas as demais pessoas que vivem sob o sistema capitalista
(MAGALHÃES, 2010, p. 125). O direito negativo ao Estado seria possível em
insurgências revolucionárias ou no direito de outras formas de sociedade, como no
caso das comunidades indígenas.
No entanto, para Alex Magalhães, o direito da favela não pode ser visto como
mera transposição do direito estatal, mas um processo complexo e conflituoso.
Em nossa compreensão, a “normalização do Direito de Pasárgada” representa mais do que a mera oficialização do Direito da favela, que seria pura e simplesmente transposto ou incorporado ao sistema normativo estatal, mas significaria, sobretudo, a sua transformação conflituosa, ditada pelo processo de reconhecimento, ao qual se submete, o qual, igualmente, também não ocorre de maneira mecânica ou neutra, mas configura um processo complexo e contraditório (MAGALHÃES, 2010, p. 142 e 143).
Se não há um agente centralizador no desenvolvimento do direito da favela
como o Estado que age na unificação do território nacional, esse desenvolvimento
vai depender em parte dos desenvolvimentos sócio-históricos singulares de cada
favela, ou seja, das suas condições materiais. Essa formulação não se põe em
oposição à tese de que o direito da favela é tendencialmente afirmativo em relação
ao direito oficial, mas chama a atenção para as determinações locais. Podemos
fazer um paralelo com a noção de que as “características organizacionais das
favelas parecem fazer com que elas funcionem como uma espécie de agentes
refratores de certos fatores da sociedade global que influenciam as atividades e o
comportamento político de seus moradores” (MACHADO DA SILVA, 2016 [1967], p.
35). No entanto, podemos pensar essa relação no sentido inverso, pois as
68 Essa situação se aproxima do que Charterjee (2004, p. 40) classificou como sociedade política e que, segundo Ananya Roy (2017, p. 10), envolve reivindicações por habitação e subsistência por “grupos da população cuja própria subsistência ou moradia envolvem a violação da lei”.
109
características organizacionais de ordem local estão presentes não apenas nas
favelas. O que faz com que essas características se sobressaiam nas favelas é
exatamente o vazio institucional deixado pelo Estado, ou seja, a negatividade
apontada por Oliveira (2003), e que passa a ser ocupado pelas organizações de
nível local. Dessa forma, as características organizacionais de nível local
determinariam as singularidades das formas jurídicas de cada favela, mas o que
determinaria o caráter “refrator” das favelas estaria na relação entre Estado e favela.
Podemos entender como “refratores” no caso da propriedade fundiária, os agentes
que de certa forma estabelecem as “normas” e “regras” para a sua regulação. Esses
agentes têm formas de atuação e interesses específicos e isso deve se refletir na
instituição das normas que regulam a propriedade.
Podemos, dessa forma, dividir os determinantes da propriedade fundiária na
favela em dois níveis. O primeiro nível é aquele que condiciona as suas
particularidades, ou seja, que faz da propriedade fundiária na favela uma forma
particular de propriedade. Seus determinantes estão na relação entre sociedade
(incluindo favelados) e favela, e o agente privilegiado dessa relação (ainda que não
seja o único) é o Estado. O segundo nível condiciona as singularidades da
propriedade fundiária em cada favela. Seus determinantes estão nas formas locais
de organização e na forma como elas se relacionam com os agentes supralocais.
3.1.1 Notas sobre a relação entre Estado e favela
Como já comentamos, a relação entre sociedade global e favela se destaca
pela produção do espaço criminalizado (CAMPOS, 2005) ou pela criminalização da
situação jurídica da favela (GONÇALVES, 2013), ou seja, por um tratamento
diferenciado que, entre outras coisas, configura um status jurídico diferenciado para
a propriedade fundiária na favela69. Porém, como foi enfatizado nos parágrafos
anteriores, há também uma tendência à reafirmação do direito oficial na favela. Essa
tendência não se apresenta de forma unilateral. Além de, as instituições internas
serem parte da sociedade global e por isso reproduzirem a sua forma de agir, as
formas de agir que contradizem as normas da sociedade global tendem a ser mais
coibidas e criminalizadas do que aquelas que condizem com essas normas. Essas
últimas tendem a ser toleradas mesmo que sejam consideradas informais ou ilegais.
69 Esse é um elemento bastante presente nas categorias de análise propostas por Roy (2017).
110
Isso explica porque um terreno comprado de um “invasor” parece ser considerado
mais legítimo (dentro e fora da favela) do que um terreno “invadido” (SILVA;
HUGUENIN, 2014 [2011], p. 268 e 269). A troca como forma predominante de
mediação das relações sociais no capitalismo parece ter a capacidade de legitimar
perante a sociedade o acesso à propriedade mesmo nos casos em que a forma
jurídica da propriedade não corresponde com a do direito jurídico oficial. Sendo
assim, a troca como relação social aparece com tal nível de desenvolvimento e
generalização que se apresenta com relativa autonomia das formas jurídicas oficiais.
Conforme Silva e Huguenin (2014 [2011]), “a negociação ou a transação de um
terreno ou imóvel acaba por legitimá-lo frente às regras da favela”. Assim, podemos
considerar que, mesmo que se configure um espaço criminalizado como um todo, os
agires são diferenciados e podem ser coibidos ou tolerados com base nas normas
da sociedade global tanto pelos agentes locais como pelos supralocais.
Como apontamos anteriormente, o Estado é o agente privilegiado dessa
relação que se constitui não somente pela negação do direito oficial de propriedade,
mas por um processo contraditório de negação e afirmação da propriedade fundiária
moderna. A negação é sistematicamente apontada por diversos autores. Ela se
encontra no não aparecimento das favelas na política oficial da segunda metade do
século XIX, no status de forma de moradia provisória das classes populares em que
aparece a partir da década de 30 do século XX na legislação, na política de
extermínio na ditadura militar, nos ciclos de remoção que ainda hoje perduram, no
histórico déficit de investimentos em infraestruturas e equipamentos urbanos nessas
áreas, além dos sucessivos fracassos da política de regularização urbanística e
fundiária e a persistente negação do direito jurídico oficial de propriedade nas
favelas. Já a afirmação da propriedade privada moderna na favela tem menos
recorrência, mas podemos extrair dos autores trabalhados acima (Boaventura de
Sousa Santos, Luciano Oliveira, Eliane Junqueira e Alex Magalhães) a ideia de que
o direito da favela funciona como um substitutivo do direito oficial negado nessas
áreas e investigar como isso acontece.
Um primeiro canal por onde se reproduz a lógica da propriedade fundiária
moderna e do direito jurídico oficial está no contato direto entre favelados e o
restante da cidade. Um exemplo se encontra no trecho da entrevista realizada com
um corretor imobiliário atuante na Favela 1.
111
Na verdade, assim, a gente procura sempre trabalhar dentro da lei, porque, mesmo aqui sendo [Favela1], nós trabalhamos muito com empregada doméstica, aí faz o contrato e leva para o patrão ver, aí se você fizer uma coisa errada, aí roda errada pra tudo que é lugar, entendeu, então é sempre bom fazer o seu. (IMOBILIÁRIA 2, FAVELA 1)
O contrato a que se refere o entrevistado é o contrato de aluguel e de compra
e venda. No entendimento do entrevistado o compromisso que o corretor imobiliário
na favela tem com a legislação oficial brasileira na formulação dos contratos é um
compromisso moral. Existe o certo e o errado, ambos balizados pelo direito jurídico
oficial, porém, não existindo uma fiscalização das instituições oficiais de Estado, o
receio do corretor é que se difunda (“rode”) pela favela a informação que os
contratos formulados pela corretora são “errados”. Há dois pontos importantes a
serem destacados nesse caso: 1) o direito jurídico oficial, mesmo sendo, nessa
situação, inoperante de forma direta, se torna um legitimador das ações na favela,
ou seja, o direito jurídico opera como uma norma moral que mesmo sem uma
fiscalização sistemática limita as ações dentro da favela; 2) o conhecimento do
direito jurídico oficial, nesse caso, se dá pelo contato cotidiano dos favelados com os
não-favelados.
A facilidade de acesso a esse tipo de informação e a quantidade crescente de
favelados graduados nas mais diversas áreas do conhecimento tornam o exemplo
da empregada doméstica e seu patrão apenas uma alegoria que representa uma
das formas de “entrada” do conhecimento do direito jurídico oficial. Segundo o
Proprietário 4, na Favela 2 a maioria dos moradores tem acesso à justiça por
vizinhos formados na área, via Associação de Moradores ou defensoria.
A maioria tem algum acesso, a gente tem um juizado aqui perto, você sempre tem, por incrível que pareça, muitas pessoas que estudaram, se formaram em direito, tiraram a carteira da OAB e continuam morando na comunidade. A associação tem sempre uns bons encaminhamentos pra quem precisa, além da defensoria tem algumas pessoas que prestam esse serviço também (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).
Além disso, longe de negar as barreiras entre as favelas e o restante da
sociedade, é necessário destacar que as porosidades são intensas e estão
presentes, não apenas relações de trabalho, mas também nas relações comerciais,
no sistema educacional, nos vínculos de amizade, familiares etc. e não é de se
surpreender o acesso que os favelados têm ao conhecimento do direito jurídico
oficial. Mais importante aqui é como esse direito jurídico coage as instituições
112
internas a reproduzirem suas normas.
O movimento de reprodução das formas jurídicas oficiais tem sido mais
representado em estudos acadêmicos na figura da Associação de Moradores, talvez
pela importância do estudo desenvolvido por Boaventura de Sousa Santos em
Pasárgada. Junqueira (MAGALHÃES, 2010) desenvolve, a partir de exemplos
demonstrativos que ilustram as formas de registro e taxação da transmissão de
propriedade e regulação da construção, a ideia de que a Associação de Moradores
reproduz os institutos jurídicos estatais.
Quanto ao padrão de atuação da Associação de Moradores, enquanto agência jurídica local, Junqueira afirma que essa, dentro das especificidades da localidade, reproduz e obedece à lógica de funcionamento do ordenamento jurídico estatal. As Associações de Moradores das favelas trabalhariam com um “código de conduta que, inspirado no direito oficial, reproduzia institutos jurídicos estatais”, a partir dos quais “Boaventura Santos identificou um ‘direito paralelo não oficial’, uma ‘subcultura jurídica’ fundamentada na prevenção e na resolução de conflitos” (JUNQUEIRA, 1993, p. 167). Essa autora arrola alguns exemplos demonstrativos da alegada reprodução, tais como:
O processo de transmissão da propriedade reproduz aquele dos cartórios oficiais de registros públicos.
A taxa de 5% sobre o valor de venda, cobrada pela associação, para “legalizar” as transmissões – isto é, para fornecer um documento comprobatório dessas transações – reproduz o Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), cobrado pelas municipalidades, em idêntico percentual.
Diante da inaplicabilidade das posturas municipais e do Código de Obras, para as edificações realizadas nas favelas, produz-se aí uma “versão oral” desse Código.
Assim, por meio desse conjunto de mecanismos, conferir-se-ia alguma legalidade àquilo que “o Estado, ao se recusar a reconhecer, induz a ser anômico e desorganizado” (JUNQUEIRA; RODRIGUES, 1988, p. 129; e 1992, p. 13; JUNQUEIRA, 1993, p. 169) (MAGALHÃES, 2010, p. 134 e 135).
É importante notar que, mais do que reproduzir a ordem estatal, a Associação
de Moradores assegura mecanismos que são desejáveis para a formação de um
mercado de terras, sejam eles: o registro da propriedade, o registro da transferência
e um código de conduta que impede os construtores de
prejudicarem/desvalorizarem a propriedade alheia.
O constrangimento sofrido pelas Associações de Moradores para reproduzir
formas jurídicas oficiais dentro da favela deve ser duplo. Se os moradores da favela
já conhecem e legitimam o direito jurídico oficial, a Associação de Moradores que
quiser manter sua posição de representante oficial na favela também deve
responder diretamente às instituições estatais. Uma indicação da necessidade de se
113
apoiar no direito jurídico oficial em busca de legitimação apareceu em uma das
entrevistas feitas para o presente trabalho. Quando indagado sobre a forma de
resolução de conflitos em torno da construção, um representante da Associação de
Moradores 1 da Favela 1 respondeu que a argumentação é sempre técnica e que,
em casos onde a associação não é capaz de responder tecnicamente, são
acionados órgãos da prefeitura, como o Posto de Orientação Urbanística e Social
(POUSO)70, ou a Região Administrativa (RA).
Sousa Santos, sobre a importância da referência ao direito jurídico oficial no
discurso retórico da Associação de Moradores, comenta que:
Isto não significa que, no decurso da discussão do caso, se não façam frequentes referências às leis do direito do asfalto, quer às que no direito oficial regulam as matérias em discussão, quer, ainda que mais raramente, às que regulam as atividades da Associação de Moradores. Tais referências, no entanto, nunca são necessitantes das decisões, o que, por outro lado, não significa que sejam arbitrárias ou inúteis. De facto, são parte integrante do discurso tópico-retórico e têm por função criar uma atmosfera de oficialidade e de normatividade — uma retórica institucional, em suma — que reforça os objetivos retóricos e sublinha as linhas do discurso no seu percurso para a decisão (SOUSA SANTOS, 1988, p. 19).
A forma de organização que frequentemente se encontra nas favelas e que
provavelmente mais entra em conflito com o direito jurídico oficial é o tráfico varejista
de drogas. No entanto, como veremos, esse agente também tem o interesse de
manter as transgressões sob controle. Se o comércio e as prestadoras de serviço
locais, como no caso das imobiliárias, devem responder ao direito jurídico oficial
como forma de se legitimar perante a população e as instituições internas de caráter
oficial, como é o caso das Associações de Moradores, ficam numa encruzilhada
entre a legitimação da população e as instituições de Estado, o tráfico varejista de
drogas, pelo caráter conflitante com o direito jurídico oficial, atua de forma
relativamente autônoma. Na realidade essa forma de organização deve conciliar a
busca da legitimação da população local com os interesses de sua atividade
principal. Outro ponto que deve ser destacado é que o narcotráfico varejista é
formado por indivíduos inseridos nessa mesma sociedade que deve influenciar a sua
noção de justiça. Como exemplo, podemos nos apropriar dos casos analisados por
70 Instituído em 1996 no âmbito do Programa Favela-Bairro tem, segundo o decreto que o institui (Decreto nº 15259 de 14 de novembro de 1996), a função de “orientar a execução de novas construções ou ampliações das existentes, bem como o uso dos equipamentos públicos implantados e exercer fiscalização urbanística e edilícia”.
114
Eliane Botelho Junqueira e José Augusto de Souza Rodrigues.
CASO 1 - o morador da favela aciona a boca-de-fumo por causa do furto de uma bomba d'água da sua casa. Menos de vinte e quatro horas depois, o ladrão é identificado e a bomba d'água devolvida, cabendo ao morador decidir sobre a aplicação da penalidade, que poderia ser, por exemplo, um tiro na mão. CASO 2- devido à desordem causada por crianças que atiravam pedras, o morador incomodado recorre à boca-de-fumo, que envia um dos seus empregados para impor a ordem. CASO 3 - um menor de dezesseis anos mata uma criança de sete anos durante um assalto a um autocarro. Perante o risco de se ter uma investigação policial na favela, o chefe da quadrilha toma a iniciativa de identificar e eliminar o assassino, cujo corpo é deixado na entrada da favela para ser encontrado pela polícia. CASO 4 - o estuprador de uma moradora da favela é imediatamente identificado pela boca-de-fumo e, como penalidade, castrado. CASO 5 - dois moradores discutem sobre a edificação de uma parede, e um deles, para coagir o vizinho, recorre à boca-de-fumo. A simples ameaça de intervenção do chefe de tráfico de drogas “concilia” os vizinhos (JUNQUEIRA; RODRIGUES, 1992, p. 13 e 14).
Importante notar que mesmo que as punições sejam absolutamente
condenáveis do ponto de vista do direito jurídico legal, as ações a serem punidas
violam códigos jurídicos e morais da sociedade como um todo. Podemos pensar
sobre dois interesses diretos do tráfico na repressão a esse tipo de ação. O primeiro
foi explicitado anteriormente e se trata da busca pela legitimidade perante a
população local. O segundo está explicitado na própria citação, e se trata de evitar a
entrada da polícia, o que poderia significar o início de um conflito ou a repressão das
atividades do tráfico varejista de drogas. São dois interesses que pressionam o
tráfico a agir de forma a afirmar o direito jurídico oficial. Não é excessivo destacar
que não há nenhuma garantia de que o tráfico varejista vá atuar reproduzindo o
direito estatal ou evitando conflitos com a polícia. Essas tendências só se
confirmarão em ato se não houverem contratendências mais fortes. Por exemplo,
um momento de relação mais acirrada com a polícia, um conflito com uma facção
rival, um domínio territorial tão estável que diminua o receio da entrada da polícia,
etc. podem gerar uma suspensão desse tipo de comportamento.
Magalhães, reforçando Junqueira e Rodrigues indica como o narcotráfico
varejista afirma o direito estatal e o compara com a prática das instituições policiais
marcados pelo vigilantismo.
Até mesmo no caso do crime organizado, a outra agência jurídica interna da favela, admitida por Junqueira e Rodrigues, nota-se o mesmo processo de
115
reprodução do modus operandi das instituições oficiais, porém, nesse caso, as comparações se concentram na instituição policial e não nas agências propriamente administrativas do Estado. Eles sustentam que, do ponto de vista microssociológico, o crime organizado representaria uma espécie de contrapartida informal do papel desempenhado, na sociedade abrangente, pelas agências estatais de controle social, assim como “salta aos olhos a extrema semelhança entre as práticas de polícia – ou, mais precisamente, de distribuição de justiça – dos traficantes de drogas e da instituição policial, marcada pelo vigilantismo” (JUNQUEIRA, 1993, p. 172). O padrão de atuação das duas agências seria comparável, também, na medida em que “em ambos os casos as ações são movidas pelo ideal de combate ao crime, cujo arquétipo comum talvez seja o xerife de fronteira norte-americana, esse lugar onde já chegaram os homens mas não as instituições” (MAGALHÃES, 2010, p. 135).
Um caso extremo em que poderíamos pensar a reprodução da estrutura
jurídica oficial e, ao mesmo tempo, uma suspensão mais radical do direito de Estado
pelo tráfico varejista de drogas está presente nos tribunais do Primeiro Comando da
Capital (PCC)71, com a formulação de estatuto, formação de um corpo social
especializado e um padrão de atuação (DIAS, 2009). Camila Caldeira Nunes Dias
trabalha com as categorias de Le Roy de ordem aceita, negociada imposta e
contestada72. Para a autora, a disseminação dos tribunais do PCC indicaria a
passagem de uma ordem contestada para uma ordem negociada, enquanto:
a generalização dos tribunais, a importância da mediação dos conflitos por terceiros e a consequente recorrência às normas preestabelecidas podem indicar o desenvolvimento em direção à ordem imposta, marcada pela transformação dos conflitos em litígios, nos quais é central a atuação do juiz, encarregado de definir sanções e punições de acordo com as regras codificadas no estatuto do PCC (DIAS, 2009, p. 98).
Essa transmutação é caracterizada pela substituição de categorias individuais
ou de grupos por categorias sociais e por uma aproximação das práticas do direito
jurídico oficial. É importante destacar que a aproximação que apontamos aqui dos
diversos agentes atuantes nas favelas ao direito oficial é precária no caso do 71 O PCC é uma “organização de criminosos” que surge no Anexo da Casa de Custódia de Taubaté em 1993. O grupo se expandiu continuamente dominando o presídio onde nasce, a maior parte das unidades prisionais paulistas, em seguida, vários bairros e favelas pobres da região metropolitana de São Paulo, hoje se expandindo para outras partes do país, como Fortaleza. Segundo Dias (2009), “Nas áreas sob sua influência, o PCC controla desde o tráfico de drogas até o roubo de cargas e de bancos, sequestros, assaltos a empresas de transporte de valores e a prédios de luxo, etc.”. 72 “Esquematicamente, o autor aponta quatro visões de ordem social: ordem aceita, na qual as partes regulam suas próprias diferenças; ordem negociada, na qual a intervenção de um terceiro é necessária na resolução dos conflitos e na qual as normas jurídicas são modelares, embora não sejam imperativas; ordem imposta, em que os conflitos se transformam em litígios, submetidos a um juiz que deve aplicar o direito positivo; ordem contestada, em que as normas jurídicas são completamente ignoradas e não há autoridade que se interponha entre as partes em conflito, cada qual utilizando os meios que tem à sua disposição, prevalecendo, assim, a lei do mais forte” (DIAS, 2009, p. 87).
116
narcotráfico varejista quase exclusivamente baseado na violência e na coação.
Nenhuma dessas organizações ou a soma delas é capaz de configurar uma
estrutura de Estado.
Podemos ainda destacar a atuação dos próprios agentes de Estado no
mesmo sentido. Nos trabalhos de campo, foram observadas as atuações, mesmo
que de forma também precária, da polícia, fiscais da prefeitura, oficiais de justiça,
funcionários do Posto de Orientação Urbanística e Social (POUSO), da Região
Administrativa (RA), etc. Seria redundante descrever o compromisso dos agentes do
Estado com o direito jurídico oficial. Importante agora é chamar a atenção para a
precariedade com que os agentes internos ocupam as “brechas” (DIAS, 2009)
deixadas pelo Estado nas favelas e a precariedade com que atuam também os
agentes de Estado nessas áreas, se destacando em determinados momentos por
suspensões de direito como nos casos dos mandados de busca coletivos.
Segundo Magalhães (2010), Luciano Oliveira destaca a arbitrariedade com
que operam os diversos agentes dentro das favelas. Essa característica estaria
presente nas organizações estatais ou não estatais. Para o autor: “as conclusões de
Luciano Oliveira constituem mais uma evidência de que o caráter despótico, ou
arbitrário, está presente e imbricado nas diversas formas jurídicas, não sendo algo
exclusivo ou peculiar das práticas jurídicas das agências internas da favela”
(MAGALHÃES, 2010, p. 117).
Um dos exemplos disso seriam as práticas judiciárias da polícia, estudadas Luciano Oliveira, que afirma que elas “não configuram apenas uma inocente instância apaziguadora de brigas de vizinhos; elas também são práticas que reproduzem o arbítrio e a dominação” (MAGALHÃES, 2010, p. 116).
Parte da arbitrariedade pode ser explicada pela precariedade do acesso da
população às instituições do Estado. Tal precariedade coloca as organizações que
atuam localmente na posição de mediadores, como demostra o depoimento de um
morador da Favela 1.
A UPP [Unidade de Polícia Pacificadora] resolvia tudo, o cara estava precisando de uma manilha, falou com o major, no dia seguinte estava pronto, “mas não é papel dele, tem que falar com a RA, [...] mas falar com a RA é o mesmo que nada”. Você tira o tráfico e bota a polícia, ela decide tudo, mas não é ela que tem que resolver as coisas (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).
117
Houve um caso Morro do Turano73 onde, devido a uma chuva, um poste havia
caído na entrada da casa de uma moradora que em seguida acionou a Light.
Segundo a moradora, a empresa deu como resposta o prazo de seis meses a um
ano para resolver o problema. Não podendo aguardar, a moradora acionou a
Associação de Moradores que entrou novamente em contado com a Light que,
dessa vez, resolveu o problema no mesmo dia. No caso, a arbitrariedade está
presente também na forma de agir do agente supralocal. Se já existe um
componente de arbitrariedade nas instituições oficiais de Estado, ela se potencializa
com a estigmatização da área. A barreira entre o morador e os agentes supralocais
faz com que os casos, ou parte deles, sejam resolvidos no nível local.
A mediação com relação a sujeitos e agentes supralocais exercida por
agentes locais pode se apresentar como uma forma de diminuir as barreiras aos
direitos sociais e potencializar as reivindicações e realizações em nível local ou
supralocal. Esse é o caso quando o agente local de mediação (geralmente
Associações de Moradores) consegue promover certo nível de coesão social e se
configurar como instância de representação. Mas também pode ser capitalizada por
determinado grupo e se tornar um meio de dominação no nível local. Nesse caso, a
mediação do agente local se configura em mais uma fonte de arbitrariedade que
pode ser capitalizada e chegar ao nível de ser transformada em pequenas
negociatas acerca de favorecimentos.
Para ilustrar a segunda situação podemos apresentar casos em que os
benefícios das obras de urbanização e os reassentamentos foram capitalizados por
organizações locais. Vamos nos ater a um depoimento. No seminário interamericano
de regularização urbanística e fundiária da cidade do Rio de Janeiro, organizado
pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro em parceria com o Lincoln Institute Land
Policy, uma moradora da favela Indiana, localizada aos pés do Morro do Borel, na
Tijuca, relata o processo na favela onde mora e indica que há outros casos
semelhantes em outras favelas. Segundo a moradora, a prefeitura, com recorrência,
deixa a distribuição dos apartamentos para a Associação de Moradores ou negocia
com o “poder paralelo”.
Favela Indiana. O laudo da Geo-Rio de 2010 é de baixo risco, então nós todos (eu não sou engenheira) entendemos que se é baixo risco tem que
73 O caso ocorreu durante a execução do trabalho de regularização fundiária do Morro do Turano, do qual o autor participou.
118
entrar e fazer obra, até médio risco tem lá as características, as condicionalidades, [...] e tem o alto risco que aí realmente tem que remover. Mas no caso da favela Indiana (baixo risco), especulação imobiliária. A secretaria entrou na comunidade Indiana a todo vapor com o poder coercitivo. A lógica era doar apartamentos pelo Morar Carioca MCMV [Minha Casa Minha Vida]. Isso se tornou um pesadelo pra nós, porque o que acontece? Simplesmente nós estávamos entendendo que para cada família que fosse ser removida, não tem laudo, não tem nada que justifique a remoção da favela Indiana, não tem um projeto que justifique a remoção da favela Indiana na gestão passada, e ainda não tem, e o que acontece? — “Não, tem que sair! Tem que remover! Está do lado do rio! Está na beira do rio!”. E tem apartamentos, tem prédios dentro do rio, mas estão lá. Moram juízes, moram professores, moram engenheiros, então não mexe, com favelado tem que remover. O que entendemos então? uma casa, um apartamento. Não! Uma casa, até 11 apartamentos foram sendo distribuídos e as pessoas lá da secretaria de habitação negociavam também, apartamentos, com o “poder paralelo”. Isso não acontece só na Indiana não, mas na Indiana foi muito explícito. O que eu quero dizer pra vocês, é dinheiro público. O que eu quero dizer pra vocês, é falta de ética. O que eu quero dizer pra vocês, é falta de respeito com os moradores. O que eu quero dizer pra vocês, é a falta de respeito até com as instituições federais, por que dão a um presidente de Associação de Moradores: — “olha, quando você quiser seus apartamentos, você pega eles com o presidente da Associação de Moradores”. É assim que se distribui apartamentos? É assim? Então assim, eu espero realmente que as construções que saiam daqui, realmente a gente passe a fiscalizar, a observar mais [...] está entendido? Agora está entendido mais ou menos? Deu pra entender? Essa coisa do “poder paralelo”. O poder público entrar e ficar negociando com o “poder paralelo”, desrespeitando o morador.
Chama a atenção no depoimento da moradora como a prefeitura desrespeita
parâmetros da política pública redirecionando um recurso que deveria servir à
garantia de direito dos moradores em privilégios para a Associação de Moradores e
tráfico varejista de drogas. Essa cessão de privilégios tem o poder de desmobilizar
possíveis reações aos projetos de remoção promovidos pela prefeitura e, ao mesmo
tempo, aumenta os poderes das instituições beneficiadas. É importante chamar a
atenção também para a demanda pelo acesso direto aos direitos pelos moradores,
ou seja, a rejeição da Associação de Moradores como agente mediador.
Para nós, nesse momento, não importa o impacto desses processos na
distribuição da moradia. O que queremos chamar a atenção é como a abstenção do
Estado na resolução de determinados conflitos abre caminho para que determinados
agentes locais atuem de forma arbitraria ou até mesmo chantageiam os moradores.
Isso não significa que o Estado não possa atuar de forma arbitrária (a própria
negação da resolução do conflito já é uma forma de arbitrariedade) ou que os
agentes locais não possam utilizar critérios rigorosos e justos de distribuição74.
74 Segundo o jornal O Globo, o atual presidente da Associação de Moradores da Babilônia, André
119
Inclusive, a delegação desse tipo de decisão para grupos autogeridos coesos e
representativos (podemos encontrar exemplos nos diversos movimentos de luta por
moradia) tem se mostrado uma possibilidade democrática. Porém, fazer o mesmo
em áreas onde não há essa coesão pode significar uma simples distribuição de
poderes para determinados grupos através das instituições que eles dominam e o
fortalecimento de mecanismos de dominação no nível local.
Outro fato importante é que os agentes locais, no caso das favelas, não são
capazes de formar um sistema de normas e nem corpos técnicos especializados que
garantam um padrão de resolução de conflitos. Isso significa que as questões
edilícias, disputas de propriedade, etc. que são resolvidas localmente, são resolvidas
caso a caso e pelo mesmo grupo de pessoas que pode ser a Associação de
Moradores, o tráfico varejista, etc. e que estão comprometidos com o fim de suas
atividades (política, comercial, etc.). A negociação com o narcotráfico varejista nesse
caso só pode significar o fortalecimento de mecanismos de opressão, já que esse
agente não teria a possibilidade de se configurar num agente de coesão e
representação e detém como característica essencial o poder coercitivo armado.
Esses exemplos se afastam, de certa forma, do tema da instituição da
propriedade fundiária, mas servem para demonstrar como a estigmatização e
criminalização de determinados espaços (falamos das favelas, mas poderíamos
buscar outros exemplos) criam zonas de exceção que podem ou não ganhar um
caráter oficial, mas que permitem ao Estado agir com um nível maior de
arbitrariedade nesses espaços. Isso se reflete nas remoções injustificadas, como no
caso exposto aqui do Morro da Providência, nos mandados coletivos de busca que
ferem direitos constitucionais, no bloqueio de acesso às instituições supralocais
(inclusive estatais), entre outros incontáveis exemplos, e confere aos agentes locais
um poder de determinação sobre assuntos que, de forma geral, estão a cargo do
Estado. Assim como no caso exposto sobre o atendimento da Light, outras
instituições supralocais também têm acesso quase exclusivo via Associação de
Moradores, como na atuação observada em campo dos oficiais de justiça.
Essa configuração confere uma importância para os agentes locais nas
favelas que vai para além do que normalmente é encontrado em outras partes da
Constantine, entende que os apartamentos deviam ser distribuídos a partir de dois critérios, idade e risco da moradia anterior. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/prefeitura-entrega-na-sexta-feira-primeiras-16-unidades-de-predio-verde-em-favela-do-leme-7834945
120
cidade. Por exemplo, enquanto a regulação da atividade construtiva nas favelas está
geralmente nas mãos da Associação de Moradores, no caso da Babilônia essa
mesma competência, na maior parte da favela, esteve nas mãos do exército até os
anos 80, o que configurou regras completamente diferentes. Segundo uma
moradora, o filho que saísse de casa não poderia construir na favela, teria que sair.
Isso se reflete na configuração espaçada e rarefeita das construções nessa parte da
Babilônia. Isso demonstra a heterogeneidade da estrutura do mercado imobiliário
nas favelas e como essa heterogeneidade é reflexo da descentralização de
determinadas decisões e da atuação diferenciada dos diferentes agentes que atuam
localmente nas diversas favelas.
Assim como os agentes locais têm motivos para reproduzir em grande medida
o direito jurídico estatal eles têm motivos para transgredi-la, assim como acontece na
cidade formal. Mas os constrangimentos às transgressões tendem a ser menores
nas favelas, visto que os sistemas de controle social inexistem ou são muito
precários, além da já comentada impossibilidade da formação de instituições
especializadas que criem normas e solucionem conflitos baseados em parâmetros
técnicos.
A precariedade do controle estatal e do controle social terá rebatimento nas
possibilidades de regulação da construção nas favelas e na forma como se
desenvolvem suas rendas fundiárias e é desse assunto que trataremos de forma
breve no próximo subcapítulo.
3.1.2 Breves notas sobre a renda fundiária na favela75
Tratávamos no subcapítulo anterior da precariedade do controle social e do
controle estatal e da falta de parâmetros estabelecidos pelo conjunto da população
para a solução de conflitos nas favelas. Um rebatimento dessa forma de
organização na regulação da construção e na forma como se desenvolve a
propriedade fundiária e, por consequência, as suas rendas, está na baixa
capacidade de estabelecimento de parâmetros construtivos no que diz respeito à
volumetria das construções e na quase nula ou nula capacidade no que diz respeito
75 Importante destacar que esse subcapítulo é composto por reflexões ainda pouco amadurecidas sobre a renda fundiária na favela. Não tivemos contato com nenhum trabalho que refletisse sobre as formas de renda nas favelas. Dessa forma, nos baseamos nos trabalhos levantados sobre o mercado imobiliário em favelas, sobre as rendas fundiárias de forma geral e nas entrevistas realizadas para essa dissertação.
121
ao interior das construções. Podemos dizer que, se na cidade formal estabelecemos
uma série de normas e parâmetros que podem ser usados para diversos fins,
inclusive o papel de restringir a liberdade dos proprietários e contribuir para a melhor
qualidade dos espaços internos e externos, nas favelas a liberdade construtiva tende
a ser menos restringida. A essa característica, Abramo (2007, p. 37) atribuiu a
qualidade de externalidade que seria própria da favela.
As favelas das áreas centrais ou com alto valor dos imóveis no entorno têm
uma configuração peculiar. Suas localizações são inacessíveis pelo mercado
imobiliário formal para a maior parte da população e a liberdade construtiva dessas
favelas permite a construção de moradias com baixo padrão de materiais, baixa
metragem das unidades, etc. Essa configuração permite disponibilizar habitações a
preços acessíveis para uma população que jamais teria acesso a essa localização,
mantendo alto o preço do metro quadrado construído. A consequência disso é que o
proprietário dos imóveis dessas favelas (pelo menos o que constrói para o extrato
mais baixo da favela) é posto em uma posição onde detém o importante papel de
produzir habitação para uma população que de outra forma não teria acesso a essa
localização e, ao mesmo tempo, o coloca na condição de cobrar o preço mais alto
dentro das possibilidades do comprador/locatário. Esse é o comportamento típico
das rendas de monopólio, mas, ao contrário dos casos clássicos onde a
compra/locação se dá por moradores de alto padrão ou a compra/arrendamento se
dá por produtores cujo produto é muito raro ou exige um alto nível de
especialização, aqui os moradores são pressionados pela concorrência da demanda
e pela impossibilidade de acessar outras moradias a sacrificar o máximo possível os
seus ganhos. Esse seria um dos fatores explicativos da proliferação dos prédios de
quitinetes nas favelas.
Essa hipótese tem consequências importantes. A renda não apenas é um
determinante dos preços praticados para o tipo específico de residência, como é um
importante determinante que atua sobre o tipo de construção a ser produzida. Assim
como nos grandes centros urbanos, o alto preço da terra é um importante
determinante para a construção dos monólitos verticais76 que aproveitam ao máximo
76 Segundo Lukács (Apud, DUAYER, 2008, p. 108) “Destruidora e abstrativamente sobre a missão social confiada à arquitetura. O efeito útil social concreto de cada construção perde sua peculiaridade sensível, isto é, pode realizar-se - no que diz respeito à utilidade pura - com toda comodidade, sem ter que determinar um espaço interno e externo que levem à intenção visual aquela função. Por isso
122
o terreno, a construção de grandes monumentos da arquitetura contemporânea é
resultado da busca por rendas de monopólio (ARANTES, 2010). Uma renda de
monopólio resultante da liberdade construtiva na favela pode ser um forte
determinante de uma tipologia construtiva que se aproprie dessa externalidade.
Dessa forma, seria a construção de unidades de dimensão mínima uma forma de
extração de rendas de monopólio em favelas com o entorno caracterizado pelo alto
valor da terra. No entanto, a extração da renda de monopólio, nesse caso, só é
possível se houver uma massa demandante que tenha acesso exclusivamente por
esse mercado. Dessa forma, se a demanda estiver abaixo de certo nível - seja
porque seus ganhos passaram a possibilitá-los acessar outros mercados ou porque
os outros mercados passaram a atingir a sua faixa de renda -, a renda de monopólio
deve desaparecer. Por isso, essa deve ser uma forma de renda exclusiva das
favelas localizadas nos centros urbanos e áreas valorizadas.
Igualmente se tem defendido que tem surgido uma nova forma de extrair
rendas de monopólio nas favelas a partir de um marketing urbano capaz de
transformar as favelas em um patrimônio único inigualável. Podemos retomar o caso
da arquitetura contemporânea onde a criação de emblemas únicos e irreprodutíveis
garantem a geração das rendas de monopólio. Segundo Arantes:
O Guggenheim Bilbao é bem-sucedido não apenas como surpreendente aparato técnico/estético, como também, ou sobretudo, enquanto estratégia rentista. Ao ser divulgado pelos canais midiáticos como o ápice da produção arquitetônica recente, gerou fabulosas rendas de monopólio para os diversos agentes envolvidos (ARANTES, 2010, p. 95).
O desvalorizado porto de Bilbao, ao receber o monumental projeto de Frank
Gehry, passa por um processo de ressignificação que associa “as marcas
um estabelecimento público de banhos pode ter um mesmo aspecto que uma oficina, uma fábrica ou uma igreja, ou ao contrário, sem deixar de oferecer por isso do, ponto de vista geométrico, uma solução perfeita. (Isto mostra até que ponto se trata de uma forma complementar da arquitetura eclética da segunda metade do século XIX. A contraposição completa dos princípios construtivos, do conteúdo emocional das superfícies apresentadas etc., não suprime esse profundo parentesco, que é a decadência da concreta missão social até chegar em uma abstração indiferente para com toda a objetividade). A decadência da missão social, ou melhor dizendo, sua conversão em algo totalmente abstrato, como a exigência da construção vertical em consequência do encarecimento da renda do solo urbano, aporta uma “liberação” em relação de todos os postulados “antiquados”, ou seja, em relação à tarefa de criar um espaço concreto próprio para o homem. Assim, pois, na medida em que as formas construtivas não estão dominadas por uma excentricidade completamente caprichosa - o que não ocorre senão em casos excepcionais - um tal predomínio do geométrico é facilmente compreensível”.
123
Guggenheim, Bilbao, Gehry, Dessault numa alavancagem midiática conjunta”
(ARANTES, 2010, p. 95). No caso descrito por Arantes, apesar de existirem outros
fatores envolvidos, a obra construída é fundamental para a criação do emblema. No
caso das favelas do Rio de Janeiro, apesar do investimento na urbanização,
policiamento, teleféricos, etc. o fundamental para a produção de uma marca única
está na localização, na peculiaridade da formação geográfica e na população local e
seu patrimônio. Ou seja, no caso das favelas a produção do emblema exige o
mesmo esforço midiático, porém o que as torna potencialmente especiais já está
dado de antemão, podendo-se abrir mão de grandes investimentos construtivos. Se
consideramos o espaço construído da favela como um patrimônio construído pelos
seus moradores e, também, em grande medida, pelo Estado, podemos entender que
em grande medida esse processo se trata da ressignificação e apropriação privada
desse patrimônio. No entanto, passados a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos
Olímpicos de 2016 e recuados os investimentos públicos nas favelas do Rio de
Janeiro, podemos considerar que, não houve grandes avanços no que diz respeito à
“invasão” de grandes incorporadores e especuladores, ainda que a valorização
imobiliária nesse período ainda deva ser averiguada.
Sobre as rendas diferenciais e como elas funcionam no interior das favelas,
não é necessário fazer muitas considerações, mas, nas entrevistas realizadas nas
favelas pesquisadas, surgiram dois aspectos que parecem ter maior importância na
apropriação das rendas diferenciais: a proximidade às ruas onde é possível o
acesso de carros e a menor densidade construtiva. Importante destacar que na
maioria dos casos essas são características que se opõem.
Sobre a localização em relação à rua, o corretor da Imobiliária 1 aponta que a
dificuldade de acesso no momento da construção já é um aspecto que reduz os
ganhos. Para ele, o investimento inicial já vai ter que ser maior e o retorno após a
venda menor.
Você sabe mais ou menos quanto vale qualquer coisa, porque vive o dia a dia daquilo, ajudou a construir a favela, não importa se o cara gastou... Se um cara, vamos supor gasta 30 mil pra construir aqui embaixo, se ele construir a mesma casa lá no meio da favela, ele vai gastar 60, isso não quer dizer que amanhã ele queira vender lá e que ele nem tire o seu dinheiro, você gastou, gastou em um lugar impróprio, em um lugar inadequado, para você ter um valor do seu imóvel. Quer vender, vai vender, mas não achando que você gastou milhão e vai tirar o seu milhão, aí foi porque você investiu no lugar errado, problema é seu. Então passa a vida morando nele (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1).
124
O custo para a produção da casa em locais sem acesso de carro também foi
enfatizado por diversos entrevistados na Favela 1 e na Favela 2. Na Favela 2,
inclusive, é utilizado um jargão que diz que no morro, pra construir uma casa, tem
que ter dinheiro pra duas ou três.
Pra fazer casa aqui, você tem que fazer duas pra morar em uma, você paga pra fazer pro pedreiro e paga pra subir. É diferente de na rua. Na rua, você joga o material ali, o cara faz rapidinho, pronto, acabou. Aqui não. Aqui você tem que botar nas costas mesmo e haja peso, né? (PROPRIETÁRIO 3, FAVELA 2)
Porque se você quiser fazer uma casa em uma comunidade, você tem que ter dinheiro pra fazer três. Uma pra você morar, o equivalente você vai pagar pra um pedreiro e o equivalente você vai pagar pra alguém carregar o material pra você. Porque um saco de cimento de 50 kg ninguém sobe uma área de 100, 150 metros de altitude com menos de 15, 20 reais: você paga 25 reais num saco de cimento e paga mais 20 pro cimento chegar na sua casa. A dificuldade é enorme (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).
Sobre a construção, as favelas em declive têm agravantes. Em primeiro lugar,
a subida é mais desgastante que o transporte em áreas planas. Em segundo, as
ferramentas para transporte de materiais foram desenvolvidos para áreas planas.
Em Manguinhos, em uma área sem acesso de carro, presenciamos o transporte de
10 sacos de cimento de 50 kg em um carrinho por apenas uma pessoa. O mesmo
método de carregamento jamais poderia ser aplicado em escadas ou mesmo
ladeiras devido ao peso, forçando o transporte sem instrumentos ou com
instrumentos suspensos pelo trabalhador, como a padiola.
Além do custo de construção o acesso a bens de consumo apareceu como
um aspecto importante também.
— Não tem jeito, têm que consumir, as pessoas precisam consumir. É um refrigerante, é uma cerveja, é um cigarro, é um biscoito, é um óleo. O cara não quer ir lá na rua comprar. Se ele for na rua, ele vai ter que caminhar ou pagar um moto táxi ou pagar uma Kombi. Aí o gasto é maior. Aí você tem que fazer essas contas: — “se eu for lá na rua, eu vou pagar um real a menos que aqui, ainda vou pagar a moto ou a kombi que é 3, então prejuízo já é de 477“, então compra aqui mesmo. — Aqui é mais caro do que lá em baixo? — Aqui é mais caro, com certeza, mas aí você tem essa avaliação. Porque se não você vai comprar lá na rua pensando que vai pagar a menos, mas aí você já pagou a diferença no transporte, já pegou chuva ou então já pegou um calorão tremendo, já andou mais, isso vai trazendo uma série de
77 O entrevistado somou o custo de transporte com o desconto na compra quando na verdade deveria subtrair. No caso, considerando o desconto de 1 real comprando “na rua”, o prejuízo seria de 2 reais se o suposto comprador pagasse apenas o trecho de subida (o que é comum) ou 5 se pagasse os dois trechos.
125
análises que você tem que fazer, até pra influenciar no aluguel. É o que eu te falo, um contrato vai melhorando o outro (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).
Mesmo após a construção, o custo de vida na casa deve ser afetado pelo
local em que se encontra em relação à rua.
Em contraposição, a baixa densidade das áreas mais altas dessas favelas
também é vista como um atrativo.
[Parte alta da Favela 1] é o pulmão da [Favela 1], não sei se é a área mais cara, mas é a melhor (PROPRIETÀRIO 1, FAVELA 1).
O melhor lugar é próximo à ladeira você acha? Em tese, se imagina que é melhor, né? Mas, dependendo do ponto de vista, tem pessoas que estão vindo morar aqui que querem morar na parte mais alta, porque vai morar no meio da mata, vai morar com vista pro mar... (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2)
Não temos informação sobre os preços dos imóveis próximos à rua em
relação ao preço dos imóveis nas áreas de mais baixa densidade. No entanto,
podemos dizer que as vantagens dos imóveis próximos à rua e a procura por esses
imóveis foram muito mais enfatizadas nas entrevistas do que o mesmo para as
áreas de baixa densidade.
O próximo subcapítulo destina-se à análise de alguns condicionantes que
precedem a formação das favelas e que podem influenciar no nosso objeto, em
especial nas formas de percepção da propriedade fundiária.
3.1.3 Condicionantes precedentes
A tese geral do marxismo de que os homens fazem a sua própria história, ainda que não sob circunstâncias que eles mesmos escolhem, vale, portanto, não só para a humanidade como um todo, não só para complexos sociais que a constituem, mas também para a vida de cada homem singular (LUKÁCS, 2013, p. 433).
As singularidades de cada favela são produzidas pelo seu desenvolvimento
sócio-histórico, constituindo suas formas de organização, estruturas de poder,
cultura, etc. No entanto, nada surge numa tábula rasa e a favela como um fenômeno
urbano específico da modernidade, não poderia ser diferente. As condições de
existência e desenvolvimento das favelas são estabelecidas pelas condições gerais
do capitalismo em sua totalidade (universal, categorias da essência), que aqui temos
examinado por meio de categorias como a acumulação primitiva, renda da terra, etc.
126
Ao mesmo tempo, há condicionantes determinados pelo desenvolvimento particular
do capitalismo em cada país, com suas estruturas fundiárias, legislações, etc.
Poderíamos falar também da estrutura urbana ou da política municipal. O que
queremos destacar aqui é que existe uma série de condicionantes que estão
presentes em categorias que vão desde a totalidade que é o capitalismo até as
singularidades de cada território favelado e que parte desses condicionantes já
estão postos antes mesmo da formação das favelas. O próprio surgimento da favela
em determinado terreno depende de parte desses condicionantes. São terrenos
desvalorizados, abandonados, com fragilidades geológicas, alagadiços, com
conflitos jurídicos, etc. Sendo assim, a partir da ocupação do primeiro indivíduo ou
grupamento, a favela passa a constituir sua própria história, certamente
condicionada por inúmeros aspectos da realidade, mas também transformadora
dela.
Os determinantes em nível local são os mais variados e abrangem aspectos
culturais, sociais, históricos, etc. No caso do Rio de Janeiro, escolhemos destacar a
localização, a situação jurídica e a topografia, por se tratarem de aspectos de fácil
identificação e com melhor possibilidade de generalização. Isso nos permite variar
os exemplos e permite ao leitor relacioná-los com casos conhecidos, além de serem
aspectos que, nos trabalhos de campo, pudemos relacionar a formas de percepção
da propriedade pelos moradores. Não é de nosso interesse aqui desenvolver
longamente sobre esses determinantes locais, porém é importante tratar de alguns
exemplos.
Localização
Podemos começar pelo aspecto que já foi comentado antes, a diferença entre
as favelas inseridas em áreas com alto preço da terra e as favelas inseridas em
áreas com baixo preço da terra. A primeira coisa a chamar a atenção é a mais fácil
delimitação das favelas nas áreas com alto preço da terra em contraposição à quase
indiferenciação das favelas em áreas com baixo preço da terra. Segundo Luciana
Andrade78, durante os anos da implementação do programa Favela-Bairro, alguns
bairros periféricos requisitaram o programa visto que as favelas que receberam o
programa passaram a apresentar infraestrutura superior à de determinados bairros.
78 http://piniweb17.pini.com.br/construcao/noticias/favela-bairro-84614-1.aspx
127
Outro fator importante é a tendência das favelas inseridas em áreas com alto
preço da terra apresentarem densidade mais alta e disponibilidade de terra mais
baixa. Abramo (2007) caracterizou essas favelas como consolidadas e inelásticas,
porém, encontramos em algumas dessas favelas, apesar da indisponibilidade de
terra, um movimento considerável de demolição-construção densificando e
verticalizando algumas áreas. Não temos maiores informações do quanto essa
disponibilização de novas residências é significativa, mas devemos considerar essa
possibilidade.
Outros fatores também influem de forma flagrante na densidade da favela e
em determinados momentos contradizem a relação com o preço da terra no entorno.
Por exemplo, a proximidade de alguma centralidade. Favelas localizadas na zona
portuária, ou seja, próximas à Central do Brasil79 e ao Centro da cidade, ou favelas
localizadas ao longo das estradas de ferro e da Avenida Brasil80, ou seja, perto de
importantes meios de transporte e onde se localizaram diversas indústrias,
apresentam densidades maiores que favelas localizadas na Barra da Tijuca, que
exerce uma centralidade há bem menos tempo. Outro exemplo é a Babilônia, que
apesar de se encontrar em uma das áreas mais valorizadas da cidade e próxima ao
importante centro de comércios e serviços de Copacabana, foi regulada pelos
militares desde a sua formação até a década de 80.
Situação jurídica
Já chamamos a atenção nessa dissertação para o fato de significativa parte
das favelas terem sido ocupadas com algum tipo de autorização do dono do terreno
(SILVA, 2005, p. 101). Mas no que isso pode rebater no desenvolvimento das
favelas, ou, pelo menos no entendimento dos moradores sobre a propriedade da
terra? Faz alguma diferença se os moradores da Vila Autódromo81 bradam: “nós não
somos favela!” e os da Favela 1 dizem: “aqui nós não somos donos, donos da casa,
não da terra”?
79 Principal estação de trem do Rio de Janeiro. Concentra todas as linhas ferroviárias que partem para a periferia metropolitana norte e oeste. Além disso, se encontra próxima a um dos mais importantes terminais de ônibus da cidade e a principal estação de integração entre as linhas verde e laranja do metrô. 80 Com 58,5 km é a principal via da cidade. Liga o centro ao norte e oeste do município e algumas das principais rodovias da região, como a Rio-Santos e a Washington Luís. 81 A Vila Autódromo é uma favela localizada em uma área hoje valorizada. Historicamente engajada na luta contra a remoção, conquistou em 1997 a titulação de 104 famílias pelo Governo do Estado.
128
Silva e Huguenin (2014 [2011]) demostram que a percepção da legitimidade
da propriedade vai ser reforçada não apenas pelo processo de troca, como exposto
anteriormente, mas também pela forma de acesso à terra pelos moradores originais.
É o que mostra o caso do Bairro Barcelos, localidade da Rocinha loteada pela
Companhia Cristo Redentor, empresa que nunca conseguiu regularizar situação do
loteamento frente aos órgãos públicos. Hoje, parte dos moradores recebeu o
documento de Legitimação de Posse82, porém, no momento do estudo, isso ainda
não havia ocorrido. Em entrevista coletada por Leitão (2004) e exposta por Silva e
Huguenin (2014 [2011]), um morador da Rocinha expõe a situação.
Quando vendeu aqueles terrenos, a Companhia de terrenos Cristo Redentor passou essa ideia para os moradores: vocês são diferentes, são melhores do que o restante da Rocinha. O segundo ponto é que, bem ou mal, existia esgoto no bairro Barcelos (...). As casas do bairro Barcelos eram todas em alinhamento, o arruamento era bom. O pessoal de cima tinha raiva do pessoal de baixo, que queria ser diferente (SILVA; HUGUENIN, 2014 [2011], p. 267).
Alguns depoimentos que coletamos indicam a mesma dualidade no discurso
de moradores que compraram seus terrenos de loteamentos e “invasores”. O
depoimento reproduzido a seguir é de um corretor imobiliário atuante na Favela 1.
A parte baixa hoje tem um documento que a prefeitura forneceu, quase chama termo de posse e moradia, é uma escritura... Escritura “simbólica”... Aqui embaixo não é posse, na verdade aqui é da [retiramos o nome da empresa loteadora para manter o sigilo da favela]. Aí eles foram vendendo, mas nunca desmembraram, por isso não existe escritura definitiva, mas aí ele deu... Fizeram o cadastramento dos proprietários... (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1).
A ideia de que “aqui não é posse”, em contraposição ao restante da Favela 1,
é sintomático dessa dualidade. A forma como funcionam as transações imobiliárias
na parte que foi loteada pela empresa e no restante da favela não parece se alterar
significativamente, mas aparece claramente no discurso o entendimento que na área
loteada os proprietários são donos da casa e do terreno e no restante são donos
apenas da casa, ou seja, da benfeitoria. Segue a fala do mesmo corretor quando
questionado sobre as propriedades nas áreas que não fizeram parte do loteamento.
82 Instrumento de reconhecimento da legitimidade da posse que registra a identificação de seus ocupantes, do tempo da ocupação e da natureza da posse. Esse instrumento deve ser convertido em direito real de propriedade com a efetivação da regularização fundiária, o que dura cerca de 2 anos. Sobre o processo na rocinha ver: https://oglobo.globo.com/rio/prefeitura-da-titulos-de-legitimacao-de-posse-de-imoveis-moradores-da-favela-da-rocinha-14776353
129
Existe uma benfeitoria, quem construiu não tem... Aí se recomenda a fazer um registro, quem não tem nada, se recomenda fazer um registro depois de construído, a associação não registra terreno, faz o registro da benfeitoria, e muitas vezes nem faz, faz o compra e venda, ele que construiu mesmo, é a mesma coisa, faz o particular de compra e venda e passa para o outro, e assim vai passando (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1).
A ideia de que os proprietários de imóveis nas favelas são donos da
benfeitoria, mas não da terra, é algo bastante difundido. Essa ideia apareceu
também nas entrevistas na Favela 2. A entrevista reproduzida a seguir foi concedida
por uma secretária eleita na Associação de Moradores da Favela 2.
Por exemplo, aqui nós não somos donos, donos da casa, não da terra, então aqui não tem escritura, o que a gente faz é ficha do morador constando onde ele mora. Não tem uma documentação específica. Só venda, quando você vai vender uma coisa... Você tem uma casa, aí você não tem escritura daquela casa. É um documento pra comprovar que você transferiu aquela casa pra outra pessoa, porque na verdade aquilo perante a justiça não tem valor, porque não tem um título, você não é dono da terra, então perante a justiça aquilo não é nada (ASSOCIAÇÃO DE MORADORES 2, FAVELA 2).
É difícil saber precisamente como é difundida com tanta clareza a separação
entre propriedade fundiária e a propriedade da benfeitoria e a imagem que os
proprietários de imóveis em favelas não são proprietários da terra, mas podemos
considerar que a remoção como política permanente83 do Estado no Rio de Janeiro
há cerca de um século contribui para essa difusão. Nos processos de remoção, essa
separação aparece claramente quando os cálculos de indenização desconsideram a
terra e o trabalho investido na construção, ou seja, o cálculo é feito com base no
apenas custo dos materiais empregados.
Outra característica importante relacionada à origem do processo de
ocupação é a morfologia. O fato de o processo de parcelamento, por mais que seja
ilegal, ser centralizado, aumenta as chances dos loteamentos terem maior
regularidade. Podemos seguir no caso do Bairro Barcelos em relação ao restante da
Rocinha. Segundo Leitão (2004), alguns relatos já apontaram para essa diferença na 83 Segundo Galiza, Vaz e Silva (2014, p. 535), “sobre o deslocamento de moradores pobres nestes contextos, observa- se que apesar de assumir crescentes dimensões e visibilidade em função dos grandes eventos e obras, a análise em diferentes momentos revela uma ação política que se mostra historicamente permanente,- mesmo se considerando as diferentes denominações e conjunturas. A obra de uma via, uma construção em área que se valoriza no mercado imobiliário, a “limpeza” de áreas especiais, enfim uma variedade de interesses e motivações cotidianas são fatores que as justificam, quer sejam expulsões, despejos judiciais ou remoções forçadas. A cotidianidade e a permanência da “solução remoção” no imaginário de autoridades públicas e classes altas e médias, faz refletir sobre a existência de uma “cultura de remoção” desde o final do século XIX até os dias de hoje”.
130
morfologia.
O quadro de estratificação sócio-espacial descrito por Drummond (1981) é também apontado numa extensa reportagem sobre a Rocinha, publicada pelo Jornal do Brasil, em 197984. De acordo com a reportagem, o Bairro Barcelos, situado na parte baixa da favela, junto à auto-estrada Lagoa-Barra, se destaca na paisagem da comunidade pela “maior disciplina das edificações” (LEITÃO, 2004).
As imagens de satélite do Google Earth deixam bem clara a diferença no
traçado, como mostra a imagem a seguir. A área contornada é a área loteada do
Bairro Barcelos.
Figura 5: morfologia - área loteada do Bairro Barcelos em contraste ao restante da Rocinha.
Fonte: Google Earth.
A Formiga na Tijuca apresenta esse mesmo contraste.
84 “Rocinha, Cidade aberta: à luta, à vala e ao mutirão”, 31 de maio de 1979.
131
Figura 6: morfologia - área loteada da Formiga em contraste ao restante da favela.
Fonte: Google Earth.
Essa diferença é importante porque o traçado reticulado parece ser de mais
fácil fiscalização, tanto por agentes locais como supralocais e a persistência desse
traçado em diversas favelas é um sinal de que ele impõe dificuldades à transgressão
dos lotes por seus proprietários, ou seja, é mais visível qualquer avanço de
edificação sobre a via pública ou sobre um lote vizinho.
Topografia
A topografia é um condicionante importante da produção do traçado urbano,
assim como da forma como é tratada a propriedade. Sobre o traçado urbano, o
mesmo do que foi tratado no ponto sobre as áreas originadas de loteamentos vale
aqui também. No entanto, a dificuldade da produção do traçado reticulado nas áreas
de encosta não é determinada pela forma de organização da ocupação, mas pela
própria topografia. Essa dificuldade pode ser demonstrada pelo resultado da
aplicação desse tipo de traçado em áreas de encostas. Podemos retomar o exemplo
da Formiga, onde a persistência do padrão reticulado resultou em ruas
extremamente íngremes, mas há diversos outros exemplos, como um loteamento no
Morro do Turano, na Tijuca. O caso de Paraisópolis, no Morumbi, em São Paulo,
único exemplo levantado de fora do município do Rio de Janeiro, e merece ser
destacado, pois é emblemático já que o traçado reticulado foi feito posteriormente e
corta de forma violenta o traçado original.
132
Figura 7: Formiga - o problema da inserção do traçado reticulado em favelas íngremes.
Fonte: Google Earth.
Figura 8: Morro do Turano - o problema da inserção do traçado reticulado em favelas íngremes.
Fonte: Google Earth.
133
Figura 9: Paraisópolis - o problema da inserção do traçado reticulado em favelas íngremes.
Fonte: Google Earth.
Sobre a questão da propriedade, nos trabalhos de campo em que
participamos nos projetos de regularização urbanística e fundiária, em especial no
Turano, Babilônia, e Rocinha, foi comum aparecerem casos em que, em um primeiro
momento, encontramos acessos e fachadas que delimitavam os prédios com
clareza, mas no levantamento interno dos prédios, foi constatado que parte das
unidades habitacionais que eram acessadas por um prédio se encontrava em parte
ou como um todo ocupando a mesma terra do prédio vizinho. Ao perguntarmos aos
proprietários o que fazia parte de qual lote, percebemos que, em diversos casos, o
acesso interessava mais que a terra em que a edificação ocupava.
Os desenhos a seguir são esquemas de casos reais considerados
representativos dessa forma de pensar a propriedade e da influência da topografia
nesse arranjo. Importante ressaltar que foram encontrados casos semelhantes em
favelas planas como Manguinhos e Tijuquinha, porém em menor número.
O primeiro exemplo, apresentado a seguir, foi encontrado na Babilônia. São
dois conjuntos de casas que denominamos nesse estudo de lote A e lote B, os dois
cercados. O segundo pavimento de uma das edificações é acessado pelo lote A
enquanto o primeiro pavimento dessa mesma edificação é acessado pelo lote B,
sem que em nenhum momento o lote A tenha sequer um contato visual com lote B.
Os donos de ambos os lotes afirmam que um lote não tem nada a ver com o outro e
que são propriedades separadas. Essa configuração onde em determinada
134
edificação o acesso de pavimentos diferentes se dão por ruas nos seus respectivos
níveis é bastante comum em favelas em declive, porém o cercamento de conjuntos
de casas em condomínios complexifica a situação. Nesse caso, aparentemente, o
cercamento dos condomínios foi posterior, o que fez com que a intercessão entre os
lotes comprometesse mais unidades habitacionais.
Figura 10: Sobreposição de lotes (caso 1).
Fonte: desenvolvido pelo autor.
O segundo exemplo também foi encontrado na Babilônia e apresenta uma
configuração diferente. Nesse caso, os proprietários também reconhecem seus lotes
como lotes distintos. São dois prédios com acessos separados e localizados em
uma encosta. Ambos têm acessos diretos e separados para unidades habitacionais
localizadas no nível da rua e unidades em pavimentos superiores, porém, as
unidades habitacionais localizadas em pavimentos inferiores ao nível da rua em
ambos os prédios são acessados por dentro do prédio do lote B. Nesse caso,
podemos levantar duas hipóteses: a primeira é que o dono do lote B construiu os
pavimentos inferiores de ambas as edificações e vendeu a laje de uma delas ou a
segunda onde o dono do lote B aproveitou seu acesso aos níveis inferiores para
construir no espaço livre deixado pelos alicerces da edificação do lote A.
135
Figura 11: Sobreposição de lotes (caso 2).
Fonte: desenvolvido pelo autor.
É importante não nos deixarmos levar pelo mecanicismo tão presente nos
estudos que colocam o aspecto morfológico no centro da análise. As condições
materiais onde se desenvolvem os processos sociais são inumeráveis e mesmo que
pudéssemos analisar todas as determinações que se assentam sobre a sociedade,
ainda resultaria em um leque infindável de possibilidades. Dessa forma, podemos
nos defrontar com uma leitura diferenciada da propriedade que se baseia nos
acesso à unidade habitacional e não necessariamente na terra que ocupa e a partir
dessa configuração entender o papel da topografia nesse processo. Mas jamais
poderíamos olhar um morro e extrair dele a definição desse tipo de configuração.
Não é a topografia que define o processo social, mas a partir da análise do processo
podemos ver o papel da topografia.
3.1.4 Segurança da relação entre compradores e vendedores
O desenvolvimento da propriedade nas favelas exige desses territórios uma
organização local que a afirme. Essa organização se constrói tanto no nível da
136
vizinhança, com a criação de redes de solidariedade, como no território como um
todo, com as Associações de Moradores e outras formas de organização como o
narcotráfico varejista. Uma das formas de organização mais recorrentes é a emissão
de documentos na forma de escrituras ou registros de compra e venda pela
Associação de Moradores. As organizações locais não funcionam apenas como um
cartório, mas, com frequência, agem na mediação de conflitos e se utilizam da força
própria ou de sua posição privilegiada de acesso à instituições de Estado
(supralocais). Este subcapítulo está dedicado a expor algumas formas de
organização internas que permitem uma segurança relativa da propriedade da terra.
Não pretendemos abordar toda a diversidade dessas formas de organização, nem
caracterizá-las de forma mais detida. O último capítulo dessa dissertação se dedica
a complexificar a análise da relação entre esses agentes. Aqui, basta demonstrar a
sua importância na constituição de uma segurança relativa da terra e, dessa forma,
na consolidação de um mercado imobiliário.
Sendo o mercado imobiliário algo tão generalizado nas cidades capitalistas,
podemos nos perguntar se há algum lugar que não reúna as condições mínimas
para o desenvolvimento do mercado imobiliário. Podemos fazer um breve exercício.
Tivemos uma rápida experiência em um conjunto habitacional construído pela
prefeitura denominado SOEICOM e localizado em Marechal Hermes85. Sendo o
conjunto construído pelo Estado, a situação jurídica estava mais próxima da oficial
do que a situação que geralmente encontramos nas favelas. No entanto, a
população não tinha nenhuma espécie de vínculo com o território, nem com os
responsáveis pela atividade de varejo do narcotráfico que em seguida se
estabeleceu no local. O resultado é que, no momento em que a equipe de
cadastramento chegou ao local para o trabalho de campo, grande parte das casas
estava tomada pelos varejistas do narcotráfico, o que constitui um grau de
insegurança dos contratos entre vendedores e compradores e locadores e locatários
que impossibilita a regularidade de transações desse porte. Algumas vendas
isoladas podem acontecer nesse contexto, porém em volume menor. Melhorias,
ampliações ou construções novas ficam praticamente impossibilitadas, pelo menos
até que se alcance alguma estabilidade. Dessa forma, algo incontornável é um nível
85 Marechal Hermes é o único conjunto ainda existente dos três planejados pelo governo Hermes da Fonseca. Fundado em 1913, é considerado o primeiro bairro operário planejado do Brasil. Hoje é um bairro da zona norte do Rio de Janeiro, próximo à Madureira.
137
mínimo de segurança do contrato entre as partes da transação imobiliária e a
segurança da propriedade. Podemos observar, nesse caso, também, que mesmo
sendo de importância central em nossa sociedade, a forma jurídica não determina
de forma absoluta as relações sociais de propriedade.
Para Abramo, onde o Estado não garante as relações contratuais, o papel das
organizações locais no mercado imobiliário é o de garantir a confiança contratual
entre os dois lados da transação.
Quando a lei não se constitui no elemento de garantia das relações contratuais de mercado, outras formas de garantia devem se desenvolver para restabelecer uma relação de confiança entre as partes envolvidas na relação contratual de mercado. Quando não há confiança que os contratos serão respeitados e não há mecanismos coercitivos de cumprimento contratual entre as partes, os contratos de mercados deixam de existir, ou seja, o mercado não se reproduz a partir de relações mercantis e deixa de existir como mecanismo de coordenação das ações individuais (Bruni, 2006). No caso do mercado informal e popular de solo urbano, outras formas de garantias devem se construir socialmente para que as partes estabeleçam uma relação de confiança em respeito aos termos contratuais estabelecidos entre compradores e vendedores no mercado de comercialização, e entre locatários e locadores no mercado de locação. Do contrário, a relação de troca mercantil não se realiza em razão da desconfiança mútua de um eventual rompimento unilateral do contrato informal. Em outras palavras, sem as instituições formais, o mercado informal de solo deve estabelecer as suas próprias instituições reguladoras, incluindo os mecanismos coercitivos, no caso de rompimento contratual unilateral de uma das partes (Abramo, 2009). Essas instituições do mercado informal permitem que os contratos implícitos estabelecidos entre as partes sejam respeitados em termos inter-temporais e inter-generacionais (ABRAMO, 2007, p. 30 e 31).
A compreensão, exposta anteriormente, de que o processo de troca legitima a
relação de propriedade e a reprodução dessa forma de relação tem certa autonomia
nos indica que as relações de troca em determinados contextos podem não
necessitar de aparelhos coercitivos ou instituições reguladoras para serem
reproduzidos, porém, nos casos que estudamos, eles têm um papel ativo.
Nessa dissertação elegemos a Associação de Moradores, o narcotráfico
varejista e os agentes de Estado como os agentes locais reguladores que vamos
analisar. Porém os agentes são os mais diversos: podem ser igrejas, ONGs, milícias,
proprietários fundiários, etc. É importante lembrar que, excetuando determinados
agentes do Estado, nenhum desses agentes tem a função específica de regular as
construções, mediar conflitos, documentar propriedades, etc. Cada agente tem a sua
função específica e pode atuar em defesa da segurança da propriedade ou não, a
depender do contexto. No caso exposto sobre SOEICOM, a existência de um
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narcotráfico varejista sem nenhuma coesão com a população local gerou um
contexto em que esse agente atua de forma hostil à propriedade fundiária. Ao
mesmo tempo, os agentes do narcotráfico podem agir, como já apresentamos, na
mediação de conflitos a fim de evitar a entrada de agentes do Estado, em especial a
polícia. A Associação de Moradores também pode ou não registrar as compras e
vendas, mediar os conflitos, e, ao mesmo tempo, pode agir na retenção ou
distribuição de terrenos desestabilizando o mercado imobiliário local.
3.1.5 Os limites
Apesar de o acesso às autoridades oficiais do Estado existir e ser acionado
com frequência, e da população organizar seus próprios dispositivos de controle da
propriedade, há limites para a centralização de imóveis decorrentes dessa forma de
organização. A dependência das redes de solidariedade e a fragilidade das
organizações locais exigem do proprietário a sua presença no local onde se
encontram suas propriedades para a manutenção delas. Alguns mecanismos, como
a manutenção das redes sociais ou influencia sobre instituições locais para a
manutenção apareceram como alternativa para os proprietários que já não moram
nas favelas onde se encontram suas propriedades. Outro fator importante é que a
fragilidade do direito de propriedade exige a demarcação da terra com a ocupação
por edificação. Apenas em casos especiais os proprietários conseguem manter um
terreno vazio por longo período86, e mesmo a manutenção de um imóvel construído
e desocupado apresenta dificuldades. Nas entrevistas realizadas na Favela 1,
encontramos dois casos em que a ausência do proprietário na favela acabou
resultando na apropriação do imóvel por outra pessoa, nesses casos o próprio
inquilino. O primeiro depoimento é de um corretor imobiliário, que conta o caso de
um inquilino que se apropriou da casa que alugava. Isso ocorreu na época em que o
entrevistado era vice-presidente da Associação de Moradores da Favela 1.
86 Há casos em que o morador da favela herda ou é responsável por cuidar de uma propriedade que tem ou já teve um caráter legal, como exemplificamos a partir de dois casos no Rio de Janeiro e em Florianópolis. 1) Um morador do Morro do Turano ficou responsável por impedir o avanço da favela para dentro do terreno Colégio Santa Dorotéia hoje um prédio na Rua do Bispo, 191, confrontante com a favela do Turano, e, em troca, foi autorizado a construir a sua casa dentro do terreno, no limite com a favela. 2) Lonardoni (2007) apresenta um caso na Serrinha, em Florianópolis, onde um casal ficou responsável por vigiar as terras de um proprietário que quando morreu cedeu a terra ao casal. Em um casamento posterior a mulher que herdou a terra e seu novo marido lotearam e venderam as terras.
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Teve do morador ir embora, alugar o seu imóvel pra outra pessoa e de repente a pessoa não mandar o pagamento, e ele vir saber porque não está mandando e chegar, se deparar com outra pessoa dizendo que é dona, que comprou dele. Aí foi... mal caráter né (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1).
O mesmo entrevistado demonstra uma fragilidade no sistema de registro de
compra e venda da Associação de Moradores. Segundo o entrevistado, a
Associação tem dificuldade de averiguar a legitimidade da solicitação das pessoas
que vão registrar suas propriedades.
Lá passou esses casos assim, uma vez ou duas, aí eles vão e entram em um entendimento, pra quem comprou e foi de boa fé, já que a pessoa já está fora também, termina pagando um percentual, pra não perder e negociam, foi negociado. Se o dono não quisesse negociar, quem tivesse lá ia perder. Mas fez documento da associação e tudo, associação ia adivinhar... Você não vai adivinhar. Vai fazer o que? O cara está falando. (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1)
Ainda na Favela 1, outro entrevistado descreveu um caso parecido.
Um cara me procurou e disse que tinha alugado uma casa e que o cara tinha vendido a casa dele (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1)87.
Na Favela 2, uma moradora entrevistada integrante de uma família que mora
no local desde a década de 50 expôs um caso recente onde um morador de uma
área determinada da favela88 passou um longo período de tempo fora e quando
voltou sua casa havia sido vendida, segundo a moradora, por um agente do
narcotráfico varejista. Segundo a entrevistada, a dona da casa conseguiu reavê-la
com a intermediação da Associação de Moradores, mas o comprador perdeu o
dinheiro investido.
Em todos os casos apresentados, o elemento em comum é a ausência da
fiscalização do proprietário, o que nos mostra que a resolução dos conflitos pela
Associação de Moradores deve se dar principalmente através de denúncias, e não
por uma fiscalização ativa e que a presença do locador na área é de fundamental
importância para a manutenção de suas propriedades. Entre os proprietários de
imóveis alugados entrevistados, todos disseram estar sempre presentes na favela
onde se localizam suas propriedades.
Uma possibilidade que apareceu em algumas entrevistas - e que podem
87 Esse caso será tratado no item 4.1 88 Parte baixa da Favela 2. É a área mais adensada da favela e, aparentemente, uma das áreas que concentra a população de baixa renda.
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permitir o proprietário se afastar por mais tempo de suas propriedades - é a
manutenção de um vínculo com a vizinhança. Ao que parece, tanto Associação de
Moradores como corretores buscam informações com os vizinhos no momento de
realizar as transações.
A gente procura fazer uma investigação, se foi ele que construiu, o tempo em que ele está ali, o vizinho... (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1).
Porém, a insegurança para o proprietário não está apenas na possibilidade
de alguém tomar o seu imóvel. Os corretores imobiliários com frequência apontaram
a necessidade se diminuir as exigências dos contratos de aluguel para aumentar a
demanda. Segundo os corretores entrevistados, não é possível cobrar dos locatários
na favela o mesmo que se cobra no “asfalto”. Independente da pertinência de todas
as cobranças efetivadas no “asfalto”, ao que parece, no caso de um locatário
acumular dívidas e se mudar, o proprietário ou a corretora não têm uma forma de
agir padronizada e em muitos casos fica sem poder de ação.
Houve um momento em que algumas pessoas que saíam até devendo até sair do imóvel, depois a gente vê que saiu e foi embora. Mas nada de confusão. O proprietário compreender que ficou 2 meses ali, aconteceu, mas muito raramente. E aí, quando acontece, a gente passa a ter mais precaução com as pessoas que estão alugando. Se a gente vê que a gente não tem como ficar perguntando: — “ah, você trabalha? Trabalha aonde? Cadê seu contracheque?” isso lá embaixo no “asfalto” é assim né, pede contracheque... A gente só pede identidade e CPF, mais nada. E o pagamento, entra pagando. Tem área que a gente cobra 2 meses, um mês e um mês de depósito e tem áreas que a gente só cobra o mês de entrada. Não existe pagar depois, se você mora até o dia 29, seu prazo é até o dia 30, dia 29 você desaparece, morou na minha casa então, qual foi o resultado. Paga pra entrar, em todo lugar é assim. (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1).
O pagamento adiantado aparece como uma forma de amenizar os riscos,
mas, como não há uma forma padrão de despejos, o maior ou menor risco que
envolve as operações continua dependendo fortemente da influência sobre a
vizinhança e instituições locais e do poder de retórica dos proprietários ou dos
corretores. A forma de gestão dos alugueis, incluindo as formas de cobrança e de
despejo, será tratada mais a frente. Aqui, basta dizer que mesmo com o pagamento
adiantado os proprietários e corretores nem sempre tem poder de ação em casos de
períodos mais longos de inadimplência. O depoimento a seguir é de um corretor,
que fala como sua atuação depende da retórica e do poder de convencimento e
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como perde o poder de ação quando o inquilino toma uma atitude mais drástica.
Você tem que ter um jogo de cintura, de como lidar com aquelas pessoas, por que você lida com o ser humano, você lida com uma “obra prima” [matéria-prima, imóvel em favela] complicada. Comunidade, então você tem que ter muita sutileza, muito jogo de cintura [...] Você conta uma história pra mim, eu vou entendendo. Aí passa uma semana, passa duas, daqui a pouquinho tem um mês e o proprietário me cobra: “Fulano, e o dinheiro, o aluguel”. Entendeu? Então mudou um pouco o perfil. Agora, quanto às regras, “direitos e deveres”, é cobrado, existem cláusulas, onde a gente penaliza o cara de todas as formas, mas a gente não age com rigor! A gente procura agir com sutileza. Sentar pra conversar, tentar negociar. — “Quantos meses de atraso o senhor tem?” Tentar negociar isso aí, o cara vem com um pelo menos, ou vem com a metade, promete daqui a dez dias me pagar o resto... A gente vai fazendo acertos, pra tentar atender às necessidades das pessoas. Mas tem outros também que usam de má fé, se aproveitam da situação e quando menos você espera, ele vai embora, mesmo com todas as regras (IMOBILIÁRIA 3, FAVELA 1).
Esse parece ser um limite com o qual os proprietários se deparam com certa
frequência. Os agentes locais (Associação de Moradores, narcotráfico varejista, etc.)
parecem ter certo poder de atuação nesses casos quando o sujeito ainda se
encontra dentro da favela, mas, quando ele sai, a causa parece se dar por perdida.
O cara vai embora, não paga a conta de luz... Tem inquilino que, infelizmente, está te devendo e viaja na calada da noite. O problema é sério, e você tem que conviver com isso, porque o cara fala que vai te pagar hoje, amanhã você está cobrando, daqui a pouco o cara se manda, se muda, quantas mudanças já fizeram na calada da noite. O pessoal ate brinca comigo, — “Olha o inquilino teu lá!” Esta descendo uma mudança né? Se presume que seria alguém que está se mudando porque não pagou o aluguel. Essa é a dificuldade que a gente está vivendo. (IMOBILIÁRIA 3, FAVELA 1)
Outra questão em relação à propriedade na favela é a necessidade do
investimento em construção para a sua demarcação. Nos casos estudados, a forma
de o proprietário se manter como proprietário é a construção, podendo ele ceder seu
uso a outros ou usar ele mesmo. Ainda assim, a existência de terrenos vazios não é
uma impossibilidade nas favelas e de fato eles existem. Esses terrenos podem ser
ocupados diretamente por novos proprietários, mas isso ocorrerá através de
construção. Vamos aprofundar sobre as estratégias de ocupação no próximo
capítulo. No entanto, apareceu no decorrer do estudo uma forma de comportamento
que poderíamos comparar com o comportamento de proprietários de terrenos vazios
da cidade como um todo. Nos casos que vamos apresentar, a manutenção como
proprietário não tem origem em uma compra e venda ou em um direito jurídico, mas
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foi necessária a manutenção de uma posição de poder dentro da favela. Quando a
posição de poder desaparece, desaparece também o poder sobre os terrenos.
Um caso importante e que ganhou certa repercussão foi descrito por Silva e
Huguenin (2014 [2011], p. 269), onde o exercício do poder de presidente da
Associação de Moradores garantiu a possibilidade de distribuir terrenos
provavelmente em troca de prestígio político e da possibilidade de manutenção da
posição de poder. Esse caso se passou na Rocinha e se refere ao presidente da
Associação de Moradores, “Zé do Queijo”.
Outra forma recorrente de acesso à moradia é pela doação de casas e, principalmente, de terrenos. Essa prática foi observada no Laboriaux, já nas áreas próximas ao limite da Floresta da Tijuca, onde muitos moradores declararam que os terrenos onde construíram suas casas foram doados pela Associação de Moradores, a maioria através do presidente “Zé do Queijo”, importante liderança local no início dos anos de 1980 (SILVA; HUGUENIN, 2014 [2011], p. 268 e 269).
No entanto, a Associação de Moradores não é o único agente que consegue
exercer esse tipo de poder. Na Favela 2, uma representante da Associação de
Moradores 2 nos aponta que a ocupação de novos terrenos na favela se dá através
da venda dos terrenos, mas diz não saber quem são os vendedores.
— Quando se ocupa um terreno vazio, você acha que, em alguma hipótese, alguém consegue vender ou sempre é ocupação direta? — Tem dos dois, geralmente alguém vende escondido, por debaixo dos panos, essas coisas. — Mas como faz? Você sabe como é o processo? — É risco deles mesmos, porque não passa por aqui. — Você não sabe? — Só sabe quando a casa está em pé, aí essa casa não é cadastrada, ela não pode ser cadastrada aqui (ASSOCIAÇÃO DE MORADORES 2, FAVELA 2).
Um elemento importante aqui é que, nesse caso, a Associação de Moradores
não cadastra os imóveis em terrenos novos, tanto por ter se posicionado contra a
ocupação desses terrenos em diversas oportunidades alegando o risco de
sobrecarregar a infraestrutura, quanto para não correr o risco de entrar em conflito
com a prefeitura. Não sabemos se, com o passar do tempo, quando alguém comprar
uma casa em um terreno que está sendo ocupado agora se essa mesma gestão ou
uma próxima vai seguir negando o cadastramento ou o documento de compra e
venda. Isso vai depender dos parâmetros que a associação vai utilizar para definir a
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legitimidade da ocupação nesse contexto.
O depoimento a seguir é de um comerciante e morador da Favela 2. Ele
também não consegue apresentar com clareza quem são os vendedores das terras,
porém nos aponta os mecanismos utilizados pelos novos proprietários para
desfazerem a contestação de outros moradores, da associação ou dos próprios
agentes do Estado. Segundo o entrevistado, as pessoas que estão construindo em
terrenos novos utilizam um discurso de autoridade associando a atividade
construtiva e o direito sobre os terrenos a nomes de agentes do narcotráfico
varejista. Dessa forma, entendendo que se contrapor ao narcotráfico varejista é
expor a vida de seus integrantes, nenhum dos agentes locais assume o risco da
contestação.
— Então a Associação de Moradores, só pra entender, ela antes tentava segurar pra não ter mais gente e só ia movendo as pessoas de lugar quando precisava botar em um lugar melhor. — Mas hoje em dia não, hoje em dia as pessoas estão invadindo realmente, está uma verdadeira baderna que a prefeitura tirou pessoas que estavam naqueles locais e realocou em outros lugares e aí o que acontece aquelas áreas onde morava gente que a casa foi destruída, agora as pessoas estão voltando a construir lá. — E a associação não consegue mais intervir nisso? — Não consegue por causa da influência diretamente do tráfico. — Mas o tráfico está autorizando e desautorizando as construções? — As pessoas usam o nome de pessoas envolvidas pra poder construir, e aí você complica a situação por que você não pode expor sua vida, você não tem segurança, porque a UPP não passa da quadra, a UPP não vem mais aqui, toma café comigo mais cedo, a UPP ela sequer atravessa a rua, [...] porque se ela atravessa a rua dá tiro. — Então o cara relaciona a construção com um nome do tráfico. — Tenta usar o nome de pessoas pra se beneficiar (COMERCIANTE 1, FAVELA 2).
Finalmente, um morador da Favela 2 em uma conversa89 nos indica que o
próprio tráfico a partir do momento que assumiu um domínio territorial mais estável,
passou a vender os terrenos que já eram vazios e os que foram destinados a praças
ou são resultados de remoções.
Nesse caso, a possibilidade de exercer poder sobre os terrenos vazios,
mantendo-os sem ocupação desautorizada ou vendendo, provém do poder armado
do narcotráfico varejista. Um caso semelhante foi observado em São Paulo por
Nazareth e Zuquim (2016, p. 15), onde o “crime” passou a construir um “parque
imobiliário” nas áreas vazias resultantes de obras públicas. Esse caso será 89 Esse morador não foi entrevistado, o dado vem de uma conversa informal realizada na casa do morador.
144
apresentado no capítulo 4, subcapítulo “4.2 narcotráfico varejista”.
3.1.6 Mecanismos de endividamento
Ainda que a prática de compra à vista seja bastante comum nas favelas, a
ampliação da possível demanda para a compra de imóveis exige algum mecanismo
de endividamento. Como já foi exposto no capítulo 1, o produto imobiliário tem um
alto custo, provavelmente muito alto para a maior parte da possível demanda poder
pagar à vista. Talvez o baixo acesso ao crédito pela população favelada, somado ao
alto preço unitário do produto imobiliário seja um dos determinantes do baixo preço
de venda em relação ao preço de aluguel dos imóveis em favelas apontados por
Abramo (ABRAMO, 2007, p. 40 e 41). No entanto, o fato de que a renda fixa é mais
importante para conseguir um empréstimo do que a propriedade imobiliária nos faz
acreditar que o morador de favela tem um relativo acesso às instituições financeiras.
Ainda assim, há formas de acesso a empréstimo dentro da favela, que, mesmo que
não tenhamos a dimensão da utilização desses mecanismos, vale a pena expor
ainda que rapidamente.
O primeiro relato é de um morador da Favela 1, que, descreve duas formas
de endividamento. A primeira se dá numa relação mais formal e impessoal, onde o
comprador paga uma entrada e divide o resto em prestações via nota promissória. A
segunda forma aparece numa relação mais informal e pessoal de empréstimo, onde,
num acordo entre amigos para a compra de um imóvel, um pagou o imóvel completo
e o outro pagou a metade que devia ao primeiro em prestações.
Foi compra né, dei uma entrada e fiquei pagando. O primeiro que foi o prédio do lado, eu dei uns 10% de entrada e paguei o resto em 40 prestações. Aí já aqui eu comprei a vista. Uma casa, o vizinho queria me vender, eu dizia que não, um dia ele chegou pra mim: “se você não comprar hoje eu vou vender pra outro”. Eu morava de aluguel na outra rua e tinha o prédio aqui. Aí ele me oferecia porque era colado com o prédio. Comprei juntou com o outro vizinho que eu disse que me ajudou. [...] Eu paguei tudo no começo e ele foi me pagando depois. (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1)
A prática mais comum encontrada foi o lançamento de notas promissórias
onde o próprio construtor/proprietário admite a perda temporária de liquidez em troca
de juros e do aumento da demanda solvável. O segundo depoimento é de um
proprietário de imóveis que não mora na Favela 1, mas vai lá todo dia. Possui uma
concessionária de gás na favela e tem a prática de acumular recursos do comércio e
145
de aluguel para construir novas casas. Segundo o entrevistado, ele compra uma
casa térrea, demole e constrói prédios de apartamentos. A sua preferência é alugar
os seus imóveis, mas já vendeu quatro deles a fim de comprar e construir outros.
Segundo o entrevistado, as vendas foram feitas com notas promissórias com 30% a
40% de entrada e as parcelas dependem da condição do comprador.
Essa forma de cessão/acesso ao crédito tem como limite a capacidade do
vendedor de abrir mão de liquidez por um tempo determinado e da sua capacidade
de cobrar o comprador ou de retomar a casa no caso de não pagamento. Porém,
apesar de o parcelamento aumentar a potencial demanda dos vendedores e esses
vendedores poderem cobrar juros dos seus compradores, provavelmente o baixo
acesso ao crédito nas favelas, de uma forma geral, devem pressionar os preços dos
seus imóveis para baixo, visto que eles competem com proprietários que não tem
condições de ceder crédito.
3.2 Contratos de aluguel
Importante elemento da propriedade privada no capitalismo é a separação do
direito à propriedade de seu uso direto. Dessa forma, para a formação de um
mercado imobiliário em favelas, é necessário, além de um determinado nível de
segurança da propriedade, dispositivos que permitam essa separação. Esses
dispositivos específicos (mediação de agentes internos como a Associação de
Moradores, narcotráfico varejista ou corretoras) se combinam com o acesso às
instituições supralocais (justiça comum).
Já apresentamos alguns limites da atuação dos agentes locais na segurança
dos contratos para os locadores. Agora é importante destacar os mecanismos
utilizados para garantir uma segurança relativa. Esse subcapítulo está baseado no
depoimento de proprietários de imóveis e corretores imobiliários das favelas
pesquisadas.
3.2.1 Documentos
Os contratos de locação em favelas apresentam grandes semelhanças com
os contratos do restante da cidade. Mesmo que os contratos sejam feitos sobre
propriedades que não são registradas e oficializadas pelo Estado, esse tipo de
contrato facilita o acesso às autoridades jurídicas oficiais e não oficiais. Dessa
146
forma, uma das preocupações apresentadas pelos corretores e proprietários é a de
apresentar um padrão condizente com o direito oficial.
É o padrão, tudo que a gente usa é padrão, não existe nada que... a gente tem uma orientação jurídica, a gente não pega um papel e vai fazendo as coisas sem conhecimento de causa não. É por uma questão de segurança, então tudo que eu estou falando pra você, tudo que eu passo para o inquilino, ou que eu passo para o proprietário, existe uma orientação jurídica. Não faço nada sem uma orientação jurídica. Quando eu não sei alguma coisa, eu vou a quem pode me dizer alguma coisa pra me orientar, eu não faço nada sem uma orientação nesse sentido, até por uma questão de segurança e credibilidade. (IMOBILIÁRIA 3, FAVELA 1)
Eu busco direto no Globo, na internet e moldo do meu jeito, pego o principal e mantenho (PROPRIETÁRIO 3, FAVELA 2).
Podemos lembrar o caso exposto anteriormente em que o corretor busca a
forma do direito jurídico oficial para os contratos, porque eles “rodam” nas mãos de
empregadas domésticas que facilmente têm acesso ao padrão do restante da
cidade. Porém, na prática de locação, o que aparece como especificidade dos
alugueis em favelas são as exigências para o início do contrato. Os locadores em
geral consideram que a demanda nas favelas tem menor capacidade de cumprir as
exigências feitas no restante da cidade, como propriedade na cidade que sirva como
garantia, seguro fiança, caução, etc. Os três corretores entrevistados apontaram a
necessidade de reduzir as exigências dos contratos de locação para adequá-los à
população demandante de habitações nas favelas. O primeiro aspecto apontado é o
nível de renda da população demandante. Dessa forma, seria inviável a cobrança de
fiador, seguro fiança, etc.
Então, a gente aqui procura fazer a coisa de uma forma que facilite a vida de quem está alugando. Porque eu entendo o seguinte: não adianta você cobrar do inquilino o máximo que ele não pode dar, tem que trabalhar de acordo com a situação de cada um, porque o perfil dos inquilinos de comunidade, da nossa comunidade, até que é um pouquinho mais alto, mas a maioria ganha 3, 4 ou 5 salários mínimos, no máximo, então você vai explorar essas pessoas? Não tem como! Então você tem que “fazer” um aluguel compatível com o que eles ganham (IMOBILIÁRIA 3, FAVELA 1).
Outro corretor aponta que, pelo mesmo motivo abre mão da investigação pelo
SPC e SERASA, indicando que a quantidade de devedores na favela é alta.
Essa coisa de receber o aluguel, administrar, depositar. O que acontece, como nós vivemos numa área carente, muitas pessoas tem nome no SPC, muitas pessoas têm nome no SERASA, muitas pessoas não querem fazer o
147
negócio com compromisso... quanto menos compromisso a pessoa tiver, menos papelada a pessoa tiver, melhor (IMOBILIÁRIA 2, FAVELA 1).
O corretor da Imobiliária 3 aponta que a fiança fica inviabilizada pela
ilegalidade dos imóveis na favela, mas que faz um levantamento do perfil do
inquilino antes de alugar.
A gente amarra de todas as formas, dentro do que é possível. Por exemplo, você comentou a respeito do depósito, nós aqui não cobramos fiança, não cobramos porque o imóvel não é legalizado. Então se aqui é comunidade e não tem como você cobrar fiança, você vai cobrar fiança de quem? Então a gente faz um contrato flexível, aonde facilita o acesso do morador. O cara que vem alugar o imóvel, certo? Eu faço um levantamento do cadastro daquele inquilino, eu vejo que aquele futuro inquilino tem o perfil que é preciso. Na época em que eu faço este levantamento, ele está “OK”, mas daqui a dois, três meses, ele muda de comportamento, muitas das vezes, o cara por estar precisando, ele aceita as condições de proposta, depois é que você vai ver quem é quem, se ele paga em dia, se ele atrasa. Aí o cara vai mudando de perfil, dois meses, três meses, quatro meses, ele funciona bem, daqui a pouco ele começa a pisar na bola, acontece agora com vários inquilinos que eu estou tendo agora (IMOBILIÁRIA 3, FAVELA 1).
No entanto, o corretor da Imobiliária 1 alega que em todos os contratos o
pagamento é adiantado e que, em alguns casos, além de cobrar adiantado cobra
mais um depósito. Para esse corretor, o pagamento adiantado e o depósito são
mecanismos de segurança contra calotes. Para o entrevistado, o risco de o inquilino
desaparecer parece alto.
Já o corretor da Imobiliária 3 diz cobrar o depósito por significar uma
segurança contra danos ao imóvel.
Então, a gente cobra o depósito não é nem pelo aluguel, é mais em face de uma garantia de bem imóvel, ou seja, você tem um patrimônio, eu não conheço você, você quer me alugar um imóvel, eu vou te entregar um imóvel, vistoriado, tudo bonitinho, tal... Qual o acordo? Você me entregar o imóvel todo bonitinho, como você está recebendo. Esse depósito que lhe é cobrado, é uma garantia apenas para qualquer perda ou dano que advir do contrato, não é para aluguel. Se por acaso a pessoa não me der problema nenhum, eu cobrei de você dois meses de depósito e ao fim do contrato você não me deu problema, o que vai acontecer? A gente faz uma vistoria dentro do imóvel, só um detalhe, quando eu alugo pra você, eu digo pra você o seguinte, você vai me entregar o imóvel de acordo como recebeu, de que forma? Pintado, parte de utensílio toda legal... Agora, se por ventura você não me entregar dentro do que é combinado, vai ter um abatimento (IMOBILIÁRIA 3, FAVELA 1).
Ao que parece, é mais importante constatar que o depósito de fato serve para
assegurar os proprietários contra danos, dívidas ou calotes proporcionados pelos
inquilinos do que entender a intenção dos proprietários ao cobrá-lo. Na Favela 2 a
148
mesma estratégia foi identificada.
É isso: olha, tem que pagar o adianto de um mês pra garantir que se você sair a gente tem uns 30 dias aí pra conseguir sossegado. Mas se não conseguir pagar também está aqui olha, acabou você sai, entendeu, é assim, mas as pessoas geralmente pagam um mês antes (PROPRIETÁRIO 3, FAVELA 2).
Muitos proprietários se apropriam de contratos padrões e dão pouca
importância para o conteúdo dos contratos. É o caso do Proprietário 1, orientado por
uma advogada a quem teve acesso a fazer os contratos para se resguardar. No
entanto, para o Proprietário 1, o conteúdo do contrato e o cumprimento de suas
cláusulas tem pouca importância. O documento garante o registro da transação com
o consenso de ambas as partes, podendo ser usado em tentativas de roubo do
imóvel, calotes ou longos períodos de inadimplência frente à justiça oficial. Dessa
forma, o contrato, nesse caso, é utilizado não como um código de postura, mas
como um mecanismo de segurança em caso de conflito.
— E como são feitos os acordos de aluguel lá no prédio? — Ah, eu faço contrato, nem todo mundo, pessoal antigo, muito antigo... Teve o rapazinho que entrou agora que eu não fiz contrato. É um risco, mas eu mesmo administro. — Você tem modelo de contrato? — Compro em papelaria. (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1)
Uma questão que é específica das propriedades fundiárias irregulares frente
ao direito jurídico oficial e que rebate nos aluguéis em favelas de forma particular é o
fato de os proprietários de imóveis não poderem ceder a titularidade dos contratos
com as concessionárias de água e energia elétrica sem correrem o risco de o
inquilino ser visto como proprietário legitimo frente ao direito jurídico oficial. Dessa
forma, a cobrança das contas referentes às concessionárias acaba por ser feita de
forma mediada pelos proprietários dos imóveis ou pelo corretor responsável.
— O problema maior que nós temos aqui na comunidade é problema de inadimplência que está muito alta e lidar com a parte de conta de luz, conta de luz é um fator que atrapalha demais o nosso trabalho. — Mas são vocês que administram? — Não seria o correto nós administrarmos, mas por uma questão de compromisso que a gente tem com o proprietário, a gente muitas das vezes é obrigado a ficar pegando no pé do inquilino pra que ele nos apresente a conta de luz mês a mês. Isso nos trás um desconforto muito grande, por que quem tem que estar se preocupando com a conta de luz não é a administradora, é a Light, mas ela muitas das vezes peca nesse sentido e aí o camarada que se aproveita da situação, acaba não pagando. Isso trás pra
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nós um transtorno muito grande. Administrar uma coisa que você não tem controle, fica muito mais difícil. Mesmo você colocando normas, se você coloca em contrato, essas coisas todas. [...] Tem a conta de 100 reais, mas tem a conta de 200, 300, mas se o cara não pagar 3 meses, você já está perdendo 900 reais. E como administrar isso se a responsabilidade de cobrar conta de luz não é minha? A gente fica com esse problema (IMOBILIÁRIA 3, FAVELA 1).
Na Favela 2, um dos proprietários de imóveis aponta a dificuldade de lidar
com a questão. O entrevistado, nesse momento, respondia uma questão sobre o
acesso dos moradores à justiça e uma das indicações que o entrevistado dá é que,
para ele, o meio de resolução desse tipo de conflito é a justiça comum.
Vêm, tem que resolver. Algumas áreas as pessoas ficam com medo de atuar ou às vezes até de denunciar uma irregularidade que está acontecendo dentro da tua casa. às vezes o cara está morando lá e não quer pagar o aluguel, a conta de luz geralmente está na conta do proprietário e aí o cara acaba sendo acionado pela light, o nome do cara vai pro SPC, o inquilino vai lá, faz um gato e aí como é que você fica? (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2)
O acesso ao direito jurídico oficial é, provavelmente, o motivo para a
preocupação com a adequação dos contratos a essa forma de direito. Isso não
impede que, em determinadas ocasiões, os proprietários e corretores não se utilizem
dos meios que tem à disposição dentro da favela, às vezes, inclusive, utilizando
violência, mas os procedimentos enquadrados nos meios legais também existem.
Trataremos a seguir das formas de procedimento dos proprietários e corretores em
casos de inadimplência dos alugueis.
3.2.2 Inadimplência
Conforme foi exposto anteriormente, a recuperação dos imóveis em casos de
inadimplência com frequência é feito acionando o Estado, que se faz presente
através dos oficiais de justiça. No entanto, alguns mecanismos de recuperação de
imóveis são desenvolvidos por proprietários e corretores de imóveis de forma a
agilizar o processo e evitar a dificuldade de acesso às autoridades oficiais. Em
primeiro lugar, é necessária a constatação de que há um volume considerável de
inadimplência. Segundo os corretores entrevistados esse volume aumenta em
tempos de crise, falta de empregos, etc.
Eu tenho tido problemas de inadimplência em função das dificuldades que a gente está vivendo atualmente. A inadimplência aumentou bastante, não foi
150
pouco não. De dois meses pra cá, no meu caso, não sei os outros, estou realmente com muitos problemas (IMOBILIÁRIA 3, FAVELA 1).
A primeira forma de proceder que surgiu em todas as entrevistas foi a
retórica. No caso dos corretores, a mediação entre proprietário e inquilino. Num
primeiro momento, há sempre uma tentativa de não gerar atrito.
O procedimento é sempre na parte amigável, tentar chamar a parte interessada a uma conversa e fazer a cobrança sempre de uma forma amigável, mostrando pra essa pessoa que é importante a gente manter o aluguel rigorosamente em dia e quando há uma insistência a gente manda aviso de cobrança. A praxe normal. Se a pessoa insistir em não cumprir com a obrigação, aí a gente solicita a restituição do imóvel, de uma forma sempre amigável, não existe outra maneira (IMOBILIÁRIA 3, FAVELA 1).
Outra característica presente nas entrevistas é uma tendência a tratar os
inquilinos caso a caso. Os inadimplentes que comprovam a incapacidade de pagar
tendem a ser tratados com maior tolerância. Essa provavelmente é uma forma de
adequação do procedimento dos proprietários e corretores ao mercado informal de
trabalho e a falta de regularidade nos ganhos dos inquilinos. Os corretores também
alegam que é melhor manter um inquilino que já é conhecido na expectativa de
receber futuramente do que deixar o imóvel vazio em busca de um próximo inquilino.
O interessante aqui também é que o corretor da Imobiliária 2 considera a
possibilidade de tornar a cobrança impessoal em instituições como o SPC. Para o
corretor, essa é a forma de manter o inquilino no imóvel sem que ele deixe de ser
pressionado. Além disso, ele continuaria sendo cobrado após o seu desligamento do
imóvel.
Na verdade, a locação ela começa quando a pessoa que vai alugar não tem condições de alugar. Pessoa que tem nome no SPC, lógico que às vezes a gente vê isso, a pessoa cumpre com isso tudo, mas atrasa. O que a gente faz é o seguinte, fazendo de tudo pra pessoa sair pela porta da frente. Já aconteceu de pessoas ficarem aqui 4 meses sem efetuar o pagamento, mas provar que não estava conseguindo pagar e a gente: — “beleza, consegui convencer o proprietário”, porque, a maioria dos proprietários, se a pessoa chegar lá: — “não estou de sacanagem, não estou de má fé, não estou em condições de pagar”, falando direitinho, sentando aqui com o proprietário, o proprietário nem esquenta, e a gente também. Não somos pessoas que criam problemas também não, entendeu? O chato é que no imóvel não bota nome no SPC né? Esse é o grande diferencial, um grande avanço do imóvel seria colocar o nome no SPC (IMOBILIÁRIA 2, FAVELA 1).
O Proprietário 1 da Favela 1 também diz que a retórica é o principal recurso
em caso de atraso nos alugueis. No entanto, aponta para a importância dos
151
contratos para o acesso a justiça comum e conta que as imobiliárias comumente
acionam esse recurso.
Atraso de aluguel vai no papo. O pessoal das imobiliárias vai pra justiça. Justiça comum. De vez em quando, vem me pedir pra levar o oficial de justiça na casa do sujeito. O juiz não pede documentação nenhuma, o contrato tem o contrato, o contrato em si já é... quando você vai fazer o contrato... o contrato legitima né... o contrato entre as partes. Agora quem não tem contrato... (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1)
A presença dos oficiais de justiça parece ser uma constante nas duas favelas
pesquisadas, apesar de ter-se indicado que na Favela 2 os oficiais de justiças são
acionados mais para conflitos familiares que para despejos. Esses oficiais de justiça
em alguns casos vão direto à casa a ser atendida, porém, os entrevistados das
Associações de Moradores das duas favelas apontaram que o procedimento mais
comum é passarem na Associação de Moradores. Segundo o entrevistado da
Associação de Moradores 1 da Favela 1, os despejos na favela são uma constante.
Muito despejo, toda hora, várias vezes no mesmo mês, quase todo dia. O oficial de justiça passa na associação. Também procuram a associação pra mediar, a associação não tem autonomia pra tirar ninguém. O [corretor imobiliário não entrevistado] às vezes procura a gente, nós mandamos ele entrar na justiça. Vem muita gente sem contrato, mas aí o oficial de justiça não resolve. (ASSOCIAÇÃO DE MORADORES 1, FAVELA 1)
Outra indicação importante no depoimento do representante da Associação
de Moradores é que a instituição não tem poderes sobre os despejos, o que de certa
forma indica que não há um procedimento padrão para os despejos que acontecem
dentro das favelas que não tenham a mediação do direito jurídico oficial. As
entrevistas indicam que o maior volume dos despejos ocorre via justiça comum,
porém, outros procedimentos foram expostos nas entrevistas e vale a pena expô-los
aqui, inclusive porque acreditamos que nem todas as favelas tem tanto acesso à
justiça comum e nelas devem predominar estratégias em nível local.
No primeiro caso, o Proprietário 1 da Favela 1 executou o despejo sem o
auxílio de nenhuma instituição local ou supralocal.
Eu só tive um cara... peguei as coisas dele e botei pra fora. Hoje eu não faria isso. Eu tinha uns 25 anos, 28... aí o cara não pagou, demorou, tinha que fazer uma obra... aí juntou as duas coisas. Aí um dia eu falei “o senhor tira suas coisas se não eu vou tirar”. Depois eu fiquei com pena dele, peguei as coisas dele e botei do lado de fora, na rua, quebrei a porta... aí ele falou que ia na polícia, aí eu falei: — “você vai, mas leva os recibos”. — “Como eu
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vou levar recibo que eu não tenho”. Aí eu falei: —”então...”. Tem dessas coisas (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).
É importante notar que não é qualquer proprietário que pode tomar esse tipo
de atitude. Esse proprietário necessita de certo reconhecimento frente à vizinhança
e instituições locais para agir com o nível de violência presente nesse caso. Se o
inquilino tem uma ligação com a Associação de Moradores, tráfico de drogas ou
milícia, provavelmente o proprietário também não teria essa mesma facilidade para
realizar o despejo.
No segundo depoimento, talvez o que mais impressiona, o corretor da
Imobiliária 2 da Favela 1 descreve o procedimento padrão da imobiliária em casos
em que o despejo se faz necessário. Segundo o corretor do estabelecimento, eles
cobram normal até o segundo mês, no terceiro mês ele começa a sabotar o imóvel
com o inquilino dentro, a fim de criar constrangimentos e as estratégias são
diversas: cortes de luz, cortes de água, sabotagens nas caixas d’água, etc.
— Na verdade é assim, o seguinte: a pessoa atrasou o primeiro mês, atrasou o segundo e estamos lá cobrando, aí a gente já tem que tomar uma posição enérgica. Tem situações que a gente tem que cortar água e luz. A gente pode fazer isso? Não pode, mas as pessoas podem atrasar? Pode, mas não pode ficar três meses, e depois de três meses é ação de despejo, então você imagina o proprietário ficar três meses em ação de despejo. — E como vocês fazem o corte de água e luz? — Tem que contratar um pedreiro. — Você chama um pedreiro, ele vai lá na rua e...? — É porque na verdade é o seguinte: a gente pode fazer isso? Não podemos, é ilegal cortar a água e luz, quem tem que cortar água é a Cedae e quem tem que cortar luz é a Light. Sendo que o que acontece, você vai chamar a Light pra cortar a luz aqui o que vai acontecer? Vai cortar luz daquela pessoa, mas vai cortar de outras também. Se você chamar a Cedae... Porque na verdade cortar água, o que é cortar água? Já aconteceu várias situações, eu durante uma semana tirar a boia do cara, vazando água pra caramba, - está vazando água! absurdo! Aí vem na administradora, aí a gente fala ah..., no outro dia a gente tirava a boia de novo, ficava uma semana caindo água lá, provocar algum constrangimento. Da luz a gente cortava o cara ligava, a gente cortava o cara ligava de novo. A gente arrancava o relógio, está entendendo? Tem que fazer alguma coisa. Até porque eu estou te falando assim, o seguinte, muito dos nossos imóveis são senhoras, que são proprietárias... (IMOBILIÁRIA 2, FAVELA 1)
A violência com que são realizados, no âmbito local, os despejos nas favelas,
demonstra o pouco poder de reação dos inquilinos diante desse tipo de atitude. É
possível que os moradores mais antigos (donos de comércio, envolvidos com a
Associação de Moradores ou com tráfico, etc.) sejam proprietários dos imóveis em
que moram e os inquilinos no geral sejam os moradores mais pobres e com menos
153
acesso às instituições locais e supralocais. Esse pode ser um dos determinantes da
possibilidade do uso da força pelos proprietários e corretores.
3.3 Regulação da construção
Os casos estudados nos apresentam uma variedade de agentes locais e
supralocais que mediam os conflitos. Esses agentes são o Estado (que apresenta
em si uma diversidade de agentes), Associação de Moradores e narcotráfico
varejista. É nesse imbróglio que é realizada a regulação da construção, onde os
casos são resolvidos de modo descentralizado e dois ou mais agentes podem atuar
simultaneamente, um limitando a atuação do outro. Isso acontece porque os agentes
são múltiplos e seu papel pouco delimitado e porque a fiscalização é feita, na
maioria dos casos, por denúncias, o que faz com que os moradores possam acionar
para o mesmo caso agentes diferentes a depender de onde tem mais influência ou
de quem resolve de forma mais eficiente o caso.
Nos dois casos estudados há um marco regulatório do uso e ocupação do
solo. Na Favela 1, limita-se apenas gabarito e alguns usos muito específicos. Na
Favela 2, além do gabarito, congela-se a produção de habitações, proibindo novas
construções e ampliações que resultem em novas unidades habitacionais. A
proibição da produção de novas unidades em construções já existentes na Favela 2
nunca teve eficácia, mas a proibição de novas construções foi eficaz durante um
período. Podemos levantar dois motivos para a maior eficácia da proibição de novas
construções em relação à de novas unidades: a maior facilidade de fiscalização e a
demanda da produção de novas unidades para a complementação da renda ou
alocação de filhos recém-casados.
Organizamos esse subcapítulo por agentes e sua relação com outros
agentes. Vamos começar pelos agentes representantes de Estado e os primeiros
serão os fiscais da prefeitura. Esses técnicos são os únicos especializados em
fiscalização do cumprimento das normas edilícias que atuam nessas favelas.
Segundo o Proprietário 1 da Favela 1, os fiscais chegaram a ter alguma atuação,
demoliram uma casa, segundo o entrevistado, “pra mostrar serviço”.
Prefeitura regula as construções. Tem um cara da prefeitura que fica direto. Setor desse cara tinha 20 pessoas. O prefeito chegou a demolir uma casa que estava fora do padrão... Esse prédio aqui mesmo foi denunciado (o prédio da frente). O vizinho denunciou. O cara às vezes vai na Associação
154
de Moradores, reclama... O cara às vezes vai na RA também, mas a RA não faz nada. Eles dizem ‘ah, não sei o que... não tem gente pra ver...’ (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1)
Dois dados desse trecho de entrevista merecem ser destacados: a visão da
ineficácia da atuação da RA na Favela 1 e a variedade de instituições que os
moradores procuram para fazer o mesmo tipo de denúncia. Mas, voltando à atuação
dos fiscais da prefeitura, os depoimentos apontam que a atuação desses
funcionários foi durou pouco. Segundo o Proprietário 1 da Favela 1:
Quando veio a UPP, tinha uns 20 caras aí perturbando. Deu uns 3 a 4 meses, ficou um fiscal que ficava duas vezes por semana, ele era fiscal e orientador ao mesmo tempo, mas não adiantava nada. Quando tinha denuncia ele ia lá e segundo os caras, porque todo mundo que tocou obra dava um dinheiro a ele. (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1)
Segundo o entrevistado, essa configuração onde há apenas um fiscal e o
Estado tem o poder de polícia dentro das favelas abriu espaço para esse tipo de
corrupção. Segundo o corretor da Imobiliária 1, o primeiro momento de fiscalização
mais dura serviu apenas para demonstrar poder e posteriormente chantagear quem
quisesse construir a pagar suborno.
— Pela regra da prefeitura do tempo do Eduardo Paes era dois andares mais cobertura, mas foi só um momento de choque de ordem, isso não manteve, tem prédio aí de 8 andares feito. [...] — Não tem mais embargo de obra? — Teve unzinho só, pra mostrar que... “aquilo ali era uma questão financeira” de como quem diz assim: — “você até hoje fez e ganhou só você, daqui pra frente você vai fazer, mas a gente tem que ganhar”. Aqui não foi tanto, mas nas outras áreas que eu te falei era assim, tem que morrer com 20, com 30, aonde teimavam eles iam e quebravam a porra toda. Você tem que pagar. (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1)
O Proprietário 1 prossegue com a denúncia.
Decreto e nada é a mesma coisa. Chegaram a tentar fazer, mas não tinha gente. [...] o cara construiu do lado da UPP, aí foi esse cara que falou, dei 50 mil pro fiscal da prefeitura, quero meu dinheiro de volta (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).
No entanto, não é apenas a corrupção dos funcionários do Estado que
aparece como barreira à aplicação de parâmetros técnicos ou dos parâmetros
estabelecidos nos marcos regulatórios. Segundo o corretor da Imobiliária 2, os
fiscais não têm a segurança necessária para exercer o seu trabalho de forma isenta.
155
Pode, mas não pode, porque ele pode fazer, mas ele tem que fazer pra todo mundo. Ah, pro zé das couves não pode construir, mas pro boi bravo pode? E, às vezes, boi bravo em grande maioria. Fiz a metáfora da arma, mas não é a arma, o cara chega lá, pô, pode chegar com... — “o que é que foi?” (IMOBILIÁRIA 2 FAVELA 1)
Na Favela 2, a fiscalização da prefeitura, ao que parece, teve uma eficácia
maior, porém sofreu com o mesmo desmonte. Além disso, mesmo um número
reduzido de funcionários é capaz de fiscalizar de forma considerável. Os
entrevistados associam o recuo da fiscalização à diminuição da atuação da UPP e à
segunda diminuição do número de funcionários na favela após a mudança de
governo em 2017. Provavelmente, o avanço da ostensividade do narcotráfico
varejista também criou novas barreiras à atividade dos fiscais.
Embarreiravam, agora não estão embarreirando mais, porque isso era mais na época do Eduardo Paes (PROPRIETÁRIO 3, FAVELA 2).
Os fiscais que atuaram na Favela 2, segundo uma representante da
Associação de Moradores, atuaram em conjunto com os funcionários do POUSO.
Esse pode ser também um determinante da maior eficácia nessa favela. No entanto,
a mudança de governo diminuiu o número de funcionários do POUSO de 2 para 1 e
diminuiu a frequência do funcionário que permaneceu.
— E quem regula? — Tinha um engenheiro do POUSO que além de fazer a fiscalização ele também orientava. Se você chamasse ele lá na sua casa ele te ajudava a fazer uma planta-baixa, fazer uma estrutura, pra você ter uma orientação urbanística melhor, entendeu? — E ele está aqui ainda? — Ele vem, com menos frequência, porque depois da mudança da gestão do Crivella alguns serviços foram mais reduzidos ainda, então aquele funcionário que ficava aqui diariamente já não fica mais, ele vem uma vez por semana, ou de 15 em 15 dias, ou se houver alguma necessidade (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).
O POUSO na Favela 2 tem uma atuação muito maior quando comparado com
o caso da Favela 1. Em todas as entrevistas, o POUSO foi a maior referência no que
se refere à regulação e orientação da construção, ao contrário da Favela 1, onde foi
pouco citado. Todos os entrevistados da Favela 2 em algum momento foram
orientados pelo engenheiro do POUSO.
O curioso é que muitas construções novas e ampliações que geraram prédios
de apartamentos foram orientadas pelo engenheiro do POUSO, mesmo existindo um
156
decreto proibindo a construção de qualquer unidade habitacional nova. Entre as
entrevistas, há o caso de um jovem que, ao casar, herdou uma laje da família e
construiu com orientação do engenheiro no local. Há também o caso de um dono de
loja de materiais de construção que construiu um prédio com quatro quitinetes e
recebeu a mesma orientação. Há outro caso onde um antigo presidente da
Associação de Moradores, o Proprietário 4, que recebeu orientação para a
construção de um prédio com seis apartamentos destinado para aluguel.
Tive auxílio do POUSO. Aqui tem alguns profissionais que realmente sabem construir, mas não dá pra arriscar construir um prédio de três andares com curioso, por que se não você vai perder o seu patrimônio e vai acabar colocando as pessoas em risco. Por isso é sempre bom estar bem orientado (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).
Em nenhuma das entrevistas houve qualquer indício de que o engenheiro do
POUSO tenha recebido qualquer tipo de propina, seja pela orientação ou para não
embarreirar a construção. Ao que parece, a transgressão do decreto pelo funcionário
de Estado e moradores da favela está mais relacionada à inaplicabilidade da norma
do que a qualquer vantagem que possa ser tirada de acordos ilícitos.
Ao contrário, na Favela 1, o POUSO foi citado para descrever sua
inoperância.
O POUSO é pra ter assistente social, um monte de coisa, só tem o engenheiro. Agora tem o engenheiro permanente, é pra vir todo dia, mas eu não vejo ele em lugar nenhum, vejo ele sentado todo dia. Pergunta: e aí, com estão as obras: — “vou ficar vendo obra de bandido”. Porque os caras que constroem e que têm dinheiro é do tráfico. (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1)
Aqui, fica mais claro como o tráfico pode, em alguns contextos, impedir o
trabalho do POUSO. Como já expusemos aqui, em algumas oportunidades, o tráfico
foi apontado por alguns entrevistados como importante agente da produção
imobiliária nas favelas pesquisadas. No caso, o entrevistado faz uma crítica ao
funcionário público, mas ao mesmo tempo expõe uma possível razão para a sua
inoperância.
Como expusemos anteriormente, a RA que cobre a área da Favela 1 também
foi citada apenas para expor sua inoperância. Segundo o mesmo morador, a
inoperância da RA inclusive abriu espaço para que a UPP começasse a exercer
certas funções que seriam da RA. Ao parecer mais eficiente procurar a UPP para
157
resolver problemas de manutenção de infraestrutura, o morador resolve desistir de
acionar a RA.
A UPP resolvia tudo, o cara estava precisando de uma manilha, falou na RA várias vezes, não resolveu, falou com o major, no dia seguinte estava pronto. — “mas não é papel dele, tem que falar com a RA”. — “mas foi a RA mesmo que fez, mas falar com a RA é o mesmo que nada” (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).
Segundo o Proprietário 4 da Favela 2, lá a UPP também exercia papéis que
iam para além da segurança pública e chegavam à regulação edilícia. Segundo o
entrevistado, a UPP passou a atuar em diversos casos na mediação de conflitos.
Nesse caso, o conflito estava relacionado ao limite de dois lotes. Uma moradora
denunciou a construção do vizinho supondo estar invadindo o seu terreno.
Na realidade, a UPP ficou muito desprotegida também. Eles estão aí meio à deriva, sem recurso, sem dinheiro, sem recurso humano. Ela já até teve esse papel, com especialista vindo de pessoas da polícia militar que atuavam no ministério público nesses projetos e até tentaram fazer isso e foram muito bem sucedidos. Eu tive o primeiro caso, quando eu comecei a construir a minha casa lá que virou o hostel. Uma vizinha que alegava que eu tinha invadido o terreno dela, e aí eu provei que não e que a indenização que ela queria era indevida e que ela deveria me indenizar, porque a casa dela era uma casa muito precária não tinha banheiro, não tinha saneamento básico. Eu fiz um acordo com ela. Pra você ter uma ideia eu gastei 20 mil reais fazendo melhoria na casa dela e depois ela ainda me acionou. Eu levei o pessoal lá pra ver a condição, por que eu fiz tudo, registrado com foto, documentei tudo, desde o início da construção. Era uma área que era da minha sogra. O policial que era da UPP e que tinha essa experiência e essa parceria da UPP com o ministério público. Porque o que se decidia aqui era homologado pelo juiz, eles foram preparados pra fazer essa resolução de conflitos. Eles não decidiram, nós sentávamos, as partes, deliberávamos e era homologado, era feito um relatório e era levado para o ministério público, aí o juiz homologava (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).
Além dos agentes do Estado, foi identificada a atuação da Associação de
Moradores no interior das favelas estudadas. Segundo os entrevistados, a atuação
da Associação de Moradores na regulação da construção se dá principalmente
através de denúncias, onde a associação intervém mediando o conflito e buscando o
acordo. No caso do conflito não se encerrar com a mediação, a Associação de
Moradores encaminha para os órgãos competentes.
Segue reproduzido o trecho da entrevista com uma representante da
Associação de Moradores 2 da Favela 2.
— A gente tenta fazer o intermediário, que eles entrem em um acordo, mas às vezes eles não entram em acordo, o que a gente aconselha, justiça: vai
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pra justiça. Porque muitas vezes o morador vem aqui: o fulano está jogando não sei o que... A gente tem que ir lá, falar. entendeu? A gente tem que mediar. Ajudar um pouco o morador nos conflitos. Nessa gestão já ajudamos a construir duas casas, vias públicas, isso a gente tenta ajudar, tenta fazer da melhor maneira possível. — Geralmente revolve? — Alguns casos sim, outros têm que ir pra justiça por que às vezes é brabo. — Aí vai pra justiça comum mesmo? — Vai pra comum, aí eles brigam lá (ASSOCIAÇÃO DE MORADORES 2, FAVELA 2).
O depoimento a seguir é de um representante da Associação de Moradores 1
da Favela 1.
Nós fazemos mediação. Quando vizinho invade parte do terreno, ou fecha a janela do outro. Em último caso eles entram na justiça. [...] Saindo do conhecimento técnico do pessoal da associação, acionamos a RA ou o POUSO. Tentamos resolver por argumentos técnicos. É muita gente que vem nos procurar, principalmente por problemas de privacidade, ventilação, vazamentos. O comércio não dá muito conflito. Isso é papel do governo, a gente faz porque o governo não faz. (ASSOCIAÇÃO DE MORADORES 1, FAVELA 1)
Apesar de ter sido apontado por outros entrevistados que os moradores
buscam instituições diferentes a depender de quem é o morador e qual é o contexto,
é interessante observar que a Associação de Moradores busca as instituições
técnicas do Estado responsáveis nos casos em que não tem a competência técnica
para propor uma solução. Dessa forma, apesar de os agentes que cumprem a
mesma função em diversos momentos limitarem um ao outro, em outros podem agir
em parceria, aumentando o poder de atuação.
Essa mesma relação foi apontada entre a Associação de Moradores 2 e o
POUSO da Favela 2.
Sim, por exemplo, o morador tem uma casa aí ele fala assim: eu vou aumentar a minha casa para ali e pra cá. Aí o presidente vai lá e fala assim: você está dentro do seu quintal está tudo certo, você pode fazer, o engenheiro vai lá, orienta, o [agente do POUSO] faz uma planta pra pessoa, a pessoa vai comprar o material certo, vai fazer a casa correta. Tem também uma orientação. Agora, se ele fizer a casa do jeito dele, da maneira dele e acontecer alguma coisa, a gente não tem nada com isso, foi dado o aviso, se ele seguiu ou não (ASSOCIAÇÃO DE MORADORES 2, FAVELA 2).
Alguns proprietários e as Associações de Moradores, em especial a da
Favela 2, apresentaram a preocupação de diminuir o crescimento, ou crescer com
planejamento, tendo como preocupação principal as condições da infraestrutura. O
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depoimento a seguir é do Proprietário 1, uma antiga liderança da Favela 1.
Tem muita construção nova. É complicado, se por um lado as pessoas precisam morar, por outro quando você amplia demais, você tem o problema da carga de esgoto, a água não dá pra todo mundo, a luz elétrica tem que remodelar... Eu acho que tem que dar uma estagnada. (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1)
Na Favela 2, o Comerciante 1, filho de um antigo representante da
Associação de Moradores, também reivindica um controle de novas construções
pelo mesmo motivo.
Eu confesso que eu acho que deveria ter um controle também. Eu acho que seria bem interessante. Eu sempre falei sobre isso, porque eu lembro que antigamente a gente enchia uma caçamba de lixo em uma semana, hoje são três por dia, quatro por dia, então chega uma hora que você não comporta mais o número de pessoas. É o que estava acontecendo naquele momento, o consumo de água maior, rede de esgoto se utiliza mais, mais lixo, enfim, tudo passa a ser... (COMERCIANTE 1, FAVELA 2)
A Associação de Moradores 2 da Favela 2 também se engajou nos últimos
anos na retenção do crescimento fazendo campanhas de conscientização e
contribuindo na identificação de novas construções.
Um elemento importante, que surgiu na entrevista com a representante da
Associação de Moradores 2 da Favela 2, foi a percepção de que a partir do
momento em que prefeitura passou a assumir parte da regulação da construção,
tornou-se um risco para a associação cumprir o mesmo papel. Quando a prefeitura
deixou de cumpri-lo, criou-se um vácuo na regulação edilícia da favela. Segundo a
entrevistada:
— A associação não tem o poder de chegar e impedir de você chegar e construir ali, quem tem esse poder é a prefeitura. A prefeitura vem aqui e impede você de construir ali, a associação não tem essa autoridade. [...] — Se for uma casa nova vocês não cadastram? — Não, porque, como é que você conseguiu esse lugar pra construir, qual a procedência disso, se não disser, a gente não tem como registrar, a gente só registra imóvel que, por exemplo, eu tenho uma casa, aí eu vendi a parte de cima, a gente registra a parte de cima pra outra pessoa, mas num terreno que a gente não sabe de onde veio... Como que vai... É uma casa ilegal, se a prefeitura derrubar, a gente não tem nada com isso, porque a casa que está registrada aqui, se for derrubada, a associação tem como defender o morador, agora essas dai, qual a procedência desse terreno? (ASSOCIAÇÃO DE MORADORES 2, FAVELA 2)
Como já foi exposto antes, vários entrevistados da Favela 2 indicaram a
diminuição do número de fiscais da prefeitura e funcionários do POUSO após a
160
mudança de gestão como principal motivo do aumento das construções no último
ano. Mas, uma possibilidade é que, além de ter diminuído a fiscalização da
prefeitura, o poder de ação da Associação de Moradores tenha diminuído pelo risco
de a prefeitura demolir uma casa autorizada pela associação. Para o Proprietário 4
da Favela 2, a fiscalização deixa de ser responsabilidade da Associação de
Moradores no momento que em existe um marco regulatório municipal de uso e
ocupação do solo.
Apareceram, nos últimos três anos houve um avanço tremendo. Por quê? Primeiro porque isso não cabe mais à associação fiscalizar, quando você tem uma legislação municipal, quem tem que fazer a fiscalização é o município e a fiscalização praticamente não existe, então virou, desculpe a expressão, uma terra arrasada né? Que as pessoas fazem o que querem, sem orientação nenhuma, muitas das vezes colocando o seu patrimônio e a sua vida em risco, porque tem algumas áreas que realmente oferecem um risco iminente, no período de chuva, entendeu? Então falta uma fiscalização e orientação mais presente (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).
Ao mesmo tempo existe outro agente que a depender do contexto pode
limitar o poder de ação da Associação de Moradores, assim como de todos os
outros agentes em menor ou maior grau. Esse agente é o narcotráfico varejista.
— Hoje na verdade a Associação de Moradores ela acaba não opinando quando deveria, hoje a gente vê realmente que quem manda é um poder paralelo. [...] — E a associação não consegue mais intervir nisso? — Não consegue por causa da influência diretamente do tráfico (COMERCIANTE 1, FAVELA 2).
Ao que parece, da mesma forma que um dos entrevistados apontou a falta de
segurança dos funcionários como justificativa para a falta de poder de atuação das
instituições de Estado na regulação da construção na Favela 1, a segurança dos
membros da Associação de Moradores também está ameaçada ao confrontar-se
com essa situação. Segundo o comerciante entrevistado “as pessoas usam o nome
de pessoas envolvidas pra poder construir e aí você complica a situação por que
você não pode expor sua vida” (COMERCIANTE 1, FAVELA 2).
Ao contrário do que apareceu nos depoimentos na Favela 2, o narcotráfico
varejista na Favela 1, segundo o depoimento do Corretor 2, utiliza do seu poder de
impedir as construções para tirar vantagens. No caso exposto pelo entrevistado, o
narcotráfico chantageou o sujeito que estava construindo a lhe ceder dinheiro ou
apartamentos para que a construção não fosse importunada.
161
Pagou almoço pra todo mundo, bota uma mulher de um traficante pra morar, logo ele: — “ah me paga 700, faz alguma coisa”. Na verdade o que você vai fazer? Muitas das coisas nas nossas vidas dependem muito de quem é, porque está fazendo, quem é a pessoa. — “Quem é o cara que está construindo aí?” — “ah, é fulano de tal” — “ih, rapaz, não vou nem me meter nisso”. Complicado pra caramba e acabou. Depende muito da situação que a pessoa está construindo agora pro cara construir um prédio grande ali o cara tem que ter algum cacife né? (IMOBILIÁRIA 2, FAVELA 1)
Um dado importante é que o narcotráfico varejista, em determinados
contextos, pode limitar a atuação de todos os outros agentes e também se tornar
uma “chave” para burlar as regras determinadas por esses agentes. Num caso
extremo, apenas os que pagam ou que têm algum acordo ou proximidade com o
tráfico poderiam construir.
3.3.1 O direito ampliado da “cria da comunidade”
Já expusemos antes que a falta de câmaras técnicas especializadas e
normas que parametrizem as decisões sobre conflitos ou mesmo sobre a regulação
social, aumentam a necessidade de decisões arbitrárias. Nesse contexto, há a
tendência que as decisões, uma vez tomadas por agentes que buscam a
legitimidade perante a população local, favoreçam essa mesma população, em
especial a população mais antiga ou que possui uma rede interna mais ampla.
Dessa forma, há uma espécie de norma de conduta, que pode ser ou não racional,
que determina esse tipo de comportamento e gera categorias locais como a “cria da
comunidade” ou “não esculachar morador”, no caso da relação do narcotráfico
varejista com o morador. Essa forma de comportamento faz com que, em
determinados momentos, as decisões sobre taxas, instalação de comércio ou
construção sejam determinadas pela relação do sujeito da ação com o território.
A figura da “cria da comunidade”, designa os sujeitos nascidos e crescidos na
favela. Houve dois exemplos vivenciados em campo onde essa relação se tornou
argumento para a realização de determinado empreendimento. Em um deles, um
morador queria construir sobre uma laje que obstruiria a vista de outra casa. O fato
de ser “cria da comunidade” foi essencial para o convencimento e o próprio técnico
da prefeitura, apesar de a legislação não permitir aquela construção, fez “vista
grossa” e orientou a obra. Outro caso envolveu a instalação de uma barraca para
comércio de rua. A Associação de Moradores se apresentou para proibir a atividade,
mas o argumento mais uma vez garantiu a manutenção do comércio.
162
Segundo o corretor da Imobiliária 2 da Favela 1, a taxa de emissão do
instrumento particular de compra e venda tem um preço negociável e a possibilidade
de abaixar o seu custo vai depender do seu prestígio dentro da favela.
Cobra 3% [taxa de produção do instrumento particular de compra e venda emitido pela Associação de Moradores]. Mas é um valor também negociável. Chega uma pessoa lá: — “pô, estou vendendo, pô não tem como pagar, fica muito pesado”, vamos supor, vendeu por 30 mil, o documento vai ser 900, mas se a pessoa for associado da associação, for de muito prestígio, quer dizer, tem uma... (IMOBILIÁRIA 2, FAVELA 1)
Na Favela 2, o Proprietário 4, que é um antigo presidente da Associação de
Moradores, confirma que a Associação de Moradores busca favorecer os moradores
mais antigos.
— A permissão pra construir é mais fácil pra quem já mora aqui? — Não, com certeza, por exemplo, se você vem de um núcleo familiar onde não tem espaço pra você, aí é lógico que a associação tem que dar atenção. É mais fácil. Você é um nativo daquela área, ao contrário de quem vem de fora. Uma pessoa que não tem relação nenhuma com a comunidade chega aqui: — “ah não, vou construir aqui”, lógico que você vai estar tirando espaço de uma família que está ali primeiro que você, que está estabelecida naquela comunidade. Isso realmente existia, e continua existindo, não tem como você se livrar disso. — Sim, então as coisas são mais facilitadas pra quem é daqui? — Com certeza, quem é morador daqui tem uma vantagem a mais daquele que não é. Você já tem toda uma afetividade, lembra do que eu te falei, você já tem uma relação afetiva com toda uma comunidade estabelecida (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).
Os motivos que fazem os agentes locais favorecerem os moradores mais
antigos são diversos. A ideia de que há uma relação de afetividade já estabelecida é
bastante acionada pelos moradores, mas não deve ser o único determinante. Já
mencionamos os motivos que fazem a Associação de Moradores e o narcotráfico
varejista buscarem se legitimar perante a população local. Dessa forma, a busca por
legitimidade, no caso da associação representada no voto, pode ser adicionada nos
determinantes desse tipo de comportamento.
O Comerciante 1 da Favela 2, reclama dos moradores novos que “já chegam
querendo sentar na janela”. Ele se refere a um morador novo que está envolvido
com a Associação de Moradores. Segundo o comerciante, os moradores novos não
estão comprometidos nem com o passado nem com o futuro da favela, o que faria
com que as suas atitudes estivessem condicionadas apenas a interesses próprios
ou imediatos. Para ele, são pessoas que, no primeiro momento ruim, tem a liberdade
163
pra ir embora.
Na verdade são pessoas que vieram pra cá pra morar aqui porque estavam perto do trabalho, enfim tentavam alugar alguma coisa mais perto, mas são pessoas que não têm raízes na favela, não têm vínculo com a gente, não têm instrução no desenvolvimento da favela, são pessoas que vêm aqui só por conta disso, então se está bom ou se está ruim, amanhã ou depois ele põe a trouxa dela nas costas e ai embora, aí não faz diferença como está ou como vai ficar (COMERCIANTE 1, FAVELA 2).
Então, quem vem pra cá, que não tem o conhecimento, que não tem origem aqui não valoriza isso, está se lixando pra essas campanhas de não crescimento urbanístico. E quem mora quer preservar as áreas verdes, os espaços livres... (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2)
A visão da moradia em favela como uma situação transitória deve existir
principalmente entre os locatários. Essa não é uma condição apenas da favela, mas,
nas favelas pesquisadas, os entrevistados apontaram as vantagens da produção de
quitinetes por atingir o público mais pobre que, segundo eles, é a principal demanda
do mercado de aluguel. Se isso é verdade, ao mesmo tempo em que favorecer a
“cria da comunidade” pode significar uma forma de defesa contra a substituição da
população em possíveis processos de valorização decorrentes de intervenções
públicas, modismos, etc. pode significar também um agravamento da situação dos
locatários que é a população que tende a ser mais rotativa e que por consequência
tente a ter menor suporte de redes de solidariedade, organizações políticas etc.
164
4 FORMAÇÃO DOS ESTOQUES IMOBILIÁRIOS
Este capítulo está dedicado a uma categorização das formas de ampliação
dos estoques imobiliários em favelas. A maior parte dessas categorias já é
consolidada na literatura sobre favelas, porém há dois elementos que se
apresentaram no trabalho de campo e que gostaria de destacar, sejam eles: as
estratégias de ocupação de novos terrenos e a prática de compra de imóveis,
intensificação de uso do solo e disponibilização para aluguel.
Entender a autoconstrução da moradia como forma única de construção na
favela seria entender que qualquer morador tem o conhecimento e habilidade
necessários para construir uma casa em tempo e qualidade condizentes com as
necessidades, além disso, seria entender que quaisquer trabalhos formais ou
informais dos moradores das favelas pagassem menos do que o serviço dos
pedreiros e mestres de obra. Em um dos casos encontrados na Favela 2, um
morador iniciou um processo de autoconstrução e logo em seguida preferiu
contratar, pois economizava menos construindo a própria casa do que ganhava
aproveitando esse mesmo tempo no serviço de moto táxi da região. Se o serviço de
moto taxista paga o suficiente para que contratar seja mais vantajoso do que
construir a própria casa na favela, podemos supor que um número considerável de
moradores se encontra nessa mesma posição.
Ao mesmo tempo, nem todas as ocupações permitem dispor de horário livre
para executar a própria construção. O Comerciante 1 da Favela 2 é dono de um
restaurante e provavelmente a manutenção do funcionamento regular do seu
empreendimento exige a contratação de mão de obra.
Contratou mão de obra pra construção? Sim, apesar de ter conhecimento técnico pra isso, porque eu já trabalhei em obra a vida inteira com o meu pai, mas eu não tinha tempo pra execução então eu preferi realmente pagar e comandar, né, o serviço (COMERCIANTE 1, FAVELA 2).
Outra questão que certamente pesa na hora de contratar mão de obra é a
divisão do trabalho. Por mais que grande parte dos moradores de favela, em algum
momento da vida, tenha aprendido o ofício de construção civil ou mesmo trabalhado
no ramo, a realização uma obra bem executada pode exigir a contratação de mão de
obra especializada em determinados serviços.
165
Não, um dos sócios ele é pedreiro, então tipo assim, ele já fazia isso, mas a gente contratou também, porque não dá pra fazer tudo sozinho. A gente contratou três ou quatro pedreiros bons e fomos fazendo. Olha, bora fazer a fundação, fazer as colunas, ferro, estribo... E aí vai fazendo. O carpinteiro pra fazer o caixonete certinho, a forma. A laje a gente bateu na betoneira, botamos a betoneira aqui e levamos a borracha até lá em cima, em dois minutos os caras bateram, 2 minutos, 20 minutos, uma hora na verdade. Foram dois caminhões daqueles pra bater a laje. As duas lajes foram assim (PROPRIETÁRIO 3, FAVELA 2).
A contratação de serviços especializados certamente fez o Proprietário 3
ganhar algum tempo no serviço e possivelmente o fez economizar em determinados
momentos. Ainda, as habitações construídas para aluguel certamente reivindicam,
dentro do possível, o tempo mais curto de construção, pois o empreendimento só
passa a auferir rendimentos após a conclusão da obra. A celeridade da obra exige a
certa quantidade de trabalhadores, possível apenas via contratação.
Dessa forma, é necessário considerarmos em todos os momentos a
possibilidade da contratação de mão de obra para as formas de construção e
ampliação que serão expostas a seguir em especial no último subcapítulo onde
trataremos das formas mais sistemáticas de produção imobiliária.
4.1 Ocupação
Nas favelas consolidadas, a ocupação de novos terrenos é bastante limitada,
porém a prática ainda persiste, tanto tensionando os limites de expansão do território
dos assentamentos, como na ocupação de espaços que não haviam sido ocupados
ou que resultaram de remoções em obras de urbanização. Em ambos os casos, uma
das estratégias observadas foi a construção gradativa da edificação de forma que se
possa demarcar o terreno e, ao mesmo tempo, garantir a redução dos prejuízos se
alguma autoridade vier a demolir. A segunda estratégia envolveu algum agente local
com o poder de assegurar a realização da construção.
Comecemos pela primeira estratégia, e o primeiro exemplo, tomamos
emprestado de outro trabalho de campo realizado por Luciana Ximenes (2018). O
trecho é extraído de uma entrevista semiestruturada realizada com um técnico da
Light. Esse trecho descreve um dos procedimentos para a fiscalização das linhas de
alta tensão da Light, no caso em que uma dessas linhas de transmissão corta uma
favela. O técnico entrevistado conta a sua estratégia para evitar a ocupação das
linhas nas áreas contíguas às favelas.
166
Teve um caso no ramal Areia Branca, esse eu estava. O cara fez um alicerce, um baita de um alicerce imenso, pra fazer uma casa imensa. Eu estava lá, fui lá com o pessoal da demolição, tinha um cara lá em pé.— “amigo vem cá, de quem é esse alicerce?”, — “não sei de quem é não, já vi feito ai”. — “Ah é, está bom. Não sabe de quem é? Então procura ai”. O pessoal procurou, não achou. Eu falei: — “Quebra!”. Metemos a marreta, quebramos tudo. — “Bom não achou, o dono vai aparecer”. Passou uma semana, ai o pessoal chegou pra mim: — “aquele alicerce começaram a fazer de novo”. Falei: — “ah é, quer fazer deixa fazer”. Então todo dia alguém passava lá e falava: — “[nome omitido], oh, já acabaram o alicerce e começaram a levantar as paredes”. Aí falei: — “Deixa, quando tiver começando a botar a laje me avisa”. Aí quando os caras estavam em ponto de botar a laje na casa, parede, tudo pronto, falei: — “vamos lá!”. Fomos lá e quebramos. Ai vem o cara, aquele mesmo cara que eu vi em pé lá e que disse que não sabia de quem era a casa. — “Ei, pera ai, a casa é minha”. Falei: — “pera ai que eu perguntei a você e você disse que não sabia de quem era”. [...] Falei: — “vou quebrar de novo”. Aí quebraram a casa. Daí, estamos quebrando a casa e está ele discutindo comigo. Aí ele falou: — “mas vem cá, porque tu não quebrou antes?”, — “Porque eu queria dar um prejuízo maior, e é o seguinte, fica avisado o seguinte, vamos quebrar tudo, deixar no chão, se você construir de novo agora vamos esperar você botar a laje. Quando você colocar a laje eu venho aqui e quebro. Agora minha briga é contigo, eu quero te dar prejuízo”. Nunca mais ele construiu ali90.
Uma questão interessante, mas que não cabe discutir nessa dissertação é a
carta branca que a Light tem para, na gestão das linhas de transmissão, demolir as
casas que ocupam as linhas de forma arbitrária e autoritária, sem passar pelo
procedimento legal necessário em outros casos. A liberdade do funcionário de Light
de gerar um prejuízo maior para o ocupante não repetir a ação também impressiona.
No entanto, para o nosso trabalho o outro ponto de vista é mais útil. A pergunta do
construtor-ocupante: “mas vem cá, porque tu não quebrou antes?”, nos indica que o
ocupante-construtor busca demarcar o terreno e construir de forma lenta a fim de
“testar” a fiscalização. Se o órgão fiscalizador resolver demolir o prejuízo é menor, se
não acontecer o construtor ocupante segue construindo.
Segundo o mesmo entrevistado, em determinados contextos o narcotráfico
varejista permite o prosseguimento do trabalho da Light e, às vezes, até contribui
com ele a fim de evitar a entrada da polícia que atrapalharia os seus negócios.
Dá conflito, dá discussão, principalmente dentro de favela. Mas graças a Deus a gente tem conseguido fazer isso. Por quê? Primeiro o cara da favela, ele não quer a polícia lá dentro... Os traficantes, não querem. E eles sabem o seguinte, se não ajudarem a gente ou então fingirem que a gente não existe, a gente vai chamar a polícia. Se a gente chamar a polícia atrapalha o negócio deles. É um atrito de interesses. [...] É uma situação meio complicada. Não vou te dizer que é tão simples de resolver quanto eu
90 Entrevista realizada em 2017 com o responsável pela manutenção das linhas de transmissão da Light em trabalho de campo realizado por Luciana Alencar Ximenes. Este material ainda não está publicado.
167
estou te falando não91.
Na Babilônia, no trabalho que realizamos para a regularização fundiária,
acompanhamos uma casa que ficou só na fundação ao longo de todo o ano de
2015. Em algum momento o proprietário sentiu segurança92 em terminar a casa e a
finalizou.
O Proprietário 3 da Favela 2 aponta o mesmo processo para outras casas.
Essa casa aqui não podia, essa a prefeitura já tinha derrubado, porque ia fazer não sei o que aí, aí não fez, aí neguinho está fazendo as casas aos poucos, a outra praça já ocuparam também. Ali são pessoas que já foram indenizadas e continuam lá. A prefeitura deu dinheiro pra sair, mas ficou lá, deu dinheiro e com o dinheiro construiu a casa (PROPRIETÁRIO 3, FAVELA 2).
Algumas formas de ocupação foram de alguma foram autorizadas. No
entanto, não vamos considerar aqui as ocupações autorizadas pelos donos oficiais
da terra ou pelo Estado, mas as ocupações autorizadas por agentes locais das
favelas, ou seja, que não são os donos oficiais da terra, mas que de alguma forma
conseguem garantir a permanência das casas e das famílias que autorizou ocupar.
A Associação de Moradores foi identificada como um dos agentes que em
determinados momentos pode assumir esse papel. Um dos casos já foi mencionado
duas vezes nessa dissertação a fim de demonstrar pontos diferentes. É o caso do
“Zé do Queijo”, uma antiga liderança da Rocinha que distribuiu terrenos no
Laboriaux. O Comerciante 1 da Favela 2 também chama a atenção para o poder de
determinação do local das construções pela Associação de Moradores. Segundo o
entrevistado:
Antigamente quem poderia dar autorização seria só a Associação de Moradores. A Associação de Moradores ela não dá mais e ela nunca deu, por que se der uma, ela vai ter que dar pra todo mundo. às vezes assim, você morador, você está numa área de risco, estava caindo, ele tentava te realocar pra uma área mais segura não necessariamente te dava, te trocava de lugar (COMERCIANTE 1, FAVELA 2).
Esse poder de determinação é conjuntural, como foi apresentado
anteriormente no subcapítulo “3.1.5 Os limites” e pode ser em determinado momento
91 Idem. 92 Essa segurança tem a ver com a precarização da fiscalização e do policiamento na favela, além de poder ter relação com o esquema de venda de terrenos pelo narcotráfico varejista exposto anteriormente no item 3.1.5, onde o próprio narcotráfico assegura a construção.
168
limitado pelo estado ou pelo narcotráfico varejista.
Os casos que envolvem o narcotráfico varejista também já foram tratados
nessa dissertação no mesmo subcapítulo, portanto vamos apenas relembrá-lo aqui.
Essa relação do narcotráfico com as ocupações apareceu na Favela 2 através da
comercialização de terras vazias. O fato de os ocupantes-construtores relacionarem
a atividade a nomes envolvidos no narcotráfico varejista foram suficientes para
impedir a fiscalização dos funcionários da prefeitura e a ação da Associação de
Moradores. Na Favela 1, essa relação apareceu muito mais vinculada à regulação
de construções em terrenos já ocupados, porém os mecanismos para impedir a
ação dos funcionários públicos e da Associação de Moradores foram os mesmos.
4.2 Subdivisão
Na bibliografia sobre o mercado imobiliário em favelas, a subdivisão aparece
como a forma mais importante de ampliação dos estoques imobiliários. Num quadro
de inelasticidade da oferta de terras, a densificação aparece como uma forma que,
apesar de limitada, tem capacidade de gerar renda capaz de auxiliar os salários ou
mesmo gerar novos investimentos no mercado imobiliário. As formas de ampliação
do estoque que não necessitam da aquisição ou ocupação de novos terrenos são:
subdivisão da edificação, subdivisão do lote ou aproveitamento da laje.
4.2.1 Subdivisão da unidade habitacional
Essa forma de ampliação dos estoques é a de mais difícil percepção, seja
pela fiscalização da prefeitura ou organizações locais e, com frequência, significa a
produção de espaços cada vez mais precários. Dividimos essa modalidade de
produção habitacional em dois: o aproveitamento de um porão ou depósito e a
subdivisão da planta da casa.
Os porões sem ventilação da Rocinha se tornaram uma preocupação da
saúde pública veiculada na mídia93 em razão dos casos de tuberculose. Porém,
casos muito parecidos foram encontrados em especial em favelas localizadas em
áreas de declive, como no Turano, Babilônia e Chapéu Mangueira. As construções
em declive geram um espaço sob as construções que no geral são usados durante a
93 Folha de São Paulo, Na Rocinha, uma mesma rua vive diferentes extremos da tuberculose, 21/11/2016, disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2016/11/1833657-na-rocinha-uma-mesma-rua-vive-diferentes-extremos-da-tuberculose.shtml
169
obra como depósito de materiais aberto. Com o tempo o proprietário o converte em
um porão fechado e num terceiro momento se torna uma possibilidade de ganho via
aluguel e se converte em unidade habitacional (UH).
A seguir, trazemos o registro fotográfico dessas três situações, em diferentes
imóveis. No primeiro, a casa está em obra e o espaço abaixo da construção é usado
como depósito de materiais de construção; no segundo, um espaço semelhante se
tornou um depósito, mas, o proprietário declarou que já havia alugado o espaço e a
janela também indica que já foi habitado; e o terceiro é um espaço que está sendo
habitado. A foto do último caso está com o enquadramento ruim, pois não foi tirada
para essa dissertação, mas há uma escada que sobe para o acesso à casa e uma
escada que desce para o porão habitado.
Figura 12: Subdivisão da UH, fotos dos porões.
Fonte: Acervo do autor.
Esses espaços muitas vezes não têm ventilação/iluminação ou têm de forma
precária. No terceiro caso da foto acima, não há nenhuma possibilidade de
ventilação.
Nos casos apontados, a casa está acima do acesso público e, por
consequência, a UH de porão se encontra no nível da rua, porém, em muitos casos
o porão está abaixo do nível da rua. No primeiro caso, a possibilidade de aberturas
se dá pela fachada de acesso (quanto maior ela for maior a possibilidade). No
segundo caso a possibilidade de abertura para ventilação/iluminação se dá pelo
170
afastamento das construções de fundos.
O desenho a seguir ilustra as duas condições. No entanto esse esquema,
diferentemente dos outros apresentados, se trata de um caso ideal representativo
dos casos observados.
Figura 13: Subdivisão da UH, possibilidade de ventilação dos porões.
Fonte: Desenvolvido pelo autor.
A segunda forma de subdivisão da unidade habitacional é o particionamento
da casa em si. Apesar de termos presenciado alguns casos onde o proprietário
dividiu a própria casa onde mora, segundo a representante da Associação de
Moradores 2 da Favela 2, a maioria dos moradores não mexe na própria casa.
O que eu estou entendendo é assim, a pessoa está passando dificuldade aí diminui a casa pra alugar. Não, aqui não, eles constroem pra alugar, mas a casa deles permanece (ASSOCIAÇÃO DE MORADORES 2, FAVELA 2).
No entanto, outros entrevistados nos indicaram que, mesmo que a
intervenção não seja feita na casa onde o proprietário mora, os proprietários em
determinados casos dividem a casa que alugam em busca da maior rentabilidade
oferecida pelas quitinetes. Segundo o Comerciante 1 da Favela 2:
Uma casa com 2 quartos, sala, cozinha, banheiro, você alugava uma casa assim por 700 reais. Em determinado momento as pessoas em uma casa com dois quartos fazia duas quitinete e alugavam por 700 cada uma, dividia ela no meio (COMERCIANTE 1, FAVELA 2)94.
94 Não temos um levantamento dos preços na favela, mas temos informações dos proprietários entrevistados que possuem imóveis em áreas próximas. O Proprietário 3 da Favela 2 afirmou alugar uma quitinete por 600 reais, enquanto o Proprietário 4 da Favela 2 afirmou alugar um apartamento de 2 quartos por 900 reais.
171
Ainda segundo o mesmo entrevistado, a estrutura do apartamento não muda
de forma significativa o seu preço, por isso a quitinete vale mais a pena. Segundo o
entrevistado, mesmo que a quitinete assuma um caráter transitório pra quem mora,
ela não deixa de ser alugada.
Sim, porque com um apartamento você faz 700, com duas quitinetes você faz 1400. Com um você fazia dois, não aumenta muito por você ter uma estrutura melhor. As pessoas se adaptam cara, eu acho que de acordo com a necessidade da pessoa, você vai pegar o que tiver, precisa pegar e aí tinha umas pessoas que alugavam, ficavam dentro e depois dali esperavam pra pegar um melhor, entendeu. Ficava ali só pra estar aqui, depois pegava melhor (COMERCIANTE 1, FAVELA 2).
Há um fator que se soma aos outros. Todos os entrevistados na Favela 2
indicaram que os preços abaixaram após a mudança de governo, pois a UPP teria
reduzido a sua presença e o tráfico avançado. No contexto de insegurança, a
potencial demanda para aluguel na Favela 2 seria uma demanda com poder
aquisitivo mais baixo que a de períodos anteriores. As condições financeiras da
potencial demanda, dessa forma, imporiam um preço mais baixo da unidade
habitacional e a forma de manter os ganhos dos proprietários de imóveis seria a
divisão dos apartamentos em quitinetes.
Porque você acha que quitinete dá mais grana? Eu acho que dá... Porque, vou te falar assim... Pela situação que está hoje, não adianta você fazer uma casa grande e alugar por 1200, porque hoje ninguém vai ter. Agora, um quitinete, se você dividir a casa, você consegue pelo menos 600, dá pra fazer dois por 600 no mesmo espaço de uma casa grande, só tem que investir mais no material, é uma despesa que vale a pena. 1200 o cara não vai poder entrar, mas 600 todo mês vai pagar. Agora, você bota 1200, o cara no primeiro mês paga, no segundo mês paga, no terceiro mês ele já vai achar uma coisa melhor e vai sair fora, e aí seu investimento... Você vai ficar com a casa vazia (PROPRIETÁRIO 3, FAVELA 2).
É importante destacar a preocupação em manter um preço que o inquilino
possa pagar para evitar a inadimplência. Esse foi um aspecto bastante frisado pelo
corretor da Imobiliária 3 da Favela 1.
4.2.2 Subdivisão do lote
A subdivisão do lote apareceu no nosso trabalho de campo em duas
situações. A primeira se trata de proprietários com lotes com área livre. Esses
proprietários podem vender uma parte de seus terrenos para que outro interessado
172
possa construir. A segunda situação aparece quando dois ou mais interessados
somam seus recursos para adquirir um único lote e construir lotes separados ou
subdividir sobre o construído.
Em algumas favelas, é raro um proprietário ter um quintal de um tamanho
razoável para realizar uma construção. Na Favela 1, por exemplo, a própria
existência de praças e outros tipos de espaços públicos é escassa. Porém, na
Favela 2, o seu processo sócio-histórico permitiu a existência de áreas livres no
espaço público e privado. O quintal foi a única forma observada de um indivíduo,
sem uma articulação específica com agentes que exercem alguma forma de poder
no território, reter uma área vazia por longos períodos e vende-la. A venda de terras
vazias, como vimos, apareceu mais como uma possibilidade de agentes como
Associação de Moradores e narcotráfico varejista.
Numa entrevista com a representante da Associação de Moradores, a
entrevistada indica que, mesmo a associação reconhece e cadastra as construções
novas alocadas em quintais já existentes, mas não se arrisca a cadastrar ou emitir
documentos de construções em outros tipos de espaço vazio.
— Se for uma casa nova vocês não cadastram? [...] — A não ser que seja o quintal de um morador, o morador tem um quintal, aí vendeu um pedaço do quintal dele, construiu uma casa, mas aí o morador veio aqui e contou a história, mas um terreno que a gente não sabe a procedência... (ASSOCIAÇÃO DE MORADORES 2, FAVELA 2)
Isso demonstra o vínculo entre a legitimidade do poder de determinação
sobre um terreno por um indivíduo e a ocupação edilícia por esse indivíduo, mesmo
que o proprietário não faça uso do local, mas ceda a outro via aluguel ou qualquer
outra forma. A legitimidade da propriedade se dá mais pelo trabalho incorporado na
terra como algo de propriedade do indivíduo/proprietário do que no próprio uso
direto. Dessa forma, a capacidade de acumular terra, de alguma forma também
estaria relacionada com a capacidade de investimento.
O esquema a seguir ilustra a venda de um quintal formando um novo lote. No
esquema, o proprietário do lote A no primeiro desenho, é proprietário da área toda
do desenho, no segundo ele vende a área livre do lote transformando-o na área do
lote B.
173
Figura 14: Subdivisão do lote (caso 1).
Fonte: Desenvolvido pelo autor.
No segundo caso observado, a subdivisão do lote se deu através de ação
conjunta de duas famílias que somaram recursos para adquirir um lote e
posteriormente tiveram que construir individualmente. Essa é uma forma de
intensificar o uso mantendo a estrutura das casas independentes. Segundo o
entrevistado, as duas famílias pretendiam construir conjuntamente, por economia ou
pela possibilidade de produzir espaços com maior qualidade, mas o descompasso
da disponibilidade de recursos ou de tempo disponível para realizar a construção fez
com que um deles construísse antes.
Aqui era uma casa baixa, eu comprei com outra pessoa pra construir dois andares, um pra cada um e, no meio do caminho, ele quis dividir porque queria construir logo, eu estava demorando, ele construiu pra lá, eu construí pra cá. Aí tive que fazer 3 andares pra caber tudo (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).
O esquema abaixo ilustra esse tipo de situação, onde um proprietário vente o
terreno para duas ou mais famílias que desmembram o terreno para construir de
forma independente.
Figura 15: Subdivisão do lote (caso 2).
Fonte: Desenvolvido pelo autor.
174
Devemos considerar também a possibilidade de um mesmo proprietário que
comprou de outro ou que já era proprietário do imóvel, fazer o desmembramento por
alguma questão técnico-construtiva ou de disponibilidade de recursos.
4.2.3 Aproveitamento da laje
A laje pode ser destinada à comercialização (venda ou locação) ou ao
usufruto familiar (ampliação da casa ou construção de um novo imóvel para a
família). A prática de destinação da laje a novas construções é um dos sinais de que
a terra e a casa nas favelas se apresentam como uma opção de reserva de valor. Se
pensarmos que, para dispor a laje é necessário um investimento maior na
construção da casa, entendemos que essa prática necessita previsão. Ou seja, a
possibilidade de vender a autorização para construir na laje ou a construção pelo
próprio dono da casa para venda, aluguel ou cessão, exige a previsão de ampliação
e de maiores investimentos desde os alicerces.
A dos apartamentos começou a ser construída em 2009, o primeiro andar já foi construído pensando no segundo e possivelmente no terceiro, porque você começa a construir uma estrutura que não aguenta peso, depois você quer construir aí você vai ter um outro custo, você vai ter que quebrar, reforçar a estrutura (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).
Uma das formas de aproveitar a laje é para ampliações, mantendo-se como
imóvel da mesma família. As ampliações podem acontecer acompanhando a
disponibilidade de recursos, caso em que a família constrói aos poucos até o imóvel
estar condizente com as necessidades da família, ou pode acontecer
acompanhando as mudanças de necessidade da família. No caso da ampliação ser
feita pela mudança de necessidade, há duas situações qualitativamente diferentes.
Na primeira, a necessidade de área construída aumenta mantendo-se o núcleo
familiar. Isso pode acontecer por razões diversas, como filhos que crescem e
necessitam de quartos separados, necessidade de novo espaço para trabalho
(comércio, manufatura, etc.), aumento do número de indivíduos na família, etc. No
caso exposto abaixo, um dos filhos do entrevistado cresceu e apresentou a
necessidade de um quarto separado e a laje foi aproveitada para suprir tal
necessidade.
Aqui eu fiz primeiro dois andares, duas salas e um quarto. Um dia a gente estava entrando de férias, aí meu filho, dos mais novos, falou: — “pai, ao
175
invés de fazer viagem, eu preferia que você juntasse dinheiro e me desse um quarto”. Dormiam na cama comigo os dois. Ou dormiam no sofá na sala, ou dormiam na cama comigo. Aí a gente deu uma parada de viagem, não viajou mais. Em uns dois anos, eu juntei um dinheirinho e construí um quarto pra eles. Tem dois quartos, duas salas e três banheiros. (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1)
Na segunda situação, a necessidade de ampliação da área construída se dá
pela constituição ou o deslocamento de outro núcleo familiar. Por exemplo, quando
um filho se emancipa da família (casa-se, tem filhos, etc.), quando o proprietário
recebe familiares, etc. No exemplo exposto abaixo pelo corretor da Imobiliária 2, a
filha engravida e o pai libera a laje para a moradia do casal com o filho.
Muitos dos imóveis assim, a pessoa começou o relacionamento - estou grávida! Aí o pai libera pra construir em cima da casa, aí não tem documento. Aí separa, aí aluga, está entendendo? Pra dividir a renda, enfim... é meio complicado... [...] essa é a grande diferença de um casal lá do Baixo Gávea pra um casal da [Favela 1]. O casal lá no Baixo Gávea, engravidou, — “putz grila, como vamos fazer? Como vai alugar um apartamento? Como vai mobiliar? Tem que ganhar 10 mil, cada um”, aqui na [Favela 1], engravidou, ainda mais se o rapaz for um cara legal, ou até se for canalha também, o pai libera pra construir, aí depois separa e aluga (IMOBILIÁRIA 2, FAVELA 1).
Um morador da Favela 2 com quem tivemos contato herdou uma laje e com
os recursos do trabalho de moto táxi está construindo a casa onde já está morando.
Na nossa exposição, as formas de aproveitamento da laje, até então, não
haviam envolvido nenhuma forma de operação comercial-imobiliária. No entanto, o
entrevistado na reprodução acima apresenta uma forma em que o proprietário pode
utilizar o espaço da laje para produzir imóveis. Apesar de, no caso, a ampliação do
estoque imobiliário do proprietário ser fortuita, o proprietário pode construir com o
intuito primeiro de alugar ou vender. É o caso do Proprietário 4 na Favela 2.
— Estou fazendo uma obra pra também alugar. — Aí é outro terreno? — Não, em cima da minha casa onde eu moro (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).
Segundo a representante da Associação de Moradores 2 da Favela 2, as
pessoas que constroem na favela evitam prejudicar a própria moradia na produção
de novas unidades e uma forma de fazê-lo é aproveitando a laje ao invés de
subdividir a casa ou o lote.
176
Não, eles constroem mais. Constrói mesmo, não tem essa de diminuir sua casa pra alugar, eles têm a casa deles do tamanho normal pra eles sobreviverem e eles constroem outro pavimento pra alugar. (ASSOCIAÇÃO DE MORADORES 2, FAVELA 2).
Nos casos onde a unidade habitacional foi ampliada, onde se produziu uma
nova unidade habitacional para ceder a familiares ou quando a unidade construída
está destinada para aluguel, as unidades continuam sendo propriedade do
proprietário inicial. Porém, há ainda a possibilidade de uma unidade habitacional no
andar superior ser vendida ou da laje ser vendida para construção.
Nos dois casos, o acordo no momento da compra define de quem é o direito
de construir acima da laje da casa vendida (já construída ou a ser construída).
Segundo a representante da Associação de Moradores 2 da Favela 2, o documento
emitido pela Associação de Moradores descreve de quem é o direito de construir
sobre a laje superior, ou seja, se, no momento da transação, o valor foi cobrado
unicamente pela unidade habitacional ou se inclui o direito de construir sobre a laje
superior.
É o acordo, no acordo diz a casa, as condições da casa, se você vendeu a casa com a laje, com o quintal, não sei o que, tudo aquilo é específico no papel (ASSOCIAÇÃO DE MORADORES 2, FAVELA 2).
No segundo caso, onde o proprietário da construção-base95 vende sua laje
ainda sem construção, o direito de construir sobre a laje resultante da construção
empreendida pelo comprador também é definido previamente no momento da venda
da laje. Silva e Huguenin (2014 [2011], p. 274) resumem o processo através do
esquema reproduzido abaixo, onde demonstram inclusive que a venda da laje pode
significar a possibilidade do proprietário da construção-base acumular recursos para
construir mais pavimentos.
95 Construção-base é o termo usado pela Lei Nº 13.465, de 11 de Julho de 2017. O termo define a construção existente no momento em que foi cedido o direito de laje. O sistema apresentado aqui não tem nenhum compromisso com o direito real de laje estabelecido pela lei, porém entendemos que o termo é adequado em ambos os casos.
177
Figura 16: Esquema de venda de laje.
Fonte: (SILVA; HUGUENIN, 2014 [2011]).
Magalhães, em sua tese de doutoramento, extrai de documentos de compra e
venda cláusulas que definem o direito de construir na laje. No caso escolhido, o
direito de construir sobre a laje foi separado da propriedade da unidade habitacional
sob a laje.
OBS. J. E. L. M., RG 2326146, e A. B. S., RG 11935649-1, estamos ciente que a laje de minha propriedade pertence ao Sr. F. C. L. RG 06234195-3. (02/04/2000) (MAGALHÃES, 2010, p. 372).
É importante chamar a atenção para o fato de, em diversos casos, a laje
aparecer como reserva de valor. E esse não é um fato completamente casual. O
proprietário só pode usar a laje para construir ou ceder para outro fazê-lo se na
própria construção isso estiver previsto, pois exige determinado reforço na estrutura
da construção-base. A presença dos ferros de espera96 também pode ser
considerada um sinal dessa previsão. Dessa forma, há um investimento a mais a ser
feito no momento da construção que permite que seja construído um imóvel para
venda ou aluguel, que o direito de construir na laje seja vendido e que, mesmo sem
nenhum acréscimo, o imóvel seja vendido com um valor a mais pela possibilidade de
construir mais pavimentos sem ter que demolir o imóvel para reconstruir.
O Comerciante 1 entrevistado na Favela 2 nos mostra que o cálculo é feito
mesmo quando não se pretende construir. Segundo o entrevistado, ele não tem
interesse de construir um terceiro andar, mas a estrutura permite.
Além de construir esse meu segundo andar eu posso construir o terceiro,
96 Ferro de espera é a ponta do vergalhão de aço que é deixada exposta na laje para fazer a amarração dos pilares dos andares superiores em obras futuras.
178
porque a estrutura aqui permite e está dentro dos padrões que a prefeitura permite (COMERCIANTE 1, FAVELA 2).
Esse parece ser um investimento que “vale a pena” em quase todos os casos,
visto que, mesmo quando não se pretende vender ou construir, a estrutura é feita
com essa previsão. A laje pode ser usada em momentos em que o proprietário
necessita de liquidez, seja para uso próprio ou para novos investimentos.
4.3 Promotores imobiliários
A forma de produção de habitação que chamamos de promoção imobiliária
combina a centralização dos estoques imobiliários com as formas de intensificação
do uso do solo expostos ao longo desse capítulo além da demolição para a
verticalização. A centralização dos estoques se dá de duas formas: compra e
herança. A herança pode aparecer como oportunidade para o início de uma prática
mais sistemática de centralização, mas não pode ela por si mesma ser prática
sistemática. A compra aparece de duas formas: a manutenção do edifício adquirido,
na qual o edifício aparece apenas como reserva de valor; e a intensificação do uso
do solo, onde o comprador visa a renda gerada pela operação.
Vamos tratar primeiro da herança que, apesar de ser uma forma casual ou
acidental (LOGAN; MOLOTCH, 1987) de propriedade, é uma forma que pode
resultar em processos de intensificação do uso do solo tendo em vista o aumento
dos ganhos. Sobre a importância desta forma de acumular imóveis, o corretor da
Imobiliária 2 dá certa importância para o número de herdeiros.
— Como, no geral os proprietários tem acesso às casas que são colocadas pra alugar? Construção, subdivisão... — Olha, divide por 3, um terço, — “estou grávida, nem casei”. Aí o pai da noiva vai construir em cima. [...] Herdeiro, tem muito herdeiro aqui na [Favela 1], [Favela 1] é terra dos herdeiros. O outro terço é que compra, compra pra investir, já compra pronto, entendeu? (IMOBILIÁRIA 2, FAVELA 2)
Não temos informações mais precisas sobre a importância da herança na
centralização dos imóveis nas favelas, mas a visão do bem imóvel como importante
meio de acumulação e constituição de patrimônio a ser repassado para as próximas
gerações apareceu ao longo das entrevistas. Segundo o Proprietário 3 da Favela 2,
a “casa não se vende”, pois, para ele, a casa é o patrimônio mais seguro, com
rendimento certo e é algo para passar para os filhos em momentos de dificuldades.
179
Casa não se vende. Eu só vendi a minha lá pra comprar essa daqui, entendeu? Casa não se vende, casa é o seu patrimônio, seu ganha pão, se der qualquer coisa aí você já tem a casa. Tem os filhos também, mal ou bem a gente acaba pensando neles também, e aí, qualquer coisa tem a sua casa aí, fica com uma quitinete dessas aí pra resolver sua vida. Vender não, fazer pra vender acho que não vale a pena, até porque o preço que você faz a casa aqui, não é o preço que você vende. Você vai botar um piso de qualidade, um acabamento de qualidade, pra depois você vender por mixaria. Aí ah, 300 mil, ninguém vai dar, então não vale a pena, então você tem que fazer uma coisa pra alugar mesmo. É mais fácil você ter 600 todo mês, que eu acho que é até mais que a poupança, a poupança está 1%, sei lá, se você botar o dinheiro na poupança, o aluguel vai render mais que a poupança, todo o mês vai te dar 600 reais, 700 reais. Você sabendo trabalhar e administrar, você consegue. Lá pra frente, você vai ter um dinheirinho. Eu penso dessa forma (PROPRIETÁRIO 3, FAVELA 2).
Houve um caso entre as entrevistas na Favela 2 onde a transmissão do bem
não foi propriamente por herança, mas algo parecido ocorreu. Na realidade, o
entrevistado comprou a terra do filho do cunhado que havia herdado do pai morto e
não queria ficar com o imóvel. O entrevistado construiu um prédio de 6
apartamentos no local da casa.
Alugo, eu tenho 6 aluguéis, eu construí numa área que era uma residência familiar. A minha sogra dividiu a área que ela tinha e deu um pedaço pra cada filho, um desses filhos veio a construir uma pequena moradia e faleceu. O filho dele que não tem interesse em construir mais nada me vendeu (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).
Interessante notar no trecho reproduzido que a herança pode na realidade ser
uma forma de centralização ou de descentralização, como no caso da distribuição
das terras entre os filhos. No entanto, o mais importante aqui é como o Proprietário
4, através da compra do imóvel de um familiar e um recurso acumulado
anteriormente, conseguiu aumentar o seu estoque de 1 imóvel, onde morava para 7
imóveis, onde 6 estão alugados. É importante notar também que, por mais que o
imóvel não tivesse sido comprado e sim herdado diretamente, seria necessário um
acúmulo de recurso inicial para a construção do prédio de apartamentos. No caso do
entrevistado, ele foi funcionário público e alega que o salário era suficiente para reter
esse recurso. Porém, a própria condição de proprietário pode ser uma fonte para o
recurso aplicado em investimentos posteriores. Identificamos um caso no Turano
onde uma proprietária de uma unidade habitacional alugava a sua casa e morava
em uma pior alugada para juntar o dinheiro da diferença dos alugueis. As formas
que apresentamos anteriormente de intensificação do uso do solo também podem
ser consideradas formas de gerar rendimentos pela condição de proprietário que
180
podem ser utilizados em investimentos futuros.
Segue abaixo a resposta do corretor da Imobiliária 1 sobre quem são os
investidores da produção imobiliária.
Quem já tinha imóvel mesmo. Tem o investidor também, mas a maioria tinha um, foi comprando outro, comprando outro, a maioria é assim, investidor mesmo. Tem muito cara aí construindo e vendendo, construindo e vendendo. Fizeram muito prédio aí (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1).
Há dois elementos importantes, o primeiro é que, segundo o entrevistado há
uma parcela da população que se especializou na produção imobiliária, o segundo é
que quem passou a exercer esse tipo de atividade já era proprietário. Isso não exclui
a possibilidade de o investidor ter acumulado a partir de melhores salários, por
possuir comércios ou manufaturas, etc., mas mostra que, pelo menos no ponto de
vista do entrevistado, a terra é uma importante fonte para os recursos iniciais dos
produtores de imóveis.
Outra forma importante de acesso a recursos para o investimento no setor
imobiliário e recorrente entre os entrevistados é o comércio local. Dentre os 5
proprietários entrevistados, 3 são comerciantes e os outros dois foram importantes
lideranças nas favelas onde vivem e ocuparam cargos públicos em determinado
momento da vida. A presença maior de comerciantes entre os proprietários
entrevistados pode estar relacionada ao fato de os comerciantes serem pessoas
mais conhecidas e com a vida mais pública, mas, ainda assim, essa deve ser uma
forma importante de acumular recursos para investir em construção de imóveis. O
Corretor da Imobiliária 2 identifica os comerciantes como proprietários de imóveis.
Quem tem imóvel hoje é quem é herdeiro e quem tem comércio. (IMOBILIÁRIA 2, FAVELA 1)
O Proprietário 3 da Favela 2 vendeu a casa que morava e era proprietário em
outra favela da Zona Sul para comprar um terreno, segundo o entrevistado, “tête-à-
tête”, na Favela 2. O recurso para construir o prédio de quitinetes provém do
comércio de materiais de construção que possui na favela. Segundo o entrevistado,
assim que concluir as primeiras unidades, o aluguel passa a ser mais uma fonte de
recursos para a construção das outras unidades.
181
O Proprietário 2 da Favela 1 é representante de uma distribuidora de gás97 e,
apesar de o Proprietário 1 afirmar que os recursos para construção do Proprietário 2
provém do narcotráfico varejista (vamos tratar mais disso no capítulo 5), afirma que
seus recursos são provenientes do comércio de gás e, conforme foi construindo,
também do aluguel dos imóveis que construiu anteriormente. Afirma também que
sempre prefere alugar, mas já vendeu 4 apartamentos para terminar alguma obra ou
comprar novos terrenos.
Após a compra do terreno, o novo proprietário pode manter o edifício da
forma que é. Nesse caso, a terra pode servir como reserva de valor ou objeto de
especulação, apesar de alguns estudos apontarem que o aluguel na favela tem um
rendimento em relação à venda maior que no restante das cidades (LEITÃO;
DELECAVE; KEUCHKARIAN, 2015; ABRAMO e FARIA, 1998). No entanto, o
proprietário também pode demolir e construir uma edificação melhor ou maior, ou
mesmo ampliar a partir da construção existente. Nesses casos, há um ganho
construtivo na operação. Segundo o corretor da Imobiliária 1:
Alguns compram pronto, outros já fizeram, já é antigo, outros estão construindo aí, casa velha que tinha terreno bom. De 5 anos pra cá construíram muito na [Favela 1], muita construção. (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1)
Nenhum dos entrevistados que comprou imóveis os alugou sem fazer
intervenções. No entanto, o Proprietário 1 da Favela 1 foi o único entre os 5 que não
fez investimentos para intensificar o uso do solo e manteve a edificação existente no
momento da compra, apesar de ter feito grandes modificações nas plantas dos
pavimentos e determinado acréscimo. O entrevistado conta que comprou um prédio
com 18 apartamentos e fez uma reforma para melhorar as suas condições de
moradia. A reforma resultou num decréscimo de 18 apartamentos para 10 apesar de
ter construído três apartamentos na cobertura.
Fiz algumas reformas, construí três quartos, em cima, no terraço. Internamente eu fiz uns ajustes, porque quando eu comprei eram 18 quartos, 18 moradias, aí eu quebrei e transformei, eu falei 8, mas acho que é 10. Eram 18, eu transformei em 10. Juntei um com o outro... (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1)
97 Buscamos os CNPJs ativos do proprietário e encontramos, além da distribuidora de gás, mais duas lojas de materiais de construção. Não averiguamos se essas duas lojas estão em funcionamento.
182
Outros três proprietários de imóveis entrevistados construíram os prédios de
apartamentos desde a fundação.
O Proprietário 3 da Favela 2 comprou um terreno vazio para construir quatro
quitinetes e dois apartamentos. Para a construção do prédio o Proprietário 3 ainda
negociou com um amigo que morava em outra região da favela para auxiliar na obra
e ficar com uma casa no prédio. Em troca, a casa desse amigo será dividida e posta
para alugar e, dessa forma, a obra resultará em seis quitinetes e dois apartamentos,
sendo que um apartamento ficará com esse amigo. O outro apartamento está
destinado ao seu irmão que é sócio no comércio e no investimento imobiliário.
A princípio assim, as que a gente estava fazendo são duas em baixo e duas em cima. Na verdade são quatro quitinetes... Não, dois, quatro, seis! É porque uma o nosso amigo está morando, saiu lá do [região baixa da Favela 2], a gente botou lá pra quando for fazer em cima ele voltar pra cima e dividir a casa que ele tem, aí fica quatro quitinetes ali no meio, duas em baixo perto do bar e as duas casas em cima (PROPRIETÁRIO 3, FAVELA 2).
Aos companheiros de investimento são destinados os apartamentos e as
quitinetes são destinadas para o aluguel. O tipo de investimento feito pelo
Proprietário 3 é qualitativamente diferente do anterior, pois há aqui um movimento
para gerar um ganho construtivo. Além disso, a intensificação do uso do solo e a
forma do produto imobiliário (no caso, a quitinete) foram escolhas baseadas na
busca por lucros mais elevados.
Porque você preferiu fazer quitinete? É o que dá dinheiro, o quitinete... Mas é um quitinete grande, é um quitinete é... Com quarto, sala, cozinha e banheiro. A única coisa é que é cozinha americana com a sala, mas quarto e banheiro é separado (PROPRIETÁRIO 3, FAVELA 2).
O Proprietário 4 da Favela 2 comprou uma casa e demoliu para construir um
hostel, que posteriormente foi reformado configurando um prédio com 6
apartamentos. Segundo o entrevistado, o hostel durou o mês da Copa do Mundo de
2014.
Eu fiz uma experiência pra Copa do Mundo. Recebi algumas pessoas num hostel que durou um mês, depois eu ampliei um pouco mais e fiz 6 apartamentos (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).
A fala do entrevistado demonstra certa preocupação com o comportamento
183
do mercado imobiliário. Em primeiro lugar, é provável que a “experiência” do hostel
durante a Copa do Mundo tenha rendido mais que vários meses de aluguel. Em
segundo lugar, pode ter rendido uma rede de contatos que permite ao proprietário
alugar seus apartamentos para uma demanda além da que normalmente busca os
imóveis na favela.
Eu não costumo alugar casa pra morador daqui, aí, por exemplo, tem duas famílias de argentinos morando lá, mas tem um brasileiro também, tem um professor de educação física, tem uma comerciante que fechou uma loja em Copacabana, tem um casal de colombianos, tem um gaúcho, varia muito, entendeu? Mas eu não costumo alugar casa pra morador da comunidade (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).
Segundo o entrevistado, apesar do aluguel de quitinetes ter um rendimento
maior, ele preferiu construir apartamentos, pois um dia pode precisar morar em um
deles e não quer ter que quebrar paredes depois. No entanto, o apartamento pode
se tornar um produto imobiliário diferenciado e mais adequado no caso em que o
proprietário é capaz de atingir uma demanda de mais alto padrão.
O Proprietário 2 da Favela 1 comprou três casas, demoliu e construiu três
prédios resultando em 25 apartamentos. Dentre os entrevistados, o proprietário 2 foi
o construtor mais sistemático e afirma que havendo oportunidades posteriores ele
continuará construindo.
Esse tipo de atividade sistemática caracteriza a formação de um agente
especializado na produção imobiliária nas favelas. Esse agente especializado difere
do capital imobiliário atuante no restante da cidade não apenas pelo volume da
produção, mas também pelo nível de especialização, pela estratégia de atuação,
pelo poder de direcionamento da demanda, etc. No entanto, o volume de produção
de alguns desses agentes é considerável e sua forma de atuação é qualitativamente
distinta dos proprietários fortuitos ou dos que constroem e compram para
complementar renda ou evitar a depreciação de recursos acumulados.
Em artigo sobre o mercado de alugueis em favelas, Magalhães et al,
baseados em evidências empíricas coletados em especial nas favelas Parque Royal
e Quinta do Caju apontam a existência de proprietários com grandes volumes de
imóveis.
Nos casos estudados, já aparecem alguns “grandes proprietários”, como o de um comerciante que possui vinte imóveis em seu nome conforme os cadastros da Prefeitura, sem contar aqueles em nome de seus filhos
184
(MAGALHÃES; CEZAR, et al., 2012, p. 5).
O corretor da Imobiliária 1 comenta sobre um caso, segundo ele, bastante
conhecido em algumas favelas, do dono de uma loja de materiais de construção
chamada Martelão, localizada na Muzema. Segundo o entrevistado, o dono do
Martelão é proprietário de cerca de 380 imóveis na favela.
Compra, demole, área mesmo invadida, invadiram muito, [...] antes do Paes sair eles, parece que, fecharam os olhos. Tijuquinha, Muzema fizeram muito. Muzema não podia fazer nada e está lá, prédio de 8 andares. O dono do Martelão fez 380 imóveis na Muzema, 380 apartamentos só num local, perto daquele posto de gasolina, vai lá pra você ver, é loja, é Dominus, é o diabo, apartamento que só o caralho, está fazendo ainda, construindo. Aquela área está arrebentando imóvel, vem muito imóvel do Rio das Pedras, aquelas casas que o governo tinha feito, tinha dado pro povo, os cara foram comprando as casas dos fudidos, dos coitados e levantaram aquela porra toda de prédio. É muito imóvel98 (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1).
Outros casos estiveram na mídia, como o caso do “Minhocão” “prédio que,
segundo reportagem do jornal O Globo99 possuía 22 quitinetes com cerca de 16m²
cada e foi embargado e demolido pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro) e o
caso do “Empire State” (prédio que, segundo reportagem do mesmo jornal100, possui
11 andares com 77 quitinetes) ambos localizados na Rocinha.
O “Empire State” parece ser uma exceção no contexto das favelas. No
entanto, na área cadastrada da Tijuquinha, foram identificados pelo menos 21
prédios com mais de 15 unidades habitacionais, sendo que 7 deles possuíam mais
de 20 unidades, ou seja, bem próximo ou com mais unidades que o “Minhocão”.
A partir dos dados levantados em campo no cadastramento para
Regularização Urbanística e Fundiária, montamos tabelas que nos permitem ter uma
ideia da concentração de imóveis nas mãos de determinados proprietários na
Tijuquinha e na Babilônia. As tabelas foram construídas com base nas informações
levantadas pelos cadastros e apresentam o número que proprietários por faixa de
quantidade de imóveis que possui, a proporção que cada faixa representa em
relação ao total de proprietários e em relação ao total de imóveis cadastrados, o
98 A Muzema apresenta um notável crescimento do número de domicílios. Segundo o censo do IBGE em 2000 possuía 110 residências em 2010 passou para 1528. 99 O Globo, 26/03/2009, Demolição total do Minhocão da Rocinha deve demorar sete dias, disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL1059614-5606,00-DEMOLICAO+TOTAL+DO+MINHOCAO+DA+ROCINHA+DEVE+DEMORAR+SETE+DIAS.html 100 O Globo, 12/11/2011, disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/empire-state-da-rocinha-especulacao-imobiliaria-na-favela-3222882
185
número de imóveis que cada faixa de proprietários detém e sua proporção em
relação ao total de imóveis. É importante ressaltar que, como o trabalho não foi
finalizado em nenhuma das favelas, é possível que os proprietários tenham mais
imóveis em outras áreas das favelas. Outro ponto importante é que não tivemos
informações para agregar proprietários da mesma família, o que pode causar certa
distorção, pois como nos cadastros para regularização fundiária nenhum proprietário
pode ser beneficiado por mais de uma unidade habitacional, é prática frequente a
distribuição de unidades pela família. Um imóvel alugado pode aparecer na nossa
tabela como próprio, porque o proprietário cadastrou no nome de um cônjuge ou um
filho. Esses fatos podem distorcer o número de alugueis e de unidades associadas a
determinado proprietários, mas a tendência é distorcer sempre de forma a diminuir o
número de imóveis alugados e esconder a concentração de imóveis.
Tabela 1: Concentração de imóveis na Tijuquinha.
Fonte: Acervo do autor.
Na Tijuquinha foram cadastrados 674 imóveis, onde 35% são ocupados por
proprietários e 65% por locatários. Importante notar também que 3% das famílias
cadastradas detêm 36% das unidades habitacionais cadastradas. Nesse universo,
foram encontrados 3 proprietários com mais de 20 unidades habitacionais.
Na Babilônia, o trabalho de campo resultou em dados menos representativos,
pois um número menor de unidades habitacionais em relação ao total foi cadastrado.
Isso pode explicar a inexistência de proprietários com 9 ou mais unidades
habitacionais, apesar de a concentração de imóveis ter se mostrado
consideravelmente mais baixa como podemos observar na tabela abaixo.
186
Tabela 2: Concentração de imóveis na Babilônia.
Fonte: Acervo do autor.
Um dos motivos da mais baixa concentração de imóveis pode ser a
fiscalização mais forte que a Babilônia sofreu ao logo da história em relação à
Tijuquinha e às favelas de forma geral. Os maiores prédios na Babilônia têm cerca
de 10 unidades habitacionais, enquanto na Tijuquinha há prédios de 20 unidades.
Na amostra coletada, a Babilônia apresentou 46% dos imóveis em situação de
aluguel, enquanto na Tijuquinha 65% dos imóveis encontram-se nessa condição.
Tabela 3: Imóveis alugados na Tijuquinha e Babilônia
Fonte: Acervo do autor.
O levantamento feito na Babilônia não nos permite tirar maiores conclusões,
mas serve como contraponto ao alto nível de centralização da Tijuquinha. Apesar
disso, mesmo na Babilônia o índice de aluguel é alto se comparado à região
metropolitana do Rio de Janeiro (17,5% segundo o censo do IBGE de 2010) ou do
restante do Brasil (na maior parte das cidades brasileiras não passa de 20%). A alta
taxa de aluguel nessas favelas pode estar relacionada a duas características
levantadas nesse estudo. Em primeiro lugar, o acesso à moradia depende, em
grande medida, da produção de imóveis por investidores locais, seja por ampliações
e subdivisões dos seus imóveis ou pelo movimento de centralização seguido por
verticalização. Em segundo lugar, os proprietários de imóveis preferem, por
questões econômicas, alugar do que vender os imóveis produzidos porque, segundo
os proprietários entrevistados, a baixa capacidade de pagamento e de acesso ao
financiamento da demanda limitam mais o preço da venda que o preço do aluguel.
187
Não é o caso aqui de defender que o mercado imobiliário em favelas se
configura em pobres explorando pessoas ainda mais pobres (DAVIS, 2006) ou uma
barreira para o acesso à moradia à população pobre (ABRAMO), mas, assim como
no restante da cidade, há uma relação contraditória de afirmação e negação do
acesso. Na relação de troca, o valor de troca de qualquer objeto produzido ao
mesmo tempo em que nega o valor de uso para o produtor necessita afirmar o valor
de uso no polo oposto da relação. Numa sociedade onde o valor de uso é
tendencialmente reduzido à suporte de valor, ou seja, o processo produtivo é
comandado pela busca do valor e não pela necessidade imediata do objeto de uso
moradia, a forma, a utilidade, o direcionamento da demanda, etc. dado pelo
produtor, será o que dá a ele a maior capacidade de se apropriar do valor, o que não
necessariamente significa a produção de unidades habitacionais direcionado a uma
demanda com maior poder aquisitivo. As entrevistas apresentaram em todos os
casos a possibilidade de potencializar os ganhos dos proprietários de imóveis
reduzindo as unidades habitacionais e intensificando o uso do solo. Segundo os
entrevistados, essa é a fórmula utilizada para ofertar habitação para a camada mais
pobre sem de forma alguma afetar os ganhos. Essa configuração, ao mesmo tempo
em que nega o acesso a terra e coloca duas frações da classe trabalhadora em
posições antagônicas (uma que busca o aumento da apropriação do valor via renda
e outra que busca aumentar o seu acesso aos bens de consumo protegendo o
salário da apropriação via renda), permite o acesso à moradia, ainda que muitas
vezes precária, a uma população que teria dificuldades de acumular recursos
mesmo para a autoprodução.
A produção de uma unidade habitacional barata, ao mesmo tempo, não
significa a produção de unidades habitacionais com uma relação preço/área também
barata. Foram encontradas, no trabalho de campo, unidades habitacionais de 3m² a
6m² com o preço do aluguel de 300 a 400 reais (de 50 a 133 reais por metro
quadrado), o que configura uma relação preço/área mesmo se comparada ao
mercado formal (31,87 reis por metro quadrado em média na cidade do Rio de
Janeiro101), porém um preço unitário acessível. O corretor da Imobiliária 2 da Favela
1 considera um preço um pouco mais baixo, mas, segundo os seus parâmetros de
preço, a unidade habitacional perde o valor por metro quadrado conforme cresce a
101 Segundo dados da SECOVI. Conferir: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/rio-perde-o-posto-de-cidade-com-o-aluguel-mais-caro-do-brasil.ghtml
188
unidade.
São vários imóveis que a gente vai administrando e ainda mais durante um tempo, você vai pegando uma bagagem. Quarto com banheiro costuma ser 300 a 400 reais, um quitinete é de 500 a 650, um quarto e sala é de 700 a 800... (IMOBILIÁRIA 2, FAVELA 1)
Se considerarmos as quitinetes da Favela 1 e da Favela 2 no mesmo padrão
que as de 16m² como as do “Minhocão” a 650 reais, a relação preço/área continua
alta. Abramo, apesar de dar outra explicação para o fenômeno, corrobora com a
constatação de que os preços dos alugueis nas favelas são relativamente altos.
Assim, a externalidade de vizinhança, apesar de ser um atributo locacional, transforma-se em um elo importante entre a decisão de localização residencial e as estratégias de sobrevivência das famílias de baixa renda. Esse nexo, em muitos casos, explica o valor excessivamente elevado dos preços dos imóveis nas favelas (ABRAMO e FARIA, 1998, p. 448).
A ideia de uma externalidade de vizinhança de fato esteve presente em
alguns discursos que coletamos. No entanto, não sabemos o quanto isso é resultado
da disseminação de uma imagem de “comunidade” atribuída às favelas, o quanto os
moradores das favelas contam realmente com uma rede de apoio, nem o quanto
essas redes são realmente inexistentes fora das favelas. Ainda assim, entendemos
que as estratégias dos agentes internos associadas às condições materiais das
favelas (como a precariedade da regulação edilícia) são momentos explicativos mais
importantes.
A representante da Associação de Moradores 2 da Favela 2 apresenta uma
faixa de preço próxima. Segundo a entrevistada, os proprietários preferem produzir
quitinetes porque é mais em conta e tem mais demanda. Dessa forma, a quitinete
não fica “parada”.
— Você sabe que tipo de casa se constrói, se é mais quitinete, ou se é apartamento? — Mais quitinete. — Sabe por que constroem mais quitinete? — Quitinete, porque são menores e mais em conta pra alugar. Por exemplo, entre pagar 600 reais e 1200, eu prefiro pagar 600. — Pra quem constrói dá mais dinheiro construir quitinete? — É mais fácil de alugar uma quitinete do que uma casa de dois quartos ou de um quarto que é mais caro. O poder povo está pouco. — Então as casas grandes ficam mais paradas? — Mais paradas. Geralmente essas casas grandes, eles alugam anual, às vezes a pessoa fica 2 ou 3 anos, famílias, entendeu? As quitinetes são mais rotativas, o estudante vem aqui e passa uma temporada, aí aluga uma
189
quitinete depois vai embora. As casas não, geralmente ficam famílias. — Você tem ideia de quanto custa uma quitinete? — Quitinete está em torno de... A mínima está em torno de 500 reais a 800, uma casa dependendo da localidade está de 600 a 1200. Dois quartos, sala, banheiro, cozinha, um lugarzinho de lavar roupa, está nessa faixa (ASSOCIAÇÃO DE MORADORES 2, FAVELA 2).
Certamente, é importante entender em que medida, em cada conjuntura, a
depender da favela e do tempo histórico, o mercado imobiliário se apresenta como
barreira ou canal de acesso dos pobres à terra urbana. No entanto, também é
importante destacar como o mercado imobiliário e a renda da terra determinam, em
grande medida, o produto imobiliário e as formas de vida. A forma como a quitinete
se proliferou nas favelas cariocas, em especial nas áreas centrais ou valorizadas,
indicam que o que determina a produção dessa forma de moradia não está apenas
na dinâmica interna e singular de cada favela, mas há na dinâmica imobiliária da
cidade algo que produz esse tipo de tendência.
190
5 AGENTES ESTRUTURADORES DO ESPAÇO
Muito sobre os agentes já foi adiantado no capítulo 2. A análise da relação
entre a favela e a cidade como um todo, assim como a análise das formas de
organização internas e a regulação da construção exigiram que adiantássemos parte
do que será tratado aqui. No entanto, aqui trataremos um a um dos agentes e suas
relações.
Os agentes variam a depender do território a ser analisado. Isso vale para as
favelas, assim como para qualquer outro território. Dessa forma, elegemos agentes
que já aparecem com recorrência em outros estudos e esperamos que a análise dos
resultados da pesquisa de campo ajude a complexificar a relação muitas vezes
contraditória entre os diversos agentes.
Parte da bibliografia analisada no decorrer dessa dissertação distingue os
agentes por:
Função: por exemplo, a Associação de Moradores como instância
representativa, mediadora e institucional-cartorária e o narcotráfico
varejista como agente mercantil.
Forma em que exerce poder: por exemplo, a associação como um
poder político retórico e narcotráfico varejista como bélico-violento.
No entanto, veremos que, nos casos estudados os agentes do Estado
também fazem parte e alteram a relação entre os agentes locais. Veremos também
que essas relações são permeadas por disputas e coalisões, em parte, resultantes
de sombreamentos causados pela falta de agentes especializados (por exemplo, a
regulação da construção, pode ser exercida ao mesmo tempo por agentes do
Estado, Associação de Moradores e narcotráfico varejista em colaboração ou em
conflito a depender do contexto). Ao mesmo tempo, esses agentes podem formar
coalisões a fim de se fortalecerem.
5.1 Associações de Moradores
Alguns temas discutidos em capítulos anteriores da dissertação exigiram
análises e observações sobre as formas de atuação das Associações de Moradores
e suas relações com outros agentes aqui tratados. A fim de avançar na análise dos
agentes podemos apenas apontar onde elas se localizam, já que não seria
pertinente retomá-las aqui. No capítulo 2, quando tratamos da relação entre o
191
Estado e os agentes locais, discutimos como as associações são coagidas a
reproduzir o direito jurídico oficial, segundo Sousa Santos, formando um ersatz que,
em parte, compensa a precariedade dessa forma de direito nas favelas. Essa
discussão foi desenvolvida com foco na reprodução da propriedade fundiária
moderna. Nesse momento, trabalhamos o papel da associação como o agente que
registra as propriedades. No subcapítulo sobre os limites da propriedade fundiária na
favela indicamos seu papel na mediação dos conflitos que envolvem as questões
fundiárias e construtivas. No subcapítulo sobre a inadimplência discutimos com foco
nesse assunto a mediação exercida pela associação nesses casos entre locador e
proprietário ou mesmo entre esses agentes e os agentes do estado, como os oficiais
de justiça. No subcapítulo sobre a regulação da construção vimos como apesar de
ter certo poder de ação ele muitas vezes fica limitado pela ação do narcotráfico
varejista ou mesmo pelo Estado. Vimos também como a associação pode formar
coalisões com ambos os agentes a fim de fortalecer seu poder de ação.
As Associações de Moradores têm aparecido até agora como uma instância
representativa, além de instituição mediadora de conflitos e cartorária. Por ser o
fórum reconhecido de representação nas favelas, têm posição privilegiada de
acesso às instituições supralocais, ou seja, é o espaço mais privilegiado para o
acesso de agentes supralocais aos locais e vice versa. Além disso, detém um poder
de regulação das atividades no interior das favelas (comércio, construção, etc.) que,
a depender da conjuntura, pode estar em disputa ou em colaboração com o Estado
ou o narcotráfico varejista. A terceira característica é a emissão dos documentos de
propriedade. Esse tipo de documentação, apesar de passar ao largo das instituições
oficiais de Estado, é reconhecido na resolução dos conflitos internos e, inclusive, em
momentos de intervenções estatais (urbanização, regularização fundiária, etc.).
O primeiro questionamento que devemos fazer é como se dá a
representatividade da Associação de Moradores. As Associações de Moradores têm
papel representativo bastante diversificado a depender das forças que se
apresentam para a disputa. Dessa forma, as Associações de Moradores podem
representar, de forma geral, o interesse da população das favelas; um grupo
específico dentro da favela (tráfico, proprietários, etc.), agentes supralocais (Estado,
“padrinhos políticos”, etc.); ou, ainda, coalisões que podem combinar interesses da
forma mais variada.
O fato de a Associação de Moradores ter acesso privilegiado tanto aos
192
agentes locais como aos supralocais a coloca em uma posição como a de um “pivô”
que intermedia tanto o acesso dos agentes e moradores locais aos agentes
supralocais, como intermedia o acesso dos agentes supralocais aos locais e
moradores. Essa característica coloca a Associação de Moradores em uma posição
estratégica que pode ser de interesse dos diversos agentes, como veremos mais a
frente.
Para pensarmos a representatividade podemos partir do nível de adesão dos
moradores. Em 1967, Machado já identificava um problema nesse sentido, para o
autor:
A falta de participação pode ser facilmente comprovada, na grande maioria das favelas, pela baixa percentagem de sócios das Associações de Moradores (que funcionam como uma espécie de centro de decisões políticas, tanto de natureza interna quanto externa), cujas diretorias em geral são eleitas com votações ridículas se comparadas com o número do corpo eleitoral potencial (MACHADO DA SILVA, 2016 [1967], p. 36).
Essa questão, ao que parece ainda persiste, ao menos nas favelas
pesquisadas. Segundo a representante da Associação de Moradores 2 da Favela 2
entrevistada, o número de associados é baixíssimo e devido o baixo custo da
anuidade, a cada eleição vários moradores quitam as suas dívidas para votar.
— Tem mensalidade, uma mensalidade que hoje em dia é até piada, 5 reais mensal, só que nem 10% paga. — Tem ideia mais ou menos de quantas pessoas? — Se eu falar você não vai nem acreditar. 2%, 2% paga, o resto não paga, 98% não paga. — E quando vocês fazem a eleição vocês abrem pra todos os moradores? — Não, só para os associados que pagam, está no estatuto, a gente tem que seguir o estatuto, muita gente no ano de eleição vem pagar pra votar (ASSOCIAÇÃO DE MORADORES 2, FAVELA 2).
Esse tipo de configuração, onde há uma baixa adesão nos processos de
decisão e o baixo custo da anuidade permite aos concorrentes formar grupos para
votar, facilita o domínio de determinados grupos sobre as Associações de
Moradores. Isso não significa que grupos mais representativos e democráticos não
possam assumir a associação. A representação que encontramos na Favela 2 no
momento da pesquisa, mesmo que tenha dificuldade na adesão aos seus projetos,
parece buscar representar os interesses da favela como um todo.
Entretanto, os representantes das Associações de Moradores podem
aparentar a busca do exercício da representatividade da favela como um todo e
193
estar envolvidos em projetos políticos para fora da favela. É conhecida a formação
dos “currais eleitorais” nas favelas. Segundo Rocha: “a compreensão de que é
necessário um ‘padrinho’ para ter acesso aos bens públicos é resultado da
experiência de décadas dos moradores de favelas (e de bairros populares, em geral)
com o poder público” (ROCHA, 2008, p. 8). Segundo a autora, a prática de troca de
votos por favorecimentos pessoais (visibilidade política, cargos, etc.) ou coletivos
(como obras públicas, regularização fundiária, etc.) é uma herança da política da
“bica d’água” que persiste, ainda que os dirigentes de Associações de Moradores
hoje (ainda que, com dificuldade) tenham acesso direto ao poder público e não mais
obrigatoriamente pela intermediação de um “padrinho político” (ROCHA, 2008, p. 9).
Nas nossas entrevistas essa relação apareceu em diversos momentos, ainda
que em algumas não tenha envolvido diretamente a Associação de Moradores. No
primeiro caso, o Proprietário 4 da Favela 2 entende que a permissividade do Estado
para determinadas construções na favela é constituída na base da troca por votos.
É lógico, porque vira uma moeda de troca. Olha, nós não vamos mexer com vocês não, mas eu sou o fulano, lembra de mim, daqui a pouco tem eleição e o cara faz um churrasco com o cara que ele deixou ficar lá, ou faz um encontro com alguém da assembleia de Deus ou de alguma denominação de igreja que às vezes aproveita e se estabelece também. Infelizmente, as comunidades se estabelecem a partir daí (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).
Já o Comerciante 1 da Favela 2 condena o a venda de votos por
favorecimentos pessoais (feijoada, churrasco, etc.). No entanto, o bem da
comunidade (infraestrutura, posto de saúde, etc.) justificaria o mesmo
comportamento.
Eu sempre escolho o que é melhor pra minha favela, pra minha comunidade, e eu digo pra eles o seguinte: — “quem chegar e fizer a melhor proposta para o morador vai ser muito bem aceito”, porque eu acho que falta aqui posto de saúde, falta aqui dentista uma clinica de dentista, que a gente tem aqui e está desativada. Então imagina assim, se um cara realmente quer fazer um trabalho, bacana e trouxer uma infraestrutura, eu garanto que ele vai colher bons frutos. Agora o favelado não está mais trocando o voto dele por uma feijoada, um churrasco não, isso aí está acabando, entendeu? Eu acho que as pessoas estão buscando um pouco mais de respeito pelo seu voto (COMERCIANTE 1, FAVELA 2).
Já o corretor da Imobiliária 2 naturaliza completamente esse tipo de acordo,
inclusive com benefício pessoal. No entanto, avisa sobre os perigos desse tipo de
comportamento.
194
— O diferencial aqui na [Favela 1] vai ser agora as eleições. O cara que se juntar com algum político, o cara tem que se juntar assim: —”pô, beleza irmão, quero um carro, uma moto e uma casa!”. Sabe por quê? Eu vou te falar o seguinte, teve umas pessoas aqui na [Favela 1], que recebeu uma grana, e isso pegou mal pra caramba, entendeu, pegou muito mal. — Nessa última agora? — Nessa última agora! Ainda mais do Sérgio Cabral. Eu tenho um grupo aqui que eu participo, ele ofereceu uma grana pra gente calar a boca. Se a gente tivesse recebido, a gente estava ferrado. (IMOBILIÁRIA 2, FAVELA 1)
O “pegar mal” provavelmente tem relação com perder campo de influência e
mobilizar menos votos, o que dificultaria a capitalização desses votos em anos
posteriores. Certamente o “pegar mal” também poderia influenciar negativamente ou
seus negócios com a corretagem de imóveis.
Uma das entrevistas foi interrompida por uma discussão entre o corretor da
Imobiliária 2 e uma mulher que fez a campanha de Marcelo Crivella na eleição de
2016. Ele reclamava que ela trabalhava de graça no gabinete do prefeito depois de
tanta dedicação na sua campanha e ela afirmava que continuava trabalhando no
gabinete do prefeito porque lá ela tinha acesso às instituições, conseguia “botar”
gente da “comunidade” dentro do gabinete do prefeito. Após a saída da mulher, o
corretor indica que ela tirou vantagem da forma errada.
Ela trabalhou com o prefeito, eu trabalhei também, ela está tentando uma vaga lá desde que o prefeito entrou e está fazendo serviços ainda voluntários, serviço pra prefeitura. Isso está bom? Mãe de tantos filhos passando necessidade. Salário nenhum cara! E o chefe de gabinete chama ela e esse outro [nome omitido] e vai fazer as coisas de graça. [...] Ela está jogando na minha cara que eu fui no gabinete do prefeito por causa dela né? Tem nada a ver, ela tem tanto acesso que está desempregada hoje. Mas porque ela não está empregada? [...] Sabe por que eles não deram emprego pra ela ainda? Eu sou falador, mas eu prendo as coisas que eu devia falar logo na cara! Porque ela trabalhou para o prefeito, mas ela recebeu e quem recebe trabalhando pra político não tem direito a emprego e ele só bota lá se quiser. Porque tu me pagou porra! Eu não posso te cobrar nada. Tu fez uma campanha, me tratou, tanto pra você trabalhar, botar seu grupo pra trabalhar. Tu vai ficar me devendo alguma coisa depois da campanha? Tu me deve algum favor? Tu me pagou! Mas eu não, eu não recebi um tostão do prefeito nem de ninguém, ele me pediu, fui numa reunião com ele no Palace Hotel em Copacabana e ele me pediu ajuda e eu fiquei aqui trabalhando ajudei, no dia da eleição eu fiquei carregando gente de Jacarepaguá, fui levar gente pro caju pra votar, vim trazer pra [Favela 1], o dia todinho. E aí? Ele está me devendo favor, eu botei ele lá na cadeira e não me deu nada, não me deu emprego, meu documentos ainda estão lá (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1).
Os crimes eleitorais que envolvem o prefeito não são o foco aqui, mas o
interessante é que, para os moradores entrevistados da Favela 1, as eleições são
uma grande oportunidades de crescimento político e de melhoria nas condições de
195
vida. O potencial eleitoral da favela é capitalizado pelas pessoas influentes, seja
para tirar vantagens para si, seja para conquistar projetos que entendem servirem à
“comunidade”.
Outro caso importante veio, não das entrevistas, mas dos projetos de
regularização urbanística e fundiária que participamos. Um desses projetos foi
desenhado para a campanha de um dos candidatos a prefeito, o que era assumido
pelos funcionários da prefeitura como o “contrato do candidato”. Esse desenho só foi
possível porque a favela que foi escolhida já era uma favela “apadrinhada”, inclusive
o presidente da associação já ocupava um cargo no governo e o candidato era
apoiado pelo prefeito na época. Dessa forma, foi possível formular um projeto
financiado exclusivamente com recursos da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro e
com a entrega dos títulos prevista para a véspera das eleições municipais de 2016.
O conchavo com “padrinhos políticos” não é a única forma de
“aparelhamento” da Associação de Moradores. Em uma das entrevistas que
realizamos, o Proprietário 1 da Favela 1 indica que a Associação de Moradores da
favela tem uma relação intrínseca com o narcotráfico varejista. Segundo o
entrevistado, a associação representa os interesses do narcotráfico perante o
Estado.
— A Associação de Moradores tem alguma ligação com o tráfico? — Os que estão aí é porque querem, mas, se não quiserem, vão ter na marra. A Associação de Moradores que for eleita, o trafico vai interferir, porque interessa a eles ter um órgão oficial pra negociar as coisas mais pesadas. [...] Isso é aqui e em qualquer lugar. (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).
Segundo o entrevistado, essa coalisão pode resultar ainda na taxação de
determinados serviços dentro da favela. Segundo o entrevistado, o narcotráfico
consegue taxar o gás em associação direta com o proprietário da distribuidora, mas
os ambulantes são taxados pela Associação de Moradores em ação combinada com
o poder coercitivo do tráfico. O entrevistado ainda prevê a taxação dos lojistas visto
que a associação já iniciou ao cadastramento do comércio.
Eles estão cadastrando o comércio todo: comércio, ambulante... Eles não estão taxando ainda, eles estão cadastrando, e não é a toa né? Os ambulantes eles já taxam, ele pagam um valor lá, não sei quanto, pra eles, agora o cara lá estabelecido eles estão cadastrando, vão cobrar (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).
196
É importante destacar que os interesses do “padrinho político”, do narcotráfico
varejista ou da população da favela em geral, nem sempre são antagônicos. O
narcotráfico varejista pode adotar determinados interesses da favela em busca de
legitimidade, o mesmo pode acontecer com o “padrinho político” em busca de voto, a
associação pode mediar a relação entre tráfico e padrinho político a fim de
implementar um projeto que beneficie a população como um todo, etc. Em todos os
casos, os agentes podem representar diversos interesses e ainda agir para atender
favorecimentos pessoais. No entanto, nem sempre essa conjuntura é possível e não
é simples identificar se um benefício pontual para a favela como um todo que
envolva esse tipo de negociação será benéfico a longo prazo, sobretudo porque
esse tipo de negociação nunca é feita de forma aberta e que envolva decisões
amplamente democráticas.
Sendo assim, por mais que tenhamos apontado no início dessa
argumentação que a adesão às eleições são baixas e que é comum a realização
desses processos em chapa única, a disputa pela influência sobre a Associação de
Moradores pode acontecer de outras formas, inclusive a influência de agentes
externos102 pode ser um impeditivo para a disputa eleitoral por outros grupos.
A preocupação de Andrelino Campos com a generalização da ligação entre
tráfico e Associação de Moradores ou do aparelhamento do Estado ou dos
“padrinhos políticos” (2005, p.154 e 155) sobre essas instituições é de fundamental
importância e deve ser levantada aqui. Porém, a generalização que o autor faz da
Associação de Moradores como forma de resistência também é problemática. A
Associação de Moradores como instância representativa pode ser ocupada por
diversos setores e, além de poder representar interesses externos à prática da
associação, como os exemplos já levantados aqui, a população das favelas
apresenta certa heterogeneidade. Existem comerciantes, trabalhadores informais,
empresários, proprietários, locatários, etc. e determinados grupos podem ter
interesses antagônicos. É dessa forma, que uma Associação de Moradores pode
alinhar-se com proprietários e comerciantes apoiando projetos remocionistas que
aumentem a lucratividade do comércio e o valor dos imóveis, prejudicando a parte
removida da população e os locatários, pelo aumento da demanda por habitação e
102 Consideramos externos nesse subcapítulo os agentes que são exteriores a representação da Associação de Moradores. Os agentes de fora da favela seguirão sendo tratados como supralocais. Dessa forma, o narcotráfico varejista exerce uma influência externa a Associação de Moradores ainda que seja um agente local.
197
aumento dos aluguéis.
Trabalhamos até agora as coalisões que podem ser feitas pelas Associações
de Moradores, seja no intuito de favorecimentos pessoais ou coletivos, seja com
relação ao domínio de grupos externos sobre a Associação de Moradores. No
entanto, as relações entre Associação de Moradores e tráfico, Estado, “padrinhos
políticos”, etc. podem ser de limitação com relação ao outro. O trecho reproduzido
abaixo descreve um processo de mediação exercido pela Associação de Moradores
1 da Favela 1.
Um cara me procurou e disse que tinha alugado uma casa e que o cara tinha vendido a casa dele. Lá da [área da Favela 1]. — “O que podia fazer?” Eu disse: — “vai à Associação de Moradores. Você tem algum documento que prova que o imóvel é seu? Que o cara está alugando?” Ele disse: — “ah, mas disseram que o cara é ligados ‘aos cara’” [narcotráfico varejista]. — “E aí... fica difícil, mas tenta”. Ele resolveu! (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).
No caso apresentado, a relação entre narcotráfico varejista e Associação de
Moradores assume um caráter hostil. Nesse caso específico, parece que a
Associação de Moradores consegue cumprir o seu papel, mas nota-se que o
entrevistado indica uma dificuldade maior da associação cumprir seu papel em
casos que envolvem o narcotráfico varejista. Aparece também aí, uma medida de
poder. Há uma dúvida sobre a capacidade da Associação de Moradores intervir no
caso. Isso demonstra que, em determinadas conjunturas, em determinados casos, a
Associação de Moradores deixa de atuar por não ter força contra o narcotráfico
varejista.
Vale a pena retomar a entrevista do Comerciante 1 da Favela 2 onde ele diz
que a Associação de Moradores não consegue atuar no embargo de obras por
causa da influência do narcotráfico varejista.
E a associação não consegue mais intervir nisso? Não consegue por causa da influência diretamente do tráfico (COMERCIANTE 1, FAVELA 2).
Mesmo sendo muito mais difícil em função do caráter coercitivo do
narcotráfico varejista, a Associação de Moradores pode, em determinadas
conjunturas, agir de forma negativa à atuação do narcotráfico varejista, em especial
se puder agir em conjunto com o Estado. Provavelmente, houve casos assim na
implantação das UPPs, porém não temos material para analisar esses casos.
198
O Estado é outro agente que pode estar em aliança ou em conflito com a
Associação de Moradores. A aliança pode ser desenvolver de diversas formas. Ela
pode se desenvolver em torno de um projeto proposto pela prefeitura ou conquistado
pela organização da favela. Nesse caso, os dois agentes podem negociar em
relativa paridade de condições. Pode se desenvolver em torno de benefícios
pessoais, tanto para algum representante do Estado, como para um representante
da associação. Nesse caso, uma ação para a favela como um todo pode beneficiar
individualmente um representante do Estado, assim como uma política de Estado
pode beneficiar individualmente um representante da Associação de Moradores ou
mesmo o benefício individual pode vir de ambas as parte, ou seja, cada polo da
relação pode movimentar recursos das suas instituições em benefício individual ou
social. O Estado como um todo, ou grupos atuantes no Estado, podem cooptar
lideranças comunitárias ou as associações como um todo. Nesse caso, a relação se
apresenta de forma desigual e o Estado impõe as suas regras. As Associações de
Moradores também podem em algum momento impor a sua política para o Estado,
mas esse tipo de atuação exige a mobilização de um volume de recursos que uma
Associação de Moradores ou mesmo o conjunto delas geralmente não tem a
disposição.
Alguns exemplos sobre como a Associação de Moradores pode atuar em
conjunto com o Estado como no caso da fiscalização de obras ou na implementação
de obras e projetos estatais já foram apresentados. Já indicamos também como
acontecem os conchavos com “padrinhos políticos” seja em benefício próprio ou da
favela como um todo. Resta indicar a forma como a associação nega determinadas
políticas de Estado.
Os casos que tiveram mais repercussão recentemente no Rio de Janeiro
envolveram a política de remoção do governo de Eduardo Paes (2009-2016). Na
realidade, houve resistências de Associações de Moradores organizados em
articulação com outros movimentos e instituições a processos de remoção em todo o
Brasil. Os movimentos se organizaram em fóruns, manifestações, eventos, debates
públicos, contra laudos técnicos, etc. Esse é um bom exemplo, pois os movimentos
sociais conseguem reunir uma parte, ainda que pequena, das Associações de
Moradores em torno da luta contra uma ação específica, mas que, em determinados
momentos, se desenrola em uma luta contra as políticas do governo.
Esse tipo de articulação exige a formação ou a existência prévia de
199
resistências locais. Podemos destacar a Comissão de Moradores da Providência e a
Associação de Moradores e Pescadores da Vila Autódromo (AMPAVA). A primeira,
organizada no Fórum Comunitário do Porto, resistiu a um projeto que previa a
remoção de 832 casas, sendo que pelo menos 140 foram removidas segundo o
Fórum103. A segunda tem uma história de resistência à remoção total que se trava
desde o início da década de 90 até que a luta se acirra em 2012 com as primeiras
remoções. Nesse contexto, a AMPAVA se articula com o Comitê Popular da Copa e
Olimpíadas do Rio de Janeiro e setores da academia. O processo de remoção se
intensifica em 2015 restando apenas 50 casas em 2016. O plano apresentado pelo
prefeito em resposta a articulação prevê a construção de 30 casas. Essas relações
entre movimento social e Associações de Moradores em articulação contra políticas
do governo certamente não são inteiramente virtuosas como pode parecer aqui.
Uma série de contradições permeia esses processos brevemente relatados, mas
não teremos condições de complexificar essas relações e apresentar suas
contradições aqui.
Em contraposição à resistência como forma de oposição ao Estado, podemos
utilizar o exemplo apresentado anteriormente, onde a Associação de Moradores age
conjuntamente com o narcotráfico varejista na taxação de determinadas atividades
dentro das favelas. Podemos perceber que, se o narcotráfico varejista em coalisão
com a Associação de Moradores pretende manter o controle sobre o transporte,
comércio, distribuição de gás, TV a cabo, etc. é necessário embarreirar
determinadas políticas de Estado. Dessa forma, a Associação de Moradores pode
se opor a determinadas políticas de Estado apenas para manter formas de
espoliação da população favelada, ainda que esse tipo de oposição deva aparecer
mais na forma de negociações sigilosas do que em manifestações públicas, debates
populares, etc.
Outra dimensão que deve ser tratada diz respeito aos diversos extratos a
serem representados pela Associação de Moradores. Esse é um tema difícil, pois os
estudos ao longo da história tenderam a homogeneizar os moradores dentro das
favelas e o discurso da comunidade tem reforçado a ideia da favela como um meio
homogêneo. Mesmo assim, diversos autores buscaram diferenciar os moradores de
favelas, seja identificando uma “burguesia favelada” (MACHADO DA SILVA, 2016
103 https://forumcomunitariodoporto.files.wordpress.com/2013/06/aqui.pdf
200
[1967]), seja pela divisão entre locadores e locatários (DAVIS, 2006), moradores
novos e antigos (ROCHA, 2008), etc. Na Vila Autódromo, parte dos moradores dizia
não se sentir representada pela AMPAVA. Ao mesmo tempo, quando a Associação
de Moradores da Babilônia se posiciona contra a “gentrificação”, escolhe uma parte
da população para representar excluindo outra. Essa é uma condição de qualquer
instância representativa: ela pode representar seus associados como um todo desde
que não haja interesses antagônicos. No entanto, a heterogeneidade das favelas
nos obriga a pensar quais interesses se antagonizam e como essa disputa se
apresenta na Associação de Moradores da favela estudada. Dessa forma, assim
como agentes externos podem disputar ou hegemonizar a Associação de
Moradores, interesses que se mostram antagônicos dentro do corpo representado
pela Associação de Moradores podem disputar ou hegemonizar o espaço
representativo.
Tratamos aqui de algumas das diversas relações estabelecidas pelas
Associações de Moradores. Importante destacar que existem outras importantes que
não serão abordadas nesse trabalho, como a relação entre associação e milícia (que
deve ser diferente da relação entre associação e narcotráfico varejista), a relação
entre associação e igreja, etc. Importante destacar também que, aqui, ao tratar de
uma relação, abstraímos outras, porém essas relações podem e devem aparecer de
forma combinada e complexa.
5.2 Narcotráfico varejista
Sobre a relação entre as Associações de Moradores e o narcotráfico varejista,
o que foi apresentado é suficiente para os objetivos dessa dissertação.
Apresentamos como eles podem se limitar reciprocamente na mediação de conflitos
ou na regulação da construção e, como os dois agentes podem formar coalisões
para essas mesmas atuações ou mesmo para taxar os moradores das favelas.
Sobre a relação entre o narcotráfico varejista e o Estado, expusemos a limitação
recíproca na regulação da construção. Sobre a mediação de conflitos, vimos como o
narcotráfico varejista pode se adiantar ao Estado simplesmente para evitar a entrada
de agentes oficiais, incluindo a polícia, que pode atrapalhar a atividade de varejo. A
ocupação territorial será tratada no próximo subcapítulo sobre o Estado. Aqui basta
ressaltar que apesar da presença do narcotráfico varejista, Estado (UPPs, exército,
201
etc.) e milícia se limitarem reciprocamente, a coexistência também é uma realidade e
nem sempre é conflituosa. Entre os diversos outros aspectos da atuação do
narcotráfico varejista, vamos focar nesse subcapítulo nas formas de ganho
exercidas pelo narcotráfico varejista, em especial o ganho com o mercado
imobiliário.
Primeiro é importante lembrar que a presença do narcotráfico varejista está
longe de ser uma característica geral das favelas e, ainda que somássemos as
áreas de milícia, tal generalização ainda seria falsa. A presença do narcotráfico
varejista, também não carrega em si a espoliação da população local via taxação
dos serviços. Inclusive, essa forma de atuação é muito mais desenvolvida na Favela
1 do que na Favela 2. Na Favela 1, segundo as entrevistas, são taxados o gás, a TV
a cabo, o moto táxi, a van e o comércio ambulante, enquanto o comércio lojista está
em vias de ser taxado. O caso especial que iremos estudar é dos investimentos no
setor imobiliário com produção de estoques habitacionais e liberação para aluguel.
Na Favela 2, não encontramos indícios da taxação de serviços, porém houve da
venda dos terrenos vazios em especial os liberados pela obra do Programa Morar
Carioca.
O Proprietário 1 fala sobre a taxação dos serviços. Para ele, o fato de o
narcotráfico varejista, por vezes, resolver problemas que outras instituições deveriam
resolver constrói certa legitimidade para esse tipo de taxação. A violência ou a
ameaça da violência devem ser fator importante de imposição dessas taxas.
O povo quer alguém que resolva. O povo ainda tem a ilusão que “os cara” [narcotráfico varejista] ajuda, ajuda como? Paga mais caro a moto, paga mais caro a van, paga mais caro o gás... (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).
Outro serviço que ele aponta é o “gatonet”.
Com a UPP o que entrou aqui foi a TV paga, mas o “gatonet” voltou. Tem um que é do próprio chefe do tráfico (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).
Como apontamos anteriormente, parte dos serviços só pode ser cobrado em
coalisão com a Associação de Moradores. Segundo o entrevistado, a Associação de
Moradores 1 da Favela 1 é ligada ao narcotráfico varejista e eles atuam em uma
ação conjunta na taxação dos vendedores ambulantes e dos lojistas. No esquema
apresentado, a Associação de Moradores cadastra e cobra dos comerciantes e o
202
narcotráfico serve como ameaça para os que deixarem de pagar. Segundo o
entrevistado os ambulantes já são cobrados, mas os lojistas ainda estão sendo
cadastrados.
A associação não chega pra negociar, chega dizendo que não pode e a autoridade é pelo tráfico. Eles estão cadastrando o comércio todo. Comércio, ambulante... Eles não estão taxando ainda, eles estão cadastrando, e não é a toa né? Os ambulantes eles já taxam, ele pagam um valor lá, não sei quanto, pra eles, agora o cara lá estabelecido eles estão cadastrando, vão cobrar (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).
Sobre a atuação do narcotráfico varejista no mercado imobiliário, o
Proprietário 1 apresenta o tráfico como o agente que tem dinheiro pra construir.
Além disso, ele o apresenta como o agente que não sofre com a intervenção de
outros agentes locais ou supralocais, mas comanda a regulação.
— O tráfico constrói muito aqui? — Constrói. Dá licença, faz qualquer coisa. — E aluga? — Muito (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).
Sobre o padrão construtivo, segundo o Proprietário 1 da Favela 1 o
narcotráfico varejista constrói predinho, ou seja, busca, além de aplicar os ganhos
com o varejo de drogas no mercado imobiliário gerando ganhos da propriedade de
imóveis, gerar ganhos pela intensificação do uso do solo. Segundo o entrevistado:
“eu sei mais de casas que eles quebram e constroem o prédio”.
Segundo o Proprietário 1, as casas não são construídas, contratadas ou
gerenciadas diretamente pelos traficantes, mas por “laranjas” escolhidos pelo
narcotráfico varejista e que recolhem uma parte pelo serviço prestado.
— Qual é o padrão que eles constroem? — Predinho! Normalmente é construído com um “testa de ferro”. Não é o tráfico em si é um cara que constrói no nome dele, mas que ele não é o dono, sempre um testa de ferro, o cara que está aí hoje é o [nome omitido], não é o prédio do [nome omitido], é o prédio do João, do Pedro, mas na verdade é do [nome omitido]. Tem sempre um laranja né? — Mas ele funciona só de laranja ou ele gerencia o prédio e cobra uma taxa? — Gerencia e devolve o dinheiro pro cara né? Cuida, toca a obra, faz tudo. Agora, se acontece alguma coisa, se der uma zebra e derrubar né? O poder chega né? Quer dizer... Sempre tem um laranja. Você não paga aluguel para o tráfico, paga a um terceiro. — E ai ele repassa. — Fica com uma parte (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).
203
É interessante notar que os exemplos que o proprietário 1 dá são sempre de
comerciantes locais, “o cara do gás”, “o cara da loja de móveis”, etc. Outra indicação
importante é que as pessoas que estão no esquema que indicam as pessoas novas.
Ultimamente que eles têm feito mais isso. Tem um cara que tem uma loja de móveis, que é o mais antigo testa de ferro, tem vários prédios construídos. E têm outros caras novos que vão aparecendo, eles vão indicando novos “testa de ferro” (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).
Outra indicação importante na fala do Proprietário 1 é que os “laranjas”
podem ser dispersos, mas alguns deles concentram vários prédios. O Proprietário 1
indica também que os fiscais nem sempre são intimidados pelo narcotráfico
varejista, mas este para, evitar qualquer tipo de conflito, pode subornar aquele.
— Mas às vezes tem um deles que concentra vários prédios? — É tem um que concentra vários, os outros não sei exatamente como é que funciona, sei que é sempre “testa de ferro”. A prefeitura chegou a derrubar metade de um prédio do tráfico, lá na [parte da Favela 1]. O prédio tinha 7 andares, derrubaram 2, deixaram 5, teve um acordo e parou, a mesmo esquema de compra de fiscal. Pessoa comum eu só conheço um cara que está fazendo um prédio grande que é o dono daquele de 12 andares, que está fazendo outro mais ou menos do mesmo tamanho, que está embargado... (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).
Segundo o Proprietário 1, a regulamentação da prefeitura, pelo fato de
conseguir embargar ou demolir as obras exceto as ligadas ao narcotráfico varejista
(seja por subornarem ou intimidarem os fiscais), gerou um monopólio do narcotráfico
varejista para esse padrão construtivo.
— A maioria dos novos são ligados ao tráfico? — Ou do tráfico ou de alguém ligado ao tráfico. Porque como teve a... Coisa grande né? Doze andares... Reforma de um andar não. Mas quando é prédio de 5, 6, 7 andares, os novos... Porque teve uma época que a prefeitura meio que parou, não podia construir nada, então foram eles que abriram... Quebraram as regras (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).
Como indicado em outros momentos, ainda que o narcotráfico varejista
espolie a população das favelas de diversas maneiras, as normas de conduta da
cidade oficial tendem a ser reproduzidas. No mercado imobiliário, por mais que o
narcotráfico varejista utilize de seu poder bélico e da capacidade de subornar os
fiscais para fugir das formas de regulação da construção no território, a relação do
narcotráfico varejista com a população no caso do mercado imobiliário parece não
ser mais de imposição, apesar de ter sido em certo momento, mas uma relação de
204
troca com igualdade jurídica como qualquer outra.
— E eles tomam terreno de alguém? — Não, geralmente compram. Teve um período que eles tomavam laje, tomavam laje e botavam uma criatura pra morar lá, construíam, mas isso acabou, há uns 10 anos atrás. É no período que eles pediam bebida no comércio pra fazer festa... (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).
Inclusive, ao que parece, o narcotráfico varejista busca evitar qualquer tipo de
conflito com a população. Nesse caso que o entrevistado nos apresenta, um
membro de uma família vendeu um prédio para o narcotráfico varejista sem o
consentimento do restante da família. Segundo o entrevistado, o narcotráfico desfez
a operação sem maiores prejuízos.
— Eles compram prédio pronto também? — Teve um prédio que eles compraram pronto e devolveram. Era uma família, aí um membro da família vendeu, o resto se reuniu e foi lá e falou: — “ah, a gente não quer vender não, fez besteira, não é pra vender”, ele: — “ah, então me dá o dinheiro em 8 dias”. Aí a pessoa deu o dinheiro (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).
A relação do Proprietário 2 com o narcotráfico varejista não ficou muito clara.
Em determinado momento, o Proprietário 1 o apresentou como um dos “laranjas” e,
em outros momentos, como alguém que tem outros acordos com o narcotráfico
varejista e por isso detém o “aval” para construir sem sofrer restrições da prefeitura,
da Associação de Moradores ou do próprio narcotráfico varejista. De qualquer forma,
o trecho a seguir configura outra forma de acordo onde o Proprietário 2, por ser dono
da distribuidora de gás, já ser taxado por essa atividade e manter boa relação com o
narcotráfico varejista, detém o direito de ser um “protegido” do narcotráfico varejista.
Tem um outro cara que constrói muito aí... Muito, tem uns três prédios... É o cara do gás, que é um... Ele é independente, tem o gás dele, mas ele paga uma taxa pro tráfico, então ele é um cara que tem uma benção do tráfico. Ele tem dois prédios, mas está construindo outro. O que ele está construindo agora dizem que é de 7 andares. Está na fundação. Quer dizer, não é o tráfico, é um cara que tem o aval, quer dizer, é um aval comprado, porque ele paga não sei quanto por cada bujão de gás vendido. Porque o gás num lugar comum está 50 reais aqui é 81,40, deve dar uns 15 a 20. A lenda que o tráfico ajuda a comunidade é ao contrário, ele tiram. Tiram do gás, tiram da van, tiram da moto, tudo isso eles tiram, né, não ajudam. Quando eles fazem uma pequena ajuda, eles fazem com o dinheiro do próprio povo (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).
Segundo o Proprietário 1, essa não é uma prática exclusiva da Favela 1,
sendo comum em outras favelas e não é uma atividade tão nova. Segundo ele, tem
205
pelo menos 10 anos que o narcotráfico varejista atua no mercado imobiliário dessa
forma.
— Eles fazem isso em todo canto! Tudo que dá dinheiro eles fazem. — Mas eles fazem há muito tempo aqui? — Uns 10 anos. É um pouco a cópia da milícia, gatonet, van, tudo que dá dinheiro... (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).
Não sabemos, ao certo, a dimensão da atividade do narcotráfico varejista no
setor imobiliário. Segundo o entrevistado, há apenas uma pessoa que ele conhece
que constrói os “predinhos” e não tem esse tipo de relação com o narcotráfico
varejista. Mesmo assim, o corretor da Imobiliária 2 indicou que esse construtor teve
que favorecer pessoas envolvidas com o narcotráfico varejista para construir sem
maiores constrangimentos. Realmente, após a restrição do número de pavimentos
por decreto municipal fiscalizado pelos agentes da prefeitura, o agente com maior
capacidade de “furar” o bloqueio, seja via suborno ou via ameaças, é o narcotráfico
varejista, além de ser o agente com maior volume de recursos para atuar no
mercado imobiliário de forma sistemática, onde um “laranja” indica outro
configurando um efeito multiplicador. Em contraposição, os construtores que
empreendem tendo como estrutura a própria família, apesar de por vezes
concentrarem dezenas de unidades habitacionais, parecem ter como limite, além
dos recursos muito mais limitados, a própria capacidade de administração. No
entanto, esse tipo de atividade é sigilosa. Mesmo para moradores de longa data e
com vivência política na favela, como o Proprietário 1, a relação entre construtor e
narcotráfico varejista deve ser difícil de identificar. Por mais que o narcotráfico
varejista concentre vários “laranjas”, a estrutura que aparece para o pesquisador ou
para os moradores, é a de empreendedores familiares isolados. Portanto, mesmo
que o Proprietário 1 associe o monopólio desse tipo construtivo ao narcotráfico
varejista com argumentos coerentes do ponto de vista lógico, é necessário certa
cautela no uso dessa informação.
Na Favela 2, não encontramos indícios da cobrança de qualquer taxa sobre
serviços, nem de investimentos no setor construtivo. O que encontramos foram
indicações de que o narcotráfico varejista passou a vender os terrenos vazios
existentes na favela. É interessante que, nesse caso, assim como no caso da Favela
1, a restrição do gabarito pode ter garantido o monopólio do tráfico sobre esse tipo
construtivo, enquanto a restrição da ocupação dos terrenos pela legislação e
206
atuação dos fiscais da prefeitura, contraditoriamente, pode ter gerado um monopólio
do narcotráfico varejista de acesso aos terrenos.
Diferentemente da Favela 1, onde uma limitação de gabarito exercida pelo
narcotráfico varejista geraria um desgaste político indesejável, o narcotráfico
varejista poderia reter os terrenos para a venda sem maiores conflitos com a
população no caso da Favela 2. No entanto, na Favela 2, a prefeitura passou alguns
anos coibindo as construções com embargos e demolições e o tráfico retomou parte
do poder sobre o território. Nesse contexto, a necessidade do narcotráfico varejista
passa a ser a garantia da segurança da construção contra o Estado nos terrenos
vendidos e não a de coibir a ocupação dos terrenos não vendidos.
Um dos terrenos liberados via remoção pelas obras do Morar Carioca foi
ocupado durante o período de atuação mais intensa da UPP no território. Porém,
durante a construção da casa a prefeitura embargou e demoliu a edificação. Quando
a UPP perdeu força no território, o terreno foi reocupado e, no momento da pesquisa
de campo, estava com a estrutura e as paredes completas, faltando os
revestimentos, as esquadrias e o acabamento.
Em artigo intitulado “Núcleo urbanizado: uma nova (velha) cidade?” Miguel
Nazareth e Maria de Lourdes Zuquim relatam o que podemos considerar uma
combinação das atividades desenvolvidas na Favela 1 e na Favela 2. A favela
pesquisada chama-se Nova Jaguaré. Em seu relato, o “Crime” está constituindo um
grande “parque de locação” nas áreas livres resultantes das obras públicas
realizadas na favela.
Pouco a pouco, começaram a surgir ocupações em outras partes, a maioria capitaneada pelo Crime com fins de venda ou aluguel, mas outras também empreendidas por outros atores, com fins de estabelecer comércio ou construir garagens. Das tentativas de impedir o avanço das ocupações e a degradação das novas áreas livres, duas se destacam: a construção de um parque infantil e o cercamento de acesso a um conjunto habitacional. No entanto, são iniciativas residuais e as ocupações do Crime seguiram avançando. Recentemente, começaram a tomar a praça que, em pouco tempo, se transformará em um grande “parque de locação” (NAZARETH; ZUQUIM, 2016, p. 15).
No estudo de Lia de Mattos Rocha na favela do Abacateiro, localizada em
área central do Rio de Janeiro, a autora apresenta uma configuração próxima com a
apresentada pelos entrevistados da Favela 1 e da Favela 2. Segundo a autora, a
ação restritiva exercida pelo POUSO limitou a ação da Associação de Moradores de
207
tal forma que os moradores que pretendiam construir preferiam buscar o narcotráfico
varejista, transformando-o na referência principal de regulação local da construção.
Em um caso relatado durante o trabalho de campo, a Prefeitura, através do programa Posto de Orientação Urbanística e Social (Pouso), da Secretaria Municipal de Urbanismo, não estaria liberando a construção de novas casas dentro da favela. Segundo ele, quando queriam construir os moradores buscavam a associação para que esta interferisse junto à Prefeitura. Entretanto, como o presidente afirmava não dispor de autoridade para modificar decisões relativas à ocupação do espaço, eles acabavam pedindo autorização aos traficantes (ROCHA, 2008, p. 12).
Segundo a autora, a presença de construções novas pode ser um sinal de
que não apenas as proibições não são eficientes, como o apoio dado pelo
narcotráfico varejista gera a segurança necessária para o investimento construtivo
(como já chamamos a atenção um investimento relativamente alto).
Vale ressaltar, porém, que foram construídas novas casas na favela – isso pode demonstrar não apenas que a proibição da Associação de Moradores não tem efeito prático, mas também que alguns moradores constroem por se sentirem apoiados pelos traficantes (embora não se possa descartar que as construções sejam realizadas à revelia de ambos os poderes locais) (ROCHA, 2008, p. 12).
A atuação do narcotráfico varejista no mercado imobiliário é algo que muda
qualitativamente a análise desse mercado. A presença de um agente com grande
capacidade de aplicar recursos e de montar uma rede de colaboradores trás a
necessidade de pensar parte da produção imobiliária como algo centralizado e com
ganhos a serem reinvestidos. O caráter coercitivo-violento do narcotráfico varejista é
outra característica que trás novas preocupações para a análise do mercado
imobiliário. Não identificamos roubos ou constrangimentos sobre moradores para
vender determinado terreno, ao que parece há um respeito à igualdade jurídica na
troca de mercadoria. No entanto, a capacidade de regulação da construção exige
que, de alguma forma, qualquer pesquisador ou interventor que deseje compreender
o mercado imobiliário das favelas enfrente essa questão.
5.3 Estado
A ideia de que o Estado é um agente ausente nas favelas foi bastante
difundida. Hoje essa é uma posição menos aceita, apesar de ainda ser apresentada
como uma presença absolutamente policialesca. Magalhães nos apresenta uma
208
preocupação sobre como é vista a relação entre Estado e favela.
Com relação à atuação do Estado, entendemos que ocorreram importantes mudanças na maneira desse se fazer presente nas favelas, não se podendo afirmar que o Estado – seja o Estado legal (ou regulamentador), seja o Estado provedor de serviços públicos – esteja ausente das favelas cariocas, que não esteja preocupado em se fazer presente nelas ou que elas estejam “abandonadas à sua própria sorte”, em que pese a precariedade real da atuação do Estado nas favelas. Parece-nos que a questão a ser debatida, sobretudo nos tempos atuais, deve incidir sobre a maneira como o Estado se faz presente, em outras palavras, nas especificidades da presença do Estado nas favelas. Além disso, o fato a ser percebido e analisado, hoje, é que o braço repressor do Estado não se faz presente apenas via polícia, mas, também, via controles urbanísticos e ambientais, que na técnica jurídica são denominadas de polícia administrativa (MAGALHÃES, 2010, p. 142).
O Estado, como vem sendo defendido ao longo do presente trabalho, apesar
de não garantir o caráter oficial da propriedade e do mercado fundiário, é agente
fundamental de seu funcionamento. A atuação do Estado nas favelas é bastante
diversa e se desdobra em uma diversidade de agentes (polícia, fiscais, oficiais de
justiça, “urbanizadores”, etc.). Destacamos, porém, as formas de atuação que
tiveram mais presença na nossa pesquisa de campo.
Tratamos no capítulo 2 sobre como o Estado interfere, mesmo que por vezes
de maneira indireta, na defesa ideológica da propriedade privada moderna e como
os agentes internos são coagidos a seguir as normas do direito oficial mesmo com a
limitação da atuação do Estado, algo que Sousa Santos chamou de troca desigual
de juridicidade (SOUSA SANTOS, 1999, p. 88). Também vimos a polícia agindo na
resolução de problemas que deveriam ser resolvidos por outros agentes do Estado
como no caso da colocação da “manilha” (que já expusemos) e como agia na
resolução de conflitos e, por consequência, em alguns casos de regulação da
construção. No mesmo capítulo, expusemos sobre as formas de recuperação dos
imóveis em casos de inadimplência, onde a atuação dos oficiais de justiça no
território apareceu como importante meio. Na análise da regulação da construção
nos deparamos mais uma vez com agentes do Estado, no caso os fiscais da
prefeitura e os POUSOs. Vimos também como a atuação desses agentes pode ser
fortalecida pela atuação da Associação de Moradores ou pode limitar essa atuação e
como os agentes do Estado podem ser limitados pela presença do narcotráfico
varejista até se tornarem inoperantes aos olhos da população. Fizemos também no
capítulo 1 a análise de como o Estado trata as favelas através do discurso de suas
209
instituições sobre as políticas públicas. Falamos também da produção do espaço
criminalizado. Já nesse capítulo, apresentamos como representantes em cargos
eleitos ou candidatos a esses cargos se convertem em “padrinhos políticos” quando
agentes locais “capitalizam” o seu potencial eleitoral.
Já apresentamos alguns elementos da relação entre Associação de
Moradores e Estado, porém a relação inversa tem elementos que se diferem. Por
exemplo, se o representante da Associação de Moradores pode se apresentar como
um agente centralizador do potencial eleitoral da favela, o “padrinho político” se
apresenta como um agente capaz de influenciar nos projetos de governo, distribuir
cargos ou levar infraestrutura para a favela.
A inversão do ponto de vista de análise nos trás novas consequências.
Segundo Rocha (2008), baseada em pesquisas com dirigentes de Associações de
Moradores, “existiria uma disputa entre favelas no mercado político, uma vez que os
investimentos não seriam homogeneamente distribuídos entre todas as áreas
pobres da cidade”. Isso significa que o investimento desigual do Estado nas favelas
e a prática de “apadrinhamento” das favelas por determinados agentes de cargos
eleitos do Estado faz com que as favelas utilizem de seu potencial eleitoral para
disputar entre si. Segundo Rocha (2008) com base em Machado da Silva (2016
[2002]), essa configuração pulveriza a luta dos favelados, pois cada favela passaria
a defender os seus interesses individuais.
A idéia de uma competição entre favelas por recursos públicos é apresentada por Machado da Silva (2016 [2002]), ao comentar a relação entre o poder público, no caso o municipal, e os representantes de diferentes favelas a partir da implantação do Programa Favela-Bairro. Segundo ele, tal política pulveriza a luta por melhorias, pois cada favela passa a defender seus interesses separadamente, o que “enfraquece o conjunto das mobilizações e despolitiza as reivindicações, circunscrevendo-as à dimensão administrativa e técnico-financeira na qualidade de pequenos lobbies (...)” (MACHADO DA SILVA, 2016 [2002], p. 171) (ROCHA, 2008, p. 10).
Da mesma forma, se vemos a relação entre Associação de Moradores e
Estado do ponto de vista da Associação de Moradores, vemos a mediação entre
morador ou o conjunto dos moradores e Estado na facilitação do acesso às
instituições ou na reivindicação de melhorias. Se invertermos o sentido dessa
relação, vemos a busca do Estado pela realização de processos decisórios
participativos que legitime seus projetos, geralmente espaços esvaziados pela
210
população local ou mesmo pelo Estado e com pouco poder deliberativo, visto que os
contratos entre o poder público e a empresa privada prestadora de serviços já está
firmado e inclui uma série de restrições (Cf. KAWAHARA; XIMENES, 2015, p. 14).
Outra característica dessa relação apontada por Rocha é a necessidade de o Estado
negociar com o narcotráfico varejista e, ao mesmo tempo, negar essa relação. A
saída dessa contradição se encontra na mediação da relação entre esses dois
agentes via Associação de Moradores. Essa mediação, mesmo que não seja
desejada pela Associação de Moradores, torna-se condição da implementação de
projetos.
A participação dos moradores nas decisões (alvo das ações, tipo de ação, atores envolvidos) parece ser pequena. Segundo os relatos coletados, as Associações de Moradores não foram ouvidas, somente chamadas para auxiliar no processo de execução. A questão da segurança pública permanece sendo deixada apenas para a Secretaria de Segurança Pública do Estado, e a mediação junto aos traficantes de drogas continua sendo uma das principais funções das associações neste processo (Cf. MIRANDA e MAGALHÃES, 2004 e SILVA e ROCHA, 2008). No entanto o momento atual traz uma novidade ainda mais perniciosa para a representação coletiva dessas localidades: a repetição do modelo clientelista de política pública, tornando as associações simples mediadoras para garantir a anuência dos bandos de traficantes locais, tem por conseqüência acusações – nem sempre justificadas – de conivência dos líderes com a criminalidade violenta, aumentando sua estigmatização e minando sua legitimidade dentro e fora das favelas (Cf. MACHADO DA SILVA, 2004 e MACHADO DA SILVA; LEITE, 2004) (ROCHA, 2008, p. 17).
É dessa forma que o Estado passa para a Associação de Moradores o ônus
da negociação com o narcotráfico varejista.
Em certos casos são os próprios representantes do poder público ou outras instituições que, para poderem agir nas favelas, solicitam a mediação dos líderes locais. Miranda e Magalhães (2004:52) sugerem que esta é a forma encontrada pelos atores externos para manter distância dos traficantes, salvando as aparências e dando a impressão de que o contato não existiu (ROCHA, 2008, p. 15).
A relação entre o narcotráfico e o Estado é extremamente complexa e
perpassa diversas escalas. Podemos pensar em nível mundial a estrutura de
produção e transporte de drogas e armas (por exemplo, a arma que é produzida na
Suíça, vendida nos Estados Unidos da América e chega até o Rio de Janeiro
escondido em aquecedores de água para piscinas104). Na escala nacional, podemos
104 https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/policia-chegou-a-frederik-barbieri-que-enviava-fuzis-para-o-brasil-rastreando-aquecedores-que-camuflavam-armas.ghtml
211
lembrar que a própria forma de proibição das drogas configura o narcotráfico de
determinada maneira e que a política de controle das fronteiras é importante
componente dessa escala. Na escala estadual, encontramos as diversas políticas de
segurança pública que definem a forma de repressão ao varejo da droga. Parte da
segurança pública é definida junto aos municípios, como foi o caso das UPPs.
Finalmente, há a escala local, onde encontramos as incursões policiais, ações que
visam o domínio territorial (UPPs, exército, força nacional), os mandados de busca
coletivos, os autos de resistência, etc. Por mais que a legislação brasileira obrigue o
Estado como um todo, além de seus funcionários e representantes eleitos, a se
posicionarem oficialmente de forma a limitar o narcotráfico, a relação do Estado e
seus agentes com o narcotráfico é contraditória. Segundo a Folha de São Paulo, o
relatório da CPI do narcotráfico de 2000105 indiciou “mais de 800 pessoas, entre elas
dois deputados federais, 14 estaduais e seis desembargadores, [além de] prefeitos,
delegados de polícia, policiais civis, militares e empresários”. A apreensão de 450
quilos de cocaína no helicóptero do Senador José Perrella (MDB-MG)106, é outro
exemplo da atuação de funcionários e representantes eleitos no fortalecimento do
narcotráfico. O Estado como um todo ainda pode agir com certa conivência tendo
em vista os ganhos a determinados agentes gerados, direta ou indiretamente, tanto
pela venda de drogas como pela guerra às drogas.
Na escala local, que é a escala onde o problema do narcotráfico e da guerra
às drogas atinge diretamente o mercado que estamos estudando, a grande
diferença da política da UPP com o que vinha sendo praticado na política de guerras
às drogas no Rio de Janeiro está na manutenção do grupamento policial no
território. A prática das incursões policiais, caracterizada por invasões periódicas
com alto grau de letalidade, foi em grande medida substituída por uma estratégia de
desarticulação do controle do território pelo narcotráfico varejista armado107 (CANO;
BORGES; RIBEIRO, 2012, p. 8).
A tomada do controle do território como estratégia fundamental das UPPs
trouxe com ela a ideia de que a presença da polícia negaria completamente a ação
105 http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u16039.shtml 106 https://veja.abril.com.br/brasil/o-helicoptero-de-perrella-e-as-acoes-controladas/ 107 Segundo o livro “os donos do morro” de Ignacio Cano, et al. “o estado do Rio chegou a experimentar outros modelos alternativos de policiamento, como o Policiamento Comunitário no Morro da Providência e em Copacabana ou, mais recentemente, o Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais (GPAE), mas nenhum desses projetos recebeu suficiente investimento ou teve a sua continuidade assegurada o tempo suficiente para ter um impacto significativo”.
212
ostensiva do narcotráfico varejista, porém, nas duas favelas pesquisadas a
continuidade da atividade de varejo de drogas, permitiu a volta de sua ação
ostensiva. No Turano, quando trabalhamos com regularização fundiária, mesmo que
a UPP estivesse presente no território durante todo o tempo do projeto, passamos
por momentos em que o varejo de drogas acontecia sem a ostentação de armas e
fora da Rua Joaquim Pizarro (Rua principal do Turano), o varejo passou para a Rua
Joaquim Pizarro e, finalmente, o tráfico passou a ostentar armas. Dessa forma, a
coexistência entre narcotráfico varejista e UPP é uma realidade e essa relação deve
ser tratada.
A primeira advertência necessária é que a forma de atuação do narcotráfico
varejista é repleta de singularidades a depender da relação construída entre o
narcotráfico varejista e a população local, onde o perfil do “chefe do tráfico” é
fundamental. Da mesma forma, “nas UPPs, como nos batalhões tradicionais, tudo
depende da atitude do comandante local” (CANO; BORGES; RIBEIRO, 2012, p. 4).
Dessa forma, assim como apresentamos uma variação no tempo da fronteira
imposta pela UPP à atividade do narcotráfico varejista, deve haver uma variação
importante para a relação entre esses dois agentes em cada território.
Selecionamos entre as entrevistas os trechos onde os proprietários ou
corretores demonstram sua percepção do momento onde houve alguma ruptura que
modificou a relação entre UPP e narcotráfico varejista e que interferiu no mercado
imobiliário. É importante destacar que a conjuntura de ambas as favelas (Favela 1 e
Favela 2) era de transição em diversos sentidos. Por exemplo, nos dois casos, as
favelas receberam a UPP e investimentos em infraestrutura, mas também a UPP já
havia declinado e já haviam estourado alguns conflitos armados nas favelas e os
jornais apontavam sintomas da crise econômica no país108. Dessa forma, alguns
discursos pareceram contraditórios, como a ideia de que a instalação de
determinada infraestrutura fez cair o preço dos imóveis, ou na mesma favela um
entrevistado dizer que estava tendo conflito o tempo todo e outro dizer que apenas
de vez em quando. Com várias mudanças ocorrendo em pouco tempo a associação
entre e o fato ocorrido e sua consequência foi bastante dificultada.
Na Favela 1, segundo os entrevistados houve um aumento do preço dos
108 A crise política e econômica que se desenvolve a partir de 2014, além da implementação de reformas que atingem diretamente os trabalhadores (como a reforma trabalhista e previdenciária) trazem um grau de incerteza que pode afetar a percepção sobre o mercado imobiliário.
213
imóveis após a ocupação da favela pela UPP. No entanto, os preços voltaram a cair
em seguida. Importante destacar que em 2013 o mercado imobiliário brasileiro
atinge seu ápice em número absoluto de imóveis financiados, mas nesse mesmo
ano esse mercado dá sinais de desaquecimento, tendo a maior queda em 2015109.
As UPPs foram implementadas na Favela 1 e na Favela 2 entre 2009 e 2011 (o ano
exato não foi informado para a manutenção do sigilo). Dessa forma, a queda do
valor dos imóveis pode estar mais relacionada a queda geral brasileira no setor do
que qualquer mudança no âmbito local.
— Quando chegou a UPP teve reflexo no valor dos imóveis? — Teve, a gente tem 19 anos, deixa eu te falar... A UPP ajudou, ajudou em tudo, porque aumentou muito, aí depois que aumentou muito, abaixou, ficou mais organizado... Mas ajudou. (IMOBILIÁRIA 2, FAVELA 1)
Segundo o Proprietário 1 da Favela 1, UPP em determinado momento
conseguiu desmobilizar parte da ação do narcotráfico varejista, em especial parte
das taxas que cobravam dos serviços. Para o entrevistado, uma das causas da
diminuição da atuação da UPP foi a sua descredibilização e consequente redução
do poder de ação.
A UPP foi muito apoiada, arma aqui estava demais. A UPP mexeu com o moto táxi, a polícia proibiu de pagar o tráfico, mas a UPP perdeu o crédito e voltou tudo. [...] A polícia perdeu total a moral o cara passa aí qualquer hora usa droga em qualquer lugar, onde quiser (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1).
Porém para o Proprietário 1 a UPP não tem nada a ver com aumento ou
diminuição do preço dos imóveis. Segundo o entrevistado:
UPP não mudou nada, única coisa que mudou com a UPP é que essa esquina aqui onde meu filho está vendendo roupa tinha maconha, então isso não vende mais abertamente. [...] Nos jornais parece que tudo começou com a UPP. [...] Aqui é caro porque é na Zona Sul, tem praia, não é porque tem UPP (PROPRIETÁRIO 1, FAVELA 1)
Segundo o corretor da Imobiliária 1, o aumento e queda dos preços foram
resultado de uma ilusão. Segundo sua percepção, a UPP aumentou os preços dos
imóveis e das mercadorias em geral, mas diminuiu o movimento de negócios.
Piorou depois de a UPP entrar. Aumentou os preços e abaixou os movimentos de negócio, então quando você entra em uma coisa que não
109 https://glo.bo/1Xh747q
214
tem um crescimento, você cresce o preço da matéria prima, você tem que construir, mas você não vende o que você constrói, não vai ter crescimento, vai morrer. Ela entrou, alterou os preços de venda de imóvel, alterou o preço de aluguel, muito e tal... E depois o engano profundo onde teve uma queda de 40 a 60% do PIB da favela, vamos dizer... De faturamento, e aí vai ser um engano pra população e pro povo lá fora que acha que veio, muitas pessoas vieram, entraram, pagaram caro, e depois eles saíram tristes e tiveram que fechar seu espaço (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1).
Segundo o entrevistado, a queda das vendas se deu exatamente pela
capacidade da UPP, no início do processo, reprimir a venda de drogas. Na sua
percepção, o narcotráfico varejista fazia circular muito dinheiro dentro da favela. A
falta desse dinheiro rodando fez baixar o volume das vendas na favela.
Se tivesse há 6 anos atrás o aluguel estava dobrado e a pessoa estaria pagando na boa, mas hoje... Ele está passando sufoco pra pagar, a [Favela 1] vem melhorando de um tempo pra cá, mas ela caiu seu potencial em 60% aí com a vinda da UPP pra cá e a saída do tráfico, praticamente, saiu entre aspas. Uma área de muito movimento que seria uma área dessa aqui embaixo, pra vender muito pó, muita coisa e vinham os ricos, vinha milionário, vinha apanhar de carrão aqui na porta, não vem mais né e o povo gastava muito dinheiro aqui dentro, gastava de mala, então todo mundo fazia negócio, era botar lixo pra vender ali que estava vendendo, hoje não está assim. Está difícil. [...] A sustentabilidade da comunidade era aquela movimentação [do narcotráfico varejista] que tinha. Quem sobreviveu a queda do comércio está aí, hoje se equilibrando. Tinha 4 ou 5 funcionários, tirou 3, passou a manter 2 e assim foi, se equilibrou. E outra coisa, de 8 meses pra cá a questão imobiliária despencou. A ponto da gente passar uns 3 meses sem vender um barraco, você acha que isso é fácil? E baixando os preços... (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1)
Na Favela 2, parece que há um consenso maior com relação ao impacto da
UPP. Para o Proprietário 4, os dois fatores que mais influenciam no preço são o
acesso à infraestrutura e a segurança.
Nós temos um fator que influencia muito no preço, que é a questão da segurança. A onda da UPP elevou bastante o valor dos aluguéis, hoje ele está com uma realidade menor. Por exemplo, eu já aluguei imóvel por 1400 reais, hoje eu alugo esse imóvel por 900 por causa da segurança (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).
A queda apontada é relacionada pelo entrevistado à diminuição do poder de
ação da UPP. Interessante notar que, no trecho a seguir, o entrevistado diz que o
narcotráfico varejista em si não influencia nos preços, mas a presença das armas
sim. Dessa forma, por mais que a UPP não tenha reprimido o varejo de drogas, a
ausência da ostensividade das armas faz subir a procura e os preços.
215
Inicialmente, as comunidades foram ocupadas durante décadas pelo tráfico. Depois com o projeto da UPP alguns chegaram a retirar a ostensividade da comunidade, as armas, o tráfico continua de maneira mais escondida, mas hoje a gente vive uma crise de segurança no Brasil inteiro, o tráfico voltou pra algumas comunidades e voltou pesado e isso tem influenciado muito nessa questão dos aluguéis (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2).
O Comerciante 1 da Favela 2 aponta para a mesma questão das armas.
Segundo o entrevistado, ele ou seus clientes nunca tiveram problema de violência
na favela, mas a ostensividade das armas afasta os clientes. Outro ponto importante
exposto pelo entrevistado é quando ele identifica o início do declínio da UPP.
Segundo o Comerciante 1 a UPP começou a perder qualidade com a sua rápida
ampliação.
É, na verdade no início era um número bem maior, na medida em que eles foram ocupando outras favelas eles foram diminuindo os efetivos e isso aí atrapalhou muito, perdeu a qualidade, até na formação dos policiais, os policiais eles estavam sendo formados muito rápido, isso aí atrapalhou muito o processo, mas a gente vê que as pessoas generalizam a violência na favela, mas eu confesso a você, eu nunca fui assaltado na favela, nunca fui abordado, nunca tive problema com nenhum cliente aqui, com relação à questão da segurança, mas as pessoas se assustam quando veem algo que o intimida, mas fico decepcionado, porque acho que o estado presente, acho que traria um pouco mais de segurança, a gente ficaria um pouco mais confortável (COMERCIANTE 1, FAVELA 2).
O Comerciante 1 também percebe uma mudança na procura por imóveis a
depender da capacidade de atuação das UPPs.
Antigamente [no início da UPP], você não tinha uma casa pra alugar porque a procura todo dia era de 10, 15 pessoas aqui me perguntando quem tinha uma casa pra alugar. Agora eu já tenho entre 5 e 10 pessoas por dia me dizendo: olha, eu tenho uma casa pra alugar, se você souber quem quer (COMERCIANTE 1, FAVELA 2).
Segundo o Proprietário 4 da Favela 2, um dos problemas da diminuição da
efetividade da UPP, além da diminuição dos investimentos e do efetivo, é a perda do
caráter de polícia de aproximação e a vinculação da UPP ao batalhão regional.
— Está tendo muito conflito? — Não, de vez em quando, isso depende muito mais acho que do plantão que está na área, de quem está lá na UPP. — Tem algum dos comandantes que causa mais conflito? — Na realidade nós tivemos troca de comando de uma desvirtuação do projeto da UPP, que voltou a ser comandada pelo batalhão da área. Então ela já perdeu a finalidade, daquela polícia de aproximação, ela praticamente já não existe mais. Agora é o batalhão da área que comanda a UPP que está estabelecida naquela região. Quem está aqui no posto é subordinado
216
ao [XXº] batalhão. — E muda dependendo do... — Muda toda hora, é uma rotatividade tremenda, você não consegue mais identificar o comandante da UPP como era no início. Já não tem mais aquela relação com a comunidade como existia antes (PROPRIETÁRIO 4, FAVELA 2.
O Estado é representado por uma grande diversidade de agentes na escala
local, Nas entrevistas realizadas, se fizeram presentes os fiscais da prefeitura,
POUSOs, RAs, UPPs, oficiais de justiça e “padrinhos políticos”. Há outros que não
foram abordados aqui, mas que deverão ser abordados a depender do tema
pesquisado, como os funcionários dos postos de saúde, os agentes do juizado de
menores, funcionários das escolas públicas, etc. Além dessa diversidade de agentes
atuantes na escala local, o Estado influencia diretamente cotidiano das favelas com
políticas determinadas em outras escalas como a criminalização da situação jurídica
das propriedades nas favelas, política de formalização do trabalho informal,
criminalização das drogas, etc. Dessa forma, a análise do Estado como agente
atuante na favela exige por diversas vezes a mudança do ponto de vista e da escala
de análise, o que contribuiu para que a análise desse agente tenha se distribuído ao
longo da dissertação.
5.4 As cisões permanentes e conjunturais na “comunidade”
Além dos agentes locais e supralocais aqui apresentados, a população das
favelas apresenta uma diversidade que, em determinados momentos se apresentam
como cortes na dita “comunidade”. Esses cortes determinam grupos dentro das
favelas que podem se opor ou formar coalisões a depender do contexto. Uma das
formas de distinção já foi apresentada e se encontra na formação de uma “burguesia
favelada”.
A concentração de recursos nas favelas e a concentração do acesso às
instituições exógenas são movimentos que se retroalimentam. Ao que parece,
mesmo que a forma principal de acumulação de recursos de determinado agente
não esteja relacionada aos favorecimentos advindos das relações pessoais com os
agentes locais e supralocais cruciais na produção e regulação do território, esses
investidores se verão pressionados a manter uma relação amistosa com todos esses
agentes para a manutenção e ampliação de seus negócios. Aqui trataremos mais
detidamente dos locadores de imóveis e dos proprietários de estabelecimentos
217
comerciais.
Mesmo que os momentos tenham sido mais escassos, tratamos ao longo da
dissertação dos investidores do mercado imobiliário existentes nas favelas.
Apontamos, ainda que brevemente, para a existência desses agentes ainda no
capítulo 1 no subcapítulo “1.4 a favela como categoria”. O capítulo 3 inteiro está
destinado aos meios de formação dos estoques imobiliários, sendo a maior parte
deles formas atomizadas e possíveis germinais de produções mais sistemáticas. No
final do capítulo tratamos mais detidamente das formas de produção que
consideramos mais sistemáticas e debatemos sobre a presença de pequenos
comerciantes e lideranças políticas entre os proprietários entrevistados. Já nesse
capítulo, no subcapítulo “4.1 Associação de Moradores”, tratamos da forma como
agentes influentes e capazes de mobilizar votos estabelecem “conchavos” a fim de
gerar ganhos individuais ou coletivos, determinando em grande medida a política da
favela. No subcapítulo “4.2 narcotráfico varejista”, tratamos da forma como, na
Favela 1, determinados investidores (em geral os que já detêm algum volume de
recursos e negócio próprio) estabelecem relações escondidas com o narcotráfico
varejista em busca de recurso para o investimento a ser gerenciado e uma
blindagem com relação à fiscalização de outros agentes (Estado, Associação de
Moradores e moradores locais).
O fato desses agentes deterem o monopólio do acesso às instituições
supralocais e aos meios de acumulação, permite certo nível de exploração sobre a
população local. Como pudemos ver ao longo da dissertação, o acesso às
instituições supralocais em determinados contextos permite um comportamento
extorsivo por parte de tal burguesia favelada e a barreira entre o Estado e o sujeito
da favela que permite esse tipo de configuração. Essas duas formas de monopólio
permite à “burguesia favelada assumir um comportamento de distinção, segundo
Machado, “bastante próximos ao da pequeno-burguesia ‘comum’, ‘não-favelada’”
(2016 [1967], p. 39).
No trabalho de campo, identificamos como parte do comportamento da
“burguesia favelada” a construção de uma imagem de sujeito de distinção, mas que
atua sempre de forma a beneficiar a “comunidade” como um todo, ou seja,
identificamos uma busca de legitimidade tanto para dentro como para fora.
O Comerciante 1 da Favela 2, por exemplo, se identifica como alguém que
teve que batalhar muito a vida inteira para construir o seu patrimônio e se coloca em
218
oposição ao restante da favela que para ele é um povo que “morre encostado”, mas,
contraditoriamente, segundo o entrevistado: “eu sempre escolho o que é melhor pra
minha favela, pra minha comunidade”. No trecho da entrevista reproduzido a seguir
o entrevistado falava dos moradores que denunciaram a obra do seu restaurante.
São moradores, sempre moradores, sempre fazem né, porque eles na verdade eles não constroem, mas não deixam os outros construírem, entendeu? Então são pessoas que morrem encostadas observando, vamos dizer assim. Eu não, eu sempre realmente busquei a informação, eu sempre tive um respeito muito grande com a secretaria de habitação sempre fui muito bem recebido por eles, sempre fui um parceiro, na verdade, tanto do estado quanto da prefeitura. Então, assim, eu nunca tive problema com relação a isso, por que eu sempre me posicionei politicamente, nunca me envolvi com ninguém, todo mundo me procura (COMERCIANTE 1, FAVELA 2).
O Comerciante 1 aciona muitas vezes o seu pai, que foi uma importante
liderança da favela onde vive, para apontar como a sua família foi importante para o
desenvolvimento da favela e como sua família tem dedicado a vida à comunidade.
No entanto, o desenvolvimento dos seus negócios e a facilidade de negociação com
os agentes do Estado em seu discurso se descola do histórico familiar e aí entra
fortemente o discurso meritocrático. É dessa forma, que, no discurso, o acesso às
instituições de Estado serve à comunidade enquanto o desenvolvimento dos
negócios se dá pelo esforço individual e é acessível a qualquer um que não seja um
“encostado”. Essa separação é importante para esse agente.
No trecho reproduzido a seguir, fica ainda mais claro como o rebaixamento da
população moradora de favela torna-se importante para a “burguesia favelada”. O
corretor da Imobiliária 1 apresenta a população da favela em posição de extrema
subalternidade, de forma que a sua atividade, tanto política como econômica, torna-
se uma necessidade dessa população. É dessa forma que os interesses políticos e
econômicos do entrevistado se encontram escondidos atrás de um fachada
legitimadora que tem a intenção direcionada apenas para o bem da “comunidade”.
É síntese dessa discussão o fato de o entrevistado se apresentar como o
“carregador de pianos da favela”.
Minha vida toda foi aqui. Fui empregado nuns negócios aí, mas sempre tive meu negócio aqui na [Favela 1], minha vida toda é aqui cara. Fui dono de papelarias aqui. Aqui foi uma papelaria grande, tinha duas, uma aqui e outra ali, fui à falência porque dava o material todo para os estudantes que é pobre, fudido, e fedido, e nego preso e o caramba e aí eu não suportava ver eles sem estudar e eu mandava eles pegarem os materiais, não fui à
219
falência, não enriquei. Depois eu acabei que entrei pra política, outras coisas aí, já fui candidato a vereador, a deputado... Pretendo vir em 2018. O sonho não apagou. [...] Eu corretor imobiliário. Aqui rapaz, eu vivo de ajudar o povo. Olha as cartas aqui dos colégios, tudo agradecendo [cartas de agradecimento das escolas por doação de materiais]. [...] Inclusive da prefeitura, do Estado [...] Eu banquei uma festa, escola de 500 alunos. [...] Eu mantenho aqui pra ajudar a comunidade. Estamos entrando com um grupo de seguradora, pra moto, pra carro, estão instalando também aqui a sua base, ele são lá de Minas, e a gente já está fechado. (IMOBILIÁRIA 1, FAVELA 1)
Aqui não se trata de estabelecer uma dicotomia entre a atuação em favor da
“comunidade” e os benefícios individuais de cada empreendimento, até porque essa
relação é complexa e contraditória e uma análise superficial dela não levaria a mais
que um julgamento moral da atuação desses agentes. O que interessa é o
acionamento da “comunidade” como uma categoria e o benefício dela como um todo
como forma de guiar as ações e legitimar toda forma de atuação.
No entanto, a heterogeneidade encontrada no interior das favelas é maior do
que simplesmente uma relação entre “burguesia favelada” e um restante
politicamente subalterno. Há grande variedade, a depender da conjuntura e do tema
a ser trabalhado, de grupos e frações de classe que podem se opor. Em contextos
onde esse tipo de oposição aparece, fica difícil pensar no “bem da comunidade” ou
qualquer outro conceito abstrato que unifique a favela numa só causa.
A oposição entre locadores e locatários, por exemplo, parece ser validada por
diversos autores. Essa oposição se dá fundamentalmente na capacidade que o
proprietário fundiário tem de se apropriar de melhorias produzidas pelo conjunto da
sociedade e usar dessa capacidade de forma hostil aos que fazem uso de suas
propriedades, ou seja, os locatários.
Logan e Molotch (1987) identificam a possibilidade dessa oposição de
interesses. Segundo os autores:
A propriedade residencial estabelece, para alguns residentes, interesses de valor de troca baseados em certas metas de valores de uso. Suas casas são base de uma estratégia de enriquecimento vitalício (PERIN, 1977). Para aqueles que pagam aluguel para senhorios, valores de uso são os únicos valores em questão. Proprietários e inquilinos podem assim, por vezes, ter interesses divergentes110 (LOGAN; MOLOTCH, 1987, p. 20, tradução nossa).
110 Homeownership gives some residents exchange value interests along with use value goals. Their houses are the basis of a lifetime wealth strategy (PERIN, 1977). For those who pay rent to landlords, use values are the only values at issue. Owners and tenants can thus sometimes have divergent interests.
220
A afirmação de Logan e Molotch aponta um momento contraditório no que
eles denominam de consenso pelo crescimento, onde todos os agentes da cidade
teriam algum motivo para apoiar medidas pelo crescimento urbano alimentando a
máquina de crescimento. Dessa forma, as políticas que envolvem a valorização do
solo podem colocar esses dois agentes em oposição, ainda que o inquilino tenha um
poder de reivindicação bastante restrito.
A citação a seguir, exposta por Rafael Gonçalves (2011), se trata de uma
carta da Associação de Moradores da Favela do Jacarezinho endereçada ao
Secretário Estadual de Trabalho e Habitação, datada de 29 de janeiro de 1984. Essa
citação mostra a preocupação da Associação de Moradores com um projeto de
regularização fundiária a ser implementado. A preocupação principal é com o
aumento extorsivo dos alugueis.
Somos totalmente contra a exploração imobiliária; achamos que o Governo deve facilitar a aquisição da casa própria por cada inquilino ou, no caso de não ser possível a solução deste problema, que o Governo assegure que os alugueis não sofram reajustes exorbitantes em função de o proprietário estar com o seu título de propriedade (...). Explicação: existem dentro de nossa comunidade pessoas que possuem inúmeras casas alugadas e que moram em outros bairros. (...) Se o proprietário de dez casas alugadas recebe dez títulos de propriedade se estará controvertendo o projeto Cada Família um Lote (ARAÚJO, 1990, Apud, GONÇALVES, 2011, p. 128 e 129).
A oposição entre locatário e inquilino não aparece apenas na contraposição
em torno de projetos propostos pelo Estado. A cada novo contrato, renovação,
atraso de pagamento, etc. ela se faz presente. No entanto, o processo que envolve a
valorização fundiária coloca o conjunto dos proprietários em oposição ao conjunto
dos inquilinos.
Ost e Fleury (2013), em estudo sobre os impactos da implementação da UPP
no Dona Marta, chamam a atenção para a mercantilização dos espaços sociais.
Para as autoras, esse processo permite que parte da população se beneficie
aproveitando a oportunidade para investir, enquanto que para a outra parte esse
processo aparece apenas como despossessão dos espaços sociais.
A expansão de mercado, propiciada pela maior inserção do Estado, permite que cheguem alguns benefícios, como serviços de maior qualidade, diversidade na oferta, conhecimento, oportunidades de fontes de renda e de capacitação. Assim, aqueles que têm mais capacidade de aproveitar a oportunidade, de lucrar, são beneficiados pela nova realidade, enquanto outros tantos vivem na insegurança (OST; FLEURY, 2013, p. 12).
221
Para as autoras, na medida em que aumenta o custo de consumo desses
espaços e atividades (limitando o uso dos moradores) o seu uso é substituído em
especial por sujeitos de fora.
Enquanto alguns empreendedores aproveitam o aumento do turismo e da circulação de pessoas de maior poder aquisitivo para desenvolver iniciativas lucrativas de lazer, muitos moradores sentem que o espaço de lazer foi restringido, pois a quadra da escola de samba passou a abrigar festas caras, a laje do Michael Jackson recebe frequentadores da rua para evento de samba, os preços praticados pelos bares aumentaram, ou seja, há um processo de mercantilização dos espaços sociais que segrega a população favelada dentro da própria comunidade (OST; FLEURY, 2013, p. 13).
Esse processo põe em oposição os comerciantes e outros empreendedores
que conseguem tirar proveito das atividades, segundo as autoras, agora
mercantilizadas, e os antigos usuários dos espaços sociais ou moradores que se
incomodam com o barulho, a sujeira, etc.
Outra oposição de interesses encontrada está na separação entre moradores
novos e antigos. Essa parece ser, em princípio, uma forma de manutenção das
estruturas de poder já estabelecidas. Como no exemplo que demos do Comerciante
1 da Favela 1, que se utiliza dessa diferenciação para desqualificar os argumentos
dos moradores novos em conflitos políticos, alegando que não conhecem a história
da favela, e que são pessoas que se ficar ruim vão embora sem problemas.
Segundo Rocha, essa também é uma forma de associar apenas aspectos positivos
à comunidade, relegando os negativos para os novos moradores desconhecedores
da moral local.
Assim, a noção de “comunidade” era também acionada como mecanismo de manutenção da representação local de favela “tranquila”. Quando apresentavam preocupação sobre a possibilidade do Abacateiro deixar de ser uma favela “em paz” e “diferente das outras”, o risco era freqüentemente localizado nos moradores recém chegados, que seriam portadores de outros valores identificados como negativos. Os novos moradores eram descritos como aqueles que não conheceriam as regras de comportamento locais, não teriam os mesmos laços de amizade, respeito e solidariedade com seus vizinhos, estando apenas preocupados com eles mesmos. As explicações disponíveis para esse comportamento anti-comunitário dos novos moradores vão desde acusações sobre origem e religião (em geral eram identificados como “paraíbas” e/ou “crentes”) à serem portadores de um código de conduta diferente da experimentada no Abacateiro em função de suas vivências anteriores em outras favelas. Ainda que as acusações feitas sejam de dimensões diferentes, misturando origem, identidade étnica e religião, o aspecto questionado era o não pertencimento prévio àquela “comunidade moral” (ROCHA, 2008, p. 4).
222
O trecho reproduzido acima evidencia outras formas de cisões no interior da
favela, como o recorte étnico, de religião ou de região de origem. A separação entre
cariocas e nordestinos foi algo em especial presente no trabalho de campo. Não
vamos mais desenvolver sobre esse assunto, mas uma afirmação chamou a
atenção. Diz o corretor da Imobiliária 2 Favela 1 que vieram muitos nordestinos e
que eles são muito trabalhadores, rebaixando o valor da força de trabalho do
carioca. Esse tipo de relação tende a se acirrar em momentos de taxas mais altas de
desemprego. Segundo a moradora da Indiana citada no capítulo 2, as praças estão
lotadas de peruanos e bolivianos tirando as oportunidades dos brasileiros de
trabalhar no mercado informal. Para ela, deveríamos fechar as portas e “arrumar a
casa” antes de ajudar os outros.
A diversidade de configurações em que os interesses se coligam ou se
contrapõem é enorme. Isso demonstra que além das diversas instituições que atuam
nas favelas, como o Estado, Associação de Moradores, narcotráfico varejista,
milícia, igreja, etc., há uma variedade de conflitos de interesses que podem ser
permanentes, como a oposição entre locadores e locatários ou locais e os de fora ou
conjunturais, como a oposição entre comerciantes e consumidores como no caso da
mercantilização dos espaços sociais.
223
Tabela 4: Quadro síntese de aspectos levantados para as duas favelas.
Fonte: Desenvolvido pelo autor.
224
6 CONCLUSÃO
Podemos considerar que não se pode conferir uma essência própria à favela,
assim como à própria cidade ou à urbanização/favelização. Entendemos como
acertada a busca da compreensão da urbanização, por exemplo, como um
fenômeno próprio do capitalismo e decorrente de sua lógica geral de reprodução
ampliada. Dessa forma, a urbanização é a aparência da dinâmica própria do
capitalismo e do domínio que exerce sobre o metabolismo entre homem e natureza
(ou seja, sobre o trabalho). Ela é meio de acumulação e ao mesmo tempo base para
a acumulação futura (não livre de várias formas de contradição). A favela, como
parte integrante da urbanização, aparece como parte dessa mesma estrutura de
acumulação, mas como resultado de processos específicos. Acreditamos que
Francisco de Oliveira (OLIVEIRA, 2003 [1972]) se aproxima dessa ideia quando
relaciona a favelização como forma de atender à necessidade do capital de
rebaixamento do valor da força de trabalho e forma de acumulação primitiva
necessária para industrialização brasileira. Podemos considerá-la também como
resultado da constante luta pela apropriação do mais-valor entre capitalistas e
proprietários fundiários. As expressões dessas contradições na produção do espaço
urbano variam a depender dos contextos sócio-histórico-geográficos. Sendo assim,
essas contradições podem ou não produzir favelas, assim como, produzem favelas
com os mais diferentes aspectos ao redor do mundo.
Essa diversidade, devido à precariedade da ação homogeneizadora do
Estado, parece determinar uma dificuldade maior de apreensão que a já bastante
heterogênea configuração dos bairros. No entanto, buscamos ao longo da
dissertação, as determinações que influenciassem as favelas de uma forma mais
geral. Nesse sentido, demos uma atenção mais detida para a relação entre as
favelas e o Estado. Há uma diversidade também nessa relação, porém a própria
instituição da favela como uma entidade especial demonstra um modo de ação
pretensamente homogêneo e diverso do restante da cidade. Podemos dizer que a
própria importância a mais conferida à dinâmica, estrutura de poder e agentes
locais, resultante da retirada de uma série de direitos e que tem por consequência
uma heterogeneidade ainda maior, é resultado dessa relação particular. Ao mesmo
tempo, buscamos demonstrar que o Estado, ainda assim, influencia sobremaneira,
ainda que de forma indireta, as normas estabelecidas no território. Há formas de
225
dominação diretas e indiretas que determinam uma tendência (não livre de
contradições) à reprodução das normas do Estado (e as formas de sociabilidade do
capitalismo), mesmo que aparentemente as estruturas de poder locais tenham certa
autonomia.
Ainda no nível das particularidades, buscamos algumas formas de agrupar as
favelas. Por questão de facilidade e de proximidade com as favelas em que
desenvolvemos o trabalho de campo, trabalhamos características que, entendemos,
são de grande importância na cidade do Rio de janeiro, sejam elas: localização,
situação jurídica e topografia. Poderíamos avançar sobre outras características
ainda no Rio de Janeiro, como o domínio por facção criminosa, influência de grupos
religiosos. Se fossemos pensar outros recortes geográficos, uma infinidade de
possibilidades surgiria.
A partir dessa reflexão pudemos, mesmo que de forma ainda inicial, pensar a
relação entre os resultados do trabalho de campo (resultados, a princípio, apenas
associados à singularidade das favelas pesquisadas) e processos mais gerais. Por
exemplo, ainda que não possamos entender os mecanismos de regulação e
produção do espaço aqui apresentados como algo a ser encontrado da mesma
forma em outras favelas, podemos dizer que parte de suas características são
determinadas de forma mais geral pela relação particular entre Estado e favela. Para
deixar o exemplo mais palpável: a questão da manutenção dos contratos com as
empresas concessionárias de distribuição de água e luz no nome dos proprietários e
os diversos problemas causados pelo risco de transferir os contratos para os
inquilinos, deve se apresentar de forma muito semelhante, nas favelas urbanas de
todo o Brasil, ou em qualquer favela onde se tenha conhecimento de processos de
regularização fundiária ou de remoções, onde é procedimento padrão aceitar a conta
de luz ou de água como comprovação de posse estável.
Podemos considerar também a renda que incide sobre toda a terra no
capitalismo e que não poderia ser diferente nas favelas. Defendemos que a mesma
forma de propriedade suportada pelo Estado fora das favelas se desenvolve,
apoiada, em grande medida, nas instituições locais, na favela. No entanto, a feição
dos prédios, ruas e a dinâmica do mercado imobiliário estão em larga medida
relacionadas às formas de regulação, às normas edilícias e ao preço da terra. É
desse modo que a cidade é produzida com diversas feições a depender da época e
do lugar, mesmo que não seja diversa a forma de propriedade. Esses determinantes
226
agem sobre o produto imobiliário. Nós, assim como diversos autores, encontramos
uma forte tendência à produção de prédios de quitinetes nas favelas. Essa tendência
pode ter um fator sócio-histórico importante. O direcionamento das necessidades,
em larga medida imposto pelo próprio mercado imobiliário, para a produção de
moradias com dimensões mínimas, presentes não apenas nas favelas, certamente
influencia na produção dessa tipologia. No entanto, entendemos que a busca pela
potencialização dos ganhos é momento fundamental. Sendo assim, podemos admitir
que algo nas condições em que se desenvolve o mercado imobiliário nas favelas
(trabalhamos aqui algumas hipóteses), estabelece o prédio de quitinetes como
tipologia mais lucrativa. É importante destacar que essa tipologia só é possível se os
produtores imobiliários tiverem acesso aos meios de produção que a permitam. Isso
pode ocorrer pelo avanço de tecnologias construtivas, barateamento dos materiais
de construção e aumento do poder de compra desses produtores. Isso posto, deixa
de ser, em grande medida, uma escolha do produtor imobiliário a tipologia a ser
construída. Isso acontece porque, como apresentamos aqui, a renda fundiária é
determinada pelo uso mais rentável, o que constrange os promotores imobiliários a
produzir considerando isso. Ou seja, a renda da terra, até que surja algum tipo de
inovação, tem um efeito homogeneizador sobre o produto imobiliário.
As tentativas de relacionar características encontradas no trabalho de campo
com processos mais amplos não podem ser encaradas como uma simplificação do
problema e essa dissertação está, em grande medida, empenhada justamente em
complexificar a questão. No entanto, é importante entender qual escala e o nível de
abstração são mais adequados para entendermos os processos em sua
complexidade.
O campo nebuloso do crime talvez seja o aspecto de maior dificuldade para
fazer esse tipo de relação. Por exemplo, em pouco tempo de experiência das UPPs
já sabemos da relativa autonomia dos comandantes de cada unidade, sabemos dos
problemas da diferença do processo de formação no início do projeto e em tempos
recentes, sabemos também como a queda dos recursos atingem todas as unidades.
No entanto, para o crime o terreno é muito mais nebuloso. Para trabalhos como o
nosso, a forma mais segura de encarar os resultados da pesquisa no que se refere à
constituição do poder do narcotráfico varejista, parece ser tratá-lo como um caso
específico, singular, e, dessa forma, nos isentarmos de generalizações imprecisas.
No entanto, essa é também uma forma de simplificação. Ao (por desconhecimento
227
das relações entre varejo e tráfico internacional ou entre comandos locais de
determinada facção, abstrairmos as articulações do narcotráfico para além da escala
local e para além do varejo) deixamos de lado parte importante de suas
determinações e, ao mesmo tempo, perdemos muito da capacidade de
generalização de processos como o domínio sobre a produção imobiliária, taxação
de determinados serviços, etc. Evidente que o crime não é uma exclusividade do
narcotráfico e os outros agentes quando o cometem também buscam escondê-lo,
porém o narcotráfico varejista é o único agente aqui analisado que contém o crime
na sua atividade principal. Isso faz com que os outros agentes busquem escamotear
suas relações com o narcotráfico varejista. Segundo Rocha (2008), esse é o
significado de o Estado requisitar a Associação de Moradores para intermediar as
negociações com o narcotráfico varejista.
Apesar das dificuldades e das diversas lacunas sobre a sua forma de ação,
pudemos identificar no narcotráfico varejista um papel fundamental tanto na
produção como na regulação da construção. Não podemos generalizar essa
característica, pois, além de ser bastante diverso, o poder do tráfico ainda é algo
bastante instável. Sendo assim, sua capacidade de intervenção na produção
imobiliária é conjuntural. No entanto, visto o desconhecimento desse assunto,
entendemos que é necessário, através de pesquisas de campo como essa, abrir um
leque de possibilidades da atividade do narcotráfico varejista no mercado imobiliário.
Por exemplo, identificamos o investimento do narcotráfico na produção imobiliária
através de “laranjas” na Favela 1. Da mesma forma, na Favela 2 encontramos um
esquema de venda de terrenos pelo narcotráfico varejista, contraditoriamente
apoiados em ações do Estado. Lia de Mattos Rocha (2008) identifica na favela do
Abacateiro uma conjuntura bastante parecida, onde, apesar de não haver relatos
das vendas dos terrenos, quem assegura a possibilidade de construir é o
narcotráfico varejista. Maria de Lourdes Zuquim e Miguel Nazareth (2016) relatam na
experiência em Nova Jaguaré a ação direta do narcotráfico varejista na produção
imobiliária. Essas experiências relatadas não podem ser generalizadas
mecanicamente, mas têm um potencial na medida em que apontam as
possibilidades de atuação do narcotráfico varejista no mercado imobiliário.
Considerando certo nível de articulação do narcotráfico varejista é provável que
certas práticas se reproduzam em diversos territórios. Mesmo a relação entre
narcotráfico varejista e milícia tem sido ressaltada na mídia com a sugestão de que o
228
narcotráfico varejista tem utilizado de práticas típicas das milícias e vice-versa.
Na Associação de Moradores, encontramos um importante papel na
regulação do território. No entanto, vimos também como esse papel pode ser
limitado pelo narcotráfico varejista, pelo Estado ou pelos dois simultaneamente, até,
num caso extremo, tornar a associação inoperante. Além desse papel dentro do
território e voltado para dentro do território, a associação de moradores aparece
como um importante agente de conexão entre os agentes locais e supralocais. Isso,
como vimos, desperta o interesse de diversos agentes sobre a associação. Dessa
forma, um aparelhamento tanto por agentes do Estado como pelo narcotráfico
varejista deve ser considerado. O aparelhamento por agentes do estado foi visto na
forma de conchavos e formação de currais eleitorais. No entanto, há formas mais
estruturais, como no caso do “controle negociado” (MACHADO DA SILVA, 2016
[2002]). Vimos também como o Estado se utiliza com frequência da posição
privilegiada da Associação de Moradores para acessar agentes locais ou moradores.
No sentido contrário, podemos observar o mesmo fenômeno. A Associação de
Moradores pode ser dominada pelo tráfico tendo em vista o domínio sobre uma
instituição que possa negociar diretamente com o Estado ou como forma de espoliar
a população local. Vimos como grande parte das taxas cobradas pelo narcotráfico
varejista na Favela 1 só é possível exercendo certo domínio sobre a associação.
Essa é uma prática comumente observada no caso das milícias.
Mesmo considerando que o Estado assume uma atitude diferenciada nas
favelas e o acesso a determinadas instituições seja frequentemente embarreirado,
entendemos que o discurso da ausência do Estado é refutável em todos os níveis. É
impossível falar das favelas sem entender a incidência direta e indireta do Estado. O
discurso da ausência, dessa forma, serve apenas para esconder a aplicação
desigual do poder do Estado no território ou para dar a falsa impressão de que o
Estado constitui espaços plenos de direito, enquanto a ausência do Estado implica
na precariedade. Trabalhamos aqui também como o Estado pode atuar de forma
direta na retirada de direitos. Sendo assim, a relação direta entre atuação do Estado
e garantia de direitos é falsa, apesar de ser justificada pelo fato de a destruição de
instituições de Estado quase sempre significarem formas de acumulação primitiva
(talvez por isso a luta dos trabalhadores passe, em diversos momentos, pela defesa
das instituições do Estado, mesmo sendo uma atitude cara para movimentos que
pensam a destruição do Estado como parte do processo revolucionário). Da mesma
229
forma, o Estado pode atuar retirando direitos como no caso das remoções, das
incursões, etc. e, ao mesmo tempo, o acesso precário, indireto ou mesmo a falta de
acesso dos favelados às instituições de Estado é uma forma de retirada de direitos.
As favelas constituem um patrimônio sócio-histórico que pode ser explorado
politica ou economicamente de diversas maneiras. Acreditamos que essa
apropriação dá sentido à noção de que, na favela, um estrato social se destaca
constituindo o que Machado denominou de “burguesia favelada”. Uma fração desse
estrato, como vimos ao longo da dissertação, explora o mercado imobiliário. Esse
agente é constituído de rentistas que aplicam seus recursos nesse mercado como
forma de reserva de valor, seja construindo na própria laje, subdividindo sua UH ou
seu lote ou mesmo comprando outras UHs. No entanto, também pode se constituir
de pequenos promotores imobiliários, ou seja, um agente especializado na produção
imobiliária. A forma mais recorrente que encontramos para esse tipo de produção foi
a compra de terreno ou casa térrea e construção de prédios de apartamentos ou
quitinetes. O próprio narcotráfico varejista apareceu como um promotor imobiliário
importante na Favela 1. Importante destacar que o prédio de quitinetes foi bastante
enfatizado como a tipologia mais rentável tanto na Favela 1 como na Favela 2. Essa
parece ser uma forma de atingir o principal consumidor de moradias nas favelas,
mas ao mesmo tempo, aparece como forma de extrair uma renda alta mesmo se
comparada às áreas formais.
No entanto, como vimos, não é apenas a “burguesia favelada” que se
apresenta como um estrato social diferenciado. Há diversos estratos sociais que
podem ser identificados e as relações entre o Estado e esses estratos e indivíduos
também são diferenciadas. É dessa forma que temos indivíduos que não
conseguem acessar os técnicos da Light até indivíduos que são acionados pelo
prefeito para a campanha eleitoral. Essa diferenciação também existe no restante da
cidade, porém isso não significa que a relação entre favelados e as instituições de
Estado seja igual a do resto dos cidadãos. Observamos, inclusive, que parte do
acesso privilegiado de alguns favelados está apoiado, em grande medida, na
barreira entre instituições de Estado e favelados.
Essa é uma questão sempre delicada nos estudos sobre favelas. O
mapeamento das barreiras e das porosidades entre favela e não-favela têm
determinantes diversos que muitas vezes são reduzidos à questão territorial, à
presença do estado, à questão racial, etc. No entanto, uma conjunção de fatores
230
constituem essas barreiras. Dessa forma, é comum, a depender dos objetivos dos
estudos, excedermos na descrição das barreiras para mostrarmos a injustiça do
sistema capitalista, as desigualdades sociais, etc. ou das porosidades, querendo
demonstrar que a favela é um lugar da cidade como outro qualquer. Buscamos
nesse estudo entender as barreiras e porosidades a partir das observações de
campo e as trabalhamos caso a caso, o que não elimina o risco de cometermos os
mesmos exageros, mas diminui as chances de cairmos em julgamentos morais e
precipitados.
É dessa forma que esse estudo teve como pretensão a complexificação das
relações que constituem o mercado imobiliário nas favelas. Entendemos que a
observação das formas de produção imobiliária, da constituição do poder local, as
especificidades da instituição da propriedade fundiária, o comportamento das
rendas, etc. são de suma importância para a apreensão da dinâmica imobiliária. A
dinâmica e diversidade do objeto de pesquisa exigem análises mais detidas e
sistemáticas, mas esperamos ter contribuído para o entendimento do mercado
imobiliário nas favelas como algo complexo, inflado de determinações na escala
local, mas também parte integrante da urbanização e da estruturação da sociedade
capitalista em sua totalidade.
231
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