UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – DCH I
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS – PPGEL
A PROTOFICÇÃO CIENTÍFICA DE HUMBERTO DE CAMPOS
MARCOS ANTONIO MAIA VILELA
SALVADOR – BA2009
MARCOS ANTONIO MAIA VILELA
A PROTOFICÇÃO CIENTÍFICA DE HUMBERTO DE CAMPOS
Orientador: Prof. Dr. Sílvio Roberto dos Santos Oliveira
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens (PPGEL) do Departamento de Ciências Humanas (DCH – I) da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Estudo de Linguagens.
SALVADOR – BA2009
FICHA CATALOGRÁFICAElaboração: Biblioteca Central da UNEB
Bibliotecária: Helena Andrade Pitangueiras– CRB: 5/536
Vilela, Marcos Antonio Maia. A protoficção cientifica de Humberto de Campos/ Marcos Antonio Maia Vilela – Salvador, 2009. 139 f. Orientador: Prof. Dr. Silvio Roberto dos Santos Oliveira Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas. Campus I. Contém referências e anexos.
1. Campos, Humberto de – 1886 – 1934 – crítica e interpretação. 2. Ficção cientifica brasileira. I. Oliveira, Silvio Roberto dos Santos. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas. CDD: 809
Às crianças nordestinas que, à noite, se sentam no batente de
suas casas, ignorando o desencanto, as promessas perdidas,
os desalentos, e olham para um céu estrelado com o desejo de
um dia chegarem à Lua.
AGRADECIMENTOS
Considero as personagens desta seção como partes da pedra fundamental
que sustentou o desenvolvimento de todo o trabalho que aqui se encontra
encadernado. Afinal, em dois anos, obtive contato com muitas pessoas, perdi o
contato com outras; mas a lembrança da existência de todas continuará em minha
memória e ficará carinhosamente registrada nestas folhas de papel.
Agradeço a Deus, Mestre compassivo, por sempre acompanhar as minhas
jornadas e viagens, cumprindo a promessa de estar sempre presente independente
das circunstâncias e peripécias deste pupilo sempre desatento.
Agradeço aos meus pais e a toda minha família pela paciência e carinho.
Meu reconhecimento e admiração ao amigo e Prof. Sílvio Oliveira, por me
ajudar a entender e a “desentender” uma série de teorias e comportamentos,
fazendo com que, através de seus gestos, eu não me esquecesse de trilhar o
caminho da serenidade e solidariedade.
À FAPESB (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia) pela bolsa
de mestrado concedida em meados de 2008, com a qual pude prosseguir a árdua
jornada iniciada em 2007.
Aos membros da banca, Profa. Dra. Maria do Socorro Silva Carvalho e Prof.
Dr. Roberto Henrique Seidel, pela leitura interessada e atenciosa do texto na
qualificação e pelas preciosas sugestões que tentei seguir na finalização do
trabalho.
Ao escritor Roberto de Sousa Causo, pelo incentivo, envio de materiais,
leitura e comentários sobre meus textos.
Aos colegas mestrandos e professores do PPGEL, pela oportunidade de
compartilhar vários momentos de alegria, descontração e discussões teóricas
importantes.
A Cláudia Norete (GG) e a Manoel Barreto (Mané), confrades da “Sociedade
dos Anéis”, com os quais compartilhei as conquistas, alegrias e resenhas escritas
nos “Livros de Atas dos Anafóricos Acadêmicos Alienígenas”.
A Camila e Danilo, funcionários do PPGEL, pela gentileza e atenção com que
sempre dirimiam as dúvidas sobre processos e prazos.
A Profa. Márcia Rios da Silva, que com seu olhar e dedicação ao ensino me
fascinou, desde a graduação, com a Teoria da Literatura e as definições de imagem
poética.
Às amigas Sueli Santana e Joise Rêgo, por terem me acolhido na cidade de
Salvador de forma admirável, me emprestando um lar para repousar, trabalhar e
criar feriados. Além disso, agradeço por terem me presenteado com a alegria da
“minha preta” Raianna, sobrinha que me deixava sem palavras para a pergunta: “- e
agora, a gente vai fazer o quê?”.
Um agradecimento carinhoso a Telma Barbosa, amiga incomparável, sempre
presente e pronta para festejar a vida.
Ao meu irmão Rafael Garrido, pela paciência em ouvir e pelos sábios
ensinamentos que fui recolhendo de suas palavras trovejadas e atitudes sempre
marcantes.
Ao meu irmão Paulo Vilela, pela solidariedade e paciência com este irmão
mais velho e “sem juízo”, que às vezes enviava e-mails contendo histórias um pouco
absurdas.
A Camila Oliveira, “menina bordada de flor”, por ter colorido meus dias nos
momentos finais da produção desta dissertação.
Às inesquecíveis amigas Elielza Amorim e Vandelma Santos, por permitirem
que eu compartilhasse dos temores, sustos e alegrias de uma vida “vertiginosa”, que
sempre rendia muitas interjeições.
À grande amiga Seli de Jesus, minha “guru espiritual”, pelos momentos de
conversa ao redor da “mesa branca” e inúmeros exemplos de firmeza, coragem,
determinação e muita alegria.
A Priscila, mãe de Vinícius, pela presença nos momentos alegres e tristes de
minha vida, compartilhando uma amizade eterna.
Aos colegas e amigos do Instituto Cultural Steve Biko, onde pude me
aproximar mais fortemente de minhas raízes étnicas, contribuindo, um pouco, com
aquilo que aprendi em breves andanças.
A todas as pessoas que permanecem em minha vida, ou que um dia
passaram por ela, e que juntas compõem o eu que hoje sou.
As fantasias desse feitio, para serem duradouras, devem ter, no entanto, outra finalidade, que não seja apenas recrear o espírito. [...] É essa crítica ao mundo real, através de um mundo imaginado, que dá eternidade às criações absurdas. (grifo nosso)
(CAMPOS, Humberto de. Crítica 3ª Série. São Paulo: W. M. Jackson, 1960, p.34)
RESUMO
Os contos de Humberto de Campos (1886-1934), escritos no início do século XX, contribuem para a análise das construções ideológicas e culturais que circulavam no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, daquela época. Ao recorrer a construções ficcionais situadas entre a fantasia da especulação do futuro e a realidade do cotidiano, Humberto de Campos construiu um tipo de texto que, considerando as análises teóricas de Bráulio Tavares e Roberto Sousa Causo, se definiu, neste estudo, como “protoficção científica”: uma escrita que garante possibilidades de discussão sobre a realidade brasileira a partir de representações do imaginário de modernidade presentes nos elementos que caracterizam um texto de ficção científica. Com base nessas reflexões, este trabalho analisou as imagens de modernização, descrições do avanço tecnológico e contradições da cultura brasileira em textos de Humberto de Campos. Os contos utilizados nesta pesquisa foram: “Os sábios selenitas” e “Entre o que foi e o que virá”, publicados após a morte do autor, em 1935, no livro “Lagartas e libélulas”; e “Os olhos que comiam carne”, publicado em 1932 na coletânea “O monstro e outros contos”.
Palavras-chave: Humberto de Campos. Ficção científica. Modernização. Literatura brasileira.
ABSTRACT
The tales of Humberto de Campos (1886-1934), written in the early twentieth century, contribute to the analysis of ideological and cultural constructions that circulated in Brazil, especially in Rio de Janeiro, that time. By using a fictional buildings located between the fantasy of speculation of the future and the reality of daily life, Humberto de Campos built a kind of text which, from the theoretical analysis by Roberto de Sousa Causo and Bráulio Tavares, is defined, in this study, as "scientific protofiction": a text that shows some possibilities for discussion on the Brazilian from the imaginary representations presented in the elements of modernity that characterize a text of science fiction. Based on these observations, this work will examined the images of modernization, technological advancement and descriptions of the contradictions of Brazilian culture in the texts by Humberto de Campos. The tales were: Os sábios selenitas and Entre o que foi e o que virá published after the author's death, in 1935, in the book Lagartas e libélulas and Os olhos que comiam carne, published in 1932 in the collection O monstro e outros contos.
Key-words: Humberto de Campos. Science fiction. Modernization. Brazilian literature.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................11
1 FANTASIAS NO CARNAVAL DE ESCRITAS........................................................23
1.1 Presenças na literatura brasileira.............................................................23
1.2 As multifaces de Humberto de Campos...................................................31
1.3 Definições e pré-histórias da ficção científica no Brasil............................40
2 HUMBERTO DE CAMPOS: TRAJETÓRIAS E NOVOS MUNDOS........................49
2.1 Fragmentos de azulejos............................................................................49
2.2 Trajetórias e movimentos de translação...................................................52
2.3 Novos mundos: viagens e fantasias.........................................................58
3 IMAGENS DO FUTURO: VÁRIAS METÁFORAS...................................................66
3.1 A ficção científica como metáfora do contraste........................................66
3.2 Imagens em trânsito.................................................................................73
3.3 Pamórfio, Babel e as torres modernas......................................................77
3.3.1 O caos do futuro: Pamórfio..........................................................78
3.3.2 O fim da civilização: A Torre de Babel.........................................81
3.4 Em busca de retornos no processo de mutação.......................................84
3.5 Contrastes em desenvolvimento...............................................................89
4 A PROTOFICÇÃO CIENTÍFICA E A PROBLEMATIZAÇÃO DA SOCIEDADE......96
4.1 A cidade.....................................................................................................96
4.2 A civilização.............................................................................................105
4.3 O homem.................................................................................................115
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................123
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................................125
ANEXOS...................................................................................................................130
Obras de Humberto de Campos....................................................................131
Os sábios selenitas........................................................................................133
Entre o que foi e o que virá............................................................................137
Os olhos que comiam carne..........................................................................140
INTRODUÇÃO
O texto que agora entregamos à leitura é devedor de um trabalho de pesquisa
que possuía reflexões teóricas e análises inicialmente desenvolvidas no projeto de
Iniciação Científica (IC), no curso de Licenciatura em Letras da Universidade do
Estado da Bahia, vinculado ao Departamento de Educação, campus de Alagoinhas.
Com duração de um ano (2005-2006), o subprojeto intitulado “O científico e a
invenção na Literatura Brasileira” fazia parte do projeto global: “Outras Literaturas:
Linguagens marginadas e re-apropriações culturais”, ambos orientados pelo Prof.
Dr. Sílvio Roberto dos Santos Oliveira. As atividades desenvolvidas durante a
vigência desse subprojeto contaram com o financiamento de uma bolsa de IC da
Fundação de Amparo à Pesquisa da Bahia (FAPESB), no mesmo período (2005 –
2006). Em 2007, aprovado na seleção do Programa de Pós-Graduação em Estudo
de Linguagens, o projeto de pesquisa “A protoficção científica de Humberto de
Campos” compõe o projeto “TEAFRO: culturas minoritárias na literatura e outras
linguagens”, liderado também pelo Prof. Dr. Sílvio Roberto dos Santos Oliveira. Em
2008, o projeto passou a contar com o auxílio financeiro (bolsa de mestrado) da
FAPESB.
No subprojeto de Iniciação Científica “O científico e a invenção na literatura
brasileira”, pudemos investigar as relações entre a ciência e as representações
desta enquanto temática dos textos literários. Com base em leituras e debates no
interior do projeto, começamos a perceber a presença de uma literatura de fantasia
e ficção científica entre os escritores brasileiros desde fins do século XIX. As
considerações finais surgidas na pesquisa geraram novas inquietações que foram se
robustecendo na continuidade das análises, configurando o anteprojeto de pesquisa
apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens e a
consequente dissertação.
Durante nossas pesquisas em textos críticos sobre a ficção científica no
Brasil, deparamo-nos com uma série de escritores pertencentes ao cânone que se
experimentaram no gênero de fantasia, mas que por algum motivo se encontravam
11
distantes das discussões acadêmicas. Um destes escritores era Humberto de
Campos, objeto do presente estudo. O relatório final da iniciação científica negou a
impossibilidade de o Brasil possuir textos de fantasia e ficção científica1, pois, de
acordo com os textos analisados, esse tipo de escrita já existia em nossa literatura,
mesmo que a representação de ciência, lá encontrada, fosse traduzida através de
uma abordagem fantástica (ou fantasiosa).
Segundo o relatório final de IC, a idéia de ficção científica está registrada na
literatura brasileira mesmo que a aparição e presença de tecnologias e
equipamentos não obtivessem tratamento semelhante à orientação da época, tal
como fizeram Jules Verne e H. G. Wells na Europa. Ao tomar como pressupostos
iniciais as informações de Bráulio Tavares2 no artigo A Origem da Ficção Científica
no Brasil, passamos a buscar os textos de Humberto de Campos que foram citados
como precursores da escrita de ficção científica no país. A partir desse momento,
verificamos que os escritores, nas primeiras décadas do século XX, demonstraram
interesse pelas idéias daquilo que mais tarde seria definido especificamente como
gênero de ficção científica.
O artigo de Bráulio Tavares deu-nos um grande número de pistas sobre as
temáticas abordadas por Humberto de Campos e nos levou ao contato com a
compilação das Obras Completas do escritor. Encontramos nas Obras não somente
os textos citados por Tavares, mas uma série de outros que explicitam em sua
temática a constante problematização do futuro, a relação do homem com a ciência
e as aparições e contradições de um tipo de sociedade mais civilizada que outra.
Essa descoberta, aliada aos resultados do subprojeto de IC, propiciou a construção
do projeto de pesquisa para o mestrado no qual nos propúnhamos a desenvolver as
relações entre texto e sociedade por meio das imagens literárias e da ideologia de
modernização que circulou no Brasil no início do século XX; relações marcadas pela
escrita de Humberto de Campos.
A escolha dos textos críticos aqui apresentados, notadamente aqueles que
discutem a presença da ficção científica no Brasil, obedece a um pressuposto que
para nós é bastante claro. Embora não sejam reconhecidos pela Academia ou pela
disciplina dos estudos literários, esses escritores possuem um contato muito próximo 1 Apoiado, sobretudo, nos textos teóricos de Bráulio Tavares (1993), Roberto Causo (2003) e nos textos literários de Aluísio Azevedo (Demônios, 1895), Afonso Schimdt (Zanzalás, 1938) e Humberto de Campos (Os olhos que comiam carne, 1932).2 TAVARES, Bráulio. As Origens da Ficção Científica no Brasil. DO Leitura, São Paulo, novembro 1993.
12
com a produção de ficção científica em nosso país, teorizando sobre o gênero,
escrevendo textos ficcionais e organizando coletâneas de textos de diversos
autores. Bráulio Tavares e Roberto Causo, por exemplo, detêm uma vasta
experiência consolidada na publicação de textos, possuindo uma (in)fluência no
debate das obras entre os leitores e fãs da ficção científica no Brasil. Esses
escritores acompanham a história do gênero no país e conhecem as discussões
atuais da ficção científica em nossa literatura, permitindo que seus textos também
sejam citados em outras produções acadêmicas3. As análises dos momentos da
literatura de ficção científica no Brasil e os desdobramentos das proposições críticas
apresentadas por estes escritores permitem-nos mantê-los presentes em nosso
discurso.
Diante das diferentes abordagens sobre a ficção científica4, percebemos que
o termo ainda permanece sem um lugar teórico que consiga abarcar todas as suas
especificidades. Escritores, a exemplo de Tvetzan Todorov5, preferem localizar o
termo como um subgênero da literatura fantástica ao relacioná-lo com as definições
e características do Fantástico. Roberto Causo6 prefere utilizar o termo “ficção
especulativa” ao invés de ficção científica por compreender que desse modo constrói
uma definição de texto que apresenta expectativas para o futuro ao mesmo tempo
em que mantêm conexões com narrativas “míticas, satíricas, utópicas,
romanescas”7. De acordo com Bráulio Tavares, a opção por “ficção especulativa” foi
adotada anteriormente pelo escritor americano Robert Heinlen8 na intenção de
classificar um texto que apresentasse hipóteses fictícias sobre o futuro e nesse
sentido pudesse afastar a necessidade de relacionar a literatura de ficção científica
com a ciência vigente, “real”.
A ficção especulativa, segundo Roberto Causo, apresenta uma criação
hipotética de realidades, através de soluções tecnológicas e descrições de 3 Podemos exemplificar a utilização das discussões destes escritores nas dissertações de mestrado de Suzane Lima Costa (COSTA, Suzane Lima. Ficção Científica no Brasil: configurações de uma arte ciber-barroca. Salvador, 2006. 180f. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal da Bahia), Fabiana da Câmara Gonçalves Pereira (PEREIRA, Fabiana da Câmara Gonçalves. Fantástica Margem – O Cânone e a Ficção Científica Brasileira. Rio de Janeiro, 2005. 156f. Dissertação (Mestrado), Pontíficia Universidade Católica do Rio de Janeiro)4 Encontraremos estudos de ficção científica voltados às produções cinematográficas, quadrinhos, música, produtos publicitários, artes visuais, metodologia do ensino das ciências e, por fim, literatura.5 TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.6 CAUSO, Roberto de Sousa. Ficção científica, fantasia e horror no Brasil: 1875 a 1950. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.7 Idem, p.45.8 TAVARES. Bráulio. O que é Ficção Científica. São Paulo: Brasiliense, 1992. (Coleção Primeiros Passos)
13
ambientes e habitantes em um universo paralelo, que talvez pudessem vigorar no
futuro da humanidade. Com base nessas definições, percebemos que uma das
possibilidades de compreender o foco temático da ficção científica está na
abordagem e realce dos processos de modernização e suas contradições no interior
da sociedade. Contradições verificadas através do contato da humanidade com os
avanços tecnológicos e científicos. Ainda de acordo com Causo, o caráter
“especulativo” seria uma forma de abarcar e ampliar as relações entre os textos de
ficção científica com a literatura de horror, policial e mitológica.
Bráulio Tavares também nos diz que os textos de ficção científica não se
preocupam em apresentar enredos nos quais a ciência tenha absoluta
exclusividade. Esses textos apresentam uma versão de ciência fundamentada em
uma “fantasia” sem limites e responsabilidades com a ciência “real”9. O texto é
composto por uma série de elementos e cenários que fazem parte do cabedal
teórico da ciência, mas tampouco a narrativa ou o autor buscam qualquer explicação
ou relação coerente e consistente com a ciência conhecida e aclamada na realidade
empírica. Por exemplo, a narrativa de Herbert George Wells não se preocupa em
relacionar empiricamente a ciência da época com a possibilidade dos paradoxos
temporais, manipulações genéticas, criação de materiais e compostos químicos. No
entanto, contatando os textos, percebemos a presença da figura do cientista que,
através de explicações bem particulares e usando um linguajar típico da ciência,
demonstra e comprova no próprio enredo quais são os produtos utilizados nos
experimentos, o funcionamento de máquinas e equipamentos.
Na percepção desse pequeno distanciamento entre fantasia e realidade,
devemos observar o vínculo da ficção científica com o elemento fantástico tal como
fora definido por Tvetzan Todorov10. Segundo o teórico, na estrutura do texto literário
podemos verificar representações do desconhecido que permitem a hesitação do
leitor frente à narrativa, causando assim uma expectativa acerca do
desenvolvimento do enredo. Ao analisarmos a ficção científica, entendemos que o
futuro desconhecido das civilizações inspiraria nos leitores o medo do porvir. Os
escritores utilizam esse mote ao descreverem outra realidade (futura ou paralela)
com elementos próprios do ambiente de modernização e “evolução” da ciência na
humanidade. Essa descrição causa uma hesitação nos leitores quanto à realidade e
9 TAVARES. Bráulio. O que é Ficção Científica. São Paulo: Brasiliense, 1992. (Coleção Primeiros Passos).10 TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.
14
às consequentes hipóteses que estão associadas a ela naquilo que está sendo
narrado. Queremos dizer com isso que, a partir do movimento existente no interior
da própria sociedade, o escritor encontra e constrói algumas de suas inquietações,
transmitindo-as aos seus leitores.
Para Todorov, o sentimento do fantástico causado pela hesitação dissolveria-
se com a finalização da narrativa e os esclarecimentos imprescindíveis à
compreensão dos eventos. O leitor relacionaria o esclarecimento dos fatos
vivenciados em sua própria realidade com a realidade descrita e os personagens do
texto, desfazendo a dúvida e admitindo hipóteses. Na ficção científica, a realidade
descrita aproxima-se em alguns aspectos da realidade do leitor, mas não permite a
finalização completa da expectativa do desconhecido. Howard Phillips Lovecraft11
apresenta o medo do desconhecido, proporcionado ao leitor através da escrita,
como um dos elementos fundamentais da literatura fantástica. Segundo o autor, a
presença do medo seria verificada intrinsecamente na própria narrativa e no modo
como o narrador apresenta os cenários, acontecimentos intrigantes e situações “fora
do comum”. O medo existe, para o leitor, quando se é possível enxergar na narrativa
a probabilidade de que os fatos absurdos e sobrenaturais aconteçam na realidade. A
dúvida no texto permite criar uma reflexão acerca do contato entre os espaços e
realidades experimentadas pelo leitor, em seu próprio cotidiano, frente à narrativa
ficcional.
A aproximação entre a literatura brasileira e a escrita fantástica pode ser
percebida em alguns momentos do romantismo, desde meados do século XIX. Lá,
veremos alguns exemplos de textos fantásticos que não estiveram presos a uma
rigidez conceitual quanto ao gênero, tampouco constituíram uma “escola literária”
brasileira específica. Na Europa, a presença de uma escrita que se valia de termos
cientificistas e temas no âmbito da ciência, como nos textos de Jules Verne (França)
e H.G. Wells (Inglaterra), era discutida enquanto os textos circulavam no Brasil com
um número razoável de leitores. Acreditamos que esses textos trouxeram uma série
de contribuições no diálogo com a literatura brasileira, especificamente com os
textos de Humberto de Campos e o imaginário de modernidade em circulação no
Brasil.
11 LOVECRAFT. Howard Philips. O horror sobrenatural na literatura. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987.
15
O discurso pretensamente cientificista que essas produções nacionais
apresentava dedicava-se à exposição de uma realidade sócio-econômica
desenvolvida e altamente civilizada. Em seus textos, alguns escritores e intelectuais
brasileiros12 aliaram a ideologia da modernização e a “necessidade” de a sociedade
adentrar no “universo” dos avanços da ciência junto aos países mais desenvolvidos.
Desta maneira, buscaram referenciais culturais e científicos no exterior,
principalmente na França, para adequar a nova leitura que se pretendia associar à
República recém-instituída. As disposições literárias constituídas ao longo deste
período resultariam em um modo de pensar o desenvolvimento científico e
tecnológico do Brasil que pode ser verificado na leitura e interpretação do real feita
por alguns escritores no início do século XX, dentre eles Humberto de Campos.
Se observarmos os parâmetros utilizados pelo cânone para identificar
“esteticamente” os textos de Humberto de Campos com o desenvolvimento científico
e tecnológico do país, teremos alguns problemas, pois não conseguiremos associar
diretamente a obra de Campos como pertencente a este ou aquele “movimento
literário” específico. Primeiramente, porque o escritor publicou mais de 30 livros –
entre contos, crônicas, poesias, textos memorialistas, biografias e críticas literárias,
– implicando uma produção multifacetada quanto à temática e à forma. Em segundo
lugar, parece-nos que Humberto de Campos, talvez por exercer a função de
jornalista, não estivesse engajado na constituição de um programa literário
específico e não se preocupasse em formar um coro com seus pares da Literatura
em prol da validação de algum tipo de “estética”. Sua escrita, essencialmente
recolhida dos jornais, talvez seja um dos elementos que o afastaram dos
paradigmas do cânone literário.
Vale notar que o foco do nosso trabalho está situado em um reduzido número
dos textos, frente ao universo geral da obra do escritor. Isso impede-nos
estabelecer ou reconhecer um rótulo geral para essa escrita de acordo com as
terminologias definidas pelo cânone. A escolha dos textos que compõem o nosso
trabalho permite apenas desenvolver a compreensão de um aspecto da escrita de
Campos, o que não invalida outras análises futuras acerca de sua obra completa.
Por isso, não podemos rotular toda a obra de Humberto de Campos como
“protoficção científica”, ou classificá-lo como um escritor de ficção científica, mas
12 Nicolau Sevcenko apresenta Olavo Bilac e vários cronistas e jornalistas do início do séc. XX como fomentadores dos ideais de modernização.
16
podemos perceber algumas das facetas existentes no âmbito geral de sua obra.
Acreditamos que, ao revisitar as produções dele, ainda distantes das discussões
acadêmicas, contribuímos para o enriquecimento dos estudos sobre a literatura
brasileira do início do século em questão.
Humberto de Campos publicou a maioria de seus textos nos jornais de grande
circulação do Rio de Janeiro. Mesmo com uma população considerável de
analfabetos no início do século XX, ele despertava constantemente o interesse de
novos leitores, alcançando uma parte cada vez maior da população letrada13. A
linguagem dos textos, o fato de serem publicados em periódicos e a ampla aceitação
do público leitor fazem-nos pensar na possibilidade de tratarmos com uma espécie
de literatura voltada para as massas, que atendia à rapidez do consumo de
informações e lazer atrelado aos objetivos financeiros do escritor, que se mantinha
com essas publicações.
A partir de algumas crônicas escritas por Campos, sabemos que os leitores
sempre se comunicavam com ele através de cartas enviadas aos jornais, nas quais
se pediam conselhos e discutiam os textos e comentários publicados nos dias
anteriores14. Essa atitude fornecia ao escritor alguns temas a serem tratados em
seus textos posteriores e assim alimentava a relação entre o produtor e o
consumidor dos textos, além de trazer e permitir leituras da realidade com base em
outras perspectivas.
A linguagem utilizada nos textos nos faz perceber diretamente a opção do
escritor por uma escrita mais acessível ao grande público, apresentando temáticas
bem próximas às discussões do cotidiano. Ao lidar dia-a-dia com as mesmas
inquietações dos leitores, Humberto de Campos parece se apropriar de um
arcabouço imaginário que traduz algum tipo de anseio, crítica ou comprovação dos
fatos experimentados na realidade. Dessa forma, percebemos em Campos uma
escrita na qual se deixam escapar ironias, imagens e representações da
13 De acordo com Múcio Leão e Alexandre Caroli Rocha, muitos dos textos de Humberto de Campos publicados nos jornais foram recolhidos e publicados em coletâneas que alcançaram um grande número na tiragem e edições. Os textos foram publicados, inclusive, em outros estados brasileiros,devido ao grande interesse pelos escritos de Campos.14 Nas Obras Completas, encontramos crônicas em que Humberto de Campos responde a alguns de seus leitores ou menciona-os através de comentários e referências, além de agradecê-los por algum tipo de recomendação, sugestão ou crítica. Podemos citar como exemplos as crônicas Aos amigos da Baía, Resposta a uma carta, Bálsamo para um coração, Carta a Maria Cerqueira, Carta a um noivo, Carta a um viúvo, Carta a um cidadão de dez anos, Carta ao Dr. Juiz de menores, Carta a duas Marias, entre outros.
17
contemporaneidade do início do século XX, do mesmo modo que em outros
escritores inseridos pelo cânone.
Tais escritores mantinham-se em sintonia com os paradigmas de legitimação
do processo desencadeado pela elite econômica, política e cultural em direção ao
avanço industrial e à consolidação de um pensamento modernizante no Brasil
republicano. A intenção inicial de cronistas e jornalistas da época localizava-se no
desligamento total dos paradigmas coloniais15 sem romper com os modelos advindos
da “Metrópole”, através do contínuo processo de modernização vigente na Europa. A
elite buscava decalcar uma imagem de civilização culta apoiada nos moldes
europeus, imprimindo a necessidade de se implementar na cidade do Rio de Janeiro
uma série de projetos que tinham como objetivo favorecer o desenvolvimento
tecnológico e industrial do país. Consequentemente, o objetivo era o de instituir no
imaginário nacional um status de civilização “avançada e próspera”.
Essas conjecturas acerca dos aspectos de uma vida social “mais civilizada” e
de indivíduos comprometidos com a idéia de progresso habilitavam os escritores e
críticos a algumas leituras e interpretações da realidade um pouco mais fantasiosas
que outras, embora todas estivessem atreladas a uma conjuntura real: seja social,
econômica ou cultural. Os textos literários, ao aproveitarem os conhecimentos
divulgados da ciência, voltavam-se para uma descrição subjetiva pautada na
proliferação de imagens localizadas numa sociedade em busca da “evolução” e da
“civilidade”. Com base nestes anseios, podemos encontrar na própria literatura
algumas hipóteses sobre o desenvolvimento de tecnologias para a sociedade, que
tentavam deslocar a visão dos sujeitos para o futuro, sem que eles se distanciassem
do presente.
As idealizações acerca do futuro, orientadas pelo desenvolvimento científico,
permitiam a criação de narrativas literárias a partir de imagens e objetos
tecnológicos que chegavam abruptamente ao conhecimento da população
brasileira16. O conhecimento sobre o futuro no interior do enredo literário poderia ser
apresentado sob o olhar crítico do narrador ou em uma atitude insistente de
aclamação do desenvolvimento sócio-econômico que a modernização tencionava
trazer à sociedade brasileira. Mesmo situados em uma ambientação futurística, os
15 SEVCENKO, Nicolau. A literatura como missão: Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.16 Idem, O Prelúdio republicano: astúcias da ordem e ilusões do progresso. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. (História da vida privada no Brasil)
18
textos utilizavam como temática e provocação os males sociais comuns àquela
época, – permitindo, em uma leitura contemporânea, a percepção de constantes
interrogações ideológico-culturais, pautadas em um “estilo” científico e civilizado de
vida e que afligiam vários setores da vida na sociedade. Essas narrativas traziam –
ao destacar o método “científico” de compreensão do mundo como mola propulsora
para o avanço da civilização – uma crítica irônica, até mesmo humorística, a seu
elogio.
Os textos de Humberto de Campos propiciam uma análise dessas
construções ideológicas e culturais que circulavam no Brasil, especificamente no Rio
de Janeiro daquela época. Os textos circulavam nos jornais paralelamente aos
discursos que habitavam no imaginário do público leitor. A escrita de Campos
recorre a algumas construções ficcionais situadas entre a presença fantasiosa das
“descobertas” da ciência e o desejo de aproximá-las da realidade. A partir das
leituras do momento histórico e literário, encontraremos no texto de Humberto de
Campos uma escrita que preferimos nomear, orientados por Bráulio Tavares, como
“protoficção científica”17. Uma escrita que, além de garantir mais uma possibilidade
de discutir a realidade brasileira, o faz a partir das representações de modernidade
presentes em elementos característicos da ficção científica, sem se constituir em
uma escrita “genuinamente” definida como ficção científica.
A partir disto, nossa intenção neste trabalho é analisar as imagens de
modernização, descrição do avanço tecnológico e críticas contidas nos textos de
Campos. Imagens que dialogam em contradições e utopias com o universo social e
cultural da modernidade brasileira. Esses textos localizam-se diante da euforia do
processo e, ao mesmo tempo, esboçam uma crítica ao demasiado desejo de
modernização industrial e a seus desdobramentos na vida social, sobretudo
referentes aos aspectos culturais daquilo que se convencionou chamar de
civilização. É o conceito de civilização e modernidade que procuramos criticar
através dos textos de Humberto de Campos. Para tanto, focalizamos nesta pesquisa
os textos: Entre o que foi e o que virá e Os sábios selenitas, publicados após a
morte do autor, em 1935, no livro Lagartas e libélulas; e Os olhos que comiam carne,
publicado em 1932 na coletânea O monstro e outros contos.
17 TAVARES, Bráulio. A Origem da Ficção Científica no Brasil. DO Leitura, São Paulo, novembro 1993.
19
A partir dessas reflexões, esquematizamos esta dissertação em quatro
capítulos, nos quais analisaremos a escrita de Humberto de Campos, estabelecendo
uma relação dos textos escolhidos com a definição de protoficção científica proposta
por Bráulio Tavares e Roberto Causo, além de analisar as imagens de modernidade
e a formação de uma crítica sobre o processo.
No primeiro capítulo, com intuito de localizar a obra em destaque de
Humberto de Campos, destacaremos a presença de textos que utilizaram temas e
formas antecipatórias das principais características da ficção científica na literatura
brasileira. Analisaremos também o termo “protoficção científica” de Bráulio Tavares
e Roberto Causo, o qual preferimos utilizar ao situarmos os textos de Campos, que
aqui serão analisados em diálogo com o tipo de escrita ligeira e palatável ao grande
público.
No segundo capítulo, apresentaremos algumas relações entre os textos de
Campos e as idéias de ficção científica pautadas nos modelos existentes àquela
época. Apontaremos uma breve biografia de Campos, construída com base em
escritos autobiográficos, relacionando-os a alguns textos publicados em jornais e
outros livros. Nesses textos obteremos, a partir de alguns elementos, a
compreensão de um escritor que estava ciente das imagens fantásticas que fizeram
parte do seu mundo particular de leituras.
No terceiro capítulo, apresentaremos uma análise do texto de ficção científica
como representação e contraste das realidades existentes no presente e
aguardadas para o futuro. Tomaremos como ponto inicial as imagens contidas em
seu enredo sobre a construção de uma sociedade moderna, ávida pelo
desenvolvimento e aparelhamento tecnológico que a sustentariam no futuro.
Apontaremos as concepções de Humberto de Campos sobre o futuro apoiados nas
personagens de seus textos e em símbolos existentes em outras narrativas.
Discutiremos, também, a imagem enquanto representação simbólica do que foi
vivenciado ou se vivencia, compreendendo que ela é portadora de uma ideologia
que nos oferece uma definição e comentário favorável ou crítico da realidade em
que foi construída. Ao partimos desse princípio, relacionaremos as imagens e as
concepções ideológicas que proliferavam no Brasil às suas representações de
desenvolvimento.
No quarto capítulo, passaremos a analisar os textos: Entre o que foi e o que
virá, Os sábios selenitas e Os olhos que comiam carne mediante a apresentação e
20
reflexão teórica das imagens vigentes naquela realidade e explicitadas nos textos
que se relacionam com a temática principal do nosso estudo. Nesse capítulo,
contataremos outras produções que, de alguma forma, tangenciam a temática em
foco, como textos de Jules Verne, Voltaire, H. G. Wells, dentre outros. Utilizaremos
elementos desses textos que julgamos importantes na relação com os textos de
Campos frente à temática e ao modo como o escritor se comportou diante da
realidade que se construía no seu próprio texto. Teceremos algumas reflexões sobre
as construções das imagens e contradições no início do século XX e suas relações
com a contemporaneidade. Problematizaremos o uso da escrita de ficção científica
no que diz respeito à configuração criada pelo escritor para a idéia de civilização. Os
entendimentos de um país moderno e avançado serão discutidos segundo o ponto
de vista da criação de algumas imagens de futuro e civilização criticadas por
Campos e bastante atuais na discussão da contemporaneidade.
21
22
23
1 FANTASIAS NO CARNAVAL DE ESCRITAS
1.1 Presenças na literatura brasileira
No artigo escrito por Bráulio Tavares1 encontramos referências sobre vários
escritores brasileiros que mantiveram algumas conexões e interesses com temas da
ficção científica (doravante FC). Essa escrita não está de acordo com o termo e as
características que foram atribuídas mais fortemente ao gênero nos anos 1950, mas
compõe um texto no qual as idéias sobre FC aparecem em estado embrionário.
Tavares expõe alguns conceitos e exemplos de escritores brasileiros de FC desde o
final do século XIX, e neles podemos verificar a presença e permanente diálogo com
temáticas produzidas fora do país. Nessa discussão, o autor nos oferece uma breve
história da origem da literatura de viés fantástico ou de FC no Brasil, adentrando ao
século XX com muitos exemplos. De acordo com Tavares, na história da literatura
brasileira podemos encontrar a presença da literatura fantástica e de FC, mesmo
que as obras e os escritores não se tenham reunido em torno de um programa
literário específico. No entanto, com a leitura dos manuais de estudos literários,
verificamos que não existe nenhuma abordagem teórica quanto à FC brasileira,
tampouco encontraremos a apresentação de escritores que se exercitaram nessa
escrita:
[...] a literatura fantástica tem uma longa tradição em nosso país, mesmo não tendo recebido dos críticos e historiadores de literatura a atenção que merece. Essa literatura nunca foi capaz de se cristalizar em torno de “movimentos” ou “grupos literários” que lhe dessem proeminência histórica, e é bem pequeno o número de autores que a cultivaram com regularidade.2
Concordando com esta proposição, Roberto de Sousa Causo3 aponta
algumas obras brasileiras, especificamente a partir de 1875, discutindo a circulação
desse tipo escrita na literatura brasileira no período. Causo apresenta uma série de
1 TAVARES, Bráulio. As Origens da Ficção Científica no Brasil. DO Leitura, São Paulo, novembro 1993. p. 2.2 Idem.3 CAUSO, Roberto de Sousa. Ficção científica, fantasia e horror no Brasil: 1875 a 1950. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p. 103.
24
textos e escritores que, de algum modo, se aproximaram da produção da literatura
fantástica, resultando em um gênero que ele preferiu denominar como ficção
especulativa. Os textos brasileiros, segundo o autor, tangenciavam os temas
populares da fantasia, focalizando enigmas quanto ao futuro através de romances
utópicos e sátiras a eventos e personalidades da sociedade brasileira. Para
exemplificar esse aspecto e interesse dos escritores brasileiros, Causo cita o livro
Páginas da História do Brasil, escritas no ano 2000 do escritor Joaquim Felício dos
Santos (1826-1895). Esse livro, que é uma coletânea de folhetins publicados no
jornal O Jequitinhonha, entre os anos de 1868 a 1872, possui como cenário o futuro
da Monarquia Brasileira no ano 2000. O tema serviria muito mais como uma crítica
“panfletária” ao regime do que propriamente um enredo envolvendo aventuras e
personagens:
Tais trabalhos, assim como vários outros que adentram ao século XX até a década de 1920, demonstram o interesse dos autores brasileiros em desenvolver narrativas satíricas e utópicas, bem como de fantasias moralizadoras e até exemplos do scientific romance, gerando um corpo de ficção especulativa que poderia ter sustentado uma produção maior nas décadas seguintes, mais intensa do que a registrada.4
Segundo Bráulio Tavares, a FC no Brasil não reuniu grupos de intelectuais e
artistas em prol da constituição e afirmação de uma “escola” literária na qual
transitassem textos do fantástico ou de ficção científica. Para ele, o agrupamento de
escritores e textos ao redor de uma temática ou interesse estético específico
consolidaria um tipo de escrita. Isso permitiria a ampla distribuição da produção
literária através de meios institucionalizados, posicionando-a em um panorama
geral. Tavares, na expectativa de justificar o “apagamento” da FC do cenário
artístico-cultural brasileiro, apresenta dois motivos que explicariam a “lacuna” na
historiografia e estudos literários. O teórico afirma a existência de textos com
temáticas da FC e fantasia, mas indica que eles não desfrutaram da visibilidade
necessária para permanecerem no cânone e desencadearem novas produções que
herdassem aspectos do estilo e tema propostos:
Não tivemos, portanto, dois fatores que cristalizam o cultivo de um gênero: 1) a existência de uma ou mais Grandes Obras que desencadeiam dezenas de imitação por anos a fio, ou 2) a existência de um grupo organizado de autores com objetivos semelhantes, que, à força da pura e simples militância, inscrevem uma tendência intelectual na história da literatura de seu país (como são chamadas “escolas” ou “movimentos”)5
4 CAUSO, 2003, p. 210.5 TAVARES, 1993, p. 3.
25
Mesmo não compondo um “movimento literário” específico, encontramos
vários textos que possuem características da escrita de FC. Tavares também indica
alguns escritores de grande destaque na época que se experimentaram
esporadicamente nesse tipo de temática. As produções, ainda que esparsas,
receberam a assinatura de escritores pertencentes ao cânone literário, a exemplo de
Álvares de Azevedo (Noite na Taverna), Joaquim Manuel de Macedo (A Luneta
mágica) e Machado de Assis (O Imortal, Conto Alexandrino, As Academias de Sião),
dentre outros. Curiosamente, boa parte dessas produções não está presente nas
discussões da literatura do período, mesmo que os textos tenham sido escritos por
autores ligados ao cânone. Em contrapartida, se não existiu uma crítica voltada à
temática desses textos, ao menos eles ainda são citados, possibilitando o
conhecimento por parte dos leitores na contemporaneidade. O que não acontece
com outros textos que aqui serão citados, a exemplo dos contos de Humberto de
Campos.
Alguns escritores do final do século XIX e início do século XX utilizaram
elementos típicos da escrita fantástica no enredo de seus textos, como já
percebemos através de Roberto Causo. No nosso entendimento, a escrita de
fantasia permitiu a criação de uma possibilidade ficcional diferente das
representações existentes sobre a sociedade, utilizando elementos próprios do
gênero para discutir crenças e tabus. Ao lidar com o “desconhecido” e o “conhecido”,
os enredos permitiam uma extrapolação do conceito de realidade material em
direção a outro, existente no interior do texto, que pode ser contatado pelo leitor a
partir do imaginário e leitura de seu próprio contexto sócio-cultural.
O interesse por temas fantásticos, como nos diz Tavares em outro contexto,
está presente nas literaturas de todos os tempos e lugares: “O fantástico é um tipo
de literatura presente em todos os povos e em qualquer época; o realismo literário é
um fenômeno de séculos recentes” 6. Os escritores que se dedicaram a este tipo de
narrativa utilizam um ponto comum com a realidade que é a impossibilidade de
representá-la de acordo com a materialidade vigente7. Na intenção de extrapolar
6 TAVARES, 1992, p.12.7 Esta impossibilidade pode ser analisada a partir de Michel Focault como as interdições ao discurso. De acordo com Foucault: “Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar em tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa. Tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala: temos aí o jogo de três tipos de interdições que se cruzam, se reforçam ou se compensam, formando uma grade complexa que não cessa de se modificar.” FOCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 9.
26
essa materialidade, seria necessário apropriar-se de elementos que estivessem
vinculados ao transcendente, ou criassem uma atmosfera na qual os temas
“proibidos” fossem apresentados sem causar fortes turbulências na ordem social.
Tzvetan Todorov nos diz que a função social da literatura fantástica era justamente
discutir aquilo não podia ser apresentado explicitamente na sociedade8. A existência
de imagens que pudessem formatar conceitos e ideologias “perigosas” para a
sociedade transita com mais tranquilidade nas narrativas (sejam escritas ou orais)
que se situam em outro lugar ou compõem outra estrutura distante no espaço/tempo
da época.
As experimentações com a temática fantástica no Brasil não gozaram do
mesmo prestígio que outras obras produzidas no mesmo período. Além daqueles
escritores pertencentes ao cânone, Bráulio Tavares cita outros que não
permaneceram no panorama da literatura brasileira atual, embora tenham sido
personalidades de destaque no cenário da época. Escritores como o já citado
Joaquim Felício dos Santos, Coelho Neto e o próprio Humberto de Campos não são
apresentados pelo cânone literário da atualidade e seus textos sequer são
lembrados nas discussões da historiografia literária.
Segundo Bráulio Tavares, escritores como Coelho Neto e Humberto de
Campos possuem exemplares de texto fantástico que podem ser verificados ao
longo da vasta obra literária que ambos possuem. Tavares cita alguns desses textos
como constituintes de uma gênese da ficção científica no Brasil. Coelho Neto, de
acordo com Tavares, escreveu um grande número de textos fantásticos, o que
evidenciaria ainda mais o interesse da época por este tipo de escrita, principalmente
se levarmos em consideração o prestígio de Neto no espaço literário. Os livros
Lanterna Mágica (1899), coletânea de contos fantásticos, Esfinge (1908), Melusina
(1923) e Imortalidade (1925) são exemplos da produção de literatura fantástica de
Coelho Neto. Contudo, Tavares reafirma o apagamento destes textos no panorama
literário da contemporaneidade: “Essas obras encontram-se virtualmente esquecidas
atualmente, a exemplo da maior parte dos livros de Coelho Neto – mais de cem
títulos [...]”9.
8 Além da censura institucionalizada, Todorov afirma que o próprio autor em sua “psique”, sofre com censuras: “Mais do que um simples pretexto, o fantástico é um meio de combate contra uma e outra censura: os desmandos sexuais serão melhor aceitos por qualquer espécie de censura se forem inscritos por conta do diabo. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica, 2004, p. 167.9 TAVARES, 1993, p.2.
27
Humberto de Campos também é citado por Tavares como um escritor que
possui um grande número de livros publicados, mas que se encontra “mergulhado
na obscuridade”10 juntamente com seus textos de temática fantástica. O contato de
Campos com a obra de Coelho Neto é verificado em algumas das afirmações sobre
o estilo de ambos que em alguns momentos revelam afinidades sobre as temáticas
utilizadas por Campos. Se observarmos que Humberto de Campos toma Coelho
Neto como referencial para sua escrita, perceberemos o quanto a temática fantástica
pode ter sido “disputada” para a construção dos enredos e narrativas. No capítulo
Eu e Camões do livro Memórias Inacabadas de Humberto de Campos, lemos uma
referência aos escritos fantásticos de Coelho Neto que foram utilizados como ponto
de partida para o jovem escritor:
Lidos as “Baladillas” e o “Fruto Proibido”, considerei-me em condições de escrever contos e fantasias. Um daqueles faquires alí encontrados havia pôsto os olhos na semente maravilhosa, que germinara em dois dias. E escrevi um conto. E depois outro. E um terceiro. Contos fúnebres, fantásticos, em que havia mochos e ciprestes, e sombras de mortos, e cruzes de cemitério. Os próprios assuntos eram, se me não engano, surrupiados ao mestre, e modificados, apenas, pela minha ignorância.11
A escrita e a fama de Coelho Neto no Brasil configuravam uma espécie de
modelo para todos os aspirantes à seara literária: “foi a êsse escritor que me atirei,
tomando-o para meu modêlo e meu mestre. O seu orientalismo encantava-me. A
sua linguagem seduzia-me.”12, diz Humberto de Campos. Coelho Neto exercitou a
escrita fantástica através de elementos sobrenaturais e improváveis de acontecer na
realidade, optando por uma narrativa que focalizasse o desconhecido. Interesse
temático também seguido por Campos: “Um, e outra, eram, então, duas expressões
do mistério. E o mistério exercia, naquele instante, sôbre meu espírito, irresistível
atração”.13 Essas declarações ainda são do jovem Humberto de Campos que
começava, naquele momento, a demonstrar interesse pela escrita literária e pelos
temas do mistério e realidades desconhecidas:
Coelho Neto havia, com a sua excursão de 1899, enchido todo o norte dos ruídos metálicos da sua glória. Havia batizado com seu nome colarinhos e rosas, chapéus e valsas, ruas de cidade e quitutes de sertão. Ser um dia, Coelho Neto, era, pois, receber a senha para a imortalidade.14
10 TAVARES, 1993, p.2.11 CAMPOS, Humberto de. Memórias Inacabadas. São Paulo: W. M. Jackson Editores, 1960.12 Idem, p. 143.13 Idem.14 Idem, p. 145.
28
Essa relação de admiração é evidenciada durante toda a trajetória da escrita
de Humberto de Campos. Múcio Leão nos diz que: “É sob a fascinação inevitável de
Coelho Neto que, de ora por diante, se vai desenrolar o fio da vida de Humberto de
Campos”15. A escrita da juventude consolida-se a partir dos parâmetros e
características do texto de Coelho Neto, na forma e estética quanto na temática e
abordagens. A proximidade com o modelo era tamanha que o próprio Humberto de
Campos reconhecia as similaridades com o texto de Neto: “[...] eu não poderia dizer,
evidentemente, se [as narrativas] eram de Coelho Neto ou se eram minhas.”16.
Embora encontremos um grande número de citações sobre a escrita
fantástica entre os autores brasileiros, estes exemplares não se constituíram como
objeto de estudo nas análises da literatura na contemporaneidade. Isso dificulta a
inserção da escrita de FC nos panoramas dos estudos literários do início do século
XX, pois não leva em consideração a existência de uma matriz que proporcionaria o
interesse pela literatura fantástica; uma escrita que se desenvolveria na direção do
aparecimento da FC em estado embrionário.
As abordagens fantásticas das temáticas utilizadas por esses escritores
apoiavam-se em seus diálogos com a realidade, sobretudo através de suas
convicções políticas, filosóficas e/ou religiosas. Verificamos um exemplo desse
posicionamento na citação feita por Roberto Causo a Joaquim Felício dos Santos na
utilização do texto como crítica ao regime monárquico. Bráulio Tavares, ao discutir
aspectos e caracterizações dos romances utópicos, considerados como semente
das narrativas típicas da FC, produzidos no final do século XIX e início do século XX,
diz-nos que: “A aventura é um elemento praticamente ausente das histórias
futuristas desse período. Os autores não estavam interessados em divertir o público,
mas em defender alguma tese moral ou social.”17. A partir desse posicionamento,
percebemos que os textos de fantasia ou de ficção científica do início do século XX
estavam a serviço de uma ideologia que regia o pensamento dos escritores, em uma
espécie de reverberação dos entendimentos de cultura e sociedade vigentes
naquele momento. Sobre esse tópico, Causo aponta o livro O Presidente negro ou O
choque das raças (1926), de Monteiro Lobato, como um espaço para a difusão do
conceito de eugenia através da narrativa de ficção científica. A defesa da eugenia
15 LEÃO, Múcio. Elogio a Humberto de Campos, In OLIVEIRA, Almir de. Humberto de Campos um exemplo de vida. Salvador: Editora Universitária Americana, 1990, p. 127.16 CAMPOS, Memórias Inacabadas, p. 145.17 TAVARES, 1993, p.2.
29
feita por Lobato concentra-se na ideia de uma “limpeza” racial que se dará num
processo rápido ou paulatino com o objetivo de estabelecer uma pureza e
hegemonia de um determinado grupo, a favor da verdadeira civilização:
Para a sensibilidade atual, a destruição do modo de vida de um grupo é inaceitável, mas tal destruição cabia muito bem na sensibilidade da época, que via com naturalidade o conceito do desaparecimento de espécies ou organizações sociais tidas como “atrasadas” ou “primitivas”, dentro da chave de luta pela sobrevivência do mais apto, própria do Darwinismo Social.18
As contradições políticas e sociais vividas no Brasil durante o período
conduziram os escritores ao debate e problematizações de suas ideias
posteriormente impressas em seus textos literários. Roberto Causo também nos diz
que a literatura de FC brasileira, mesmo abandonando a ideia de aventura e se
dedicando muito mais à difusão de padrões e pensamentos, não se distanciou da
ideia do romance divulgado na Europa, representado por Jules Verne e Herbert
George Wells. O lugar dos textos brasileiros nesse contexto possibilitava o
aproveitamento dos impasses entre a modernidade e o primitivismo colonial vigentes
para difundir ideologias e apresentar “soluções” com base em um enredo que se
apropriava de um futuro ou de uma realidade paralela. Os escritores criavam
cenários fantásticos e os configuravam em um espaço para o debate e afirmação de
ideologias. Flora Süssekind cita um texto de João do Rio, escrito em 1910, que
abrange a discussão sobre a apropriação de um imaginário voltado ao futuro:
Outro exemplo, ainda em João do Rio, é O dia de um homem em 1920, texto de 1910, incluído em Vida vertiginosa (1911), em que se procura prefigurar, “diante de sucessivos inventos”, o que seria um dia comum na vida de alguém dentro de uma década. Imagina-se, então, sistemas de palavras baseadas na abreviatura, trens subterrâneos, despertadores elétricos, aeroplanos, recordes de velocidade, ascensores, uma “Companhia de Moto Contínuo”, um jornal falante.19
O princípio do século XX no Brasil experimentou intensos processos de
modernização nos quais sempre entravam em choque os valores do sentimento
colonial com a ideia de ruptura em direção a valores mais civilizados, modernos e
principalmente pautados no paradigma de racionalidade e ciência. Segundo Causo,
na realidade brasileira desse período, circulavam personagens que fomentavam a
idéia de prosperidade com base no desenvolvimento da ciência e da tecnologia,
dentre eles Santos Dumont e Oswaldo Cruz. A relação da consciência brasileira com
esses emblemas de modernidade contrastava com a falta de interesse imediato e
18 CAUSO, op. cit, p.140.19 SÜSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de Letras: Literatura, técnica e modernização no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 19.
30
recursos para a implementação de programas de saneamento e urbanização das
cidades (quadro que foi alterado abruptamente com o exemplo da “Regeneração” do
Rio de Janeiro). Consideremos também que o Brasil tardiamente se tornou uma
República e um ano antes “finalizou” o processo de escravização dos negros. Esses
se tornaram os passos que procuravam diminuir as distâncias da ideia de
modernidade no espaço brasileiro. De acordo com Causo, as diferenças na
concepção da realidade brasileira possibilitaram uma construção ficcional na qual o
contraste podia operar e assim divulgar novos padrões para a consolidação do ideal
moderno: “É em confronto com esse pano de fundo que os primeiros exemplos de
ficção científica brasileira irão aparecer. Logo se percebe que o Brasil não esteve
alienado do scientific romance que se produziu no século XIX.”20
Diante desses confrontos, a própria localização do discurso científico nas
narrativas demonstra o modo como a ciência estava compreendida no cenário
brasileiro do início do século XX. Segundo Causo, a primeira obra brasileira que
enfoca a presença de um discurso propriamente científico nos textos literários é o
livro Doutor Benignus, escrito por Augusto Emílio Zaluar e publicado em 1875, muito
antes do livro de Monteiro Lobato e seus métodos e doutrinas para a configuração
de uma nova raça resultante da eugenia. O enredo do Doutor Benignus dialoga com
os textos dos escritores franceses, especificamente os livros de Jules Verne. No
entanto, de acordo com Causo, existe uma diferença entre as produções européias
e brasileiras. Nesse caso, o livro de Zaluar apresenta uma compreensão de ciência
bem diversa daquela apresentada nos textos de Verne. O modo como os
personagens encaram as descobertas científicas demonstram o tipo de papel que a
própria ciência assume no contexto social.
Para o Brasil do final do século XIX, as descobertas científicas ainda soavam
como matéria de ficção, ainda atreladas ao supersticioso, dotado de um misticismo
típico da Alquimia, enquanto a Europa experimentava as constantes “revoluções”
industriais e tecnológicas. No texto de Verne, a ciência possui um papel ativo e é a
chave para o desenvolvimento do pensamento humano em direção ao conhecimento
e domínio de toda a natureza. De acordo com Causo, no texto de Zaluar, a ciência
ainda não é entendida como elemento chave para o desenvolvimento e não possui a
mesma relevância que possuía na Europa. A ciência, para Zaluar, não interferiria
ativamente na sociedade e teria como vantagem apenas a erudição dos leitores e
20 CAUSO, op cit, p.128.
31
envolvidos numa espécie de contemplação diante do “poder” que emana das
descobertas nos laboratórios:
Essa ciência passiva, contemplativa, é índice evidente do modo como a ciência e a tecnologia tinham pouca relevância no Brasil do autor. Do mesmo modo, trata-se de uma ciência técnica que não se integram – ao contrário do que ocorria na Europa e nos Estados Unidos – agressivamente à economia ou à vida social do Brasil.21
Em todo o caso, percebemos que o texto de fantasia e ficção científica em
suas possibilidades estéticas foi produzido no Brasil desde o final do século XIX.
Para nossa discussão é importante identificar essa presença da literatura fantástica
no país, pois verificaremos que esse tipo de escrita se desenvolveu em direção à
FC, discutindo as múltiplas realidades que vigoravam no país. Através da utilização,
nos contos, de cenários e personagens fictícios, identificamos contrastes entre os
interesses de modernização frente a uma sociedade que ainda possuía
características de subdesenvolvimento. A partir dos textos críticos citados,
mencionamos escritores brasileiros desse período, na tentativa de recorrer a uma
história da literatura que ainda não foi contada ou discutida, tornando-se inexistente
nos manuais didáticos.
1.2 As multifaces de Humberto de Campos
A obra de Humberto de Campos é altamente diversificada e não podemos
simplesmente enquadrá-la em determinada “corrente estética” e/ou literária, muito
menos nomeá-lo como um escritor parnasiano, simbolista, pré-moderno ou escritor
genuíno de ficção científica. Temos no cômputo de sua bibliografia desde poesias,
contos, crônicas até críticas literárias, biografias curtas e autobiografias. Humberto
de Campos distinguiu-se no meio jornalístico, atuando em jornais cariocas, embora
exercesse em determinados momentos a política (foi deputado federal pelo
Maranhão), assumindo funções administrativas. A atuação na imprensa fez com que
sua obra fosse composta, em boa parte, de crônicas e críticas literárias, textos que
escrevia nas colunas dos jornais em que trabalhou ou atuou como correspondente.
21 CAUSO, op cit, p.130.
32
De acordo com Múcio Leão, Humberto de Campos, ao sair de Parnaíba, sua
cidade natal, foi morar no estado do Pará, onde trabalhou como administrador de
seringais e ali vivenciou “contato direto e diário com a vida dos homens mais
infelizes que existem no Brasil”22. A realidade experimentada nesses espaços fez
com que Campos assumisse uma atitude crítica na escrita de artigos de protesto
contra as péssimas condições de trabalho nos seringais da Amazônia. A
repercussão desses textos diante daquele quadro social levou-o a manter contato
com as figuras políticas da região23. No discurso da Academia Brasileira de Letras, o
acadêmico Múcio Leão diz que: “O chefe político do Estado, o senador Antonio
Lemos, pressente no jovem jornalista destemido a força do talento e da cultura. E
oferece-lhe um lugar na Província do Pará. Pouco depois convida-o para seu
secretário particular.”
Em Belém, Campos escreveu o livro Poeira (1911), uma reunião de poemas,
que deu início e projeção à sua carreira de escritor. Segundo Múcio Leão, o livro e
seus poemas foram merecedores das boas críticas de Carlos de Laet, Afonso Celso
Medeiros e Albuquerque, Guerra Junqueiro e Fialho Almeida24. O livro aparecia nas
resenhas dos jornais cariocas com um tom elogioso ao novo poeta. O modo como
ele se apropriava das correntes estéticas em voga trouxe a admiração de leitores e
outros escritores brasileiros ao tipo de diálogo estético existente entre os modelos de
escrita vigentes e os modelos antigos, notadamente os clássicos presentes na
produção parnasiana. O escritor Hermes Vieira diz:
“[...] Humberto de Campos, como ‘epigono do parnasianismo’, seguia os caminhos palmilhados por Vicente de Carvalho, Cruz e Sousa, Raimundo Corrêa, Olavo Bilac e tantas e tantas outras pujantes celebrações da poetica nacional. [...] Os seus versos, comquanto aparecessem no limiar da segunda década do século XX, teem o sabor das produções antigas.”25
22 LEÃO, op cit., p.127.23 Alexandre Caroli Rocha diz-nos que Humberto de Campos: “Em 1903, após novo incentivo de seu tio Antoninho, embarcou para Belém. Lá no início de sua estada, viveu situação crítica, pois não encontrou o emprego prometido e, em penúria, sofria de neurastenia. Conseguiu o encargo de revisor num jornal em decadência, até que lhe surgiu a proposta de ser administrador de seringais em Marapuá, nas fronteiras do Pará com o Amazonas. Trabalhou nessa região durante um ano e meio, e porque contraiu febre palustre teve de voltar a Belém, onde foi contratado como redator do jornal Folha do Norte. Foi o início de sua carreira jornalística. Em tom de denúncia, escrevia especialmente sobre a deplorável situação a que eram submetidos os seringueiros.” ROCHA, Alexandre Caroli. O caso Humberto de Campos: Autoria literária e mediunidade. Campinas, São Paulo, 2008. 274f. Tese (Doutorado), Universidade Estadual de Campinas.24 LEÃO, op cit., p.132.25 VIEIRA, Hermes. Humberto de Campos e sua expressão literária. São Paulo: Cultura Moderna, (19--). p.26.
33
Ao sair de Belém, Campos foi para o Rio de Janeiro, onde exerceu funções
na administração pública, tornando-se depois redator do jornal Imparcial. É nesse
momento em que o escritor, através dos textos publicados nos periódicos, se
notabiliza na imprensa brasileira com suas crônicas e críticas literárias, sendo
aclamado e bastante lido pela população. Apesar do grande número de analfabetos
no Brasil, os jornais conseguiam aglomerar leitores em detrimento dos romances e
livros publicados. A linguagem coloquial do jornalismo era considerada como a
grande heresia contra os textos literários, mas era muito bem recebida pela maioria
da população, que se encontrava diante de uma linguagem menos “empolada” e de
“fácil entendimento”.
De acordo com Flora Süssekind, existiam diferenças de opinião entre os
literatos acerca da linguagem dos jornais. Raul Pompéia, por exemplo, mostra-se
contrário a algumas metodologias: “Dentre elas, a adoção de uma escrita jornalística
como recurso para popularizar e facilitar a leitura da prosa de ficção.”26 No entanto,
muitos escritores, na intenção de se profissionalizarem, adotaram textos ligeiros e
curtos, com comentários a temas corriqueiros em circulação na imprensa ou na vida
cotidiana, aproximando sua escrita do grande público. Segundo Múcio Leão,
Humberto de Campos alcançou grande prestígio nos jornais locais, que o projetaram
nacionalmente:
Ele percorre várias redações, nessa peregrinação melancólica que no Brasil é a vida de um jornalista. Seus pseudônimos são vários e enchem colunas e colunas das folhas cariocas. Às vezes, seus artigos aparecem, simultaneamente, no Rio e em São Paulo, na Bahia, no Recife e em Porto Alegre...27
O entendimento dos novos papéis do escritor na República construiu outra
figura do intelectual brasileiro. A escrita deixava de ter uma função voltada para as
discussões da realidade política ou das “belas letras” para se orientar na direção dos
assuntos mundanos veiculados nos periódicos impressos. Como a maioria da
população brasileira não era alfabetizada, o escritor não conseguia se manter
apenas com a venda de seus livros. Com a instauração da República, a situação se
agravou, pois os escritores da época deixaram de gozar dos suportes e
financiamentos oriundos das pequenas fortunas, destinadas a imprimir uma imagem
erudita do escritor frente ao público. A imagem romântica de um escritor envolvido
com questões nacionais e dedicado a apresentar um espírito de contemplação na
26 SÜSSEKIND, op cit. p. 59.27 LEÃO, op cit p. 133.
34
perfeição e descrição das formas era gradativamente corroída pelo trabalho nas
oficinas jornalísticas. No entanto, segundo Brito Broca:
[...] não se pode negar que os jornais, proporcionando trabalho aos intelectuais, mesmo quando se tratava de simples rotina de redação, sem nenhum cunho literário, facilitava a vida de muitos deles, dando-lhes um second métier condigno, no qual podiam, certamente, criar ambiente para as atividades do escritor.28
Os escritores, voltados para o jornalismo e para uma aproximação direta com
seus leitores, tornaram-se interlocutores imediatos do público através dos textos
editados diariamente. O contato com os fatos mundanos no início do século XX daria
a esses escritores a visibilidade necessária e desejada para futuros
empreendimentos literários29. A ampliação da circulação dos jornais e o número de
vendas confirmavam o sucesso dos periódicos. Sucesso revertido não somente em
prestígio, mas em recursos financeiros para os escritores-jornalistas. Isso
possibilitava a manutenção de outras atividades, inclusive o próprio sustento da
família do escritor. Süssekind nos diz que:
[...] ainda em 1906, Alphonsus de Guimaraens, por exemplo, receberia quatrocentos mil-réis mensais de A Gazeta, de São Paulo. Em 1915, Humberto de Campos já recebia trezentos mil-réis por mês, chegando em 1928 a um salário de quinhentos mil-réis.
Algumas das obras de ficção de Humberto de Campos são apresentadas por
Bráulio Tavares como peças ligeiras que compunham jornais e revistas,
popularizando um estilo de escrita e opções temáticas entre o público30. Os contatos
entre o jornalismo e o prestígio da escrita literária adquirido na publicação de suas
poesias fizeram com que Campos aproveitasse as leituras dos livros clássicos e
suas experiências durante a vida. A partir dessas experiências, construiu um
pensamento sobre as relações dos sujeitos com a própria sociedade, através de
comentários nas crônicas jornalísticas. É com esse prestígio que o escritor passa a
resenhar e criticar livros de jovens escritores, afirmando sua presença como ilustre
figura das searas literárias e jornalísticas. De acordo com Jeffrey Needell, os leitores
optavam pelo consumo imediato dos assuntos mundanos apresentados nas crônicas
e comentários corriqueiros e, desse modo, acompanhavam as produções dos
escritores pelos periódicos, conferindo-lhes um pouco mais de prestígio:
28 BROCA, Brito. A vida literária no Brasil: 1900. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975. p. 216.29 Ainda segundo Flora Süssekind: “Além de ampliar o número de interlocutores para o texto literário, a colaboração na imprensa se apresentava, no período, como a única trilha concreta em direção à profissionalização para os escritores.” SÜSSEKIND, op cit, p. 74.30 TAVARES, op. cit, 1993.
35
Como fora sempre o caso, os livros de autores brasileiros eram poucos e baixas as tiragens das edições. Em geral, a reputação do escritor se fazia nos periódicos e, às vezes, pela republicação do mesmo material em forma de livro. Apesar de uma menção ou opiniões favoráveis de um crítico consagrado ajudar um pouco, os leitores dos periódicos eram essencialmente aqueles que garantiam o êxito de um autor.31
Em 1920, Humberto de Campos é eleito Imortal da Academia Brasileira de
Letras e, em 1923, assume a coluna de crítica literária do jornal Correio da Manhã,
no Rio de Janeiro. Em algumas das críticas publicadas nos jornais e recolhidas
posteriormente em coletâneas, são encontradas impressões e discussões do
escritor sobre livros que usam elementos de ficção científica e fantasia em seus
enredos, tal como Bráulio Tavares noticia em seu artigo. A permanência de Campos
nos espaços da crítica consolida o prestígio do escritor e o recomenda para as
leituras do grande público. De acordo com Tavares, parte da produção literária de
Humberto de Campos está voltada para o contato com esses elementos de fantasia
e ficção científica32, o que é muito significativo quando se constata a circulação dos
textos em jornais e a aceitação de temáticas pelo público leitor:
A maior parte de sua obra de ficção consiste em contos muitos curtos que eram publicados em jornais e revistas; alguns deles usam elementos de FC ou fantasia. [...] Humberto de Campos foi também um dos críticos mais respeitados de seu tempo e foi um dos primeiros críticos brasileiros a enxergar as qualidades específicas da FC e a elogiar autores que a exploraram.33
As críticas de Campos às obras A costela de Adão de Berilo Neves, e
Amazônia Misteriosa de Gastão Cruls apresentam uma análise inovadora, buscando
relacionar aspectos históricos aos avanços científicos e imagens de
desenvolvimento em circulação na sociedade. Tavares cita apenas essas duas
críticas literárias, mas, em nossas pesquisas, encontramos mais uma crítica, escrita
por Humberto de Campos, inserida neste contexto de análises e discussões sobre
obras de “ficção científica”. O livro A República 3000, do escritor Menotti Del Pícchia,
também fora analisado por Campos34, que destacou alguns elementos de fantasia
31 NEEDELL, Jeffrey. Belle époque tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.230.32 Vale lembrar que, de acordo com Bráulio Tavares, esse termo passou a ser utilizado após 1920 e, podemos verificar a partir das críticas, que Humberto de Campos não se referiu a nenhuma obra como “ficção científica”: “Science fiction foi o nome sonoro e simpático escolhido por Hugo Gersnback, editor da revista Amazing Stories, nos anos 20, para denominar o tipo de literatura que ele tentava incentivar.” TAVARES, op. cit, 1992, p. 11.33 TAVARES, 1993, op. cit, p. 2.34 Humberto de Campos analisa dois livros de Menotti Del Picchia. Na segunda seção, o livro A República 3000 é apresentado. CAMPOS, Humberto de. Crítica 3ª série. São Paulo: W.M. Jackson Inc., 1960, p. 5: Menotti Del Pícchia.
36
presentes no livro e os relacionou aos elementos e pensamentos da ciência vigente,
mesma metodologia utilizada na análise dos outros livros.
A partir das críticas literárias, percebemos que Campos se dedicou a resenhar
e problematizar obras que tomaram a FC como via criativa de abordagem às
temáticas do cotidiano. Nesse sentido, ele apreende os temas e enredos dos textos
e os relaciona com alguns aspectos da sociedade corrente. A terminologia adotada
nessas análises e caracterizações das obras expressa a percepção que Campos
possuía dos textos nos quais “se misturam fantasia e ciência”35. Essa mistura é
entendida como o cruzamento de duas realidades ficcionais que se direciona a uma
terceira, que é a própria realidade experimentada e verificada no texto por todos os
leitores e pelo crítico no papel de mediador.
O exercício da crítica para Humberto de Campos tinha a intenção de orientar
os leitores que aguardavam a opinião de uma personalidade “autorizada”, que
tivesse o prestígio necessário para discorrer, recomendar e analisar alguma obra
específica. No Prefácio ao primeiro volume do livro “Crítica”, Campos diz que a
função do crítico: “em vez de interpretar o juízo do público sôbre o livro que este leu,
a sua missão consiste no julgamento sincero e individual da obra literária para
esclarecimento do público, e conseqüente orientação das suas leituras.”36 Cabia ao
escritor e crítico produzir um comentário que encaminhasse o livro, recomendando-o
ou não para o público. Os leitores seriam guiados pelas compreensões sobre a
realidade, conjecturas, análises particulares do crítico que levariam o público ao
encontro de outras obras citadas, destacando a erudição do escritor.
Em contrapartida ao prestígio da crítica de Humberto de Campos, os contos e
crônicas publicadas sob o pseudônimo de Conselheiro XX eram considerados
licenciosos e corruptores dos costumes da sociedade. Isso permitiu as diversas
opiniões de outros críticos e escritores da época sobre a obra de Campos publicada
em jornais e revistas. Alexandre Caroli Rocha37 nos mostra algumas dessas opiniões
sobre os escritos de Campos na época do lançamento de suas publicações. João
Clímaco Bezerra, citado por Rocha, diz:
35 Termo utilizado por Campos ao se referir à obra Amazônia Misteriosa de Gastão Cruls. Ver: CAMPOS, Humberto de. Crítica 2ª série. São Paulo: W.M. Jackson Inc., 1960, p. 389: Reveladores da Amazônia.36 CAMPOS, Crítica 1ª. Série. São Paulo: W.M. Jackson Inc., 1960, p. 7.37 ROCHA, Alexandre Caroli. O caso Humberto de Campos: Autoria literária e mediunidade. Campinas, São Paulo, 2008. 274f. Tese (Doutorado), Universidade Estadual de Campinas.
37
Mas a verdade é que os pequenos contos, as anedotas estampadas em revistas “proibidas para menores”, das quais a Maçã foi o exemplo maior, granjearam para Humberto de Campos uma popularidade jamais igualada por qualquer escritor de seu tempo. Combatiam-no os moralistas, como ocorreu com Carlos de Laet, que, depois de louvar calorosamente o poeta de Poeira, moveu-lhe acirrada campanha contra as histórias fesceninas. 38
Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, Múcio Leão
anula as condenações que os críticos da época fizeram contra os contos e crônicas
de Campos, ao considerá-los como licenciosos e permissivos aos leitores. De
acordo com o acadêmico, as crônicas versavam sobre os costumes da sociedade e
eram normalmente representadas de maneira a causar o riso e o deboche em
determinados casos. Ou seja, se os textos eram licenciosos, a sociedade o era
primeiramente e, se a escrita provocava o riso, este estava vinculado aos elementos
da própria sociedade. A representação da sociedade num enredo que possibilitava o
deboche não interessava aos incentivadores de uma cultura séria e pautada no rigor
das formas e conduta dos indivíduos sociais.
No raciocínio de Múcio Leão, a ampla divulgação dos textos e das obras que
os reuniam em seguida à publicação nos periódicos mostrava o sucesso dessa
escrita frente ao público em geral, retirando, assim, a pecha de “caráter corruptor”
dos textos de Campos. De acordo com Leão, o prestígio de Humberto de Campos
tornava-se visível no número de tiragens e edições de suas obras e na circulação
dos seus textos em jornais e revistas:
As duas séries de Poeira..., livros graves e belos, onde o sonho era alto e a imaginação era pura, não tinham chegado além da segunda edição. Enquanto isso, os volumes facetos do Conselheiro XX cresciam, cresciam, cresciam em tiragens sucessivas. Em poucos anos, a Bacia de Pilatos alcançava doze milheiros; Os Gansos do Capitólio e o Vale de Josafá alcançavam cada um treze milheiros; A Serpente de Bronze alcançava quatorze milheiros; o Tonel de Diógenes alcançava dezesseis milheiros. São êxitos colossais, para o Brasil. E penso que somente ultrapassados – se, acaso, o foram – pelo êxito que vieram a ter, na última fase da vida de Humberto, os volumes melancólicos e desolados em que ele confidencia com os leitores sobre os seus sofrimentos e desgraças íntimas.39
A diversidade e multiplicidade da obra de Campos não podem ser
desprezadas. A pluralidade de gêneros e temáticas talvez responda a uma
estratégia do escritor de chegar até seus leitores com assuntos que estivessem na
pauta de interesses da sociedade, como faziam os jornalistas de um modo geral. A
utilização do texto curto também atendia aos padrões que eram cada vez mais
38 BEZERRA apud ROCHA, op cit. p.29.39 LEÃO, op cit, p. 135.
38
exigidos pelos jornais, pois: “Tornando-se mais leves, os jornais passaram a solicitar
crônicas mais curtas e vivas, condizentes com as exigências da paginação, em vez
de folhetins que atravancam o texto.”, nos diz Brito Broca40. Flora Süssekind associa
o texto literário distribuído nos jornais a outros produtos provenientes da utilização
de técnicas e máquinas provenientes do processo de modernização:
Não se trata mais de investigar apenas como a literatura representa a técnica, mas como, apropriando-se de procedimentos característicos à fotografia, ao cinema, ao cartaz, transforma-se a própria técnica literária. (grifo da autora).
A partir dessas análises, percebemos que o conto e a crônica produzidos
diretamente para os jornais e revistas servem muito a essa aproximação com a
fotografia e o cartaz. A narrativa focalizada numa única cena põe em destaque
determinados fatos, não se prolongando demasiadamente como acontecia nos
folhetins e nas novelas publicadas no século XIX. O texto, objetivo, transmitia suas
ideias principais sem que o leitor necessitasse perder mais tempo acompanhando o
enredo. Em outro contexto, basta observarmos a caracterização de Julio Cortázar
sobre o conto para percebermos as relações entre este e a fotografia. Segundo
Cortázar, a construção do conto partia da:
[...] necessidade de escolher e limitar uma imagem ou acontecimento que sejam significativos, que não só valham por si mesmos, mas também sejam capazes de atuar no espectador ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto.41
Os contos e crônicas de Humberto de Campos atendiam a esse recorte de
tempo (do leitor) e espaço (no jornal) na construção das narrativas. Ao se deter em
cenas delimitadas pelo recorte narrativo, percebemos o interesse por temas em
circulação na sociedade que pudessem fomentar a discussão e manter o diálogo
entre os leitores e o escritor. Com base nos textos analisados, percebemos que as
temáticas se aproximam de enredos fantásticos, apresentando elementos, máquinas
e sociedades desconhecidas naquele momento. A caracterização desses elementos
aproxima-se da definição de “ficção científica” e o enredo dos contos permanece em
contato com a realidade vigente do Brasil daquele período: imagens e ideias que
representam uma concepção de sociedade presente no imaginário cultural daquele
momento, possibilitando a criação de leituras “fantásticas” sobre a realidade.
40 BROCA, op cit. p. 219.41 CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 151-152.
39
Na leitura dos textos encontramos uma crítica e/ou comentário às imagens de
desenvolvimento tecnológico e civilização existentes na sociedade do período. Essa
relação muito aproximada entre a crônica e o conto nos parece bastante produtiva
por construir no próprio texto uma percepção diferente da realidade cotidiana. O
texto de Humberto de Campos caracteriza-se por possuir uma estrutura narrativa
que se distancia da mera descrição “realista” dos aspectos da sociedade, indo em
direção a uma compreensão particular daquilo que se experimenta. O uso das
imagens e construções simbólicas serve, nessa composição, como uma estratégia
de ficcionalização de descrições e cenas nítidas ou facilmente verificáveis na
realidade empírica. No entanto, as imagens continuam plenamente identificadas na
leitura do real contrastada com o texto. De acordo com Léo Godoy Otero:
O artista expressa sua idéia por meio de imagens, enquanto o publicista demonstra essa idéia por meio de deduções lógicas. E se o escritor, ao invés de operar com imagens, opera com deduções lógicas, deixa de ser artista convertendo-se em publicista, embora escrevendo romances, novelas, contos.42
A crônica teria esse vínculo “realista” com a realidade, pois se constituiria
como uma descrição comentada de fatos experimentados. O conto teria um viés
mais “literário”, pois lida com um enredo, temas e personagens ficcionais sem
qualquer vínculo direto (embora este vínculo exista) com a realidade. O contraste e a
intersecção entre a crônica e conto na produção de Humberto de Campos
provocam-nos a definir os textos nesta pesquisa como contos, pois embora escritos
como comentários da realidade, constroem um enredo e cenário ficcionais que
discutem as experiências vividas no bojo da sociedade.
Essa escrita multifacetada dialoga constantemente com as solicitações da
norma jornalística, ao mesmo tempo em que dissolve as fronteiras entre o real,
plenamente descrito, e a fantasia, plenamente inventada, estabelecendo um espaço
em que se encontram essas possibilidades. Nos textos analisados, essa
representação de realidades leva-nos a perceber a construção de uma descrição e
de uma crítica implícita e intrínseca às imagens de futuro e desenvolvimento em
uma sociedade fictícia, embora possamos reconhecê-la como brasileira.
As ocorrências de elementos de FC na prosa de Humberto de Campos são
bem pontuais, o que nos possibilita identificar uma afinidade com os temas e modos
da escrita de fantasia e ficção científica sem a necessidade de criar um rótulo
42 OTERO, Léo Godoy. Introdução a uma história da ficção científica. São Paulo: Lua Nova, 1987. p.17.
40
abrangente para toda a sua obra. É importante salientar que os debates acerca das
definições do termo “ficção científica” são amplos e, até o momento, ainda são
motivo para novas discussões que não chegaram, tampouco se pretende chegar, a
uma conclusão. Sobre a impossibilidade de criar uma demarcação para a
terminologia ampla e abrangente da ficção científica, David Allen afirma “[...] é bem
possível que a ficção científica resista a qualquer definição de grande alcance de
suas características.”43. Concordamos com Allen, pois ele parte do princípio da
heterogeneidade da escrita, que não nos permite extrair dela mesma um caractere
definitivo que consiga estabelecer pontos de diferença com outras ocorrências da
escrita literária. A ficção científica pode estar presente em uma história de amor, em
uma descrição utópica de civilizações, pode apresentar personagens que se valem
de discursos filosóficos, antropológicos ou sociológicos. Compreendemos a escrita
de Campos como um mosaico no qual encontramos elementos de várias escritas
juntamente com as concepções ideológicas do meio com o qual o artista interagia.
1.3 Definições e pré-histórias da ficção científica no Brasil
É muito comum atribuir aos europeus Jules Verne (1829 – 1905) e Herbert
George Wells (1866 – 1946) a “paternidade” da ficção científica. Seus livros
apresentam personagens e cenários envolvendo um instrumental típico das grandes
descobertas tecnológicas em louvor ou crítica ao desenvolvimento da humanidade.
A “razão” e a cientificidade aparecem como um discurso atuante e intrinsecamente
vinculado à sociedade européia, transmitindo certa fluência e aceitação desse
discurso na concepção do pensamento sobre civilização. A representação da
Ciência é percebida, em Wells, numa série de contradições entre a atitude do
homem frente à utilização de máquinas e a concepção de avanço tecnológico,
enquanto, em Verne, temos certa divulgação dos benefícios que essa ciência traria
para o desenvolvimento da sociedade e consolidação de uma ideia de civilização
próspera calcada na proliferação do conhecimento. Em contrapartida, vale ressaltar
também o tom “pessimista” do narrador de Jules Verne no livro Paris do Século XX44,
43 ALLEN, David L. No mundo da ficção científica. São Paulo: Summus Editorial, (19--). p. 223.44 Obra descoberta recentemente, publicada em 1994. Escrito em 1863, descreve a capital da França no ano de 1960.
41
desfazendo uma compreensão geral acerca do “otimismo” do escritor quanto à
aplicação de um discurso pragmático na sociedade, voltado exclusivamente ao
desenvolvimento industrial.
A definição de FC está muitas vezes voltada para o conceito de Fantástico,
sendo localizada como um subgênero da escrita de fantasia. O que percebemos na
narrativa de FC é a existência de um jogo com ideias localizadas nos conceitos:
conhecido-desconhecido, estranho-estrangeiro. A apresentação de outros mundos e
realidades consiste numa espécie de exercício de extrapolação da realidade vigente
em direção a outro universo, paralelo ou futuro. Quanto ao tema, o texto de FC pode
conter elementos exteriores ao momento presente, mas que se localizam
perfeitamente no imaginário da realidade vigente. A presença desses elementos não
permite uma desconsideração ou distinção total do enredo e do tema abordado pela
FC, antes opera com os mesmos parâmetros de qualquer outra obra de ficção.
Nesse sentido, David Allen reforça o princípio de que:
Qualquer obra de ficção científica, quer conto quer romance, precisa ter um narrador, um enredo, uma trama, um cenário, personagens, estilo e tema. [...] Em poucas palavras, as razões para ler e apreciar a ficção científica, e a maneira de estudá-la e analisá-la, são basicamente as mesmas que seriam para qualquer conto ou romance.45
Para a composição de nossa interpretação, entendemos que a manipulação
de elementos temáticos exteriores à realidade cotidiana atende a uma motivação
específica. A aparição de cenários e ferramentas ligados às diversas descobertas
científicas presentes ao longo das narrativas configuram um contato com a vigência
dos bens simbólicos daquela cultura, permitindo uma discussão da própria realidade.
Sobre a problematização do presente contida na escrita de FC, Moacy Cirne diz que:
“A FC, nascida com Verne, desenvolvida com Wells, sistematizada depois de 1926,
colocar-se-á, sempre e sempre, a serviço de um futuro pensado e problematizado no
presente”46(grifo do autor). A ficção científica, num sentido mais especulativo,
segundo Léo Godoy Otero, surge com o propósito de aproximar e até mesmo
compreender as expectativas sobre o futuro das sociedades e sobre os próprios
indivíduos. O texto, nesse sentido, torna-se provocador, na medida em que tenta
imaginar futuros e constituir novos pensamentos através da leitura da sociedade
vigente:
45 ALLEN, op cit, p. 224-225.46 CIRNE, Moacy. A Biblioteca de Caicó: Ensaios sobre vanguarda, semiologia e cultura de massa. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1983. p. 47.
42
Recuando-se bastante no tempo, pode-se dizer que nasceu a ficção científica desde quando o homem começou a imaginar coisas que não existiam na sua época; contudo, através de conhecimentos adquiridos poderia deduzir ou presumir achados e eventos futuros.47
Entendemos que os textos de ficção científica atestam a problematização das
relações entre os indivíduos e o ambiente no qual estão inseridos, tal como qualquer
outra obra literária. No entanto, podemos perceber uma distinção entre o texto de FC
e os textos “autenticados” como literários a partir dos próprios manuais de estudo de
literatura brasileira, que praticamente ignoram a produção de FC ao longo de todo o
século. Dentre outros aspectos, a FC concentrar-se-ia na ideia de uma produção
voltada para as massas, não credenciando os textos vinculados ao gênero a compor
uma historiografia na qual a literatura é compreendida como um produto possuidor
de uma aura estética, advinda do gênio e originalidade do artista. Além do mais, no
cenário brasileiro, a análise da FC é compreendida como uma cópia vazia dos
modelos europeus com os quais mantêm uma relação de constante dependência,
sem desenvolver nenhum aspecto característico da cultura nacional. Segundo
Gerson Lodi-Ribeiro:
Muito se disse, até um passado relativamente recente, sobre a incapacidade do autor nacional de FC para criar textos dotados simultaneamente da plausibilidade científica que se encontra nos trabalhos ingleses e norte-americanos e de uma qualidade literária mínima para torná-lo aceitável ao paladar do público leitor brasileiro. O argumento dessa pretensa incapacidade é que, sendo frutos de uma formação social cientificamente atrasada e tecnologicamente dependente, os nossos autores simplesmente não possuiriam uma visão de mundo adequada, capaz de fazê-los se sentir à vontade em assumir uma abordagem científica da FC.48
A partir desse pressuposto, o Brasil não possuiria uma relação de
pertencimento natural com a ciência e se limitaria a reproduzir abordagens de escrita
das culturas mais avançadas. Outro fator para essa marginalização está presente na
popularização de elementos imaginativos existentes na cultura brasileira que são
constantemente suplantados pela ideia de realismo contida no entendimento de uma
escrita literária como veículo de representações fiéis à realidade. A fantasia está nas
narrativas orais, lendas urbanas e narrativas cinematográficas em circulação no
espaço cultural brasileiro, mas a busca pela descrição do real entra em conflito com
a imaginação aparentemente desvinculada das vivências em sociedade. Essa
atitude impede a consolidação de uma escrita baseada em outra esfera de
47 OTERO, op cit, p.23.48 LODI-RIBEIRO, Gerson. A vertente científica na ficção científica brasileira. DO Leitura, São Paulo, novembro 1993. p. 8.
43
compreensão e discussão de mundo, concentrada especificamente na especulação
da existência de mecanismos, ferramentas e sociedades distantes, avançadas ou
em decadência. Mary Elisabeth Ginway nos apresenta alguns fatores que têm
afastado a ficção científica dos estudos literários brasileiros:
[...] a ficção científica brasileira, eu creio, tem sofrido duplamente, primeiro por suas associações com “arte baixa” e ficção popular, e segundo, por ser um gênero imaginativo em um país que dá um alto valor ao realismo literário. A popularização do realismo mágico e do fantástico tão prevalente em outros países da América Latina não é um princípio dominante na literatura brasileira.49
Diante de um quadro de desprestígio no interior dos estudos literários,
buscamos reforçar a idéia de que a FC é uma possibilidade literária válida para
compreendermos as modificações culturais e ideológicas ocorridas ao longo da
inserção dessa escrita na realidade. Os textos de FC não diferem, quanto à forma,
de nenhum texto de ficção em prosa, e podem substanciar diversas discussões
acerca da própria escrita, do tema e do contexto sócio-cultural no qual o texto se
inscreve. Nesse contexto, as construções ficcionais interagem constantemente com
a realidade experimentada pelo escritor, configurando um novo espaço no qual o
texto é um representante válido na análise dos elementos que a constroem, em
intersecção com um imaginário que envolve a todos. Segundo David Allen, a FC não
difere de qualquer outro tipo de escrita em prosa e o escritor continua, através de
seu texto, estabelecendo relações ficcionais entre a realidade, personagens e
indivíduos sociais:
E como qualquer prosa, os temas de ficção científica preocupam-se com a interpretação da experiência e da natureza do homem em relação ao mundo ao seu redor. Os temas na ficção científica são elaborados e apresentados exatamente das mesmas maneiras que os temas são tratados em qualquer outro tipo de ficção. 50
Ao analisar os elementos da ficção científica presentes nos textos, devemos
considerar que os aspectos científicos ou ambientes descritos nas narrativas não
obedecem necessariamente ao caráter de realidade destes elementos ou à
realidade da ciência. A cultura brasileira, embora não tenha propriamente gerado as
ideias de uma civilização construída com base no desenvolvimento científico,
consegue manter um diálogo com essas culturas “desenvolvidas”. Esse contato não
é de simples dependência ou imitação superficial dos modelos europeus, mas
49 GINWAY, Mary Elisabeth. Ficção científica brasileira: Mitos culturais e Nacionalidade no País do Futuro. São Paulo: Devir, 2005, p.29.50 ALLEN, op cit, p. 224.
44
compreende a existência de uma ciência que Bráulio Tavares apresenta como mais
uma personagem das narrativas de FC. Lodi-Ribeiro observa as limitações e
possibilidades da escrita de FC no Brasil, pois:
De fato, praticamente não se desenvolve tecnologia no país (aqui estamos falando de tecnologia nacional). [...] Quanto à ciência nacional em termos latos, não existe tal coisa. Não existe uma ciência norte-americana ou brasileira. A ciência é uma atividade internacionalizada por excelência.51
Nesse mesmo sentido, Allen discorre sobre a presença da ciência nos textos
de FC, desvinculando-a de uma concretude: “tudo o mais que possa ser dito sobre
este assunto é sem dúvida verdade que a ‘ciência’ que se encontra em ficção
científica não é o mesmo tipo de ‘ciência’ que se encontra num compêndio.”52. Em
outro momento, Bráulio Tavares nos alerta sobre a intenção de aproximar os temas
utilizados nos textos de FC com a presença e participação do escritor nos interesses
da ciência institucionalizada na sociedade vigente. Isso quer dizer que a narrativa de
FC não está engajada na mera divulgação dos valores da ciência, mas busca, a
partir dos discursos existentes em seu próprio interior, uma nova perspectiva de
descrição da realidade futura ou vigente:
Temos que lembrar que a FC utiliza muita matéria prima da ciência, mas manipula os instrumentos da ficção. O resultado disso é que seu compromisso não é com a verdade, e sim com a imaginação e a fantasia. Uma boa história de FC é a que consegue nos mostrar um universo diferente do nosso, em geral mais complexo do que o nosso e dar-lhe uma coerência satisfatória. 53
A partir de Roberto Causo e Bráulio Tavares, sabemos que existiram na
literatura brasileira exemplos de um texto que estava à disposição da divulgação de
determinados valores sociais e morais. Essas intenções localizavam-se em um texto
que dialogava com os pressupostos de uma narrativa utópica e apresentavam um
novo modelo de sociedade abalizado na ideia de futuro ou de realidade paralela.54 A
presença da ciência, nesses exemplos, reduzia-se apenas ao elemento
contemplativo, sem causar um impacto mais profundo no enredo da narrativa. Os
personagens agiam como se estivessem diante de uma representação do misterioso
e de certo modo divino, sem esboçar qualquer tipo de interação. Certamente que
51 LODI-RIBEIRO, op cit, p.8.52 ALLEN, op cit, p. 227.53 TAVARES, 1992, p.24.54 De acordo com Sílvio Alexandre: “A Ficção Científica é, muitas vezes, um exercício, um esforço para se libertar de todos os convencionalismos, para imaginar mudanças em nossa sociedade, sacudir os conceitos estabelecidos, inventar situações absurdas para depois jogar com elas, analisá-las em termos do cotidiano, situar o homem e seus problemas por ângulos inusitados e atualmente impossíveis.”
45
não podemos considerar essas produções diretamente vinculadas à definição
contemporânea de ficção científica, pois assim teríamos que associar diversas obras
ao longo do tempo que, em algum momento, assumiram o mesmo tipo de viés
temático.
No entanto, de acordo com Tavares, podemos identificar essas obras como
uma espécie de gênese da produção que posteriormente resultou na constituição, a
partir da literatura fantástica, de uma escrita de ficção científica no Brasil. Roberto
Causo, tomando como base um panorama da literatura “universal”, enumera
algumas obras que desde o período medieval cortejavam os elementos fantásticos
na apresentação de sátiras, novas ideias sobre cidade, realidade, sociedades e
civilizações: “[...] alguns observadores propõem que tudo que se assemelhava à
ficção científica, mas produzida antes da denominação do gênero, seria definido
como ‘protoficção científica’”55.
De acordo com essa perspectiva “ancestral” de escrita fantástica em
semelhança e contato abstrato com a “ciência”, interessou-nos apontar a escrita de
Humberto de Campos como um exemplo de protoficção científica no espaço de
produção brasileira. A literatura em nosso país, no início do século XX, começa a
apresentar uma relação mais próxima entre fantasia, ciência e realidade, embora
nesta relação não exista um exemplo de texto que possa, contemporaneamente, ser
“classificado” como ficção científica. Por isso, aproveitamos a definição de Bráulio
Tavares que, ao abordar este aspecto do estado embrionário da FC na escrita
brasileira, afirma: “São consideradas como ‘proto-fc’ aquelas obras que escritas
antes que as características do gênero se firmassem, trazem em si alguns
elementos que os identificam com ele.”56.
De qualquer modo, não podemos definir Humberto de Campos como um
escritor que tenha criado um projeto sistemático para a escrita de FC, tampouco
classificá-lo como um escritor do gênero; no entanto, encontramos em seus textos a
presença dessa intenção de revelar uma nova realidade através de parâmetros
definidos pelo entendimento do que seria desenvolvimento científico-tecnológico no
Brasil do início do século XX. O texto de Humberto de Campos aproxima-se da ideia
de protoficção científica, justamente por apresentar elementos da FC e de textos
fantásticos em circulação no Brasil e na Europa, com ideias e noções de ciência
55 CAUSO, op cit, p. 51.56 TAVARES, 1993, p. 2.
46
vigentes no Brasil, muito antes do estabelecimento da terminologia do gênero.
Percebemos essa “origem” da FC não somente nos textos em que Campos
descreve e narra uma realidade “fantasiosa”, mas também em outros nos quais
comenta, nas críticas literárias, a construção ficcional de textos que relacionam a
fantasia com a expectativa do futuro ou aparecimento de um instrumental científico
característico das temáticas de FC.
As raízes de uma protoficção científica na literatura “universal”, segundo nos
informa Roberto Causo, estão muito além dos textos de Verne, Wells e das histórias
e revistas de Hugo Gersnback. A noção de contatar o futuro e o desconhecido está
presente em várias narrativas mitológicas e fantásticas ao longo dos séculos.
Nessas narrativas existe a possibilidade de pensar paradigmas temáticos e formais
que tenham levado alguns escritores a construir outras narrativas sem
necessariamente abordar uma idéia clara e específica de ciência:
A protoficção científica seria então um objeto ainda mais antigo. Peter Nicholls é um dos que acreditam que a ficção científica “é meramente uma continuação, sem qualquer hiato verdadeiro, de uma tradição de ficção imaginativa muito mais antiga, cujas origens estão perdidas nas brumas míticas e neblinas folclóricas da tradição oral”57
Alicerçados nessa definição e propondo uma aproximação com a escrita de
Campos, percebemos que os contos inventam uma tecnologia com a qual a cultura
brasileira não mantinha um contato direto. Ao tratar de uma realidade que, embora
experimentada pela sociedade, dialoga intimamente com desejos e idealizações,
permitem que o escritor reoriente suas concepções de futuro de acordo com seu
entendimento de presente e passado da sociedade. Queremos dizer com isso que a
realidade brasileira do início do século XX fora idealizada com base em parâmetros
que não residiam no interior da própria cultura, mas poderiam ser imaginados. O
cenário futuro apresentado nos textos literários foi construído com fundamento nas
diferenças existentes em relação ao passado ou presente, compondo, a partir de
elementos fantásticos, novas descrições e comportamentos dos personagens em
outro espaço-tempo.
A protoficção científica em Humberto de Campos atende justamente ao
caráter antecipador do gênero de FC no Brasil, porém não se constitui em um
exemplo da ficção científica clássica existente na Europa de Verne e Wells, ou nos
Estados Unidos a partir de 1930. Os textos de Campos aproveitariam as estruturas
57 CAUSO, op cit, p. 52.
47
do fantástico, existentes em outras narrativas “ancestrais”, para compor novos
cenários de realidade através dos discursos científicos e dos projetos de
modernização existentes na capital da República do início do século XX. Segundo
David Allen: “o interesse fundamental da ficção científica encontra-se na relação
entre o homem e sua tecnologia e entre o homem e o universo.”58, que, em nossa
compreensão, está muito além da busca de comprovações da existência dos
elementos que compõem a narrativa. De tal modo, o homem (e também a mulher), a
tecnologia e o universo podem ser constantemente inventados e caracterizados
conforme uma experiência de mundo bastante particular do escritor.
58 ALLEN, op cit, p. 223.
48
Ilustração 01*
* Capa do livro: Jules Verne: O grande profeta, destacando as máquinas “antecipadas” pelas narrativas do autor. Fonte: http://www.sil.si.edu/OnDisplay/JulesVerne100/verne_images.cfm
49
2 HUMBERTO DE CAMPOS: TRAJETÓRIAS E NOVOS MUNDOS
2.1 Fragmentos de azulejos
Desde o primeiro contato com o texto de Humberto de Campos, deparamo-
nos com algumas questões acerca do apagamento do escritor na crítica e na história
literária brasileira. Embora tenhamos citado algumas hipóteses, não seguiremos esta
problemática justamente por compreendermos a necessidade de um estudo mais
ampliado da produção de Campos, seus leitores e críticos. No entanto, partimos
desse “apagamento” para apresentar a construção de um recorte da biografia do
escritor fundamentada em seus textos autobiográficos e a crítica de algumas de
suas obras.
Humberto de Campos, apesar de ter sido uma figura de destaque no cenário
literário do Brasil do início do século XX, não possui uma fortuna crítica numerosa,
tampouco o escritor foi objeto de estudo dos biógrafos de seu tempo e da
contemporaneidade.1 Atualmente temos acesso, com relativa tranquilidade, a alguns
momentos da vida do escritor através de seus escritos autobiográficos, além de
pequenas citações veiculadas em jornais e revistas da época, reunidas em
coletâneas. Esses pequenos recortes dedicam-se a noticiar algumas peculiaridades
da vida de Campos: a doença que o levou à morte, comentários superficiais sobre
suas crônicas jornalísticas, as funções que exercia na política e sua presença na
Academia Brasileira de Letras.
Ao que nos parece, o fato de ser Imortal da Academia Brasileira de Letras não
credenciou Humberto de Campos para os estudos da posteridade, tampouco
garantiu espaço para reflexões acerca de sua produção escrita e sua relação com a
política brasileira do início do século, dentre outros aspectos. Essa ausência de
Campos nos manuais de literatura demonstra, de algum modo, o pouco interesse da 1 Tivemos acesso a duas produções acadêmicas que focalizaram, de algum modo, Humberto de Campos e sua escrita como objeto de estudo. O já citado trabalho de Alexandre Caroli Rocha e a dissertação de mestrado de Roberta Scheibe: SCHEIBE, Roberta. A crônica e seus diferentes estilos na obra de Humberto de Campos. 2006. Passo Fundo, Rio Grande do Sul. Dissertação (Mestrado), Universidade de Passo Fundo.
50
atualidade sobre a sua produção. A falta de informações e citações de outros
intelectuais e jornalistas da época lançou Humberto de Campos para o
esquecimento nos estudos da contemporaneidade, prejudicando o entendimento
sobre uma sociedade que ele experimentou e, através de uma lente particular,
descreveu.
A ausência da figura de Campos nas produções da atualidade trouxe-nos
uma dificuldade que só conseguimos ultrapassar mediante a aceitação de outra
possibilidade para retratarmos esse escritor, enquanto participante daquela
realidade. Em meio a poucas alternativas para contornar esse empecilho, chegamos
aos textos autobiográficos de Humberto de Campos. Não podíamos deixar de levar
em consideração o próprio olhar do escritor sobre ele mesmo e por isso recorremos
a esses textos como tentativa de construir um esboço do personagem histórico que
foi Humberto de Campos. Evidentemente, a descrição de si está vinculada aos
interesses do escritor de representar-se e lançar uma imagem de si mesmo para a
posteridade. Entendemos que a imagem do escritor em seu próprio texto está de
acordo com o anseio de difundir uma figura satisfatória de si consoante sua memória
e entendimentos acerca do que deve ser dito:
A memória é um grande museu de fotografias, em cujos muros consagramos determinado espaço a cada criatura querida. Uma vez cheio êsse espaço, temos que retirar os retratos mais antigos, pondo no lugar outros mais recentes, da mesma pessoa.2
Destacamos que não faz parte de nossas intenções apresentarmos uma
discussão sobre as estratégias e performances do escrito autobiográfico de
Humberto de Campos, mas, a partir dele, desejamos construir um recorte do
personagem exposto às imagens e aos espaços que lhe foram apresentados. Para o
entendimento da composição do texto autobiográfico nos apoiamos na hipótese de
que a autobiografia obedece às mesmas ferramentas da construção do texto de
ficção, inclusive na composição de qualquer personagem ficcional. Lembramos aqui
o texto de Wolfgang Iser3 como base para a compreensão acerca da construção de
uma personagem, inclusive a autobiográfica. Consideramos, tomando Iser como
referência, que a escrita da memória se estabelece na recolha de fragmentos
selecionados e combinados a outros elementos, que assim constroem outra
perspectiva da realidade. Essas cenas compõem um quadro bem distinto daquele
2 CAMPOS, Memórias. p. 35-36.3 ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. LIMA, Luís Costa. Teoria da Literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983.
51
que “realmente” existiu, mas não quer dizer que se oponha completamente àquela
verdade um dia experimentada. Humberto de Campos, ao que parece, estava ciente
da construção deste mosaico e deixa claro aos seus leitores que sua escrita é uma
composição baseada na probabilidade dos acontecimentos terem existido, sem
colocar em questão a veracidade deles:
Ao recapitular, hoje, os incidentes que assinalam a minha primeira infância, isto é, o período que vai do meu nascimento até à morte do meu pai, e que abrange os seis primeiros anos de minha vida, encontro, ùnicamente, como fragmentos de azulejos que formassem um quadro destruído, pequenos episódios, cenas ligeiras, e, aquí e alí, modestas figuras familiares.4
O texto autobiográfico é uma tentativa do escritor de manter um diálogo
consigo mesmo através da personagem que ele cria com base na realidade que ele
mesmo experimentou e que busca representar no texto. As imagens de sua infância
e adolescência estão permeadas pela leitura e experiências do escritor já
amadurecido, consciente do tipo de representação de si que deseja criar. Assim, ao
recorrermos aos textos autobiográficos de Campos, sabemos que a presença da
personagem, no contexto da escrita, permite-nos verificar os pontos de contato entre
a realidade que ele experimentou na juventude e a realidade no momento em que
descreve e narra fatos de sua vida:
Que são, na realidade, as cousas que tenho escrito, e estas páginas que estou escrevendo no limiar da velhice, senão fragmentos de paina soprados para o alto, e destinados a tombar pouco adiante, sem deixarem o mais ligeiro vestígio no pedaço do céu por onde voaram sem rumo?5
Nossa disposição em apresentar um esboço da figura de Humberto de
Campos consiste na percepção do texto autobiográfico como peça ficcional do
escritor que apresenta uma leitura particular do mundo no qual estava inserido.
Estamos cientes de que a autobiografia é mais uma possibilidade de compreender a
realidade do escritor naquela época, e surge como uma ferramenta de verificação
nas construções ficcionais de algumas de suas ideologias e entendimentos acerca
das realidades que experimentou.
No prefácio de suas Memórias, Humberto de Campos justifica o livro
autobiográfico como uma necessidade de falar de si mesmo com o propósito de
expor para seus leitores suas experiências, sucessos e fracassos. Com este
objetivo, ele apresenta sua trajetória de menino nordestino, pobre, órfão de pai,
construindo uma imagem “inferior” em relação às das demais crianças, se
4 CAMPOS, Memórias. p. 51.5 Idem, p.108.
52
autodefinindo como infeliz e feio. No decurso da narrativa, na virada desse estágio,
nós encontramos o escritor com fama e sucesso, trabalhando nos jornais e atuando
ativamente na vida política do Brasil. Nesse sentido, Campos constrói uma
personagem que serve de modelo para seus leitores, mesmo que isto não seja um
objetivo declarado. No auge de sua experiência e credibilidade junto às Instituições
brasileiras – a política, o jornalismo e a Academia de Letras – suas narrativas soam
como conselhos e comentários de alguém experimentado na dificuldade de
estabilizar-se na sociedade. Constituir-se como modelo, segundo ele, seguia a
mesma intenção da escrita contida na obra de Santo Agostinho, Rosseau e Gorki6.
Entre estas, ele localizou suas “Memórias”:
Escrevo a história da minha vida não porque se trate de mim; mas porque ela constitue uma lição de coragem aos tímidos, de audácia aos pobres, de esperança aos desenganados, e, dessa maneira, um roteiro útil à mocidade que a manuseie.7
A escrita autobiográfica de Humberto de Campos, quando em diálogo com
outros textos que escreveu, traz perspectivas diferentes para a compreensão do
espaço sócio-cultural de que fazia parte. O contato entre o autobiográfico, a
realidade experimentada pelo escritor em suas memórias e os textos literários,
permitiu-nos localizar uma gênese do interesse do escritor em apresentar uma
leitura da sociedade frente às cenas de desenvolvimento e presença da
modernização.
2.2 Trajetórias e movimentos de translação
Humberto de Campos Veras nasceu em 25 de outubro de 1886, na cidade de
Miritiba (hoje Humberto de Campos), no estado do Maranhão, e morreu no Rio de
Janeiro, em 05 de dezembro de 1934. Possuiu, segundo seus relatos, uma infância
e adolescência sofridas no interior do nordeste do Brasil, deixando fortes marcas em
destaque na sua escrita. A pobreza e as poucas oportunidades para se manter
financeiramente constituíram-se como um tema importante para a afirmação da voz
do escritor no texto autobiográfico. Através dessa condição, mostra-se capaz de
6 Humberto de Campos se refere às obras: As Confissões (401) de Santo Agostinho; As Confissões (1762) de Jean Jacques Rosseau e Infância (1913) de Máximo Gorki.7 CAMPOS, Memórias, p.8.
53
discutir as agruras da sociedade e ilustrar seu pensamento acerca dos contrastes
existentes nela.
Em seus relatos, Humberto de Campos torna-se símbolo da resistência contra
as adversidades experimentadas em sua origem humilde, apresentando o status
conseguido ao longo de sua jornada como vitória de sua perseverança: “[As famílias
brasileiras] Têm horror à verdade, quando esta lhes ofende a vaidade ingênua, e
ocultam o segrêdo da sua pobreza, mesmo quando heróica e honrada [...].”8. É
importante lembrar que esse é um ideário típico do final do século XIX. O sujeito que
consegue vencer as dificuldades do ambiente em que está inserido seria o único
capaz de manter-se na sociedade. Uma adaptação da teoria biológica da seleção
natural transposta para a compreensão da sociedade.
Os princípios do evolucionismo social (adaptação da teoria de Charles
Darwin) e da teoria da seleção natural estão bem presentes na proposta de Campos
ao relatar os aspectos de sua vida. Sua vitória é creditada aos seus próprios
esforços de manter-se firme rumo à conquista de seus objetivos. No Prefácio9 às
suas memórias, identificamos que a narrativa das dificuldades atravessadas pelo
escritor contribuiu para demonstrar seus modos de interpretar suas experiências de
vida, relacionando sua escrita com o mundo à sua volta. Essa atitude encaminhou-
nos para a análise das narrativas autobiográficas à medida que íamos contatando os
demais textos ficcionais de Campos, confrontando-os com sua vida e os ideários aos
quais estava exposto.
Após a morte do pai em 1892, Humberto de Campos passou a morar em
outras cidades. Sem o principal mantenedor da família, era preciso ir à busca de
estabilidade financeira, e isto incluía uma aproximação com os outros membros da
família que pudessem auxiliá-los na labuta diária10. A família nuclear de Campos era
composta por sua mãe e irmãs que saíram de Miritiba para São Luís, capital do
Maranhão, e posteriormente para Parnaíba, no Piauí, local onde a mãe permaneceu
até a morte. Após alguns anos em Parnaíba, Campos retorna para São Luís, onde
trabalha como tipógrafo e atendente em uma mercearia do comércio. Em seguida
8 CAMPOS, Memórias, Prefácio.9 Idem.10 Alexandre Caroli Rocha expõe que Humberto de Campos: “Frequentou pequenas escolas, onde se alfabetizou. E por conta dos escassos recursos da família, ingressou no mundo do trabalho como aprendiz de alfaiate e, depois, assumiu a função do balconista na loja de seu tio Emídio. Não por muito tempo, pois perdeu esse emprego e teve de auxiliar sua mãe na confecção de meias em sua casa.” ROCHA, op cit, p. 21.
54
vai morar em Belém, capital do Pará, norte do país, trabalhando em um jornal local.
Estas constantes mudanças de ambiente e cidade apresentam para Campos uma
série de imagens vinculadas ao atraso, à prosperidade, pobreza, riqueza, vida e
morte. No entanto, essas imagens tomaram outra significação quando contatadas
com os textos literários que Campos leu durante a juventude. O significado de
civilização que ele deixa transparecer em seus escritos autobiográficos, a leitura dos
livros e aquela realizada pelo escritor acerca da sociedade parecem-nos bastante
interessantes, pois nos guiam na perspectiva da criação de temas e imagens
presentes nos contos.
O diálogo entre as imagens dos textos literários de seu conhecimento e
aquelas experimentadas no cotidiano da juventude trouxe para Humberto de
Campos elementos para a construção de novas leituras e percepções do mundo na
contemporaneidade de seus escritos autobiográficos. Acreditamos que isso tenha
influenciado sua relação com o mundo exterior ao evidenciar, nos contrastes e nas
descrições apresentadas a partir das cidades de Miritiba e São Luís, a relação
civilização/desenvolvimento-primitivismo/subdesenvolvimento. Apesar de todo o
deslumbramento que a capital do Maranhão lhe propiciava, o modo como o escritor
retrata sua vila natal está impregnado de um olhar doce e carinhoso, sem apontar
marcas de distanciamento com a “modernidade”. Percebemos isso no capítulo
“Miritiba”11 no qual o escritor descreve sua cidade natal. A descrição do ambiente
“primitivo” não é sentida com desgosto ou vergonha, antes parece que nos deseja
lembrar o paraíso:
Miritiba devia ter umas duzentas casas, das quais apenas umas trinta ou quarenta de telha. Os seus arredores eram, no entanto, poéticos. Nas duas extremidades da rua da frente, formavam-se novas filas de edificações que davam os fundos para o rio, tendo, aí, banheiros deliciosos. Essas casas possuíam coqueirais e fruteiras abundantes, características das regiões praieiras.12
Ao descrever sua saída de Miritiba rumo a São Luís, no capítulo A caminho
do exílio, Campos informa a seus leitores sobre as impressões que o novo ambiente
lhe causara: a organização urbana, o comércio desenvolvido e a presença de um
sentimento de progresso contrastavam com a pequena vila onde nascera. A cidade
de Miritiba tornou-se o parâmetro para conceber as novas imagens de cidade,
costumes, e assim configura suas diferenças ao mesmo tempo em que permite ao
11 CAMPOS, Memórias.12 Idem. p. 45.
55
escritor a manutenção de um diálogo com as possibilidades de entendimento do
novo, especificamente do desenvolvido e do “moderno”. Ao chegar à cidade de São
Luís em 1893, ele descreve, com o olhar da maturidade, o novo lugar onde fora
morar com sua família:
E em frente à casa um muro, e uma chaminé, assinalando os fundos de uma fábrica. Na esquina mais próxima, à direita, de longe em longe passava um bonde puxado a burros. À esquerda, lá em baixo, o mercado público. E dentro de casa, ou fora, um cheiro pronunciado de gás, que dava idéia de que era o cheiro, mesmo, do Progresso.13
Percebemos um contraste semelhante nas descrições que Campos faz da
cidade de Parnaíba, local onde foram morar após terem saído de São Luís. Se, no
quadro anterior, a pequena vila de Miritiba foi utilizada como referência e
estabelecimento de pontos de diferenciação frente à descrição da cidade de São
Luís, agora era a capital do Maranhão que servia como modelo para as
comparações com a cidade de Parnaíba, no Piauí. Acreditamos que a aparição
destes elementos descritivos acerca da cidade, na autobiografia de Campos,
alimentou as imagens de civilização e desenvolvimento que ele tenha empregado
nos textos que representam o desenvolvimento da cidade do Rio de Janeiro. Não
podemos descartar, no entanto, que essas idéias e textos tenham caminhado em
paralelo com a escrita autobiográfica, mas, ao menos para nós, ficam os vestígios
do interesse do escritor em apresentar uma sociedade e cultura “avançada” nos
moldes do pensamento vigente:
Depois de ter visto o Maranhão em 1893, ainda próspero, com suas fábricas, com os seus bondes, com o seu calçamento, com suas ruas movimentadas, com seus sobradões coloniais, com suas casas de comércio que conservavam mercadorias em exposição à porta, Parnaíba era, de algum modo, uma decepção. [...] Não tinha gás, não tinha carruagens, não tinha bondes. A impressão que Parnaíba me deu foi, em suma, a de uma Miritiba grande.14
Outro elemento importante nos textos autobiográficos é a atitude do escritor
diante dos fatos que ainda não foram explicados ou que até o momento não se
conseguia entender devido a alguma relação com o “sobrenatural” ou
“desconhecido”. O místico é estabelecido em contraste com o científico,
representado em correntes filosóficas que se mantiveram em oposição ao caráter
sobrenatural das explicações dos fenômenos vividos. As narrativas de assombração
ou relacionadas à morte, as explicações “populares” a determinados acontecimentos
13 CAMPOS, Memórias, p. 112.14 Idem, p. 129.
56
são descritas como “necessárias” para o conhecimento dos fatos, mas não são tão
dignas de crédito.
A postura do escritor maduro também se configura numa referência a
algumas correntes filosóficas vigentes no início do século XX. O positivismo, ao qual
ele se rende ainda jovem15, com dezesseis anos, na cidade de Parnaíba, acaba
impregnando sua leitura sobre os fatos acontecidos durante a infância: “[...] levantei
dentro de mim mesmo o grito de libertação, e, o peito inchado de orgulho, me
proclamei, perante mim próprio, - positivista!”16. Não há, por parte do personagem
Humberto de Campos, uma tomada de posição quanto à explicação dos fatos
inusitados e explicações “mal-acabadas” que lhe eram contadas, mas restou-lhe a
dúvida e o tom suavemente cético à espera de algum tipo de comprovação. No
entanto, esta atitude científica diante da vida não descartou por completo o medo e a
angústia diante do desconhecido que estava presente no íntimo do escritor. No
mesmo capítulo em que ele se autodenomina positivista, negando Deus e a
condição prestigiada que a Religião conferia à humanidade, ele revela:
De repente, à esquina do Sr. Madeira Brandão, ouvia um sussurro, como de vozes humanas. Era o vento, a brisa noturna [...] Um frio me percorria a espinha dorsal. O cabelo se me arrepiava. [...] E o homem, rival dos deuses, e que não temia Deus, desatava em uma carreira doida pela rua deserta, sob a amplidão misteriosa e estrelada, e enveredava pela casa batendo a porta, como se viesse perseguido lá de fora por todos os monstros da Sombra e por todos os fantasmas da Noite.17
Podemos citar também, como outro exemplo, o momento em que a primeira
lancha a vapor trafega à noite nas proximidades da vila de Miritiba, quando
Humberto ainda era criança. Os apitos desconhecidos e a noite escura, sem lua,
compunham o cenário para o assombro de todos os moradores da vila. O estranho
som de apitos estremeceu todo o povoado. Todos à volta do menino Humberto
acreditavam que os apitos eram provenientes de algum monstro ou diabo que havia
chegado para liderar o fim dos tempos. As explicações religiosas acerca do
sobrenatural vigoravam em detrimento da postura científica, tão propalada pelo
positivismo de Augusto Comte. Na autobiografia de Campos, esse acontecimento é
descrito já com os valores da maturidade do escritor:
15 Ver capítulo “De Cazuza Porto a Augusto Comte”. CAMPOS, Humberto de. Memórias Inacabadas. São Paulo: W. M Jackson, 1960.16 CAMPOS, Memórias Inacabadas, p. 160.17 Idem, p. 165.
57
Despertando de repente, e vendo o casal e os dois filhos agoniados, ouví por minha vez um grande grito apavorante, que devia partir da garganta de um monstro. Perguntei, baixinho, o que era.- É o Anti-Cristo, o amaldiçoado... – respondeu-me a cabocla, em cujo colo eu havia me abrigado.18
O contato com o desconhecido e as conjecturas em direção ao futuro também
estão presentes no texto autobiográfico. No capítulo Fim do século, Humberto de
Campos descreve a ansiedade experimentada não somente por ele, mas por todos
à sua volta, na expectativa do que viriam a ser os próximos anos do novo século. A
transição do século XIX para o século XX estava repleta de um imaginário religioso
no qual a leitura do “final dos tempos” era seguida tal como descrevia o Apocalipse
bíblico no cenário do Juízo Final e estabelecimento do novo Reino Divino. A atitude
e descrição destes eventos por Campos, nesse caso, estão voltadas para a
materialidade dos fatos, retirando a áurea sublime e agoniada das expectativas da
chegada do final da humanidade.
A narrativa autobiográfica mostra que o escritor, quando era atendente do
comércio, passou as horas anteriores e posteriores à chegada do ano de 1900
trabalhando na contagem e armazenamento das garrafas de vinho que eram
vendidas na loja. Mesmo assumindo essa postura diante da “virada do século”,
Campos não deixa de mencionar as esperanças que o futuro trazia, permeadas pelo
sentido do misterioso e desconhecido: “Aquele momento é excepcional na História
da Humanidade. A Civilização vira uma página lida sem saber que emoções lhe
reserva a outra, que vai ler...”19. Essa expectativa não estava abalizada no
sentimento religioso, mas no sentimento de progresso e possível desenvolvimento
científico, se pensarmos principalmente no uso da palavra “Civilização”. A
comparação entre os séculos é feita visando a perceber os níveis de benefícios à
sociedade que o século vindouro traria frente às conquistas do século anterior. As
notícias que vinham da capital da República informavam à região Nordeste o anseio
pelas mudanças que certamente chegariam com o novo século:
Os telegramas do Rio de Janeiro, que os jornais maranhenses publicavam, anunciavam grandes demonstrações de regozijo por toda parte. O “século das luzes” ia apagar-se, legando ao que lhe vinha suceder uma infinidade de conquistas que o anterior jamais imaginara. Que espantos, que prodígios, traria no seu mistério o século que ia surgir? Que nome se lhe devia dar, no nascedouro? Tudo era alegria e esperança, em suma, no coração da Humanidade alvoroçada.20
18 CAMPOS, Memórias, p. 93.19 Idem, p. 482.20 Idem, p. 478.
58
A partir desses recortes autobiográficos de Humberto de Campos, podemos
identificar e conceber uma figura de escritor que estava interessado nos ideais que
circulavam na sociedade brasileira, sobretudo os aspectos referentes aos costumes
populares e ao desenvolvimento urbano. O período da vida do escritor que
compreendemos aqui é o tempo que ele menciona especificamente em suas
memórias. As anotações sobre as imagens e o sentimento despertados em Campos
serviram para a nossa compreensão da escrita utilizada para representar alguns
aspectos da sociedade do início do século XX.
2.3 Novos mundos: viagens e fantasias
O livro de memórias de Humberto de Campos contém descrições de uma
trajetória marcada pela pobreza, que apresentava poucas chances de sucesso para
o escritor: “O tempo corria, célere, e o meu futuro continuava a apresentar a
perspectiva de um deserto de cinza, limitado no horizonte, por um deserto de
areia.”21. Em contraposição a este cenário sem grandes oportunidades de
crescimento, Campos informa-nos do interesse que a literatura passou a despertar
nele como uma possibilidade de construir uma vida financeiramente mais estável. A
experiência como aprendiz de tipógrafo aos treze anos, numa oficina do pequeno
jornal O Comercial, na cidade de Parnaíba, em 189922, começou a aproximá-lo do
universo da produção literária, e assim direcionou a atenção do escritor
definitivamente para o contato com as Letras:
A insistência com que eu voltava a pensar nas tipografias, e o desejo que manifestava de seguir, entre os ofícios, aquele que mais de perto se relacionava com a carreira das letras, dá-me a compreender que estas eram, na verdade, em mim, uma predestinação. Estava traçado nas fôlhas do Grande Livro em que os deuses lavram a missão final de cada criatura, que eu devia ser, um dia, escritor.23
A vida escolar atendia a todos os seus precários objetivos, limitando-se a
apresentar alguns personagens históricos, cálculos matemáticos, pequenos versos e
sonetos. A caracterização dos professores e das metodologias de ensino
21 CAMPOS, Memórias, p. 397.22 Idem, p. 386.23 Idem, p. 453.
59
apresentadas por Campos também não inspiravam o desejo pela escola, tampouco,
diz-nos o escritor, aumentaram o seu desejo de aprender: “Não gostava de estudar;
mas gostava de ler.”24. Essa disposição levou Campos a enveredar pelos textos que
posteriormente o encaminharam para além da realidade massacrante do cotidiano,
ao abrir espaço para uma trilha no imaginário construído pelos textos disponíveis na
pequena biblioteca da cidade. Podemos inferir, a partir de exemplos citados pelo
próprio escritor, que os textos de interesse infanto-juvenil se concentravam nas
narrativas de aventura e fantasia. Com esta atitude, entendemos que Campos
permanecia vinculado à sua realidade; porém, na leitura dos livros, mantinha-se
distante da vida de dificuldades que experimentava, recriando-a.
O desejo pela leitura do texto literário começou a fazer parte mais atuante de
sua rotina, permitindo assim o constante diálogo entre as imagens registradas no
escrito e aquelas experimentadas cotidianamente. A leitura dividia espaço com o
trabalho na tipografia ou na mercearia, e funcionava como uma estratégia para
conhecer os novos mundos que não estavam por perto, mas eram apresentados
pelos textos. A busca por outras realidades possíveis apenas na literatura orientou o
gosto do escritor para as narrativas que pareciam extrapolar os significados da
realidade. Para afirmar essa hipótese, destacamos nos textos autobiográficos a
presença das obras de um escritor europeu, importante no contexto em que
queremos situar alguns aspectos da escrita de Humberto de Campos: “[...] lia,
também, por conta própria. Um dia, tomei uma tradução de Júlio Verne, Os Filhos do
Capitão Grant, em dois volumes. Li à tarde, e durante a noite toda. Pela manhã a
leitura estava concluída.”25.
O prédio da Biblioteca Pública de Parnaíba ficava bem em frente ao lugar
onde Campos dormia. A Biblioteca servia como abrigo para os momentos em que
era necessário buscar outros ares bem distantes da vida de sofrimento. A leitura dos
textos de Jules Verne representa, para nós, uma aproximação intelectual entre os
escritores, o que possivelmente teria influenciado a escrita de Campos na
construção de seus temas, narrativas e descrições. A partir da declaração de
Campos acerca de suas leituras e levando em consideração o momento sócio-
cultural no qual estava inserido, percebemos um diálogo com as idéias e intenções
presentes nos contos. Para demonstrar a proximidade entre o leitor Humberto de
24 CAMPOS, Memórias, p. 398.25 Idem.
60
Campos e Jules Verne, poderíamos localizar um referencial para as idéias de
Campos no que diz respeito ao contato com outras realidades:
A Casa Transmontana, em cujo sótão eu dormia pela manhã, era justamente em frente à Biblioteca Pública. Da minha rede, eu via, lá dentro, os livros alinhados. E comecei a freqüentar a sua sala de leitura, todas as tardes, isto é, depois do meio-dia, até às cinco horas. Lia, e as minhas predileções eram por Júlio Verne. Atravessei, com êle, a África. Visitei, em sua companhia, o México. E fui à Lua; e desci o Amazonas, e subí ao Himalaia; ora mergulhando nas nuvens; ora mergulhando no mar; cobrindo-me de gêlo nos polos; queimando-me com o sol nos desertos; mas enriquecendo a minha alma de sonho e meu espírito de conhecimentos, como companheiro invisível e nervoso dos seus viajantes imaginários.26
Os textos do escritor francês Jules Verne contribuíram para a constituição da
leitura de mundo de Campos, especificamente quanto ao modo como as realidades
estavam apresentadas nos enredos. O caráter “científico” da literatura de Verne é
exposto através da comprovação de aspectos da narrativa através de fórmulas
científicas, exposição de conhecimentos no âmbito da biologia, geologia e outras
ciências naturais e exatas. Essas leituras poderiam ter transmitido para Campos a
aproximação com a realidade e a necessidade de senti-las materialmente, embora o
texto se mantivesse distante, ao menos alguns elementos da própria realidade
sócio-cultural. A predileção por Jules Verne revela muito acerca da possibilidade de
o escritor tê-lo utilizado também como parâmetro para seus textos.
As citações a Verne estão presentes na autobiografia de Campos e tal
presença não se restringe às memórias. Humberto de Campos cita o escritor francês
nas críticas literárias, crônicas, contos, apontando a forte permanência de alguns
dos ideais da escrita de Verne e dos pensamentos voltados para o conceito de
civilização, desenvolvimento e ciência. Os contatos com povos, civilizações e
mundos desconhecidos dos enredos de Verne instigavam a curiosidade do menino
nordestino que buscava, nessa escrita fantástica e nas aventuras protagonizadas
pelos personagens, a criação de outro mundo no qual pudesse dialogar com sua
realidade ou seus anseios de “criar” uma nova realidade. Esse diálogo estabelecia-
se no sentido de apontar uma solução ou saída para os impasses em que vivia:
Um dos maiores sonhos da minha infância, era atravessar a vida viajando. As aventuras do “Gulliver” de Swift; o “Rocambole”, de Ponson, e as fantasias de Júlio Verne, cuja primeira obra me foi oferecida no dia do meu 14º aniversário, exerceram tamanha influência sôbre o meu ânimo, que eu não pensava, na adolescência, senão naquelas viagens maravilhosas.27
26 CAMPOS, Memórias, p. 463-464.27 CAMPOS, Serpente de Bronze, p. 286.
61
Encontramos breves discussões sobre H. G. Wells nas críticas literárias de
Campos. Na leitura da autobiografia não encontramos a citação direta a Wells tal
como acontece com Verne. Nas análises de obras como A República 3000 de
Menotti Del Pícchia, A Costela de Adão de Berilo Neves e A Amazônia Misteriosa de
Gastão Cruls, sabemos que Wells também compôs o cabedal de leitura de Campos:
“H. G. Wells, cuja capacidade inventiva pôde ser aferida desde 1895 com The Time
Machine, e culminou, talvez, no gênero, com War of The Worlds, em 1898.” E
prossegue em sua análise sobre Guerra dos Mundos: “[...] exagerou, porém, a sua
faculdade imaginativa. Adiantou-se tanto no tempo que saiu dos limites da realidade
[...]”28. Na análise sobre o livro de Gastão Cruls, diz: “A Amazônia Misteriosa, livro à
Wells, em que aliava a imaginação à ciência e que, sendo uma obra de ficção, era,
no mesmo passo, um livro de informação.”29
No subtítulo desta seção utilizamos o vocábulo “viagens”. Esta palavra
interessa-nos nesse momento para designar o processo de caminhar, peregrinar a
partir de um ponto inicial sem a necessidade objetiva de chegar a outro lugar.
Apontamos essa discussão para desenvolvermos, em analogia, um paralelo
metafórico com os percursos de Campos em suas jornadas empírica e ficcional,
relacionado-as. A viagem surge como imagem das andanças e da busca por algum
sentido, sem dar muitas descrições precisas (às vezes exagerando) ou ater-se a
coordenadas rígidas. Preferimos usar o termo “viagem” como devaneio e
desligamento dos parâmetros que nos mantêm arraigados à necessidade de
objetividade e materialidade. O percurso e os métodos para o cumprimento da
viagem podem ser variados e, na chegada a este outro lugar, podemos ter contato
com um cenário diferente do que estamos acostumados, fazendo-nos pensar nas
diferenças existentes desde os pontos de partida.
Quando Humberto de Campos descreveu as cidades em que havia morado
com sua família, ele o fez marcando as distinções entre elas. A figura do escritor é
uma espécie de ponto de intersecção que permite o contraste entre as realidades,
cabendo em sua descrição a utilização de elementos que possam melhor traduzir as
experiências vividas. Tomemos de empréstimo uma citação de Ítalo Calvino para
exemplificar nossa idéia sobre a viagem e as relações estabelecidas com aquilo que
fora vivido:
28 CAMPOS, Crítica 4ª Série. p.26.29 Idem, Crítica 2ª série. p. 373.
62
Partindo dali e caminhando por três dias em direção ao levante, encontra-se Diomira, cidade com sessenta cúpulas de prata, estátuas de bronze de todos os deuses, ruas lajeadas de estanho, um teatro de cristal, um galo de ouro que canta todas as manhãs no alto de uma torre. Todas essas belezas o viajante já conhece por tê-las visto em outras cidades.30
Humberto de Campos, constituindo uma relação entre a novidade dos
espaços que experimentava e as impressões adquiridas anteriormente nos livros,
buscava representá-las de um modo que conseguisse absorver diferentes símbolos
e significados desses lugares. As comparações nesse sentido seriam de grande
valia, pois se podia pensar nas possibilidades de adequação do novo lugar
“concreto” àquele vivido apenas no contexto da narrativa. A viagem através dos
caminhos que o levavam à descrição dos espaços simbólicos favoreceu a impressão
no sujeito de cenas e comportamentos que experimentava em contraste. As
narrativas a partir do ponto de intersecção (o escritor e “viajante”) podem se deslocar
perante a multiplicidade de imagens, vagando entre o possível e o impossível, o
visível e o invisível. Aqui podemos identificar uma espécie de jogo: as realidades
experimentadas por Campos nos espaços das cidades de Miritiba, São Luís e
Parnaíba, agora dialogavam com a realidade textual das aventuras fantásticas e vice
versa. Construindo uma relação entre o texto e a própria experiência, Campos
utiliza-se das Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, para tecer suas comparações
entre as realidades e a aproximação destas com a fantasia:
De regresso de Brobdingnag, o capitão Gulliver abaixava a cabeça para passar sob os portais das casas inglesas, os quais ficavam, todavia, quase dois metros acima do seu cabelo. Procedendo do Maranhão, a cidade dos casarões de três e quatro andares, eu olhava, agora, para os poucos sobrados parnaíbanos tomado de comiseração. Começava a distinguir e a comparar.31
A construção e descrição imaginária das cidades, dos exploradores e
narradores das aventuras de Jules Verne serviram como suporte para as
aproximações com os ideais de desenvolvimento e civilização tão caros ao início do
século XX, tanto na Europa quanto no Brasil. Percebemos que o contato com a
produção fantástica (e na citação feita anteriormente percebemos a presença de
Jonathan Swift, Ponson Du Terrail e em outros exemplos veremos a presença de H.
G. Wells) buscava extrapolar o que se podia apreender numa leitura superficial da
realidade e do texto. Na narrativa de Marco Pólo encontramos uma ilustração para
30 CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 11.31 CAMPOS, Memórias Inacabadas, p. 204.
63
essa necessidade do narrador de não se conformar apenas com a objetividade de
suas descrições:
Havia ouvido dizer, repetidas vezes, que, quando o Grã-Cã enviava mensageiros às diferentes partes do mundo e estes não sabiam referir-lhe mais do que o objeto da missão para que haviam sido mandados, alcunhava-os de néscios e ignorantes, pois mais lhe aprazia ouvir falar sobre os costumes e curiosidades das cortes estrangeiras do que sobre as notícias relativas ao pretexto com que os enviara.E Marco, que disto sabia, esmerou-se em contar ao Grã-Cã as novidades, coisas estranhas e quantas curiosidades havia visto, no decorrer da sua embaixada.32
A presença de escritores vinculados à literatura fantástica como Jules Verne,
H. G. Wells e Jonathan Swift permite estabelecer, ao menos nos textos analisados,
uma espécie de referência para se descrever cenários e comportamentos. Isso não
indica apenas que conhecemos alguns dos gostos literários do escritor, mas que
entendemos o espaço cultural e ficcional onde se possibilitou o diálogo com alguns
valores da modernidade. O universo de Verne, por exemplo, representa certa
expectativa quanto ao futuro que também permeia os escritos de Campos, em sua
maturidade, enquanto crítico e cronista; assim como o espaço de discussão das
temáticas utilizadas por Wells está presente no confronto entre o desejo
desenvolvimentista e o conceito de humanidade. É nesse sentido que verificamos o
modo como o escritor relaciona suas leituras literárias para compreender o mundo à
sua volta, configurando suas narrativas e descrições para um ambiente propício às
extrapolações de realidade e crítica à sociedade.
A figura do viajante é o ponto de intersecção entre os espaços da realidade e
da fantasia. A construção e a percepção de novos mundos estão assiduamente
presentes no imaginário do viajante, que busca em suas memórias os aspectos que
lhe possam ajudar na descrição desse novo espaço. É nessa memória fragmentada
que residem os elementos necessários para a criação de novos ambientes com
base no que foi visto (lido, experimentado) ou então desejado. O autodidatismo de
Humberto de Campos e sua longa jornada através da pobreza e das pequenas
cidades do Nordeste constituem, inicialmente, o arcabouço necessário para pensar
os tipos de representação utilizadas para designar o “novo mundo” existente em
seus textos: “À noite, às oito horas, a mercearia fechava as portas. Corria a tomar o
32 POLO, Marco. O livro das maravilhas. Porto Alegre: L&PM, 2006. (Coleção L&PM Pocket) p. 44.
64
meu banho, Vestia-me. Atravessava a rua. Entrava na Biblioteca Pública. E ia viajar
com Júlio Verne.”33.
Quando era menino no Nordeste, Humberto de Campos conhecia a
civilização e o desenvolvimento através das descrições contidas nos enredos desses
escritores europeus, vislumbrava os avanços da tecnologia sem efetivamente ter
qualquer acesso a ela. Posteriormente, após vários livros lidos, e o contato com a
capital da República em marcha desenvolvimentista, encontramos ainda as imagens
das cidades nordestinas em diálogo com as civilizações, ao estilo descritivo de Jules
Verne e questionado à maneira de Wells.
O contato entre civilizações, reais e imaginadas, permaneceu. Nas
representações de Campos a partir da cidade do Rio de Janeiro “regenerada”, ou
através da narrativa de uma civilização na Lua em pleno início do século XX,
encontramos exemplos dos contrastes entre a ficção e a realidade, que sua escrita
nos apresenta. Imagens de amplo desenvolvimento precisavam de um lugar no qual
não pudessem colocar em choque seu próprio caráter de realidade, ao mesmo
tempo em que pudessem se comunicar com o imaginário da população. Esse
espaço é o próprio texto.
33 CAMPOS, Memórias, p. 471.
65
Ilustração 02*
Ilustração 04** Ilustração 05***
* Foto de Herbert George Wells em 1943, acessado no sítio eletrônico: http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:Herbert_George_Wells_in_1943.jpg** A Máquina do tempo, produção cinematográfica do ano de 1960, dirigida por George Pal. Acessado em: http://www.imdb.com/title/tt0054387/*** Guerra dos Mundos, produção cinematográfica do ano de 1953, dirigida por Byron Haskin. Acessado em: http://www.imdb.com/title/tt0046534/
66
3 IMAGENS DO FUTURO: VÁRIAS METÁFORAS
3.1 A ficção científica como metáfora do contraste
A escrita de Humberto de Campos é portadora de um grande número de
elementos retirados do imaginário cultural da sociedade. Como grande observador,
atento aos movimentos da sociedade carioca, Campos configura sua escrita para
apresentar uma análise da realidade através de imagens “fantásticas”, com
elementos típicos do imaginário científico. Com base nessa hipótese, podemos
estabelecer uma perspectiva de estudo que permita problematizar as imagens que
no nosso entendimento materializam as discussões daquele momento histórico e
cultural. Nesse sentido, cabe analisar primeiramente a presença da escrita de ficção
científica no nosso contexto de estudo, compreendendo esse tipo texto como uma
problematização da representação das imagens que circulavam no país.
As grandes mudanças no comportamento da sociedade, nas relações
econômicas, industriais e tecnológicas, tomavam corpo na discussão desses
escritores ao materializarem as ideias de modernização na escrita. No caso
específico do Brasil, podemos observar, a partir de Flora Süssekind, que as novas
ferramentas interferiram não somente no comportamento dos sujeitos, mas no modo
como os escritores passaram a perceber sua própria produção, possibilitando a
aproximação dos temas com esse novo contexto:
[...] a entrada quase simultânea de diversos aparelhos (cinematógrafo, gramofone, fonógrafo) e transformações técnicas (da litografia à fotografia nos jornais, por exemplo) indica significativa alteração nos comportamentos e na percepção dos que passaram a conviver cotidianamente com tais artefatos. [...] inovações técnicas que se fazem acompanhar de mudanças na visão de mundo e na percepção, sobretudo das populações da Capital Federal e das grandes cidades do país.1
Os textos de Jules Verne e H. G. Wells traziam temas que começaram a
surgir com o desenvolvimento das tecnologias e da indústria em franco apogeu na
Europa. Em Verne, por exemplo, as máquinas e instrumentais tecnológicos
1 SÜSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de Letras: Literatura, técnica e modernização no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 26.
67
descobertos, juntamente com o alcance e circulação dos discursos de ciência nesse
contexto, fomentavam a crença de poder ilimitado atribuído ao homem e suas
ambições de controlar a natureza através da aplicação desses discursos na
sociedade. Os enredos apostavam na invenção de equipamentos e instrumentos
associados ao desenvolvimento tecnológico, transmitindo a expectativa de aplicação
de novos modelos e configuração de uma sociedade evoluída, tomando o texto
como experimentação teórica e esboço especulativo da realidade. Essa intenção
estava plenamente alinhada com as expectativas da modernização e divulgação de
valores de cultura e civilidade. Ao fazer uma análise do livro 20.000 Léguas
Submarinas,de Jules Verne, David Allen afirma:
De certo modo, então, o que Verne está tentando fazer em 20.000 Léguas submarinas é tornar o leitor um participante no processo de descoberta científica, mostrando-lhe o que já foi descoberto e sugerindo muitas coisas que ainda devem ser descobertas. Para Verne, a ciência e suas descobertas eram empolgantes, e ele tentou divulgar uma sensação disto a seus leitores.2
O iluminismo francês apresentava uma imagem polida de sociedade por meio
dos eruditismos que contribuíam para a idealização de uma civilização alicerçada na
razão e na ciência. A natureza seria dominada com a utilização de ferramentas e
teorias construídas a partir do intelecto humano, mostrando, nesse sentido, a
excelência da “raça humana” na aplicação da razão. A filosofia positiva certamente
contribuiu para a construção desse pensamento, no qual prevalecia a necessidade
da superação dos mitos e explicações que não pudessem ser comprovadas
empiricamente. A busca pelas “luzes” tornava-se o principal chamariz na
identificação e distinção entre o culto e o primitivo. A busca de comprovações para
qualquer discurso mantinha a oposição com qualquer tentativa de explicação para
os fatos que não obedecessem às regras do “espírito positivo”. Segundo o Curso de
Filosofia Positiva:
A explicação dos fatos, reduzida então a seus termos reais, se resume de agora em diante na ligação estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais, cujo número o progresso da ciência tende cada vez mais a diminuir.3
A modernização dos modelos industriais e a modificação no comportamento
dos sujeitos frente a esse processo visavam ao enriquecimento de grupos e
ampliação do mercado consumidor para os novos equipamentos desenvolvidos. As
2 ALLEN, L. David. No mundo da ficção científica. São Paulo: Summus Editorial, (19--).3 COMTE, Augusto. Curso de Filosofia Positiva. In: Os pensadores: Comte, vida e obra. São Paulo: Abril S.A., 1983.
68
inovações tecnológicas eram capazes de causar espanto e ira na população que
temia, de certo modo, as conseqüências deste processo de modernização; ao
mesmo tempo, eram valorizadas as intenções que traziam o símbolo de uma
pretensa prosperidade.
E não era só uma questão da variedade de novos equipamentos, produtos e processos que entravam para o cotidiano, mas o mais perturbador era o ritmo com que essas inovações invadiam o dia-a-dia das pessoas, principalmente no contexto desse outro fenômeno derivado da revolução, as grandes metrópoles modernas.4
No entanto, H. G. Wells assumia uma postura diferenciada no tratamento dos
seus temas. Não havia uma necessidade de divulgar os avanços da ciência,
tampouco uma preocupação estrita no relacionamento dos fatos ocorridos na ficção
com os elementos em destaque na sociedade. Wells estabelece a diferença entre a
ciência do “mundo real” e a ciência do “mundo ficcional”. A falta de compromisso
com a realidade e a liberdade imaginativa na descrição de fenômenos foi alvo de
críticas por parte de Jules Verne, que acusava Wells de não ser “científico” ao
descrever os objetos e fenômenos descritos em seus livros. Perguntado sobre o
assunto, Verne sentencia: “Nós não procedemos da mesma maneira. Penso que
suas histórias não repousam em bases muito científicas. Não há nenhuma relação
entre seu trabalho e o meu.”5. Wells apropriava-se do real e o reconstruía
ficcionalmente através do imaginário tecnológico, apontando consequências e
dilemas do homem diante de especulações e avanços.
No texto literário, a extrapolação da realidade em direção a uma sociedade
idealizada a partir dos parâmetros da industrialização estava representada nas
descrições e problematização ética entre homem e ciência, tanto em H. G. Wells
como em Jules Verne. Essas inquietações estavam presentes nas representações e
enredos dos escritores, que construíam seus cenários observando principalmente os
ambientes em que a ciência se tornava cada vez mais necessária.
A imagem mais contundente que aproxima Verne e Wells é a ciência
enquanto materialização presente do rompimento com o conceito mítico,
representando a vitória da razão sobre o impossível e o desconhecido, embora esse
triunfo contribua para o aparecimento de novas “mitologias” – a presença do
desconhecido continuou compondo o quadro das expectativas nos sujeitos sociais
4 SEVCENKO, Nicolau. O Prelúdio republicano: astúcias da ordem e ilusões do progresso. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. (História da vida privada no Brasil). p. 9.5SHERARD, Robert H. Breve Encontro. In Revista Cult: Dossiê Jules Verne, março 2005, São Paulo: Editora Bregantini. p. 45.
69
quanto ao futuro de suas próprias existências. O horizonte nas sociedades futuras,
descritas nos textos europeus, mostra-se enigmático e cheio de probabilidades
desconhecidas da maior parte dos leitores:
[...] a teoria desenvolvida como base para uma viagem no tempo por meio de uma máquina simplesmente não é praticável; Wells sabia disto, mas construiu uma teoria que parece consistente, lógica e plausível, de modo que ele pudesse averiguar as conseqüências futuras de tendências que ele viu se manifestando. Isto também é uma inovação, pois a ficção científica anterior se concentrou muito mais completamente em engenhos e raramente se desviou do conhecimento científico da época.6
Discordamos da afirmação de que a narrativa de Wells e seu enredo tenham
se desviado do conhecimento científico da época, como propõe David Allen. A
premissa de comprovação dos fatos, a descrição do engenho e o reforço da idéia de
aplicação do método científico transferem para a narrativa de Wells a existência de
uma ciência, mesmo que não seja a mesma ciência vigente naquele momento. Wells
cria especulações sobre a própria ciência prevendo os resultados das aplicações do
pensamento racional e das invenções tecnológicas na sociedade. A possibilidade
que Wells lança em seu texto de verificar o estado de uma sociedade futura através
de uma máquina do tempo serve de pretexto para colocar em discussão e análise o
pensamento da época no que se refere à aplicação de modelos de desenvolvimento.
Se o futuro é representado como um caos é porque tem uma origem e ponto de
partida para explicá-lo é o próprio presente. De acordo com Allen, o narrador da
Máquina do tempo:
[...] postula que as origens das distinções entre os Elóis e os Morloques devem ser encontradas nas distinções entre Capital e Trabalho em sua própria época, distinções que ele acredita estarem rapidamente ficando maiores. [...] outro aspecto da interpretação do Viajante do Tempo diz respeito a como esta situação de sociedade dividida veio a existir; ele fornece uma aplicação histórica do Darwinismo Social, o que por sua vez era uma aplicação sociológica da biologia darwiniana.7
É nesse momento que destacamos a ideia da ficção científica como metáfora
do contraste. Discorre sobre uma materialidade que pode ser imaginada e
construída a partir de elementos presentes no imaginário que reside na própria
materialidade. A ficção científica tal como qualquer outra obra literária surge da
problematização do ambiente em que está inserida, confrontado a atualidade às
expectativas de futuro originadas no momento da escrita. O escritor relaciona-se
com a contemporaneidade e com a criação de outra realidade existente no interior
6 ALLEN, op cit, p. 41.7 Idem, p. 52.
70
do texto, pautada, em certa medida, pela crítica dos modelos vigentes. A
representação do futuro contida no enredo é a problematização do presente ou
passado daquela mesma sociedade. O escritor utiliza-se de imagens e
possibilidades que estão no constante jogo entre as representações de diversos
tempos presentes, passados e futuros, localizados em variados universos. A FC
interage com esses espaços de tempo, permitindo uma interseção entre realidades
para, com base em uma delas, criar uma nova concepção de atualidade.
A escrita de ficção científica não é uma categoria definida nos primórdios do
século XX, para nenhum escritor. As definições perambulam entre a fantasia e o
desejo de aproximar o texto a uma espécie de realidade contida na ciência. O Brasil
não tinha divulgado ainda nenhuma grande obra que pudesse ser definida como
“Ficção Científica”. Humberto de Campos, ciente dessa problemática e analisando o
livro de Berilo Neves, afirma que esse “gênero” depende muito mais da imaginação
e da inventividade do escritor do que necessariamente de um vínculo com a ciência.
Na crítica ao livro de Gastão Cruls8, Campos elogia o trabalho do escritor por suprir
as lacunas da realidade com elementos imaginários; de tal modo que a imaginação,
certamente, deve ter um vínculo com a lógica que tornaria o livro “verossímil”:
A especialidade literária escolhida pelo Sr. Berilo Neves, sendo das que se acham entre nós inexploradas , denuncia, com isso, pertencer ao número das mais perigosas, e de cultura mais difícil e delicada. Se o romance histórico à Walter Scott, que oferece ao escritor uma documentação concreta e estável, apresenta a cada passo uma surpresa ao escritor desatento, pode-se imaginar o que é, ou deve ser com as perfídias da memória e da atenção, o trabalho daquele que tem de lidar com hipóteses, e cuja primeira função consiste em se desintegrar do seu tempo, e ir viver em um século que ainda não chegou, entre gente que ainda não surgiu, descrevendo costumes só apreensíveis pela imaginação baseada na lógica.9
Na contemporaneidade, algumas das imagens de fantasia veiculadas nos
textos de FC são rapidamente associadas ao gênero, possibilitando um
reconhecimento de temas e cenários típicos de uma sociedade “evoluída” inserida
no contexto do “moderno”. Segundo Tavares, o reconhecimento dos textos de ficção
científica é até mais fácil do que a criação de uma definição específica. A distinção
localiza-se na apresentação de alguns elementos característicos do gênero, que se
mantêm em acordo com a proposição da temática. A FC ilustra sociedades e
culturas a partir das imagens inerentes ao desenvolvimento tecnológico e à
identificação de culturas divergentes da atual e existente em um universo paralelo. A 8 A Amazônia Misteriosa.9 CAMPOS, Humberto de. Crítica 4ª Série. São Paulo: W. M. Jackson Editores, 1960. p. 34.
71
FC aparenta demonstrar certo aprofundamento no estudo de algumas áreas do
conhecimento das ciências exatas e nos dilemas das ciências humanas. Em outras
palavras, a FC deseja ser uma realidade fundamentada na imaginação:
As imagens típicas da fc são claras até mesmo para o não-aficionado: espaçonaves, mutantes, cidades submarinas, pistolas desintegradoras, impérios galácticos, viagens no tempo, supercomputadores... Uma lista assim pode ser prolongada indefinidamente; é através desses elementos que o leitor casual, numa livraria, consegue identificar com nitidez a estante de obras de fc; mas não é fácil encontrar o que há em comum com todas elas.10
Para compreendermos a construção da imagem, seguimos Octavio Paz,
quando se refere à constituição simbólica da imagem, que oferece “muitos
significados contrários ou díspares, aos quais abarca ou reconcilia, sem suprimi-
los”11 e ainda “aproxima ou conjuga realidades opostas, indiferentes ou distanciadas
entre si.”12. Considerando esta perspectiva podemos compreender as ambivalências
da imagem. Assim, a imagem não representa diretamente aquilo a que se refere,
mas compreende uma série de outros significados que estão atrelados à palavra ou
a um grupo delas. Tomando como ponto de partida o imaginário construído sobre o
avanço da sociedade, o escritor capta as ideias ali presentes, configurando-as em
uma outra imagem específica que consiga traduzir alguns de seus interesses na
descrição ou apresentação de outras ideias.
Podemos perceber algumas destas ambivalências nos livros de Verne e
Wells. Por exemplo, a ida para o futuro da sociedade mundial através de A máquina
do tempo mostra-nos perspectivas lúgubres quanto à existência da humanidade no
futuro, diferentemente da ideia atribuída ao processo de desenvolvimento. Do
mesmo modo, Verne, na descrição da Paris no século XX, apresenta a frieza e total
falta de “cultura clássica” que o pragmatismo e desenvolvimento tecnológico
trouxeram para a sociedade do futuro. A ideia de prosperidade através de
equipamentos que melhorariam a vida humana é contrastada pelo desastre e
desconstrução dos símbolos de modernidade alimentados naquele momento. Wells,
em A Máquina do Tempo, apresenta Londres como metonímia de uma civilização
dividida entre os sagazes e ingênuos; selvagens e desenvolvidos; deformados e
perfeitos fisicamente. Verne mostra-nos uma Paris dedicada apenas ao progresso e
ao conhecimento técnico, que sustentam os ideais de civilização apoiados no
10 TAVARES. Bráulio. O que é Ficção Científica. São Paulo: Brasiliense, 1992. (Coleção Primeiros Passos)11 PAZ. Octávio. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 119.12 Idem.
72
desenvolvimento industrial e tecnológico, esquecendo elementos culturais, como a
literatura clássica13 e as artes.
O imaginário construído nos textos escritos ou orais sobre o futuro, em alguns
casos, aparece como uma saída aos males do presente. As narrativas utópicas em
suas previsões sobre uma vida em sociedade repleta de igualdade, bondade e
prosperidade podem nos fornecer alguns exemplos. Se tomarmos a ideia de utopia
como a possibilidade de rever as intenções sobre o futuro, podemos associa-la às
conjecturas permitidas da FC, embora esta escrita não trate apenas de um futuro
ordenado. Os textos A Utopia, de Tomas Morus, e A cidade do Sol, de Tomasso
Campanella, sem descartar as narrativas religiosas como a Bíblia (só para citar
alguns exemplos), dedicam-se à construção de uma imagem de futuro baseada
justamente naquilo que faltava à sociedade da época: uma sociedade de paz,
contracenando com a possibilidade de experimentar uma cena infernal. O que se
espera é uma realização quase sempre positiva das expectativas existentes nos
programas ideológicos que circulam em toda sociedade. Mesmo que seja para trazer
um elogio ao panorama atual, a FC, nessa abordagem, suspende o “real” para
apresentar uma possibilidade que ainda não fora concretizada e, juntamente com as
contradições inerentes à implementação dessa ideologia, recriar expectativas
baseadas no imaginário social.
Verificamos, nos contos, uma total liberdade na utilização das temáticas que
absorveram, em parte, algumas das propostas de autores que construíam seus
textos sob a ótica da fantasia. Percebemos que os textos aproveitam situações e
idéias “absurdas” da própria realidade para compor seus próprios cenários com uma
nota brasileira. É justamente nesse contato entre a experiência da sociedade e a
desenvoltura em lidar com temas da fantasia que Humberto de Campos construirá
uma metáfora para as contradições existentes na sociedade e presentes também
nos indivíduos. Além da própria experimentação de aspectos da modernidade, as
informações sobre esses “avanços”, chegavam à população brasileira através dos
textos literários importados, das crônicas de jornais estrangeiros e dos relatos de
pessoas que experimentavam essas transformações no exterior do país. No Brasil,
os sujeitos são enxergados como pacientes de um processo que se configura
exteriormente, produzindo a principal imagem da modernidade que é o
desenvolvimento científico-tecnológico.
13 O protagonista é um poeta que compõe versos em Latim.
73
Ao lidar com o desconhecido e com discursos científicos às vezes utópicos,
ao expor alguns contrastes entre o passado e o futuro, o homem e a ciência, a
protoficção científica de Humberto de Campos responde imediatamente ao debate
de modernização instalado no Brasil do século XX. O contato com obras literárias,
temas e imagens construídas com base no entendimento da modernidade reafirma a
ideia de que a escrita de FC não surgiu no Brasil de modo aleatório, mas estava
vinculada a um contexto sócio-cultural propício ao tipo de representação da
realidade expresso nestas escritas:
[...] muitas coisas que foram mostradas sobre ficção científica; encontros com inteligências alienígenas, mutação, viagem espacial avançada e ambientes futuros, estão todas associadas com ficção científica; embora a maioria das estórias de ficção científica sejam ambientadas no futuro, o passado e o presente são também ambientes possíveis, especialmente quando elas apresentam alternativas para o passado e o presente histórico.14
As imagens contidas nos textos de Humberto de Campos tais como a Lua e
seus habitantes, a descrição de corpos diferentes e estranhos à anatomia do corpo
humano, o saber e ignorância retratados na relação entre uma sociedade conhecida
e outra desconhecida, os equipamentos e desenho urbanístico da cidade do Rio de
Janeiro, as descobertas científicas na medicina em uma realidade paralela, a
cegueira e os métodos de cura avançados, a rápida distribuição de bens e
circulação de pessoas constituem possibilidades de interpretação da realidade e dos
diversos valores que eram introduzidos e incentivados na capital da República do
início do século XX. A partir dessas imagens, compreendemos que havia por parte
do escritor uma tentativa de criticar os anseios de modernidade, o desenvolvimento
científico-tecnológico e as diferenças culturais e sociais do Brasil.
3.2 Imagens em trânsito
Acreditamos que a construção de uma imagem está vinculada às
contradições características do seu próprio espaço de criação. Através dela
podemos perceber o caráter paradoxal da realidade e a impossibilidade de enxergá-
la tal como se apresenta a nós. Isto quer dizer que, no âmago de seus múltiplos
14 ALLEN, op cit, p. 235.
74
significados, não é possível extrair-lhe uma única significação15, senão várias
propostas de entendimento da realidade. A criação de uma imagem parte dos
elementos existentes na realidade que todos experimentam; no entanto, sua
estruturação não está limitada a ela. As relações na construção dessas imagens
obedecem aos interesses de legitimação de uma perspectiva que talvez deseje
explicar uma realidade de modo diverso.
Brito Broca mostra-nos o uso dessas imagens quando se refere às
características do primeiro automóvel trazido ao Brasil por José do Patrocínio. O
automóvel era um dos maiores símbolos da modernidade e estava ligado aos
“objetos estranhos” que vinham da Europa na tentativa de confirmar as grandes
novidades que o processo de desenvolvimento traria para o país. Em nossas
análises do texto de Humberto de Campos, percebemos que um dos princípios que
movem a idéia de progresso é a imagem da velocidade. A velocidade de bens e
serviços, e do fluxo de pessoas e a demonstração da agilidade dos sistemas de
transporte possuíam como objetivo apresentar o avanço ininterrupto na aceleração
da evolução. Ser moderno é ser rápido e ágil, seja nas relações comerciais, sociais
ou culturais. O automóvel era estranho à realidade brasileira e estava impregnado
de suspeitas quanto aos “prodígios” que poderia efetuar. Como um objeto novo e
largamente divulgado na Europa, ele causava admiração e temor quanto às
conseqüências indiscriminadas de seu uso. De acordo com Brito Broca:
José do Patrocínio, a sonhar com meios mais rápidos de locomoção e tentando debalde fazer subir ao céu um aeróstato, foi o primeiro a trazer da Europa o automóvel. Todo mundo correu espantado para contemplar aquela máquina diabólica, de que se desprendia muita fumaça e um cheiro insuportável de gasolina. Parecia um “bicho de Marte”, a passear pela terra.16
A protoficção científica de Humberto de Campos parte do pressuposto da
existência de algum elemento anterior e relacionado à própria realidade histórica dos
sujeitos que ajude a construir uma imagem e perspectiva para o futuro: “[...] para ver
o Futuro, é preciso, sempre, volver os olhos para o Passado...”17. Ou seja, o futuro
possui elementos do passado e só poderemos compreendê-lo considerando aquilo
que já foi experimentado e conhecido anteriormente. Ficaria mais fácil, assim, o
movimento especulativo da imaginação. Ao relacionarmos essa definição de
Campos com o exemplo da descrição do automóvel criada pelos contemporâneos
15 PAZ. Octávio. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1996.16 BROCA, Brito. A vida literária no Brasil: 1900. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975, p.5.17 CAMPOS, Humberto. Crítica 4ª Série. São Paulo: W.M. Jackson Inc., 1960, p.41.
75
de José do Patrocínio, não queremos dizer que as pessoas da época conheciam ou
sabiam o que era um “bicho de Marte”, mas concebiam o automóvel de Patrocínio a
partir de uma ideia preexistente sobre Marte. Certamente partiam de um imaginário
no qual Marte é apresentado como uma civilização avançada frente aos modelos
vigentes, e qualquer objeto desconhecido, “estranho” ou “futurista” seria
imediatamente associado ao planeta. A imagem de estranheza poderia vir dos textos
literários que circulavam na época, pois em nenhum momento a ciência do início do
século XX redigiu um tratado acerca da vida em Marte ou da classificação de como
são as espécies animais existentes naquele planeta. O imaginário social possibilitou
a imediata comparação entre o desconhecido e o que pode vir-a-ser,
proporcionando uma leitura e comparação fantasiosa entre o automóvel e “o bicho
de Marte”.
Quando Campos afirma que o futuro é reflexo do passado está discutindo
uma imagem reversa, já que o reflexo é uma imagem devolvida a quem está diante
do espelho. Ousaríamos dizer que a escrita exercitada nesses textos é o
instrumento necessário para estabelecer o contato entre as realidades temporais:
passado-presente-futuro. Nessa concepção, a imagem do futuro nos textos e a
construção de seus temas possuem aspectos do passado e/ou presente, além de
permanecerem em contato constante com as leituras do próprio escritor. Os
múltiplos contatos com as contradições da modernização vinculados à descrição de
outros mundos alimentavam a escrita literária e “especulativa”, concebendo uma
percepção diferenciada de realidade:
Os escritores superestimavam essa modernização da cidade, atribuindo ao Rio, em contos, romances e crônicas, ambientes e tipos que na realidade aqui não existiam. E os requintes de civilização, prevalecendo na parte urbana da metrópole, iam fazendo naturalmente com que velhos costumes, recuassem para a zona suburbana.18
Em Humberto de Campos, a ambientação dos temas localiza-se em uma
realidade futura (Entre o que foi e o que virá), paralela (Os sábios selenitas) e
presente (Os olhos que comiam carne). As narrativas, por mais distantes que
estejam dos fatos ocorridos no cotidiano, exprimem uma leitura dele que é
incrementada por novas imagens e concepções de realidade, utilizando elementos
de fantasia. O contraste verificado na sociedade e as expectativas construídas sobre
algumas características da modernização orientam o texto para a reflexão sobre os
18 BROCA, op cit, p.5.
76
espaços nos quais interagem cenários e costumes constituintes do passado e do
presente. O texto como extrapolação da realidade contém uma crítica ou a uma
reconstrução de ideais, e, nesse caso, o emblema da modernização urbanística e de
costumes contrasta com o deslocamento de alguns padrões culturais localizados
nos subúrbios e imersos em uma história primitiva de colonização que se pretende
anular.
Tomemos como exemplo a Avenida Central no Rio de Janeiro, inaugurada em
1904, que se tornou símbolo da modernização e demonstra o teor espetacular na
concretização de uma parte dos projetos de remodelação urbanística. Esse símbolo
confirmaria a ideia de que a nação brasileira poderia deixar os resquícios do
primitivismo dos costumes ameríndios e africanos, pelo menos no que diz respeito à
presença desses indivíduos nos grandes espaços de interação, para se afirmar
como um povo civilizado. Do mesmo modo, a prática da ciência e da opinião pública
informada e ilustrada tornava-se mais um dos princípios fundamentais na concepção
da ideia de civilização. A parte da população que não dominava esses elementos de
“ilustração” era novamente deslocada para o espaço de marginalidade, com todos
os estereótipos e ações governamentais possíveis que os impedissem de colocar
em prática seus próprios projetos de saber e leitura de mundo.
Humberto de Campos, ao apresentar uma imagem do futuro ou de uma
realidade paralela, faz uso das opiniões que circulavam no Brasil para compor os
diversos quadros em seus enredos. As imagens colocam-se em constante
contradição ao extrapolar o ambiente da realidade vigente e dialogar com as
decepções e contínuas expectativas sobre o futuro da sociedade brasileira em seus
maiores contrastes entre o civilizado e o primitivo, entre o conhecimento legítimo e o
marginalizado. As narrativas construídas sob a via do fantástico aproveitavam os
elementos “científicos” para corroborar o caráter dicotômico da realidade vigente. A
ciência preferiria um texto literário mais próximo do real e teimaria negar as imagens
fantasiosas, mas ao mesmo tempo necessita delas para construir uma ideia
produtiva sobre o futuro.
Preferimos pensar que, tomando essas impossibilidades, a escrita de Campos
transitou na construção de imagens que pudessem criar uma abordagem sem
infringir normas que haviam sido estabelecidas na sociedade. Afinal de contas, a
implementação de todo o projeto “civilizatório” para o país e a eliminação de todo e
qualquer caractere de cultura considerada “primitiva” demandaram alguns custos e
77
isso não poderia ser facilmente contestado, mesmo que tal contestação obtivesse a
anuência por parte de determinados grupos. É nesse momento que a escrita de
Campos se aproxima da sátira de Jonathan Swift e dos valores críticos da escrita de
Verne e Wells para desenvolver, em pequenos experimentos literários, na direção de
uma crítica ao processo que se mantinha na primeira metade do século XX.
A própria concepção de Humberto de Campos sobre o desenrolar dos fatos
históricos e a ideia pessimista acerca do apogeu de uma civilização colaboram para
um discurso diferente da ideia que o progresso contém em si mesmo todos os
parâmetros necessários ao pleno desenvolvimento de uma nação.
3.3 Pamórfio, Babel e as torres modernas
É importante destacar que tipo de imagem do futuro Humberto de Campos
possuía e discutia em seus textos. Encontraremos essa concepção desde as
ilustrações que utilizou para exemplificar suas compreensões de mundo, até a
própria explanação sobre os temas “fantásticos” de seu interesse. Tomaremos a
crônica A Filosofia de Pamórfio e a crítica homônima ao livro do escritor Berilo
Neves, intitulada A costela de Adão, para a análise. Nesses textos, perceberemos o
modo como o escritor encarava as grandes mudanças e progressos que levariam a
sociedade ao pleno estado de desenvolvimento e concretização dos ideais de
civilização.
As ideias sobre desenvolvimento são bastante intrigantes, pois questionam os
principais entendimentos que a sociedade da época transmitia sobre os processos
considerados como primordiais para a consolidação do conceito de civilização. O
movimento sempre constante de desenvolvimento visava à finalização de uma
sociedade perfeita e sem máculas de qualquer ordem. No texto, o progresso é
colocado em xeque no sentido de que o final imaginado e programado não será
alcançado, pois existiria uma regra geral que comandava todo e qualquer processo
evolutivo no interior da sociedade. As imagens clássicas, a escolha e presença de
personagens mitológicos mostram-nos que tipo de percepção Campos construiu
acerca da civilização. Compreendemos que estas mesmas concepções também
estão presentes nos demais contos.
78
3.3.1 O caos do futuro: Pamórfio
Como primeira ilustração, apresentamos Pamórfio, figura mitológica extraída
do poema Colombo,do escritor Araújo Pôrto-Alegre. Pamórfio é aquele que “anuncia
a descoberta da América e todos os tristes acontecimentos que lhe assinalariam o
destino de navegador e mártir”19. Humberto de Campos utiliza as próprias descrições
do poema de Pôrto-Alegre sobre o ente mitológico para construir, a partir delas,
certa filosofia que discuta o futuro da civilização e da humanidade. Pamórfio torna-se
metáfora dos entendimentos sobre a construção das imagens de futuro e
compreensão da sociedade. O personagem é um elo que possibilita o contato entre
o futuro e o presente, agindo como porta-voz do porvir:
E foi êsse personagem misterioso “contemporâneo de todas as idades”, como diria Flaubert, que ontem me apareceu para conversar apressadamente sôbre as verdades do Presente e sôbre os segredos do Futuro.20
Na Filosofia de Pamórfio encontramos claramente a ideia de uma civilização
prestes a ser destruída, independentemente do que se possa fazer para impedir o
seu fim. A crônica é uma conversa (poderíamos até mesmo pensar numa espécie de
entrevista) entre Humberto de Campos e Pamórfio, na qual o ser mitológico
responde a algumas perguntas formuladas por Campos sobre o futuro da
humanidade e possíveis consequências de comportamentos advindos do processo
de modernização cultural. Emergem dessa conversa alguns dos temas acerca do
futuro e construção de uma imagem de civilização, retomados na crítica ao livro de
Berilo Neves:
Pamórfio – A civilização atual precipita-se, enfim, pela encosta mais íngreme do despenhadeiro. Quando o fruto principia a apodrecer, nada impedirá que a sua destruição continue. A civilização amadureceu e começa a decompôr-se. Os homens não se conformam com essa fatalidade, e culpam alguém da inquietação em que vivem.21
Humberto de Campos reforça as características de Pamórfio contidas no texto
de Pôrto-Alegre, dando-lhe uma nova contextualização temporal. Em Campos, o
19 CAMPOS, Lagartas e libélulas, p. 111.20 Idem.21 Idem, p.114.
79
personagem não fala sobre o descobrimento da América, tal como em sua conversa
com o navegador genovês do poema Colombo, mas se dedica a informar quais os
movimentos que levarão o homem ao seu próprio futuro. Podemos pensar numa
espécie de recriação da personagem que, no texto de Campos, tem novos objetivos,
sem, no entanto, descartar as características contidas anteriormente no poema.
Sobre si, Pamórfio diz: “Quem tem nas mãos, como eu, o Presente e o Futuro dos
homens, conhece-lhes os mistérios, e sabe qual dos dois contém mais espinhos.”22 É
nesse conhecimento abalizado nas experimentações do passado e do presente que
o futuro é desenhado. Pamórfio utiliza uma coloração bem mais pessimista do que
aqueles outros narradores que traziam o otimismo da “utopia” em seus textos, nos
quais a inserção de tecnologias e novos comportamentos são os atraentes e
“fantásticos” elementos participantes da vida cotidiana moderna.
Além de todo o processo de intertextualidade verificado no texto em destaque,
Pamórfio é um personagem que dialoga com o próprio Humberto de Campos, que
aqui se torna outro mediador do processo de “revelação” das cenas futuras. Essa
personagem não é a portadora de boas notícias; pelo contrário, ela conhece,
sobretudo, os infortúnios que estão à porta da civilização e os transmite com todo
pessimismo que lhe é possível nas caracterizações dadas pelo prosador. Campos
seria aquele que, por intermédio da figura mitológica, revela em sua escrita tudo
aquilo que Pamórfio lhe dissera anteriormente sobre o futuro. Assim, o personagem
alerta ou censura determinados comportamentos vigentes que sedimentariam a
destruição da sociedade no futuro. É nesse momento que percebemos que tipo de
futuro a civilização teria após a instauração de novos modelos na nova sociedade.
Pamórfio apresenta uma lei natural na qual todo e qualquer movimento da
humanidade está fadado à destruição completa, sem que nada possa impedir esse
processo. O personagem apresenta uma evolução que tem como destino a própria
destruição da civilização:
Mas prefiro dizer-te claramente a verdade. E o que te digo, é que o sangue derramado nos combates nos dias de revolução, é tão inútil, hoje, como a tinta consumida nas leis e nos conselhos dos sábios, nas horas de relativa serenidade. Os homens, lutando, degladiando-se, perseguindo-se, destruindo-se, estão cumprindo apenas uma simples lei natural. Chegou, para a civilização a que pertences, a hora da destruição.23
22 CAMPOS, Lagartas e libélulas, p.114.23 Idem, p. 113.
80
A esperança no futuro não compõe a filosofia de Pamórfio. Questionado por
Campos sobre o pessimismo das previsões, Pamórfio diz: “Tu não ignoras, pelo que
tem lido nos mestres, que todas as civilizações têm uma fase de crescimento, outra
de esplendor máximo, e outra de decadência e decomposição.”24 A história da
humanidade possui um movimento cíclico de primitivismo-apogeu-decadência que
se repete em cada geração. É a partir deste principio que Campos entende o Futuro
como percepção e compreensão do Passado. É através dessa relação com a
história vivida no passado e experimentada no presente que o futuro pode ser
esboçado. Para Pamórfio, esta é a evolução natural das sociedades, compondo um
ciclo evolutivo que, ao longo da história, foi representado por movimentos
semelhantes e, assim, podem se constituir no padrão a ser observado na atualidade:
“A civilização assíria, a civilização egípcia, a civilização greco-latina, e uma, anterior
a todas, que se desenvolveu nos desertos africanos e foi realizada pela raça negra,
foram fases de floração. E a atual deu, já, a sua última flor.”25
No que diz respeito à constituição da evolução das sociedades, a filosofia de
Pamórfio parece formalizar o fatalismo em todas as relações e atitudes empregadas
pelos indivíduos no desenvolvimento das sociedades. Todos eles seriam motivados
por uma força muito maior e exterior, fazendo com que todas as ações tomadas
pelos indivíduos não pudessem combater o próprio Destino:
Os vossos governantes, reacionários ou revolucionários, não são senão instrumentos. Sois vós, todos, tão inconscientes como a ferrugem que come o ferro ou a cárie que rói a fruta. Imaginais que conduzis e sois conduzidos. Na passagem da marcha do carro do Destino, sois a poeira que o veículo arrasta, e que imagina estar correndo espontaneamente em sua perseguição. Sois em suma, um grupo de crianças brigando, ou brincando, no dorso de um elefante em disparada.26
Assim, Pamórfio é um anunciador da destruição das civilizações. Ele prevê o
futuro, mas o apresenta sem a vontade de descrever um ambiente utópico e
prazeroso. Suas imagens distinguem as ambivalências das expectativas,
identificando o sujeito causador do infinito progresso e da própria destruição. Essa
atitude frente ao futuro e as conjecturas que podem ser criadas mediante o
comportamento ou estrutura social vigente estão embebidas por esse pessimismo
configurado nos contos em vários aspectos.
24 CAMPOS, Lagartas e libélulas, p. 113-114.25 Idem, p. 114.26 Idem, p. 117.
81
3.3.2 O fim da civilização: A Torre de Babel
Na crítica ao livro de Berilo Neves, Humberto de Campos toma alguns dos
pressupostos presentes na filosofia de Pamórfio para discutir a imagem de futuro,
mas, dessa vez, o escritor utiliza uma narrativa bíblica: a Torre de Babel. Seguindo o
mesmo princípio das previsões sobre o futuro reveladas por Pamórfio, Campos
analisa a coletânea de contos de Berilo Neves, ressaltando que toda e qualquer
evolução sentida no interior das sociedades possuem um único desfecho,
discordando do próprio Neves. Campos utiliza a metáfora da Torre de Babel como
símbolo da desintegração do conhecimento e consequente dispersão:
A Tôrre de Babel é o símbolo, mesmo, dêsses periódicos desastres do esfôrço humano. Ao atingir os últimos andares do edifício que vão construindo, verifica-se a desinteligência entre os obreiros e dá-se a dispersão dêles pela terra.27
Na discussão sobre o futuro, Humberto de Campos aproveita a escrita de
Neves para divulgar seu entendimento sobre a civilização em seus movimentos
evolutivos. Para Campos é preciso compreender o passado e assim será possível
desenhar as perspectivas para a construção ficcional do futuro: “[...] para ver o
Futuro, é preciso, sempre, volver os olhos para o Passado...”28. Esse é um exercício
voltado para a imaginação, sem desprezar a cientificidade da lógica e da
especulação, que parte de um ponto comum ao conhecimento de todos para que
seja possível apreender de onde surgem tais avanços descritos no texto.
Segundo a tradição judaico-cristã, a Torre de Babel foi um grande
empreendimento planejado por toda a humanidade logo após o dilúvio no qual surge
o papel protagonista de Noé. Várias tribos organizaram-se para construir uma
grande torre que pudesse tocar nos céus e reunir efetivamente todos os grupos
humanos outrora dispersos pelo dilúvio. Zangado com a arrogância e ambição dos
homens, Jeová enviou anjos para destruírem a torre e “confundir” as línguas para
que nenhum deles pudesse entender os outros e então saíssem novamente em
dispersão para ocupar outros lugares da Terra29.
27 CAMPOS, Crítica 4ª Série, p.36.28 Idem, p.41.29 Bíblia Sagrada. Edição Revista e Atualizada. Trad. Antonio Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Edições JUERP.
82
Na crítica ao livro de Menotti Del Picchia, Campos também menciona o
símbolo de Babel como essencial para compreender as desventuras
experimentadas pela sociedade: “As criações da imaginação obedecem
normalmente ao mesmo ritmo estabelecido pela Natureza para a formação e
dissolução das sociedades humanas, das quais é símbolo o mito mosaico da tôrre
de Babel.”30 Assim, podemos pensar em Babel como uma metáfora do
desenvolvimento que alcança seu apogeu e logo em seguida despenca para a ruína
e divisão entre os homens. Para exemplificar essa teoria, Campos cita as diversas
civilizações da antiguidade que obtiveram grande esplendor através de suas
conquistas e foram totalmente destruídas.
Parece-nos que há um temor maior acerca da perda do conhecimento
acumulado ao longo de séculos. Antes da construção de Babel todos os seres
humanos possuíam uma única língua e todos compartilhavam conhecimentos sem
maiores problemas. Após Babel, toda a humanidade passou a buscar um
reagrupamento a partir das semelhanças de suas línguas, impedindo o intercâmbio
entre os conhecimentos de cada grupo. Vemos essas questões na Filosofia de
Pamórfio; mas, desta vez, na crítica ao livro de Berilo Neves, Campos focaliza o
“mundo moderno” como susceptível às mesmas destruições que afligiram as antigas
civilizações, utilizando imagens como “noite”, “submersão”, “caos de ignorância”:
O mundo moderno, com todas as suas conquistas soberbas e magníficas, desaparecerá em uma nova noite como a Idade Média. Submergirá em um caos de ignorância, como sucedeu ao mundo romano, e à civilização asiática, e à civilização egípcia [...] 31
Com este ponto de vista, o escritor passa a discutir o tipo de futuro que está
reservado à humanidade, partindo da discussão de elementos da realidade
brasileira, inclusão de novos processos vinculados ao símbolo de modernidade e
mudanças de comportamento. Campos questiona-se sobre a realidade do futuro e
essa atitude nos direciona para a compreensão do tipo de perspectiva que ele
adotou para construir suas narrativas: o franco desenvolvimento e a posterior
decadência que levaria ao esquecimento os prodígios e avanços obtidos pela
sociedade até aquele momento:
30 CAMPOS, Crítica 3ª Série, p. 21.31 Idem, Crítica 4ª Série, p. 35-36.
83
Que seremos, realmente, dentro de onze séculos? A meu ver, ou estaremos mergulhados de novo na barbaria, como estávamos no século IX, ou, então, seremos tão diferentes do que somos hoje que não poderíamos, sequer, nos reconhecer. Os aeroplanos de agora serão simples reminiscências, guardadas em museus de antiguidades ilustrativas. O motor de explosão constituirá um anacronismo. Cidades terão desaparecido das cartas geográficas, dando lugar a outras, brotadas dos desertos atuais.32
Babel é a marca da destruição da civilização e regra máxima para comparar o
desenvolvimento da sociedade. A partir dos exemplos que são dados, tanto por
Pamórfio, quanto na crítica ao livro de Berilo Neves, vemos que o homem não pode
se desvencilhar de tudo o que foi preestabelecido em sua história. Eles deveriam,
portanto, saber de todos os percalços que a corrida à “máxima” evolução propiciaria
a si mesmos, cientes do movimento cíclico a que obedecem. Após a destruição da
última civilização, Campos descreve os movimentos posteriores de reagrupamento:
“[...] os operários se vão novamente aglomerando, reunindo, fraternizando. E inicia-
se a construção lenta, paciente e heróica da nova tôrre, destinada, por sua vez, à
sorte ingrata, e inevitável, das vastas edificações precedentes.”33
A comparação com a Torre de Babel, de acordo com Campos, reflete a
necessidade da própria sociedade não se perder sem qualquer tipo de referencial. A
humanidade ambicionaria muitas coisas e não haveria quem pudesse resistir à sua
dominação no futuro, se não houvesse um intervalo. Com muitos de seus feitos
divulgados, seria praticamente impossível escrever uma história na qual fosse
possível antever as conquistas e as glórias da sociedade, inclusive as
consequências que estariam atreladas a todo esse desejo de avançar em direção à
glória. Entendemos que a torre simbolizaria um intervalo entre as civilizações, de
modo que cada uma delas pudesse aprender com os erros cometidos anteriormente:
Se assim, desta feita, não acontecer; se reinar harmonia contínua na tôrre em cujos últimos andares trabalhamos, e em que já se vai acentuando o surdo protesto dos operários, por excesso de braços e carência de pão; se, em suma, continuarmos no surto ascensional do último século, – quem poderá imaginar, hoje, mesmo com precisão relativa, o que viremos a ser, no decurso de um milênio? A marcha do homem para a conquista dos segredos da natureza é alarmante e vertiginosa.34
Percebemos assim que Pamórfio e Babel são metáforas da destruição das
civilizações e crença sem qualquer tipo de esperança para o futuro. Isso, no entanto,
não impede o escritor de descrever as “maravilhas” do desenvolvimento da
modernização e influência de equipamentos tecnológicos avançados na sociedade.
32 CAMPOS, Crítica 4ª Série, p. 27-28.33 Idem, p. 36.34 Idem, p. 37.
84
Ao final da crítica ao livro de Berilo Neves, Campos põe em discussão a perspectiva
humorística e “leve” sobre a qual o escritor teria constituído os enredos de seus
contos, voltando-os para a apresentação do futuro da humanidade sem grandes
contrastes. Partindo do símbolo de Babel, Campos analisa a obra de Neves e
sentencia: “E o que vejo no horizonte é menos comédia do que tragédia. É mesmo,
talvez, a maior tragédia do homem no palco revôlto, ensangüentado da terra.”35
No entanto, a perspectiva de destruição da civilização compartilha o mesmo
lugar da expectativa de um futuro repleto de máquinas, ferramentas e
comportamentos vinculados com a ideia de desenvolvimento e previstos para
acontecer. De todo modo, há por parte de Campos um desejo de comparar os
períodos que a sociedade experimentou e àqueles que ainda serão desfrutados.
3.4 Em busca de retornos no processo de mutação
Encontramos na crítica Flor da Civilização36 algumas dicotomias que
certamente fizeram parte da construção pessimista e opositiva aos valores sempre
presentes no interior do processo e divulgação da ideia de civilização. Vemos que os
desígnios românticos de valorização do “primitivo” surgem ao mesmo tempo em que
aparece certo elogio aos modelos propagados por essa ideia. Uma dicotomia muito
comum nas definições sobre a identidade brasileira, pois aqui verificamos a
existência de uma linha tênue entre aquilo que se imagina e se constrói e aquilo que
deveria ser destruído ou reformulado:
O Brasil é, em grande parte, pelo sangue, negro e caboclo. Mas tem compromisso com a Civilização, os quais não permitem que êle ande de tanga nos rins e de rodela nos beiço. E como país civilizado, deve obedecer aos Cânones da arte que o tempo escolheu e os séculos consagraram.37
A discussão localizada nesse trecho está vinculada ao debate dos parâmetros
utilizados para estabelecer as diferenças entre civilizado e primitivo. O
reconhecimento da formação étnica do Brasil não impede a afirmação e o
estabelecimento dos modelos que devem ser assimilados, aquele que “o tempo
escolheu e os séculos consagraram”. No entanto, a ideia de civilização é
35 CAMPOS, Crítica 4ª Série, p. 41-42.36 Idem, Contrastes, 1960.37 CAMPOS, Contrastes, p. 220.
85
contrastada com a concepção romântica da depravação do homem por causa de
seu deslocamento para a cidade, ideia assinalada na filosofia de Jean Jacques
Rosseau38. Ao mesmo tempo, vemos a necessidade de atrelar os modelos de
civilização ao clássico e sublime, distante da barbárie, mistura e confusão. As
especulações sobre o futuro, dessa forma, devem possuir um vínculo com os
modelos da antiguidade clássica, reafirmados pelos iluministas do século XVIII na
filosofia da libertação do homem contra a obscuridade do misticismo religioso e da
falta de comprovações científicas. No entanto, não podemos descartar a presença
da imaginação romântica das utopias e da construção de novos modelos mais
eficientes e “igualitários” de sociedade.
Em contrapartida, Humberto de Campos está consciente das mudanças que
ocorrem e que elas sempre remeteram a “tempos mais doces” vividos no passado.
Na crônica Mudaria a cidade... ou mudei eu?, Campos aponta para a relatividade
das opiniões acerca do tempo e das mudanças, sem descartar os valores
apreendidos ao longo da história:
E todos nós, quando começa a entardecer na vida, isto é, quando principia o conflito entre o nosso gôsto e o gôsto dos tempos novos, temos à boca, ou no coração, o mesmo gemido da alma. Quantos moços de hoje, daqui a vinte anos, não acharão que o momento que agora vivemos, no Rio de Janeiro, é tão doce como era incomparável, aos meus olhos, e ainda me parece hoje, a vida carioca de 1912?39
Em meio à construção de novos pensamentos, em fins do séc. XIX, acerca da
cidade e dos costumes advindos do processo de inserção de novas tecnologias,
verificamos que o pessimismo se instala com muito mais força, pois de algum modo
todo o imaginário romântico sobre o homem e a cidade vão ruindo de modo
vertiginoso. Essa percepção, no entanto, não é uma regra geral, pois do mesmo
modo que o pessimismo se instala verificamos uma sensação de otimismo40 que
circunda toda e qualquer expectativa sobre o futuro. As narrativas de fantasia e as
notícias jornalísticas refletiam a esperança de uma sociedade cada vez mais
avançada, na qual o homem dominasse totalmente os mistérios da natureza,
encerrando o misticismo causado pelo desconhecido. Evidentemente, o avanço
programado para o século XX estava de acordo com o entendimento capitalista de
desenvolvimento e a imagem de um futuro sempre lucrativo para os grandes
38 ROSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a Origem da desigualdade entre os homens. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os Pensadores).39 CAMPOS, Lagartas e libélulas, p. 110.40 Basta observarmos algumas das narrativas de Jules Verne em elogio à descoberta de novas máquinas, procedimentos científicos e o futuro da sociedade.
86
empreendedores. De acordo com Marshall Berman, existe uma diferença no
entendimento de modernidade dos pensadores do séc. XIX e séc. XX e podemos
comparar essa diferença com a postura de Campos frente ao processo de
desenvolvimento. Berman diz que:
Se prestarmos atenção àquilo que escritores e pensadores do século XX afirmam sobre a modernidade e os compararmos àqueles de um século antes, encontraremos um radical achatamento de perspectiva e uma diminuição do espectro imaginativo. Nossos pensadores do século XIX eram simultaneamente entusiastas e inimigos da vida moderna, lutando desesperados contra suas ambigüidades e contradições; sua auto-ironia e suas tensões íntimas constituíam as fontes primárias de seu poder criativo. Seus sucessores do século XX resvalaram para longe, na direção de rígidas polarizações e totalizações achatadas.41
De acordo com Berman, os pensadores do século XIX estavam posicionados
na linha tênue das divergências sobre o espírito moderno. Essa postura se
acentuava à medida que novos valores iam surgindo, fazendo com que o intelectual
buscasse uma opinião que pudesse refletir diretamente a ambivalência do processo.
Percebemos o contraste entre as expectativas do futuro e a “saudade” de um
passado que significa a pureza, mas também o primitivismo e a “ignorância” das
explicações místicas diversas do modelo positivista. No interior dessa ambivalência
surgiam questionamentos que colocariam em foco a representação do futuro, a partir
do presente e passado da sociedade.
A chegada de novos equipamentos e o aprimoramento de tecnologias
permitiram o distanciamento da ideia de uma evolução contínua e plenamente
equilibrada. As constantes alterações de comportamento mediante a “necessidade”
do consumo e do prestígio de aquisição de produtos que representassem os
símbolos da modernidade, talvez tenham propiciado uma confusão no
estabelecimento de novos valores. Estes mantinham-se em acordo com paradigmas,
que, mesmo no interior da ciência e do esclarecimento, aproximavam a ideia de
desconhecimento do futuro, suplantando tudo o que era vigente e de conhecimento
geral:
Trata-se de uma paisagem de engenhos a vapor, fábricas automatizadas, ferrovias, amplas novas zonas industriais; prolíficas cidades que cresceram do dia para a noite, quase sempre com aterradoras conseqüências para o ser humano; jornais diários, telégrafos, telefones e outros instrumentos de media, que se comunicam em escala cada vez maior [...]42
41 BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 35.42 Idem, p.28.
87
A presença de um desejo de retornar à “simplicidade” das relações sociais,
enaltecendo alguns modelos apregoados pelo clássico, na contemplação e imitação
da ideia de “Beleza” não estavam descoladas da confrontação com o aparecimento
do “novo”. Nessa relação percebemos a necessidade, por parte de Humberto de
Campos, de descrever detalhadamente os espaços reformulados pelo anseio de
construção de “novas arquiteturas”, tanto das cidades, quanto das relações sociais,
voltadas para o futuro, elogiando e alertando subliminarmente os perigos que viriam
no estabelecimento de novos paradigmas.
As experiências adquiridas no Nordeste e no Norte do país construíram em
Campos uma visão particular de mundo. A relação entre as imagens de passado e
presente é explicitada em contraste. Retiramos da crônica Mudaria a cidade... ou
mudei eu? uma parte do pensamento de Campos no que diz respeito à mudança
dos aspectos urbanos e do modus vivendi da população carioca:
Quando, em 1912, eu cheguei ao Rio de Janeiro, senti uma tão profunda emoção como se tivesse descoberto o Paraíso Terrestre. A Avenida já estava aberta, mas ainda apresentava claros nas construções. Os velhos estabelecimentos tradicionais da rua do Ouvidor resistiam, ainda, à febre inovadora.43
Aqui percebemos o contraste das perspectivas sobre o futuro, ainda
desconhecido, e talvez digno de temor. Na crônica, Campos faz um levantamento
das impressões que normalmente as pessoas adquirem com relação ao passado,
confrontando-os com o presente e as esperanças de um futuro. Ao relacionar estes
pontos, parece compensar as diferenças que se apresentam aos olhos de cada um
dos habitantes da cidade, justificando o momento presente. No entanto, o texto
constrói uma postura compreensiva quanto às mudanças, ao transferir para o
espaço, “o mundo”, o caráter de flexibilidade. Ao tomar essa atitude, Humberto de
Campos não invalida as alterações verificadas na sociedade, mas atribui ao homem
o desespero de perceber as mudanças e notar a impotência diante dos fatos em
cujo curso não pode interferir. O sentimento de nostalgia está presente nas
descrições de Campos: “Os dias eram tecidos com fios de seda, e as horas rolavam
no regaço da noite como pequeninos gatos preguiçosos em uma grande almofada
de veludo negro... E as letras eram, ainda, um delicado ornamento da vida.”44. Ao
apontar as diferenças existentes no presente, o passado transparece como a origem
43 CAMPOS, Lagartas e Libélulas, p. 106.44 Idem
88
de todas as relações, que se instituem como “perfeitas”, livres de corrupções de
qualquer ordem.
Na crônica citada, percebemos também o estabelecimento de uma relação
entre os textos literários do passado e a nova ordem que se estabelecia no cotidiano
do autor. Os cenários e objetivos da escrita são remodelados com o passar dos
tempos. Se a escrita “daqueles dias” se comprometia apenas com o ornamento da
vida, Campos queixa-se indiretamente das modificações experimentadas, pois o
literário e o literato não desempenham a mesma função em seu “presente”. O lirismo
e a idealização da figura do autor cedem espaço a uma outra concepção para o
profissional das “letras”, que deixa de administrar um sacerdócio para escrever
sobre assuntos mundanos. O escritor, neste novo momento, não consegue mais
sobreviver apenas com os frutos abnegados de uma atividade literária propriamente
dita, por isso migra ou para o jornalismo ou para o funcionalismo público. O ideal
romântico de escritor disputa lugar com o profissional do jornalismo, o cronista que
observa e critica os novos e antigos costumes da cidade:
Os suicídios por amor, tão caro ainda às últimas gerações do século XIX, são já cobertos do maior ridículo. As musas inspiradoras abandonavam o fundo ensombrecido das janelas, tão propicio às idealizações românticas, para reaparecer, vestidas no rigor da moda, pechinchando no comércio de varejos. O jornalismo, com sua curiosidade pelo lado vulgar dos homens, acabou com os heróis. A guerra, vista em pormenor e analisada tecnicamente, banalizou-se.45
Nas análises de Humberto de Campos sobre o processo de modernização,
verificamos um anseio romântico de retorno ao estado “primitivo”; mas, em
contrapartida, permanece o desejo de estabelecer uma nova percepção sobre a
sociedade, a ciência e a civilização, através dos novos modelos oriundos da Europa
e de toda a necessidade de afirmação de uma tecnologia e conhecimento que talvez
será útil ao desenvolvimento da sociedade humana. Não é ingênuo pensar que a
“adesão” do escritor ao positivismo está relacionada com essa tendência de ampliar
visões e compreensões sobre o mundo no qual está inserido.
Verificamos que um contraste se estabelece. Ao mesmo tempo em que se
procura uma aproximação com a ciência e com a “realidade” por meio de
comprovações empíricas, o escritor tenta, pela imaginação e conjecturas “ideais”,
decifrar o futuro ou parte dele. Essas conjecturas estão vinculadas ao presente e ao
passado de determinada localidade ou grupo social, possibilitando certa coerência
45 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 120-121.
89
nas especulações que estão propostas no texto. Ao observar o futuro como um
estágio avançado da implementação de tecnologias, o escritor encontra os modelos
anteriores e pertencentes ao passado e assim pode construir, ao menos na
imaginação, um esboço daquilo que talvez se torne no futuro aquele espaço ou tipo
de relação entre os indivíduos.
3.5 Contrastes em desenvolvimento
As ambivalências são constantes nos modos de representar costumes e
espaços. Se de um lado percebemos um pessimismo com relação ao futuro, por
outro, observamos o elogio às grandes descobertas que propiciam o avanço da
civilização. Humberto de Campos imagina e descreve a organização de cidades,
comportamentos e reações dos próprios indivíduos frente aos modelos a que foram
expostos com grande impacto durante o período.
As ideologias que circulavam naquele espaço são representadas de modo a
perceber como todas elas são contraditórias em seu interior. Na descrição
urbanística da cidade, por exemplo, são apresentadas várias máquinas e
ferramentas que facilitariam a vida na sociedade, mas isto é posto em contraste com
os comportamentos anteriores. Não que houvesse por parte de Campos um
interesse apenas de informar “sobre o futuro”, mas, nessa representação, ele cria
uma atmosfera na qual o conflito de percepções e interesses pudessem se
aproximar.
É possível que na descrição dos quadros e cenas existisse, por parte do
escritor, certa necessidade de repensar os caminhos pelos quais trilha a civilização
e, ao reconhecer essa necessidade, retornar ao ponto de partida e estancar ou
refazer o processo. As mudanças e consequências para a sociedade advindas do
“avanço da civilização” encontrarão seu apogeu em sua própria derrocada,
repensando o presente e os modelos constituídos.
Embora as previsões para o futuro sejam carregadas de pessimismo, isso não
impede que Campos descreva seu espanto quanto à presença dos avanços
existentes na sociedade. Na crônica Os avanços da medicina, o escritor refere-se às
revoluções na área médica, principalmente no que diz respeito ao processo
90
cirúrgico. Campos relata um procedimento “revolucionário”, descoberto na França,
no qual se podia enxertar um braço no corpo de outra pessoa. O escritor utiliza
exemplos e imagens extraídas das Viagens de Gulliver46, demonstrando o “terror” da
cirurgia, ao mesmo tempo em que se encanta com a “maravilha” do feito. Campos,
em sua crônica diz: “Que revolução na vida, nas letras, nas artes, em tudo! Wells, o
romancista do Absurdo, o criador do inverossímil, nunca imaginou coisa igual”47.
Logo em seguida complementa: “E no futuro, que confusão! que tumulto! que
anarquia! E, sobretudo, que campo imenso, franqueado ao doido galope da
imaginação!”48. Para Humberto de Campos o único modo de arrematar os contrastes
existentes nessa nova descoberta é por meio do humor:
Esse general Trumelet, cujo braço vem abrir um caminho no mistério, deve lutar, já, hoje, com os inconvenientes da inovação. A mão que lhe cortaram, era de oficial, e executava, automaticamente, o gesto de comandar. E a que lhe deram, pendurada no novo braço, há de saber, apenas, o gesto dos que são comandados. Podia, entretanto, ser peor: podiam lhe ter posto, para angústia da sua bravura, uma perna de poltrão...49
Através da ironia e do humor, o escritor propõe a crítica e o questionamento
aos procedimentos empregados na cirurgia do general francês. Do mesmo modo
critica as descobertas no campo da ciência e as aplicações na vida dos indivíduos.
Aqui vemos um contraste: ao mesmo tempo em que a medicina caminha para a
evolução, ela está rompendo a ordem natural dos seres vivos em suas limitações.
Não que isto se configure numa atitude “não-científica”, mas problematizadora, pois
sugere que a cirurgia seja analisada com um pouco mais de cuidado.
A partir disso, destacaremos uma série de exemplos do processo intertextual
na composição da escrita de Campos que nos permitem pensar nos modos de
captação de leituras e na percepção dos métodos pelos quais o escritor abordava
seus temas, expondo, no interior dos textos, conceitos e opiniões. Os contos versam
sobre a cidade do Rio de Janeiro (Entre o que foi e o que virá), sobre um tipo de
civilização e atitudes que entendemos ser brasileiras (Os sábios selenitas) e sobre a
reação do homem frente às descobertas científicas e suas aplicações na vida
46 “Entre os sábios que o herói de Swift encontrou em atividade patriótica na Academia de Lagado, no reino de Laputa, um particularmente o surpreendeu pela utilidade e pela originalidade do seu invento: o autor de um processo físico de harmonizar os políticos. Tomava-se uma centena de próceres de cada partido, de modo a arranjar uma centena de pares cujos crânios fossem do mesmo tamanho. Em seguida, abria-se a cabeça de todos, e fazia-se uma rápida troca de miolos, em porções justas.” CAMPOS, Da Seara de Booz, p. 185.47 Idem, p. 187.48 Idem.49 Idem, p. 188.
91
cotidiana (Os olhos que comiam carne). Em todos eles a presença da ciência é
problematizada, seja como discurso ou como a contradição de seus instrumentos e
ferramentas em uso nessa “modernidade”. Acreditamos que, com esses textos,
podemos esboçar uma análise acerca da ambivalência da identidade brasileira
nesse aspecto do primitivo e civilizado, desenvolvido e subdesenvolvido. O aspecto
da colonização permanece tanto na proposta política da Monarquia quanto na
República recém instaurada, e os textos de Campos podem nos ajudar nessa
compreensão acerca dos valores que foram associados ao universo da
modernização brasileira.
92
Ilustração 5*
Ilustração 6** Ilustração 7***
* Graf Zeppelin sobrevoando a Avenida Central (Avenida Rio Branco). A partir de 1930 o Zeppelin passou a fazer viagens constantes para o Rio de Janeiro. Fonte: http://tigredefogo.blogspot.com/2007/06/graf-zeppelin-sobre-o-rio-de-janeiro.html** Foto de Augusto Malta. Rua do Resende, Rio de Janeiro. Disponível no sítio eletrônico da Biblioteca Nacional. http://catalogos.bn.br/redememoria/galerias/MaltaMHN/images/DSC_0018.jpg*** Foto de Augusto Malta. Rua d’Assembléia, Rio de Janeiro. Disponível no sítio eletrônico da Biblioteca Nacional. http://catalogos.bn.br/redememoria/galerias/MaltaMHN/images/DSC_0026.jpg
93
Ilustração 8*
Ilustração 9**
* Foto de Augusto Malta. Avenida Rio Branco, Rio de Janeiro. Disponível no sítio eletrônico da Biblioteca Nacional. http://catalogos.bn.br/redememoria/galerias/MaltaMHN/images/DSC_0025.jpg**Cena da cidade “moderna” extraída do filme Metropolis de Fritz Lang, 1927.
94
Ilustração 10*
Ilustração 11**Ilustração 12***
* Imagem do selenita segundo George Mèlies no filme: Le Voyage dans La Lune, de 1902.** Capa da edição do livro Primeiros Homens na Lua, de H. G. Wells. *** Ilustração da narrativa Da Terra à Lua, de Jules Verne.
95
Ilustração 13*
Ilustração 14**
Ilustração 15***
* Produção cinematográfica O homem com olhos de raios-X, dirigido por Roger Corman em 1963.** Capa da revista Superboy, spin-off do Superman criado por sugestão do próprio Jerry Siegel. Na capa uma troca de “olhares” através da visão de raio X. Fonte: http://www.coverbrowser.com/image/superboy/98-2.jpg*** Neste quadrinho, Lois Lane assusta-se pela capacidade matemática do Superman e não pelo uso da visão de raio X. Jerry Siegel e Joe Shuster publicaram o personagem pela primeira vez na revista Action Comics #1, no ano de 1938. A visão de raio X, de Paulo Fernando, descrita por Humberto de Campos, data de 1932, ano da publicação da coletânea em que encontramos o conto: Os olhos que comiam carne.
96
4 A PROTOFICÇÃO CIENTÍFICA E A PROBLEMATIZAÇÃO DA SOCIEDADE
O olhar para o futuro e para a criação de novas hipóteses quanto à
organização social e cultural brasileiras convergiam para a apresentação e críticas
acerca das ideias que sustentavam a noção de progresso. Ao mesmo tempo, estas
“soluções” (na apresentação de um ambiente futurístico baseado em um
pensamento cientificista) logravam resolver, discutir, criticar os males sociais e as
constantes interrogações ideológico-culturais difundidos na capital da República do
início do século XX. A partir das imagens e representações acerca do futuro,
incluídas no escopo da protoficção científica de Humberto de Campos, passaremos
a analisar mais especificamente os contos, percebendo as relações entre eles e a
realidade na qual estavam inseridos.
Analisaremos os contos assumindo como suporte as construções de
realidade tomadas de empréstimo e lançadas para uma representação do futuro. O
universo da cidade do Rio de Janeiro, nas primeiras décadas desse século, estava
impregnado por projetos idealizados pelo grupo dominante que objetivavam o
desenvolvimento tecno-industrial do país. Atreladas a essa movimentação, surgiam
expectativas na aplicação de teorizações cientificistas e filosóficas dos aspectos da
vida social urbana. O interior deste universo propiciava leituras e interpretações
sobre a realidade e o futuro um pouco mais fantasiosas que outras, embora
estivessem atreladas a uma conjuntura real: seja social, econômica e principalmente
cultural.
Os contos Entre o que foi e o que virá, Os sábios selenitas e Os olhos que
comiam carne assumem uma linguagem e imagens pertencentes a esse universo de
desenvolvimento, civilização e supremacia de ideais científicos. Esses textos
possibilitaram a análise de construções ideológicas e culturais que circulavam no
Brasil a partir do Rio de Janeiro. Os contos apresentam-se ambivalentes quanto aos
ideais presentes no imaginário do público daquela época e que ainda persistem na
discussão da contemporaneidade. É importante notar que os textos recorrem a
relações titubeantes entre a fantasia e o desejo de realidade do discurso científico
na construção de hipóteses para o futuro. Existe neles uma espécie de antecipação,
97
fundamentada no desdobramento de perspectivas existentes na sociedade, em
direção às mudanças no desenho urbanístico da capital, no tipo de sociedade e nos
entendimentos de civilização e procedimentos científicos, a exemplo da medicina.
Entendemos que estes enredos foram construídos a partir das motivações culturais,
na tentativa de estabelecer um prognóstico ideal para o país frente às configurações
verificadas no passado e existentes no presente. Esta “hipótese de futuro”
encontrada na escrita de Humberto de Campos discute as possibilidades de se
conceber uma realidade brasileira através do texto baseado na narrativa fantástica,
analisando abordagens e repercussões da compreensão do momento histórico
daquele período.
Na análise dos contos, verificamos que Humberto de Campos colocou em
destaque três imagens que utilizaremos como matriz para o desenvolvimento de
nossa discussão. No conto Entre o que foi e o que virá, a temática está centralizada
na imagem de cidade desenvolvida, repleta de máquinas e instrumentos que
“facilitariam” a vida na sociedade carioca do ano 2000, explicitamente voltada para a
velocidade e produtividade. Em Os sábios selenitas, encontramos a imagem de
civilização altamente desenvolvida e científica, porém “extraterrestre”, em relação
com o desconhecimento de uma civilização primitiva “terráquea”, identificada na
imagem da violência e inexistência de uma linguagem que permita a comunicação.
Por fim, no conto Os olhos que comiam carne, verificamos uma intersecção do texto
com a biografia de Humberto de Campos, na qual as imagens de visão e cegueira
estabelecem contatos com a ciência e sua atuação na sociedade. No conto, a
medicina estrangeira está absolutamente à frente da brasileira e permite que o cego
consiga enxergar, a partir de uma intervenção cirúrgica, cenas que nenhum outro ser
humano conseguiria ver naturalmente.
4.1 A cidade
No conto Entre o que foi e o que virá, Humberto de Campos retorna com a
figura enigmática de Pamórfio, que durante a descrição da cidade aparece apenas
como observador. Neste caso, é o próprio escritor que assume a função de “profeta”,
98
ao relatar as características da cidade carioca. É interessante notar que Campos
inicia suas digressões com a afirmativa:
Para conhecer o Futuro, a marcha para diante, é preciso, primeiro, conhecer o Passado, de que é ele o reflexo. Por isso, quando eu me quero transportar ao Rio de Janeiro de amanhã, visito, antes, o Rio de Janeiro de ontem.”1
Essa atitude pode significar a busca pelas hipóteses do futuro, contrastando a
ideia de “primitivismo” com a de “desenvolvimento”. Não nos parece que o
primitivismo aqui seja visto como algo extremamente negativo. A ideia de avanço
tecnológico e comercial verificada no conto leva-nos a crer que se trata da evolução
da sociedade rumo a seu máximo esplendor. Isto não aparece como positivo ou
negativo, apenas sinaliza os estágios de desenvolvimento. Por outro lado, a figura
de Pamórfio afirma o discurso pessimista sobre a especulação do futuro. O narrador
conversa com um ente mitológico que o acompanha ao longo da narrativa, ciente
das perspectivas negativas que caracterizam sua relação com o porvir:
É nesse Pamórfio que eu penso, às vezes, quando me ponho a refletir sobre os destinos da Humanidade, e, mais restritamente ainda, no desta cidade que lhe é, hoje, cérebro e coração. Já alguém imaginou, por acaso, o que será o Rio de Janeiro dentro de um século ou, mesmo, dentro de cincoenta anos? Já houve quem se transportasse em pensamento a esta Sebastianópolis, imaginando-se no ano 2000? Faça cada um os seus cálculos, e dê liberdade à imaginação.2
As imagens sobre a cidade do Rio de Janeiro no momento de sua fundação
são apresentadas como ponto de partida para as hipóteses do escritor. O narrador,
criado por Humberto de Campos, descreve desde o desenho geográfico da região
até as primeiras intervenções dos habitantes e as primeiras aparições dos
elementos da modernidade. As descrições estão sempre focalizadas na integração
de grupos populacionais, fluxo de pessoas e na agilidade das trocas comerciais. As
imagens de velocidade na circulação de informações, de rapidez no comércio, no
abastecimento dos gêneros alimentícios à capital, dão a tônica da representação da
cidade do futuro.
Mesmo ao descrever os acontecimentos do passado, o narrador se apoia nas
imagens de velocidade quando menciona, por exemplo, a construção de vias de
ligação, que propiciaria a facilidade na locomoção de pessoas e bens materiais.
Com isso percebemos que estas imagens gozavam de importância para aquele
momento. Ao partir para o passado, Humberto de Campos identifica o embrião
desse ideal de velocidade que é estabelecido na interação de pessoas e grupos 1 CAMPOS, Humberto de. Lagartas e Libélulas. São Paulo: W.M. Jackson Inc., 1960, p. 202.2 Idem.
99
sociais diferentes. Quando se refere ao Rio de Janeiro do passado, o narrador
afirma: “Aberta uma estrada sobre o mangal, para a Quinta da Boa Vista,
estabelecem-se ligações entre os núcleos de população que se formaram.”3. Nesta
breve descrição, percebemos o caráter de facilitação do transporte e do
estreitamento entre os grupos populacionais. Ao finalizar a etapa da descrição do
passado, o autor estabelece uma cena de transição para se concentrar nas
descrições sobre o futuro:
Vêm os bondes. Abre-se o túnel de Copacabana. A cidade, cheia, derrama-se. Rodam automóveis sobre o asfalto onde corria o tatuí na areia molhada. E surge a capital magnífica e atordoante, a metrópole moderna, com os seus jardins de vinte e cinco quilômetros e os arranha-céus de vinte e cinco andares...4
A definição de “metrópole moderna” já é uma aparente necessidade de
distinguir os modelos de cidade. Os vazios do desenho urbanístico propiciados pelos
jardins de vinte e cinco quilômetros e prédios altíssimos servem também como um
indicador dos anseios de modernidade na especulação quanto ao futuro. Uma
indicação de que a cidade se constitui no símbolo de prosperidade e avanço da
cultura moderna. No entanto, esta é uma cultura que privilegia o individualismo e
favorece uma atitude pragmática das relações sociais, visando a produtividade e
otimização do tempo.
Encontramos idêntica preocupação no romance Paris do Século XX, de Jules
Verne, obra descoberta recentemente e publicada apenas em 1994. Este livro,
escrito em 1863, descreve a capital da França no ano de 1960. Paris é uma cidade
absolutamente urbana e carente de uma “cultura clássica”, na qual o protagonista
Michel Dufrénoy busca um editor para os seus versos latinos. No capítulo Apanhado
geral das ruas de Paris, o narrador apresenta-nos o personagem em meio às
imagens de velocidade: “Michel Dufrénoy seguira a multidão, mera gota de água
naquele rio que, com a ruptura de suas barragens, se transformava em torrente.”5. A
rua torna-se, por excelência, o espaço profícuo para a percepção das mudanças
urbanísticas e culturais, além de permitir o estabelecimento de interações entre os
sujeitos, habitantes daquela cidade.
Em outro contexto, João do Rio, na crônica A Rua, menciona o caráter
dialógico entre os sujeitos e a própria cidade, partindo do espaço das ruas: “Nas
3 CAMPOS, Lagartas e Libélulas, p. 204.4 Idem.5 VERNE, Júlio. Paris no século XX. São Paulo: Editora Ática, 1995, p.42.
100
grandes cidades a rua passa a criar o seu tipo, a plasmar o moral dos seus
habitantes, a inocular-lhes misteriosamente gostos, costumes, hábitos, modos,
opiniões políticas”6. A partir de João do Rio, percebemos o quanto as experiências
adquiridas no espaço das ruas interferiam no imaginário cultural da população
brasileira. Certamente a velocidade e produtividade são os elementos primordiais da
modernidade que se desvela, tangenciando as diversas realidades experimentadas
por cada sujeito na vivência com a rua em meio à multidão. Essa mesma multidão
que circula nas ruas das grandes metrópoles é uma das temáticas presentes na
teoria de Walter Benjamin na análise dos textos de Baudelaire:
Mover-se através do trânsito, comporta para o indivíduo uma série de choques e colisões. Em pontos perigosos de cruzamento, fazem-no estremecer, em rápidas sucessões, nervosismos iguais às batidas de uma bateria. Baudelaire fala do homem que mergulha na multidão como num reservatório de energia elétrica. Define-o, logo em seguida, descrevendo assim a experiência do choque como “um caleidoscópio dotado de consciência”.7
A velocidade impõe-se como necessária à nova compreensão das relações
em sociedade. O fluxo de pessoas no romance de Verne, a rua, que em João do
Rio, é imagem do espaço de interações na modernidade, e o homem como
“reservatório de energia elétrica”, segundo Benjamin, compilam o símbolo de
sociedade que reflete a agilidade como uma marca de destaque. O caleidoscópio
pode ser compreendido como a reunião de diversos fragmentos e culturas
experimentadas, que constituídos na imagem do “homem moderno” formariam uma
visão de mundo diferenciada, pautada em diversos conhecimentos, mantendo-se
consciente da atuação transformadora no universo.
Através do romance de Verne podemos relacionar algumas pistas da
necessidade de vincular imagens de desenvolvimento com a velocidade das trocas
comerciais e do trânsito de pessoas. A imagem de “agilidade e rapidez” está
presente tanto em Jules Verne quanto em Humberto de Campos e podemos
identificá-la como um dos símbolos de desenvolvimento e de civilização.
Percebemos essa busca pelo progresso na descrição da cidade de Paris, conforme
o narrador criado por Jules Verne:
6 RIO, João do. A alma encantadora das ruas: crônicas. São Paulo: Martin Claret, 2007. p.36. (Coleção a obra-prima de cada autor).7 BENJAMIN, Walter. A modernidade e os modernos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000. p. 54.
101
Os meios de transporte eram rápidos, portanto, nas ruas menos atravancadas que no passado, pois uma determinação do Ministério da Polícia proibia que carretas, carros de carga ou caminhões circulassem, depois das dez da manhã fora de certas ruas reservadas.Essas diversas melhorias conviam bem àquele século febril, em que a multiplicidade dos negócios não deixava espaço para o repouso e não permitia atrasos.8
Uma destas cenas está vinculada, no texto de Campos, com o trabalho dos
“cidadãos do futuro”. No Rio de Janeiro do ano 2000 não se pode perder nenhum
minuto na caminhada rumo à evolução e o progresso: “Há serviço aéreo para São
Paulo de dez em dez minutos, e aeronaves de luxo das onze horas para um almoço
em Petrópolis, as quais reporão o assinante no Rio à meia hora, tendo ele gasto
uma hora à mesa.”9. O tempo é um elemento que contribuiria para a associação com
a modernidade, ou seja, o homem não pode desperdiçar nenhum minuto que não
esteja vinculado ao trabalho, permanecendo assim engajado no desenvolvimento da
sociedade e acumulação de riquezas. Do mesmo modo, Jules Verne refere-se aos
habitantes de Paris, ao apresentar pela voz de seu narrador o espanto acerca dos
serviços e maravilhas existentes naquela cidade:
“serviam-se delas tranquilamente, sem ficarem mais felizes por isso, pois, com seu ritmo acelerado, suas atividades apressadas, seu ardor americano, percebia-se que eram acossados sem interrupção nem piedade pelo demônio da fortuna.”10
Sabemos, através de Jeffrey Needell, que havia uma prática comum de
deslocamento dos burgueses cariocas do centro da cidade para Petrópolis,
transferindo um status de elegância e prosperidade aos chefes de família. A partir
dessa experiência de “presente”, Campos lança sua observação para o futuro e
desenvolve a necessidade de um transporte veloz, capaz de deslocar os “homens
de negócio” para suas atividades, permitindo que eles pudessem cumprir sua
agenda de trabalho e suas “obrigações” familiares ao mesmo tempo em que
ostentavam suas riquezas. Esse grupo, de acordo com Needell, trouxe para si
prestígio suficiente, sendo necessário criar uma “instituição” para reunir os sócios.
Era o Club dos diários:
O termo deriva das viagens diárias a que se obrigavam aqueles cuja riqueza e posição lhes permitia veranear no fresco refúgio serrano da elegante Petrópolis, mas paralelamente exigia deles que percorressem o caminho ida
8 VERNE, Júlio. Paris no século XX. São Paulo: Editora Ática, 1995, p. 49.9 CAMPOS, Humberto de. Lagartas e Libélulas. São Paulo: W.M. Jackson Inc., 1960, p. 205.10 VERNE, 1995, p. 50.
102
e volta até seus escritórios cariocas, a cada manhã e tarde, num ritual tedioso para aplacar tanto os deuses da moda quanto os da riqueza.11
A mesma ideia de urgência e brevidade na execução das tarefas verificamos
no texto de Campos. Embora não tivesse sido leitor desse romance de Verne, no
qual encontramos o protagonista aflito em meio a uma sociedade que privilegia o
conhecimento da técnica, Humberto de Campos, em suas narrativas e personagens,
experimenta o mesmo contexto histórico da busca pelo desenvolvimento. Desse
modo, localizamos as concepções sobre os tipos de civilização que circulavam na
época e que estão refletidos na escrita de ambos os escritores e em suas
descrições. Uma sociedade que “não permite atrasos”, mas valoriza o tempo e a
produtividade, é criticada no modo como incentiva os sujeitos para o enriquecimento
da elite e o trabalho. Vejamos como o “uso produtivo” do tempo e dinheiro é descrito
na narrativa de Campos: “Fornece-se leite e vinhos como se fornecia gasolina em
1933; deita-se a moeda em um dos orifícios, e abre-se uma torneira para receber o
líquido correspondente.” Rapidez no fornecimento e no consumo, excetuando a
interação humana com o leiteiro e o frentista, vendedor de gasolina. A moeda e o
contato com a máquina são os símbolos da relação capitalista que divulga a melhor
maneira de adquirir bens e serviços.
Ao se voltar inicialmente para o passado para construir suas hipóteses sobre
o futuro, Humberto de Campos realiza a tarefa de comparar o ambiente cultural no
qual estava inscrito com suas projeções, descrevendo o resultado dos
desdobramentos das hipóteses baseadas na atualidade. Esta percepção, verificada
no texto, dialoga com os diversos imaginários que foram construídos no processo de
urbanização da cidade do Rio de Janeiro. Na descrição do “passado”, a Avenida
Central, símbolo do processo de modernização urbanística do Brasil, e as outras
vias que interligavam o centro às demais localidades e ao porto, eram apenas o
esboço para uma intensificação desta imagem de velocidade: “A Avenida Central
não é mais, agora, do que uma pequena veia do novo sistema circulatório do
formidável organismo urbano.”12. Naquele momento, a Avenida era a obra máxima
das reformas urbanísticas, e associá-la, no ano 2000, a “uma pequena veia”
simbolizava o quanto a sociedade brasileira progrediria em direção ao apogeu da
civilização, demonstrando o quanto se modernizava ao longo das décadas.
11NEEDELL, Jeffrey D. Belle Époque Tropical: Sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.95.12 CAMPOS, Lagartas e Libélulas, p. 205.
103
A imagem de velocidade está refletida não apenas nas reestruturações
urbanísticas da cidade e deslocamentos de pessoas. Verificamos essa tendência na
concepção dos bens culturais em destaque no conto de Campos. Sobre esse tema,
o narrador, instigado por Pamórfio, prevê que no ano 2000: “Há romances e novelas
vendidos em pequenos discos: adquire-se Shakespeare comprimido, e mete-se no
bolso, para ouvir em casa.”. A partir deste exemplo, observamos que os pequenos
discos substituem os livros e, ao invés da leitura do texto, o sujeito serve-se de uma
relação mais “confortável” com o texto clássico. Desse modo, o indivíduo estaria livre
para fazer outras coisas e não precisaria dispor de um tempo específico para a
leitura, baseado no contato direto com o livro. Parece-nos que os romances e
novelas são encarados como mercadoria que se compra e leva para casa sem
grandes complicações, rompendo qualquer tipo de imagem sacralizada, outrora
atribuída a textos literários como os de Shakespeare. No entanto, a citação do
escritor inglês aponta para a conservação de uma cultura específica, comprometida
com os valores da “ilustração”, humanista e clássica. Mesmo no ambiente do
distante ano 2000, os escritores, a exemplo de Shakespeare, mantêm-se presentes
no imaginário cultural, certamente concebido como um texto universal, independente
do tempo e do espaço.
Outra ferramenta projetada para o futuro possui a mesma ideia de trânsito
rápido de informações e permitia que qualquer habitante da cidade obtivesse acesso
às informações e notícias de diferentes espaços do planeta: “Um aparelho instalado
na praça Mem de Sá permite assistir, vendo e ouvindo, o combate entre alemães e
franceses, e que é a ‘revanche’ dos franceses, derrotados pelos alemães em 1952.”.
Seria propriamente a livre acessibilidade na divulgação das notícias que são
transmitidas no momento em que os fatos ocorrem. Não apenas se lê um texto
escrito, tal como nos jornais, mas se ouve e vê. Um produto multimídia que permite
a aproximação do sujeito com as informações. Observamos também que o aparelho
está localizado numa praça e as notícias circulam lá entre os “telespectadores”,
produzindo uma ideia de opinião pública que pode ser compartilhada com os outros
que se encontram ali presentes. De modo semelhante, a leitura dos jornais e
folhetos informativos é alterada por conta da “campanha contra o papel”, no qual
percebemos certa preocupação do narrador com os recursos naturais do planeta, ao
mesmo tempo em que a efemeridade das informações é posta em destaque. Os
jornais deixariam de ter a circulação diária para, em termos contemporâneos, serem
104
atualizados em “tempo real”, justificando a eliminação do papel por outro veículo que
não causasse tantos danos à natureza:
A campanha contra o papel, que ameaçava destruir todas as florestas da terra, institui o jornal-verbal: quem quer ter notícias do que está acontecendo no mundo põe um pequeno fone portátil ao ouvido e aperta um botão, ou entra em qualquer estabelecimento de comércio, onde grandes aparelhos anunciam as novidades da hora.13
No final do texto, Pamórfio (que até o momento figura apenas como
observador) surge com um ar irônico, desdenhando as suposições do narrador
quanto ao futuro da cidade. A entidade, conhecedora das ciências ocultas e dos
destinos da humanidade, utiliza a mesma imagem de velocidade para arrematar as
descrições feitas pelo narrador: “Para atingir a realidade quanto ao Futuro, falta
fôlego aos cavalos da tua imaginação!”14 Se partimos do significado da imagem de
Pamórfio no contexto do conto veremos que as descrições sobre o desenvolvimento
da cidade estavam atreladas a uma crítica dos processos que buscavam essa
“civilização”. As imagens de velocidade, agilidade no comércio, as relações com
outros sujeitos, com a informação e a própria cidade figuram como extremamente
necessárias ao desenvolvimento, mas configuram implicitamente a crítica e os
prejuízos a esse processo.
É deste modo que o Rio de Janeiro, no texto de Campos, constrói sua
organização estrutural, utilizando o princípio da velocidade como base. As hipóteses
estão, ainda assim, vinculadas à realidade vigente com a qual o escritor mantém
seus entendimentos sobre o futuro e o destino final da sociedade. A figura de
Pamórfio, portadora de uma visão negativa do desenvolvimento da sociedade, serve
como ponto de apoio para a análise do narrador acerca deste ambiente. Assim, a
cidade é compreendida no apogeu de sua evolução e experimentada implicitamente
como um “inferno”, ao se distanciar de padrões já vividos e considerados como
portadores de danos menores ao coletivo social. Na narrativa, Humberto de Campos
posiciona-se à distância ao mesmo tempo em que comunga do imaginário de um
destino apocalíptico para a humanidade.
13 CAMPOS, Lagartas e Libélulas, p. 205.14 Idem, p.207.
105
4.2 A civilização
O conto Os sábios selenitas não trata especificamente de uma previsão para
o futuro. Encontramos uma realidade paralela, na qual existem habitantes na Lua (os
selenitas) que querem manter contato com os habitantes da Terra. Observamos uma
clara relação entre dois grupos distintos incomunicáveis até aquele momento. Um
grupo apresenta-se como evoluído e portador de um conhecimento científico
superior e o outro grupo é desprovido de inteligência. O contato com o Outro é uma
temática bastante explorada nos textos que tratam de utopias e principalmente nos
textos de ficção científica. O Outro é desconhecido, aquele sobre o qual não se sabe
muita coisa, sendo assim passível de estereótipos.
Na tentativa de descortinar os “mistérios” sobre a existência do Outro,
encontramos na escrita de textos utópicos, por exemplo, a demonstração de
elementos ausentes em determinado contexto, se partirmos de um referencial
estabelecido na representação de formas “perfeitas”. Em uma rápida observação a
textos como A Utopia, de Tomas Morus (1478-1535), percebemos algumas
aspirações diante da realidade vigente daquele momento. Nas narrativas utópicas, o
escritor, por meio de um relato aparentemente despretensioso, apresenta
características da viagem e descoberta de uma nova civilização que difere em muito
da civilização na qual o escritor está inserido.
Tomas Morus, por exemplo, talvez imbuído de um sentimento religioso em
consonância com os ideais de uma sociedade igualitária, apresenta uma ilha
(Utopia) que difere da realidade social vigente. O símbolo de uma sociedade pós-
apocalíptica governada pelo Messias é retomado para compor a narrativa de Morus.
Nela concentra-se um sentimento de comunhão e igualdade entre os habitantes,
privilegiando as descrições de um comportamento voltado para o desapego à
propriedade privada e aos elementos de riqueza material. É importante notar que
essa igualdade prescrita na forma de governo é afirmada na descrição da ilha,
mesmo que lá também existissem escravos e que fossem tratados duramente. O
princípio de igualdade é evidenciado nas condições sociais, políticas e econômicas
dos habitantes, nas roupas utilizadas, tipos de alimentos que devem ser
106
consumidos, até na unificação litúrgica da vida religiosa. Certamente é uma
igualdade que assegura privilégios e põe em relevo outros grupos caracterizados
como estranhos, insurgentes, intrusos, bárbaros, etc.
Podemos pensar que nas narrativas utópicas está em reflexão uma realidade,
na medida em que reconfiguram aspectos vigentes diretamente no texto,
apresentando didaticamente algumas soluções para o presente. O texto constrange
uma dessas realidades com uma possibilidade ainda inexistente, mas
aparentemente melhor, perfeita em todos os aspectos. O interessante é que as
narrativas de caráter utópico sempre caminham para uma homogeneização de
costumes, saberes e culturas. A uniformidade e uniformização dos conjuntos sociais
parecem ser mais aprazíveis do que a existência de um amplo espectro de
“alternativas”. A utopia elimina as diferenças, pois o ideal de igualdade e espaço
homogeneizado é necessário para se manter o controle. Por isso, verificamos esse
controle nas vestimentas, nos usos e comportamentos dos cidadãos diante de toda
a sociedade, pois talvez assim as imperfeições e desníveis de várias ordens serão
corrigidos.
No conto de Humberto de Campos, encontramos uma intenção de descobrir o
mistério do desconhecido, descrevendo-o a partir de um referencial. No texto, os
selenitas desejam saber se o planeta Terra possui vida inteligente e se seus
habitantes estariam dispostos a estabelecer contato. Aqui, percebemos a utilização
do imaginário acerca da existência de vida em outros planetas. Ao iniciar a narrativa
com a sociedade encontrada na Lua, o escritor estabelece uma inversão de papéis,
pois seriam os seres humanos a se perguntarem sobre a vida na Lua.
Essa temática foi utilizada em outros textos literários como Da terra à Lua, de
Jules Verne, e Os primeiros homens na Lua, de H. G. Wells. No texto de Campos, a
pergunta é invertida e os referenciais de beleza e saber são rasurados na intenção
de promover o questionamento. Os selenitas Sttaf, Herlowawth e Anianax, membros
da Academia de Ciências Lunares e Celestes, procuram saber se a Terra é
habitada, e entre si cogitam as possibilidades dessa existência: “Reunidos os três
monstros inteligentes no alto de uma grande montanha calcinada, entraram a
discutir, em voz gutural, a possibilidade de um entendimento com os longínquos
habitantes da Terra.”. Anianax, o sábio que já havia estipulado cálculos sobre outros
corpos celestes apresenta suas hipóteses sobre o problema do desconhecido,
interrogando os demais acerca da natureza do objeto de pesquisa:
107
O planeta que nos ocupa não pode ser habitado, como a Lua, em que vivemos. A massa líquida que se move dele, tomando-lhe três quartas partes da superfície, e, sobretudo, a umidade ambiente, são infensos a qualquer manifestação de vida. E se, porventura, os meus cálculos falham; se há, por lá seres vivos, estes permanecem, necessariamente, em um estado tão rudimentar de inteligência, que nos seria impossível travar com eles quaisquer relações.15
Percebemos aqui a necessidade de conformar os questionamentos a certo
espírito científico que pudesse trazer respostas comprovadas e irrefutáveis. A
criação das hipóteses leva à construção de um programa de investigação que
consiga compreender algumas explicações acerca do objeto de estudo. Os selenitas
desejam resolver o problema do desconhecido, afinal a Terra desperta a curiosidade
dos sábios. A citação na narrativa do empreendimento de uma pesquisa empírica na
verificação da vida no planeta está em sintonia com os pressupostos positivistas de
Comte, que incentivavam a “luta” do homem contra qualquer tipo de explicação que
não pudesse ser comprovada in loco.
Por outro lado, a existência de habitantes na Lua é o primeiro elemento que
suspende a realidade vigente e conduz a narrativa para o contraste dos
entendimentos sobre civilização. Os selenitas são inteligentes e capazes de
construir equipamentos e ferramentas que consigam responder às suas questões,
exercitando o espírito científico, claramente positivista. No texto, localizamos esse
anseio no momento em que o narrador expõe as diversas teorias acerca da
possibilidade de vida inteligente na Terra. Essas teorizações estavam
fundamentadas em estudos anteriores que podiam ser colocados em confronto com
novas descobertas. Na tentativa de “encerrar” a questão, bastaria constituir uma
expedição para comprovar ou negar as teorias existentes:
A teoria de Anianax, de que a Terra é desabitada, e de que, se tem habitantes, estes se conservam em um estado rudimentar, vivendo na mais lamentável brutidão, era já, a de Clown, pai de Wfluffnwit. E a de Sttaff, de que o grande planeta é habitado, e de que os seus habitantes se acham em uma situação de cultura igual, pelo menos, à nossa, também não é nova. Advogavam-na, em tempos que a lembrança não apreende, Sttowen, Aixley, Butternwamnd, e outros, cujo nome a luz do entendimento não repetiu na memória das criaturas. O que eles não tinham, porém, como nós era o meio de resolver tamanha controvérsia, tamanha dúvida, o qual nos é facultado, agora, pela máquina voadora de Warthwift. Façamos, pois, com que ele parta, convenientemente do planeta que nos conduz através da amplidão, trazendo-nos informações seguras, claras, positivas, sobre os nossos misteriosos vizinhos do ar.16
15 CAMPOS, Lagartas e Libélulas, p.184-185.16 Idem, p.186.
108
Encontramos, também na narrativa, o uso de equipamentos que contribuiriam
para desvendar o problema. A máquina voadora, construída por um dos selenitas,
serve ao propósito da expedição que tem o objetivo de chegar a Terra. O aparelho é
muito diferente da bala de canhão utilizada no livro de Verne, ou da “cavorita” do
livro de Wells17. Embora não exista ao longo da narrativa uma descrição minuciosa
da nave selenita, sabemos que ela decola e aterrissa, não sendo arremessada ou
“atirada” ao alvo e tampouco é composta por uma substância misteriosa. O domínio
dos céus e utilização das máquinas que voam, talvez seja uma das marcas
principais de desenvolvimento tecnológico. Não podemos esquecer que na
configuração desse aparelho selenita podemos encontrar os êxitos de Santos
Dumont em seus experimentos com o avião, no cenário científico brasileiro. O
equipamento construído pelos selenitas distingue os graus do conhecimento e
domínio da ciência que eles possuem e o modo como os utilizam para promover
uma expedição científica. Aqui, temos a ideia de que a civilização exterior ao planeta
Terra é muito mais evoluída tecnologicamente, a ponto de desenvolver uma
máquina e empreender viagens interplanetárias para comprovar, ou não, a
existência de vida inteligente nos planetas. O diálogo entre os selenitas deixa claro
quais eram as intenções do programa de investigação:
– A máquina de voar inventada pelo engenheiro Warthwift, – ponderou, levantando a enorme cabeça trêmula, estrelada de olhos, o venerando Herlowawth – é o único processo de que dispomos para descobrir se o planeta de que dependemos é, como se supõe, habitado. Os nossos recursos para verificação à distância, são, como sabemos, deficientes. Se os aparelhos acusam vestígios de vida, que se patenteiam pela modificação progressiva da crosta planetária, essa possibilidade é afastada, de pronto, pelos fenômenos verificados, e por uma infinidade de circunstâncias em que se apóiam alguns dos nossos mais eminentes colegas.18
Poderíamos estabelecer uma comparação a esse desejo de comprovações e
descobertas se nos lançarmos ao período das grandes navegações de fins do
século XV e início do XVI. A Europa, em especial Portugal, direcionou os esforços
no estudo e análise da existência de “novas terras” que pudessem propiciar a
expansão do comércio de mercadorias e extração de matéria prima. Utilizou a
17 Em ambos os livros, os personagens são pesquisadores que pretendem descobrir se a Lua é habitada e quem são esses seres. No livro de Verne, os integrantes do Clube do Canhão se empenham na tentativa de construir um projétil que, lançado à Lua, pudesse descortinar o mistério acerca de seus habitantes. Em Wells, a “cavorita” é uma substância anti-gravitacional que reveste o veículo no qual os tripulantes embarcam em direção à Lua, lá encontram um povo triste e mau-humorado. VERNE, Jules. Viagem ao redor da Lua. Rio de Janeiro: Editora Matos Peixoto, 1963; WELLS, H. G. Os primeiros homens na Lua. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1985.18 CAMPOS, Lagartas e Libélulas, p.184.
109
ciência que dispunha na época, para possibilitar a construção de grandes navios que
pudessem chegar “seguros” ao destino planejado. Embora não estivessem movidos
pelo positivismo de Comte, o desenvolvimento das ciências no Renascimento
italiano e Humanismo português substanciaram a necessidade de encontrar novos
mundos, todos ainda desconhecidos, possibilitando também a especulação da
existência deles19.
Tanto os “desbravadores” portugueses como os selenitas não encontraram
áreas vazias e espaços que não estivessem ocupados pela cultura dos nativos no
“Novo Mundo”. Aqui, verificamos o jogo de intenções e representações no interior do
projeto de colonização. O Outro, nativo, é símbolo do primitivismo e é representado
pelos cronistas como dependente do “civilizador”, ou até mesmo como um ser
monstruoso que, de alguma maneira, justificasse o extermínio. Desse modo, todos
os esforços são direcionados aos “selvagens”, no sentido de esquematizar e
hierarquizar costumes, doando, a partir de então, uma cultura “legítima” vinda do
colonizador. Inevitavelmente teremos uma ideia de extermínio, seja da cultura ou
dos povos nativos. O colonizador pretende afirmar sua própria cultura como
superior, possuidora uma origem “divina” ou composta de referências arbitrárias de
“certo” e “errado” de um grupo hegemônico. O contato com o Outro é uma temática
muito produtiva na ficção científica, como atesta Roberto Causo:
[...] é possível argumentar que a ficção especulativa continuou projetando o mesmo modelo de investigação especular dos seus próprios objetos, originários da própria estrutura da qual o autor extrai os elementos de sua produção, mas com um sujeito exótico, uma alteridade que é virtual – o Outro é o ser alienígena, e não o nativo dos trópicos ou das Índias; o mutante ou o monstro e não os selvagens primitivos; o homem do futuro, e não o colono que se misturou aos nativos. O Outro certamente está no centro das intenções da ficção especulativa, tanto quanto a ciência ou a extrapolação.20
O imaginário europeu repleto do diálogo com a cultura religiosa e mística de
vários povos apresentava os novos “mundos” como se fossem extraídos de um
paraíso divino, protegido por bestas, demônios, maldições e seres fantásticos. No
entanto, a caracterização dos espaços que se desejava explorar era muito bem
19 No Iluminismo francês, encontramos um conto de Voltaire que discute a vida em outros planetas. Os personagens principais descobrem e analisam o planeta Terra, definindo seus habitantes como arrogantes, mesmo sendo muito pequeninos em comparação aos “extraterrestres”. O enredo apresenta-se a partir da viagem interplanetária de Micrômegas, habitante de um dos planetas de Sirius e seu secretário, habitante de Saturno. VOLTAIRE. Romances e Contos. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1959.20 CAUSO, Roberto de Sousa. Ficção científica, fantasia e horror no Brasil: 1875 a 1950. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p. 62.
110
definida. As riquezas naturais e o ambiente propício ao desenvolvimento da extração
de recursos de toda ordem eram símbolos da Terra da Promissão, enquanto os
habitantes eram considerados “ingênuos”, torpes em seus costumes, pertencentes
ao quadro descritivo dos produtos do lugar a ser explorado, desprovidos de qualquer
senso de organização sócio-política e cultural. Em suma, os nativos eram sujeitos
que não criariam obstáculos ao “dever” dos colonizadores de civilizar as nações, no
ato de entregar-lhes um rei, uma fé e um sistema cultural “legítimo”.
Os Sábios Selenitas põem em foco a discussão acerca do Outro e os modos
como são representados e compreendidos a partir da cultura hegemônica. Nesta
representação, surge todo o ideário filosófico que circulava no início do século XX
através da constituição de uma metodologia de trabalho que pudesse apontar as
comprovações das teorias, especulações e desse modo apresentar uma descrição
dos habitantes que pudesse atender ao desejo de hierarquizar costumes e grupos
sociais. A questão que consideramos fundamental no conto está localizada na
dúvida dos selenitas sobre os habitantes da Terra e a possibilidade destes
estabelecerem um diálogo.
Na discussão do programa de investigação sobre o planeta, os selenitas
entram em acordo e decidem mandar para o campo de pesquisa um emissário que
pudesse analisar seus traços físicos e geográficos e verificassem a existência de
habitantes capazes de manter um contato com eles. Acertadas as diretrizes do
estudo empírico, o selenita “desbravador” parte para o cumprimento de seus
objetivos. Segundo o narrador, os habitantes da Terra identificam a espaçonave
selenita como: “[...] uma grande ave de forma jamais vista, que descia rapidamente,
em ligeiros rodopios de parafuso. Chegado à Terra, o grande pássaro pousou
fragorosamente no solo fofo, levantando grande nuvem de areia.”21. A nave do
selenita desce no deserto do Saara. O emissário julga os primeiros seres vivos como
habitantes daquele árido planeta e tenta estabelecer contato com os leões que
estavam descansando próximos a um Oásis. A figura do leão, em nossa análise, é
um símbolo emblemático. Humberto de Campos já havia feito outra referência sobre
o animal no conto O Leão22. Podemos discutir a construção dessa imagem, partindo
da concepção sobre o Outro e sobre as características contidas em ambos os
textos.
21 CAMPOS, Lagartas e Libélulas, p.187.22 Idem, Pombos de Maomé, 1960.
111
No conto O Leão, o chamado “rei dos animais” está no deserto da Líbia,
África, e vive em plena liberdade no deserto, experimentando uma vida sossegada e
sem grandes problemas. O deserto e a África são imagem associadas ao estado
rudimentar de civilização, embora neste conto a representação que se apreende é
de um espaço utópico no qual a “população” de leões vive em perfeita harmonia e
tranquilidade, sem qualquer marca que os distinga quanto à organização de uma
civilização ou de cultura particular. O único valor presente é a liberdade. No entanto,
os animais são susceptíveis ao rapto de grupos dominadores. O narrador inicia:
Nesse tempo, os desertos da Líbia eram muito menos freqüentados do que hoje. A principal indústria do país – a cultura do leão em estado livre, dava excelentes resultados. O leão pululava e podia-se dizer que bastava a gente se abaixar para apanhá-lo. E era lá que os romanos se abasteciam de reis dos animais para os ásperos divertimentos do circo.23
Ao desenvolver o conto, o narrador mostra a captura do leão e as atitudes
atrozes com as quais ele é tratado pelos romanos: “carregado naquela gaiola, de
cidade em cidade, onde era mostrado como curiosidade; e à medida que a viagem
prosseguia, os guardas redobravam os maus tratos com o animal [...]”. Ele é exposto
a todo tipo de brutalidade sob a posse dos romanos: “[...] deixavam-no jejuar dias
inteiros; picavam-no com barras de ferro em brasa; acutilavam-no a todo instante;
chegaram mesmo, a aparar-lhe as garras num requinte de crueldade.”. Por fim, ao
chegarem à Itália, destino da jornada, o leão é levado para desempenhar as
“funções” de animal selvagem no circo romano:
No meio do anfiteatro, dezenas de seres macilentos, desgrenhados, horríveis, agrupavam-se, em atitudes ameaçadoras, ou levantando os punhos num gesto de desafio. O leão estremeceu, e soltou um grito:– Nossa Senhora! Lançaram-me aos cristãos!...E, resignado a tudo, deitou-se sobre o flanco, esperando a morte.24
De fato, existe uma nota humorística voltada à narrativa, na qual o leão se
torna servo dos romanos, raptado e levado cativo para cumprir ordens e participar
no circo. Acreditamos que a utilização do espaço africano, especificamente, o
deserto, está relacionada com a intenção de representar os habitantes da África e a
relação deles com os “dominadores”. Assim, percebemos que o conto é uma
alegoria do período da escravização africana. No entanto, há um confronto com a
descrição da história: o leão, no circo romano, devorava os cristãos, no conto de
Campos são os cristãos que o matam logo após ser torturado no percurso até a
Itália, símbolo da grande civilização romana. Encontramos uma representação 23 CAMPOS, Pombos de Maomé, p. 198.24 Idem, p.200.
112
alegórica da escravidão, na qual o animal, livre e “de belo aspecto”, é retirado do
deserto africano para servir e posteriormente ser morto pelos cristãos, seus
dominadores. Aqui verificamos a inversão de alguns valores, pois a imagem dos
cristãos é posta em contradição pela atitude que eles tomam diante do leão que
deveria ser o símbolo da selvageria, primitivismo e morte.
Há uma diferença na representação do leão contida em Os sábios selenitas.
Neste conto, existe um grupo de leões descansando nas proximidades do Oásis no
momento em que o selenita chega com sua astronave em Amfitalah, no Saara,
África. Os animais estão em liberdade, atentos a tudo que acontece à sua volta. É
nesse estado de vigilância que eles recebem com certa “surpresa” a chegada do
habitante da Lua. Compreendemos que a construção da imagem do leão nesse
conto localiza-se no binômio “civilizado-selvagem” e no conto anterior
“liberdade/vida-servidão/morte”. O que interessa para os selenitas é o contato com
uma vida inteligente e esta “inteligência”, nós entendemos como sinônimo de
civilização, conforme a filosofia positivista. O contato entre duas civilizações
(selenitas-terráqueos) estabelece hierarquias a partir do referencial do “saber”. Os
leões do conto são ferozes, reforçando a ideia de selvagem, e não permitem que o
emissário se aproxime tanto do grupo:
A poucos passos, porém, deteve-se, aterrado: é que percebera um rugido cavo, soturno, profundo, partindo com certeza dos grandes habitantes do Oasis. Encheu-se de coragem e deu mais dois passos; e ia dar o terceiro, quando os leões, enfurecidos pelo desafio, deram um salto de três metros, partindo, de dentes à mostra e de juba alvoroçada, a seu encontro.
A partir do contato imediato entre selenitas e habitantes da Terra surge uma
relação metonímica, na qual, toda a população “terráquea” será classificada pelos
sábios selenitas como violenta, primitiva e de aspecto selvagem. A defesa dos leões
contra o estranho, representado pelo selenita, é entendida como uma recepção
violenta e negativa, impedindo o estabelecimento de uma aproximação entre as
“civilizações”. Se tomarmos a dicotomia civilizado-selvagem como vértice de análise,
identificaremos que o emissário, e todos os selenitas a partir da representação dele,
compõe o grupo de civilizados portadores de uma ciência e sabedoria, enquanto os
leões africanos são representados como inferiores. O relatório do viajante selenita
afirma que o planeta Terra é:
113
– Habitado sim; mas por entidades com as quais são impossíveis as nossas relações. Os seres que lá vivem, moram ao ar livre, dormem no solo bruto, possuem quatro patas, dois olhos, e na cabeça, maiores que a nossa, um turbilhão de cabelos emaranhados. Mal me viram, escancararam uma boca enorme, e saltaram-me em cima, no propósito certo de devorar-me.
A descrição dos costumes e organização dos habitantes da Terra é
construída a partir do referencial dos próprios selenitas que assumem tipicamente
uma atitude etnocêntrica em detrimento do grupo de leões. Se buscarmos uma
relação dessa temática com a problematização acerca do ideal de desenvolvimento,
veremos que os selenitas são considerados como superiores em relação aos
“terráqueos”. Ainda, se verificarmos os discursos correntes na sociedade brasileira,
veremos que a representação é invertida, ou seja, os “humanos” (ou poderiam ser
humanistas, europeus) consideram-se superiores a qualquer outro tipo de civilização
existente. Os europeus seriam o símbolo absoluto de “superioridade” frente às
outras nações, e no Brasil, especificamente na sociedade carioca, a elite sobrepõe-
se a qualquer grupo que esteja distante dos ideais de civilização. A atitude
etnocêntrica, sobre a qual nos referimos, é segundo Todorov:
[...] a caricatura natural do universalista: este, em sua aspiração ao universal, parte de um particular, que se empenha em generalizar; e tal particular deve forçosamente lhe ser familiar, quer dizer, na prática, encontrar-se em sua cultura.25
A partir do conhecimento institucionalizado, o conceito de real e realidade
torna-se abrangente e “homogêneo”, não distinguindo as brechas nas
representações e descrições das particularidades. No entanto, a própria escrita em
si mesma é fruto desse mosaico de realidades, pois experimenta o contato com
diversos espaços de interação e exprime, nas formas narrativas, alguns desígnios
ideológicos das próprias leituras do escritor acerca do momento em que viveu. A
utopia gera um contraste na realidade mais ampla e talvez já se constitua como um
imaginário que consiga atender às expectativas mais gerais para uma sociedade
futura, embora esta latência encontre-se mesmo no presente e seja capaz de
orientar o desdobramento das ideologias vigentes. No intuito de colocar em
suspenso as imagens da realidade vigente, o texto de ficção científica, segundo
Roberto Causo, opera no confronto de realidades, no questionamento de ideologias
e construções simbólicas no âmbito da cultura:
25 TODOROV, Tzvetan. Nós e os Outros: A reflexão francesa sobre a diversidade humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1993, p. 21.
114
Para a ficção científica, tudo é relativo em termos de que as ideologias dominantes são incapazes de resumir a realidade em suas intenções totalizadoras. Para a FC, o universo é um processo dinâmico no qual operam fatores que vêm sempre relativizar visões estabelecidas.26
Na tentativa de compreender a metáfora do conto, associamos a imagem do
leão de Humberto de Campos aos grupos marginalizados existentes no Rio de
Janeiro do início do século XX. Através da ideologia da higienização, o imaginário da
sociedade foi construído na comparação das doenças que assolavam a cidade com
os negros, flagelos “sociais” da cidade materializados nos cortiços, entendidos como
focos de disseminação de doença. Esse espaço de convivência marginal era
associado à origem das “perversões” sociais substanciadas nas manifestações e
trocas culturais que lá circulavam. A ideia de progresso para as camadas mais
pobres da população certamente não era a mesma que a burguesia trazia em seus
programas institucionais. A população marginalizada da capital, ao sofrer ações
governamentais, padecia também com a recriminação de valores culturais
classificados como primitivos e animalescos. De acordo com Nicolau Sevcenko, os
símbolos do progresso para a população pobre e negra apresentavam-se sombrios
e nebulosos, sem qualquer tipo de perspectiva satisfatória que pudesse congregar
parte dessa população em um espaço de conformação na sociedade:
[...] acompanhar o progresso significava somente uma coisa: alinhar-se com os padrões e o ritmo de desdobramento da economia européia, onde “nas indústrias e no comércio o progresso do século foi assombroso, e a rapidez desse progresso miraculosa”. A imagem do progresso – versão prática do conceito homólogo de civilização – se transforma na obsessão coletiva da nova burguesia.27
A expectativa de futuro construída pela elite burguesa era totalmente adversa
para a população pobre que estava distanciada do processo, não possuindo
nenhuma relação de pertencimento. A presença efetiva desses sujeitos na
sociedade representava os ranços do sistema colonial e escravocrata que fez parte
de todo o período monárquico. Essa presença, desejava-se anular, erradicar ou, o
que se demonstrou mais fácil: marginalizar. Os marginalizados possuíam uma
cultura e leitura da realidade que faziam parte de uma concepção da sociedade que,
como disse Sidney Chalhoub28, era definida pela burguesia como típica das “classes
perigosas”. Desse modo, os grupos poderiam contaminar todo o ideário de
26 CAUSO, p. 49.27 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 41-42.28 CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: Cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
115
modernização da capital, sendo necessário o estabelecimento de um constante
processo de anulação cultural e contínuo deslocamento dos espaços de interação.
4.3 O homem
No conto Os olhos que comiam carne, percebemos uma relação muito
próxima com a própria biografia de Humberto de Campos. Na temática do conto, a
presença de elementos construídos a partir de processos científicos influencia
radicalmente a vida do ser humano. É neste conto que encontramos uma aplicação
mais direta da filosofia de Pamórfio acerca da evolução da humanidade. O discurso
científico que divulgava os benefícios de sua inserção na vida social encontra um
grande impedimento, que são as consequências à própria humanidade, produzidas
pelos equipamentos e processos.
Humberto de Campos, antes de sua morte em 1934, foi perdendo
gradualmente a visão, registrando algumas impressões em seu diário. Morreu antes
de produzir, segundo ele mesmo, uma obra capaz de “imortalizá-lo” durante as
décadas vindouras. Além de conferir grande prestígio entre os críticos e leitores, o
trabalho no jornalismo contribuía para o sustento financeiro imediato do escritor; no
entanto, de acordo com seus escritos, isso não o satisfazia completamente. Nas
anotações em seu diário de 26 de julho de 1931, Campos confessa o desgosto que
sente, ao saber que pode ficar cego:
Ameaçado de cegueira, já com uma das visões perdida e, assim, de tombar inútil precisamente quando sentia o espírito melhor provido para a realização de uma obra literária que me sobrevivesse, eu sou como operário que passou anos inteiros a carregar o material para construção de um abrigo para os seus dias de velhice, e a quem cortam os braços no momento em que vai lançar o primeiro tijolo.29
Diante das nossas leituras, percebemos que a construção do personagem
Paulo Fernando, do conto Os olhos que comiam carne, traz características da
própria descrição autobiográfica de Campos em seus diários. Ainda escrevendo
sobre a possibilidade de permanecer cego, o escritor arremata: “A fatalidade tapa-
me os olhos no instante, precisamente, em que ia beber com eles, comovidamente,
o vinho de ouro do sol...”. A aproximação entre o escritor e o personagem do conto é
29 CAMPOS, Humberto de. Fragmentos de um diário. São Paulo: W. M. Jackson Inc, 1960. p.257.
116
bastante visível, embora existam diferenças na trajetória de ambos. Campos sabe
que vai ficar cego e se queixa por não ter completado sua obra. Paulo Fernando,
logo após ter publicado o último volume de uma obra monumental, fica cego e, de
acordo com o narrador, se exprimia em grande frustração por ter dedicado boa parte
de sua vida à construção de tal obra e não poder desfrutar das glórias da
publicação:
Na manhã seguinte à do aparecimento, nas livrarias, do oitavo e último volume da História do Conhecimento Humano, obra em que havia gasto catorze anos de uma existência consagrada, inteira, ao estudo e à meditação, o escritor Paulo Fernando esperava, inutilmente, que o sol lhe penetrasse no quarto.30
A obra História do Conhecimento Humano faz uma referência à ciência e ao
conhecimento adquiridos pelo homem no decurso dos séculos. A partir de outros
textos, verificamos que a definição de “história” é uma das preocupações de
Humberto de Campos. Encontramos análises do escritor sobre o assunto em
diversas críticas e crônicas31. A compreensão de que a história registra a imaginação
de fatos do passado contribui para a formação do entendimento sobre a
especulação do futuro. Se a construção e o relato dos fatos ocorridos no passado
estão sujeitos à interferência da imaginação do historiador, não será muito diferente
a tentativa na especulação do porvir.
A última obra publicada por Paulo Fernando estaria situada na fase de
transição entre o passado e futuro, permitindo que a personagem se tornasse o
ponto de interseção temporal e espacial. Ao ficar cego, Paulo ficou circunscrito ao
mundo que experimentou no passado, não sendo permitido alcançar um tempo no
futuro, do qual também pudesse fazer parte. A história do conhecimento da
humanidade estaria, assim, entregue a todos aqueles que desejassem construir a
história das décadas vindouras, não esquecendo os referenciais de presente e
passado.
Na narrativa, destacamos o elemento sobre o qual o escritor se dedica: a
descrição da cegueira do personagem e os mistérios que envolvem o procedimento
30 CAMPOS, Humberto de. O monstro e outros contos. São Paulo: W. M. Jackson Inc, 1960. p. 151.31 Encontramos um exemplo desse interesse na crônica: Os historiadores e a história, na qual Campos enfatiza: “A História é, assim, menos o reflexo dos acontecimentos do que uma obra de imaginação. Por isso mesmo, o Presente sempre sente saudades do Passado. Mas o Futuro há de sentir, por sua vez, saudades do Presente, porque os historiadores hão de inventar homens que o ilustrem e fatos que o enfeitem, de modo que tenhamos sempre a ilusão de que já houve, na vida, alguma cousa de grande, de puro, de heróico e de bom.” CAMPOS, Humberto. Últimas crônicas. São Paulo: W. M. Jackson Inc, 1960, p.33-34.
117
cirúrgico capaz de restabelecer sua visão. O narrador descreve a angústia e
ceticismo do personagem ao saber da cegueira e mostra a incredulidade na busca,
através da ciência, de uma cura. O médico e professor alemão Platen é a
representação da imagem de ciência como solução para qualquer tipo de mal. Vindo
do exterior do país, somente ele seria capaz de curar a cegueira do personagem.
Encontramos registros no diário de Humberto de Campos nos quais a
angústia sobre os problemas de visão é exposta várias vezes. A solução para a
cegueira do escritor só seria possível com uma intervenção cirúrgica feita na
Alemanha ou liderada pelo médico alemão Krause. No registro de 30 de julho de
1931, Campos escreve a opinião dos médicos brasileiros acerca da cura para sua
enfermidade: “– É uma operação sem importância na mão de Krause. Mas é preciso
ir à Alemanha... À Alemanha ou aos Estados Unidos... Aqui, ninguém a faz, nem
convém experimentar...”32 A angústia e dúvida sobre o procedimento faz com que o
escritor registre em 17 de agosto de 1931 a conversa com seu médico e amigo
Afonso Mac Dowel sobre o assunto, que lhe diz:
A intervenção cirúrgica, seja no Rio, seja no estrangeiro, é perigosa. A um cliente a quem falasse apenas como médico, eu me limitaria a expor os riscos. Mas a um amigo como você, eu devo dar, também, um conselho. E eu prefiro ver um amigo cego, mas vivo, a vê-lo morto em um ato operatório recomendado por mim.33
Na anotação do mesmo dia, Campos parece ter desistido da ideia da cirurgia
após a conversa com o amigo. No entanto, construiu um personagem com as
mesmas agruras de que padecia, contextualizando-o num conto onde a fantasia e
imaginação pudessem interagir com a expectativa da ciência como solucionadora
dos problemas da humanidade. O personagem Paulo Fernando faz a cirurgia no
Brasil orientada pelo médico alemão, o Prof. Platen: “Esforços foram empregados,
assim, para que Platen desembarcasse no Rio de Janeiro por ocasião da sua
viagem a Buenos Aires.”34.
Aqui, compreendemos que, através de sua escrita, Campos extrapolou a
própria realidade, na construção de um personagem que pudesse expressar seus
temores e angústias diante da aplicação de uma ciência praticamente desconhecida
na vida cotidiana dos sujeitos. Os olhos que comiam carne é uma especulação
sobre a vida do escritor diante do desconhecido e das consequências que poderiam
32 CAMPOS, Fragmentos de um diário. p. 258.33 Idem, p.261-262.34 Idem, O monstro e outros contos, p.156.
118
surgir após a cirurgia. As descobertas no campo da medicina são emblemáticas,
justamente por lidar diretamente com a vida dos indivíduos e, desse modo, Paulo
Fernando torna-se uma metonímia de toda a humanidade. A restituição da visão aos
cegos era um feito apenas descrito e motivado por via da fé mística e sobrenatural.
Ao usar uma nomenclatura e um instrumental científico no decorrer da narrativa,
Campos constrói, a partir de sua própria experiência, uma ficção científica que
ambiciona discutir o futuro próximo que atingiria toda a humanidade. A partir das
construções ficcionais, o escritor transfere para o personagem todas as suas
angústias e temores, fazendo com que Paulo se mantivesse cético em todo o enredo
diante do deslumbramento dos “milagres” do professor Platen:
Paulo Fernando mergulhou o rosto nas mãos, e quedou-se imóvel, petrificado pela verdade terrível. Estava cego. Acabava de realizar-se o que há muito prognosticavam os médicos. [...] E foi quando, de súbito, e como que providencialmente, surgiu na imprensa a informação de que o professor Platen, de Berlim, havia descoberto o processo de restituir a vista aos cegos, uma vez que a pupila se conservasse íntegra, e se tratasse, apenas, de destruição ou defeito do nervo óptico.35
O conto usa termos e uma linguagem científica para discorrer sobre a
cegueira do personagem e sobre o processo que pode restaurar sua visão.
Compreendemos também que o texto engendra a dúvida sobre todo o procedimento
cirúrgico e simboliza o ceticismo com relação a mudanças. O personagem, às
vésperas da cirurgia: “[...] não apresentava, na fisionomia, o menor sinal de
emoção.”. Esta atitude condiz com o pensamento da filosofia de Pamórfio, ao se
referir ao futuro com certo pessimismo, pois não há mais nada a fazer para mudar o
estado precário da vida humana, por mais evoluída que ela se encontre.
Esse ceticismo é verificado em outros textos que mencionam a medicina
“avançada” para solucionar males da saúde humana. Neles, o humorismo é usado
para reforçar a atitude cética, como podemos verificar nos contos: Os milagres da
cirurgia, Los niños de Coruña, O enxerto e A perna de Cachorro. Todos esses
apresentam a medicina como objeto central, problematizando a ética, ou então o
próprio procedimento cirúrgico. O conto A perna de Cachorro, por exemplo,
descreve um transplante, que, segundo o narrador: “Tratava-se em suma, de utilizar
em uma criança de três anos, cuja tíbia havia sido esmagada por um bonde, o osso
da perna de um cachorro que ali estava, a um canto, os olhos súplices, aguardando
a hora do seu martírio.”36. Após quatro meses, a mãe da criança retorna ao médico
35 CAMPOS, O monstro e outros contos. p. 154-155.36 Idem, A funda de Davi, p.371-372.
119
com uma preocupação, arrematando o conto com humor: “[...] Imagine o senhor que
ele, que era tão direito, tão acomodado, não pode passar, agora, junto de um poste,
ou de um muro, sem levantar a perninha!...”37
Em Os olhos que comiam carne, não verificamos o humor, mas uma crítica
aterradora sobre as possíveis consequências dos procedimentos científicos da
medicina para a cura de enfermidades. O corpo humano concebido pela religião
cristã como sagrado, sofria uma intervenção direta de elementos artificiais que
poderiam prolongar funções orgânicas perdidas. Entendemos essa intervenção
como simbólica à medida que dialoga com imagens relativas à luz-saber, cegueira-
trevas, orgânico-artificial, presente-futuro.
A cegueira, na mitologia grega, é apresentada como um castigo dos deuses e
possui Tirésias como o maior exemplo disto. No entanto, após a intercessão do
próprio sujeito, os deuses compensam o castigo da cegueira com outro tipo de
visão. Tirésias enxerga o futuro e pode prever o destino das pessoas. Na análise do
conto, entendemos que a cegueira constitui um ritual de passagem entre o presente
e o futuro. Paulo Fernando carrega em si mesmo as marcas do passado, (e por isso,
escreve, ao longo de sua vida, uma história sobre o conhecimento adquirido pela
humanidade) e não consegue entender ou mesmo participar da construção de um
novo conhecimento que se vincula ao imaginário de desenvolvimento científico-
tecnológico. As oposições apresentam-se aqui de acordo com a perspectiva da
ruptura, pois aquele que conhecia o passado entrou “na noite eterna”38 da cegueira e
nada mais pode experimentar através da visão, que permitia o “saber” na leitura e
escrita de livros.
A descrição do processo cirúrgico, ao se apropriar de uma linguagem
científica que dê conta da complexidade do problema e da cirurgia em si, concede a
à narrativa o caráter de realidade na possível comprovação do que está sendo dito.
O médico e pesquisador é louvado pelas descobertas baseadas em procedimentos
conhecidos do público geral como os “raios X”. Platen demonstra ter conhecimento
suficiente para prosseguir com qualquer intervenção cirúrgica, pois existe uma teoria
científica que garantiria o sucesso de sua atuação. O narrador do conto explica que:
37 CAMPOS, A funda de Davi, p. 374.38 Idem, Fragmentos de um diário. p. 262.
120
O processo Platen era constituído por uma aplicação da lei de Roentgen, de que resultou o Raio X, e que punha em contacto, por meio de delicadíssimos fios de "hêmera", liga metálica recentemente descoberta, o nervo seccionado. Completava-o uma espécie de parafina adaptada ao globo ocular, a qual, posta em contacto direto com a luz, restabelecia integralmente a função desse órgão. Cientificamente, era mais um mistério do que um fato. A verdade, era que as publicações européias faziam, levianamente ou não, referências constantes às curas miraculosas realizadas pelo cirurgião de Berlim, e que seu nome, em breve, corria o mundo, como o de um dos grandes benfeitores da Humanidade.39
Aqui, encontramos o ponto que produz a hesitação40, se lembramos do
conceito de Todorov sobre o texto fantástico. Os fios de “hêmera”, que permitiriam o
restabelecimento da visão, são cercados de mistério e, de acordo com Todorov,
esse elemento desconhecido contribui para o estabelecimento da dúvida no enredo.
A explicação científica é a escolha para solucionar o enigma, mas não é suficiente
para impedir que outras imagens baseadas na fantasia sejam construídas acerca do
resultado da operação. Os fios de “hêmera”, “composição metálica de sua
invenção”41 permitem que o doutor Platen se coloque numa esfera superior do
conhecimento, capaz de arbitrar sobre qualquer assunto de sua área, conferindo
credibilidade a seus atos e prestígio à sua carreira. Percebemos também que, nesse
distanciamento do conhecimento em circulação no “senso comum”, o médico
adquire um status que pode compará-lo a um ser mítico que realiza “milagres”
através da ciência.
Embora o enredo possua um vínculo com a ideia de materialidade científica,
existem elementos que não podem ser explicados por completo, cabendo nesse
sentido a inserção do imaginário fantástico. A metodologia e os processos usados
pelo Prof. Platen não são do conhecimento de todos, e isso faz com que as pessoas
que desconhecem essa ciência criem outras explicações para o fenômeno.
Explicações que podem usar um amplo espectro de símbolos e elementos
conjuntamente com reações advindas do imaginário comum da sociedade. É a partir
destas interferências que podem ser criadas outras “mitologias” sobre os assuntos,
reproduzindo estereótipos, fomentando explicações que se baseiam unicamente na
construção de imagens e fantasias.
Após a cirurgia, Paulo Fernando retorna a enxergar, no entanto é uma visão
modificada pela tecnologia que compõe agora seu organismo. Neste instante, o
39 CAMPOS, O monstro e outros contos. p. 158-159.40 TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.41 CAMPOS, O monstro e outros contos. p. 156.
121
personagem deixa sua humanidade para compartilhar com a “tecnologia artificial” as
funções de seu próprio corpo. Transforma-se num ciborgue42, que é definido através
da relação interdependente do organismo humano com qualquer outro organismo
artificial. Com seu corpo modificado, o personagem desfruta de uma visão a que não
está acostumado, tampouco é aquela a que ele aguardava. Paulo Fernando enxerga
o que está além da visão de todas as outras pessoas. Uma visão que está além do
“natural” e do senso comum. De acordo com o narrador:
A sua retina, como os raios X, atravessa o corpo humano e só se detém na ossatura dos que a cercam, e diante das cousas inanimadas! O médico, à sua frente, é um esqueleto que tem uma tesoura na mão! Outros esqueletos andam, giram, afastam-se, aproximam-se, como um bailado macabro!43
Nesse sentido, a ciência interfere na visão da realidade, atravessando a
materialidade dos corpos. Paulo Fernando com esta nova visão, enxerga as
personagens que o aguardavam no hospital de um modo diferente. Elas não eram
compostas por almas, ou guiadas por sentimentos e influências transcendentais,
mas eram movidas e sustentadas por esqueletos. As pessoas eram, em essência,
esqueletos. Nesse momento, percebemos que o futuro da humanidade não fora
romantizado ou apresentado a partir de imagens perfeitas que conduzem à
contemplação do belo e da harmonia, mas foi apresentado cruamente a partir do
desejo de materialidade e comprovação dos experimentos científicos. Ao possuir em
seu corpo um mecanismo artificial baseado na mesma tecnologia dos raios X, o
personagem deixa sua natureza humana e passa a enxergar o futuro dos corpos em
decomposição, em seu último estágio. A sociedade como um todo não passaria de
um “sinistro baile de esqueletos”, não havendo nada que pudesse impedir essa
evolução.
Perceber a realidade através dos olhos da tecnologia soa desesperador. A
possibilidade de ver além do senso comum e conhecer o que existe por trás de toda
a barreira que esconde a “essência” do humano, perturba o personagem. Ao
arrancar seus olhos, Paulo Fernando afirma diante dos presentes que não deseja
enxergar através das significações científicas, tampouco quer ser aquele que está
em contato com o conhecimento do futuro. A partir dessa imagem, lembramos da
42 Podemos encontrar uma definição pós-moderna sobre a figura do ciborgue no livro organizado por Tomás Tadeu Silva, que aponta para a idéia de uma metáfora do ser hibrido, que é capaz não somente de interagir com diversas possibilidades culturais, mas de estabelecer sua própria composição a partir de diferentes materiais, sejam eles “orgânicos” ou “artificiais”. Ver SILVA, Tomás Tadeu (org). A antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.43 CAMPOS, O monstro e outros contos, p. 161.
122
narrativa bíblica acerca dos cuidados que os fiéis cristãos devem ter para evitar os
escândalos causados pelo “olho mau”. No evangelho de Mateus, capítulo 18,
versículo 09, podemos relacionar o desfecho do conto com a negação de participar
dos modelos construídos a partir do entendimento de civilização: “E, se teu olho te
fizer tropeçar, arranca-o, e lança-o de ti; melhor te é entrar na vida com um só olho,
do que tendo dois olhos, ser lançado no inferno de fogo”44. Diante da visão macabra
do “baile de esqueletos” e dos medos interiores de ver diferentemente dos demais
em seu último estágio, Paulo Fernando arranca os olhos, silenciando o horror do
absurdo apresentado pelos avanços da modernidade científico-tecnológica,
principalmente no que se relaciona a enxergar o Outro.
44 Bíblia Sagrada. Edição Revista e Atualizada. Trad. Antonio Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Edições JUERP.
123
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta dissertação, apresentamos um percurso teórico que pudesse discutir as
representações da sociedade brasileira nos contos de Humberto de Campos.
Caracterizamos a escrita dos textos como protoficção científica por compreender um
grande número de elementos e temáticas que se aproximam da definição de ficção
científica divulgada nos anos 1930. Isso quer dizer que os textos analisados aqui
compõem uma “pré-história” da ficção científica brasileira, apresentando algumas
temáticas fantásticas que puderam ser desenvolvidas ao longo da história da nossa
literatura.
A protoficção científica de Humberto de Campos foi utilizada aqui com o
intuito de substanciar qualquer reflexão para distinguir os padrões e distorções
verificadas a partir dos modelos de civilização e desenvolvimento no Brasil do início
do século XX, apontando contradições presentes nas imagens de modernidade do
país. A escrita da ficção científica nesse contexto é emblemática justamente por
trazer a discussão dos modelos de desenvolvimento, apresentando os principais
confrontos entre o ser humano e uma sociedade diferente daquela em que os
sujeitos viviam. Uma sociedade em constantes mudanças e adaptações que não
aceitam qualquer interrupção na consolidação dos intentos programáticos em
direção ao avanço tecnológico, cultural, industrial. O sujeito torna-se um estrangeiro
em seu próprio espaço social, por não se reconhecer participante daquele espaço
que agora é caracterizado como distinto de suas concepções sobre a realidade.
Justificamos a abordagem dos textos de Humberto de Campos ao
destacarmos a ausência do gênero de fantasia e ficção científica nos estudos
literários brasileiros da contemporaneidade, especificamente os textos do escritor,
que, segundo nosso entendimento, podem contribuir para a análise da realidade
cultural brasileira presente em suas crônicas e contos escritos no início do século
XX. Criticamos também, o silêncio da historiografia literária por não apresentar e
discutir a presença da literatura fantástica e de FC no cenário brasileiro, haja vista os
inúmeros exemplos desde fins do século XIX.
124
No que tange ao texto de protoficção científica, percebemos, ao considerar a
concepção de futuro de Humberto de Campos, que os contos em análise construíam
uma leitura diferenciada da sociedade brasileira, identificando um ciclo evolutivo que
findaria inevitavelmente com a destruição da própria sociedade, para que pudesse
novamente ser reerguida por outra geração. Campos utilizaria metáforas como a
Torre de Babel e o ente mitológico Pamórfio por anunciarem a destruição esperada
pela sociedade. Em nossa dissertação, buscamos destacar essas concepções em
diálogo com a estrutura do texto de protoficção científica.
Na análise dos contos Entre o que foi e o que virá, Os Sábios selenitas e Os
olhos que comiam carne construímos uma perspectiva de reflexão sobre as
representações da realidade daquele período. A partir dos elementos da literatura
fantástica em diálogo com as contradições e valorizações das imagens de
modernidade, pudemos compreender alguns aspectos que estavam envolvidos na
adaptação dos modelos necessários para a inserção no espaço do desenvolvimento
científico e tecnológico mundial.
Por fim, analisamos as imagens de modernização brasileiras, descritas
através do avanço tecnológico criticado pelos textos de Campos. Imagens que
dialogam em contradições e utopias com o universo social e cultural no seio da
modernidade brasileira. Concluímos que os contos se localizam diante da euforia do
processo de desenvolvimento tecnológico, esboçando uma crítica ao demasiado
desejo de modernização industrial em seus desdobramentos na vida social,
sobretudo referentes aos aspectos culturais daquilo que se convencionou chamar de
civilização.
125
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130
ANEXOS
131
Obras de Humberto de Campos
(Todos os livros aqui citados foram publicados pela W. M Jackson Inc. no ano 1960)
Poeira, poesia
Da seara de Booz, crônicas Vale de Josaphat, contos
Tonel de Diógenes, contos
A serpente de bronze, contos
Mealheiro de Agripa, contos e crônicas
Carvalhos e roseiras, crítica
A bacia de Pilatos, contos
Pombos de Maomé, contos
Antologia dos humoristas galantes
Grãos de mostarda, contos
Alcova e salão, contos
O Brasil anedótico, anedotas
Antologia da Academia Brasileira de Letras, discursos
O monstro e outros contos, contos
Memórias 1886-1900, autobiografia
Crítica 1ª Série, crítica literária
Crítica 2ª Série, crítica literária
Crítica 3ª Série, crítica literária
Crítica 4ª Série, crítica literária
Os párias, contos
132
À sombra das tamareiras, contos
Sombras que sofrem, crônicas
Um sonho de pobre, autobiografia
Destinos, crônicas
Lagartas e libélulas, crônicas e contos
Memórias inacabadas, autobiografia
Notas de um diarista, autobiografia
Reminiscências, autobiografia
Sepultando os meus mortos, autobiografia
Últimas crônicas, crônicas
Perfis, 1ª Série, biografia
Perfis, 1ª Série, biografia Contrastes, crítica
O arco de Esopo, contos
A funda de Davi, contos
Gansos do capitólio, contos
133
Os sábios selenitas
Reunidos os três monstros inteligentes no alto de uma grande montanha
calcinada, entraram a discutir, em voz gutural, a possibilidade de um entendimento
com os longínquos habitantes da Terra. Empunhando um aparelho de proporções
gigantescas, em cuja fabricação entravam metais desconhecidos, e no qual se
engastavam para aumento gradual das imagens, dezenas de lentes de cristal polido
por um processo recente, Sttaff, o mais jovem dos sábios selenitas, pesquisava o
espaço, atento, na direção do nosso planeta. Ao seu lado, sentado num pedaço de
rocha, Herlowawth, o mais idoso, fazia cálculos sobre uma folha de metal
semelhante às nossas ligas de alumínio, que segurava, ao mesmo tempo, com cinco
das suas seis mãos, e, ainda, com outra, suplementar, que lhe pendia, rugosa, da
escura extremidade da cauda. Em frente aos dois, com um pacote de lâminas aberto
diante do seu único olho de visão perfeita, Anianax, astrônomo que já havia
calculado o número de estrelas de sete mil constelações invisíveis, meditava,
silencioso, sobre os resultados possíveis daquela experiência temerária.
– A máquina de voar inventada pelo engenheiro Warthwift, – ponderou,
levantando a enorme cabeça trêmula, estrelada de olhos, o venerando Herlowawth –
é o único processo de que dispomos para descobrir se o planeta de que
dependemos é, como se supõe, habitado. Os nossos recursos para verificação à
distância, são, como sabemos, deficientes. Se os aparelhos acusam vestígios de
vida, que se patenteiam pela modificação progressiva da crosta planetária, essa
possibilidade é afastada, de pronto, pelos fenômenos verificados, e por uma
infinidade de circunstâncias em que se apóiam alguns dos nossos mais eminentes
colegas.
– É essa a minha opinião, – atalhou Anianax, interrompendo o exame do
espaço e fixando no Mestre o seu grande olho congestionado. – O planeta que nos
ocupa não pode ser habitado, como a Lua, em que vivemos. A massa líquida que se
move dele, tomando-lhe três quartas partes da superfície, e, sobretudo, a umidade
ambiente, são infensos a qualquer manifestação de vida. E se, porventura, os meus
cálculos falham; se há, por lá seres vivos, estes permanecem, necessariamente, em
um estado tão rudimentar de inteligência, que nos seria impossível travar com eles
quaisquer relações.
134
– E aqueles sinais que eles traçam, às vezes, na sua atmosfera, em rápidos
riscos de fogo? – aventurou Sttaff.
– Nada significam, nem representam. São simples fenômenos magnéticos. A
vida seria impossível naquele meio, com aqueles obstáculos à sua conservação, e,
se a vida é difícil, a inteligência é, pode-se dizer, impossível.
Erguendo a cabeça pesada e nua, em que a idade já havia fechado meia
dúzia de olhos, Herlowawth, o mais idoso dos astrônomos selenitas, apagou os
cálculos com a mão da ponta da cauda, e objetou, sentencioso:
– Milhões de vezes tem o nosso astro penetrado na sombra, banhando-se, do
outro lado, na luz, sem que os nossos antepassados hajam apurado a sua grande
dúvida sobre o misterioso planeta de que somos satélites. As opiniões que vos
separam, separavam, antes, gerações e gerações. Os motivos que aventais, as
razões que vos servem de apoio, constituíam, já, o apoio dos nossos avós. A teoria
de Anianax, de que a Terra é desabitada, e de que, se tem habitantes, estes se
conservam em um estado rudimentar, vivendo na mais lamentável brutidão, era já, a
de Clown, pai de Wfluffnwit. E a de Sttaff, de que o grande planeta é habitado, e de
que os seus habitantes se acham em uma situação de cultura igual, pelo menos, à
nossa, também não é nova. Advogavam-na, em tempos que a lembrança não
apreende, Sttowen, Aixley, Butternwamnd, e outros, cujo nome a luz do
entendimento não repetiu na memória das criaturas. O que eles não tinham, porém,
como nós era o meio de resolver tamanha controvérsia, tamanha dúvida, o qual nos
é facultado, agora, pela máquina voadora de Warthwift. Façamos, pois, com que ele
parta, convenientemente do planeta que nos conduz através da amplidão, trazendo-
nos informações seguras, claras, positivas, sobre os nossos misteriosos vizinhos do
ar.
– Seja cumprida a tua ordem! – aplaudiu Sttaff.
– Faça-se o que disseste! – confirmou Anianax.
***
Por uma tarde de março último, leões que repousavam, fechando os olhos à
canícula, no pequeno oásis de Amfitalah, no Saara, puseram-se de pé, de repente,
despertados por um rumor insólito, que descia do céu. Semicerrando os olhos
fulvos, para ver melhor naquela orgia de luz atordoante, as feras distinguiram, muito
135
alto, uma grande ave de forma jamais vista, que descia rapidamente, em ligeiros
rodopios de parafuso. Chegado à Terra, o grande pássaro pousou fragorosamente
no solo fofo, levantando grande nuvem de areia. Passado um instante, viram os
leões destacar-se da ave um monstro de grande cabeça, pontilhada de olhos, o
qual, movendo-se com agilidade sobre duas pernas finas e curtas, apresentava,
contudo, a vantagem de possuir seis mãos e, ainda, uma outra, suplementar, na
extremidade da cauda.
Ao ver-se no solo firme, o monstro olhou em torno, pesquisando em redor. De
repente, descobrindo o oásis, onde seis leões o olhavam de pé, examinando-lhes os
movimentos, encaminhou-se para eles, aos saltos, empunhando na mão
suplementar uma placa de metal, que, pelos riscos nela desenhados, devia ser, pelo
menos, uma saudação dos habitantes da Lua aos seus longínquos amigos da Terra.
A poucos passos, porém, deteve-se aterrado: é que percebera um rugido cavo,
soturno, profundo, partido com certeza dos grandes habitantes do oásis. Encheu-se
de coragem e deu mais dois passos; e ia dar o terceiro, quando os leões,
enfurecidos pelo desafio, deram um salto de três metros, partindo, de dentes à
mostra e de juba alvoroçada, a seu encontro. Conhecendo, mais por instinto do que
por entendimento, o propósito das fera, o selenita firmou na areia os dois pés, as
sete mãos e, quase, a cabeça, e, num pulo formidável, ganhou o aparelho, que se
pôs, de pronto, em movimento, subindo, rápido, em espiral, em direção ao disco da
Lua.
***
A Academia de Ciências Lunares e Celestes achava-se reunida, naquela
noite, com solenidade imaginável. Centenas de sábios, principalmente astrônomos,
ali estavam trazidos de todas as regiões do satélite, para ouvirem, finalmente, a
palavra do Emissário. Quase sem pernas, caminhando sobre as mãos, ali se viam,
entre outros, Piungahw, que descobrira a intensidade das camadas solares,
calculando-lhes as calorias; Armwh, que medira, até então, dois milhões de estrelas
e bólides; Fhiurd, que estabelecera comunicações magnéticas entre os pólos
lunares; e, enfim, separados pelo venerando Herlowawth, que presidia a sessão, o
teimoso Anianax, partidário da inabitabilidade da Terra ou da bruteza das suas
criaturas, e o jovem Sttaff, que dirigia, no círculo dos sábios selenitas, a corrente
136
contrária, emprestando um alto grau de inteligência aos prováveis habitantes
terrestres.
Aberta a sessão, deu entrada no grande anfiteatro o emissário Warthwift, que
acabava de resolver o grande problema, na exploração do planeta longínquo. Pálido,
a fisionomia grave, o supercílio dos seus vinte olhos cerrados, quase, pela emoção
de que se achava possuído, o aviador lunar equilibrou-se nas pernas finas, e entre o
silêncio geral, empunhando, amarrotada, a folha de metal que levara no seu vôo,
comunicou, entre a comoção formidável de todos:
– Sábios selenitas, a vossa determinação foi cumprida. Fui ao planeta que me
designastes, e ele é habitado.
– Habitado!... – exclamaram, ao mesmo tempo, quinhentas vozes com
seiscentas tonalidades.
– Habitado, sim; mas por entidades com as quais são impossíveis as nossas
relações. Os seres que lá vivem, moram ao ar livre, dormem no solo bruto, possuem
quatro patas, dois olhos, e na cabeça, maiores que a nossa, um turbilhão de cabelos
emaranhados. Mal me viram, escancaram uma boca enorme, e saltaram-me em
cima, no propósito certo de devorar-me. Em conclusão: o planeta é habitado, mas
por seres em estado rudimentar de entendimento, com os quais é impossível
qualquer espécie de comunicação!
Terminado o discurso de Warthwift, Sttaff encaminhou-se para o adversário e
felicitou-o.
– Venceste, Anianax!
E, beijando-se os quarenta olhos, abraçaram-se, comovidos, com as quatorze
mãos – inclusive a suplementar.
137
Entre o que foi e o que virá
Aquele Pamórfio, do Colombo de Araújo de Porto-Alegre, apareceu-me outra
vez. Personagem extra-humano, não é ele mais, todavia do que a metamorfose de
outros, que se encontram nos poemas antigos, e que têm a sua origem em Tirésias,
na Odisséia. Conhecendo o Passado e o Futuro, ele é o gênio que aparece ao nauta
em Tenerife, e que não só lhe fala das civilizações asiáticas, subjugadoras do
mundo, como daquelas que viriam na corrente dos séculos novos, com as grandes
navegações. Olhando, como Janus, o Oriente e o Ocidente, podia ele anunciar ao
almirante genovês o que viria a ser o mundo que ele ia descobrir. Antes que a proa
da caravela rompa os segredos do mar, ele, profeta prodigioso, lhe desvenda os
mistérios do Tempo.
É nesse Pamórfio que eu penso, às vezes, quando me ponho a refletir sobre
os destinos da Humanidade, e, mais restritamente ainda, no desta cidade que lhe é,
hoje, cérebro e coração. Já alguém imaginou, por acaso, o que será o Rio de
Janeiro dentro de um século ou, mesmo, dentro de cincoenta anos? Já houve quem
se transportasse em pensamento a esta Sebastianópolis, imaginando-se no ano
2000? Faça cada um os seus cálculos, e dê liberdade à imaginação.
Para conhecer o Futuro, a marcha para diante, é preciso, primeiro, conhecer o
Passado, de que é ele o reflexo. Por isso, quando eu me quero transportar ao Rio de
Janeiro de amanhã, visito, antes, o Rio de Janeiro de ontem. Imagino-me,
primeiramente, na época de Mem de Sá. É nos tempos, ainda, dos primeiros
estabelecimentos no alto da colina histórica, entre a floresta e o mar. Expulso o
francês, ideador da França Antártica, resta ainda, lá embaixo, rodeando a
eminência, o tamoio, que ele açulou. Entre os montes, peitos da cidade futura,
estendem-se os marnéis, os pântanos, as lagoas em que sonham garças românticas
e dormem sáurios preguiçosos. Pequenos rios de água fresca, filhos de fontes
solitárias, serpeiam cantando, levando alimentos àquelas miniaturas da baía –
espelho redondo e enorme de que a terra verde é moldura. Mas a semente plantada
no outeiro é fecundada e multiplica-se. Descendo a ladeira do morro do Castelo, as
primeiras casas chegam à planície. Colonos temerários estabelecem-se diante do
mar, onde hoje é a rua Primeiro de Março, até onde se espraiam, então, as águas
marítimas. Abre-se a rua que será a do Ouvidor. Dentro em breve, a cidade ocupará,
138
com as suas quintas cercadas, todo o perímetro entre o Morro de Santo Antonio e o
da Conceição. Um grande fosso, entre um e outro, por onde se despejam as águas
da Carioca, e que dará à futura rua Uruguaiana o nome da rua da Vala, traça os
limites da nova metrópole portuguesa na América. Os Jesuítas já atravessaram,
porém esses limites, e montaram engenhos. É o Engenho Novo. É Engelho Velho.
Aterra-se a lagoa Comprida, que fecha o caminho da Tijuca, entre Santa Teresa e o
Mangue, onde é hoje a rua Frei Caneca. Aterra-se, igualmente, a lagoa Grande, em
frente ao futuro convento da Ajuda, e abre-se o caminho das Laranjeiras e de
Botafogo, onde a abundância de águas e suavidade do clima favorecem a
multiplicação das grandes chácaras. E a cidade se vai espraiando, ampliando,
estendendo os tentáculos das ruas e dos caminhos trafegados. Do charco do
mangue e dos igapós da lagoa Comprida, surge a Cidade Nova. Aberta uma estrada
sobre o mangal, para a Quinta da Boa Vista, estabelecem-se ligações entre os
núcleos de população que se formaram. O selvagem, absorvido pelo branco, é seu
colaborador no desbravamento. Rolam os primeiros tílburis e, pelo mar, as primeiras
barcas, ligando Botafogo ao Pharoux. Vêm os bondes. Abre-se o túnel de
Copacabana. A cidade, cheia, derrama-se. Rodam automóveis sobre o asfalto onde
corria o tatuí na areia molhada. E surge a capital magnífica e atordoante, a
metrópole moderna, com os seus jardins de vinte e cinco quilômetros e os arranha-
céus de vinte e cinco andares...
Volto-me, porém, para o Oriente, para o lado do sol e dos mistérios do
Destino. E que vejo, ou imagino: é a cidade do Futuro, com suas surpresas. O
coração de Sebastianópolis é, agora, a Esplanada do Castelo. A cidade volta ao seu
berço para tomar novo surto. Onde era o morro do Estácio e de Mem de Sá,
levantam-se edifícios de sessenta e setenta andares. A Avenida Central não é mais,
agora, do que uma pequena veia do novo sistema circulatório do formidável
organismo urbano. Na baía, há menor número de navios do que de hidro-aviões, os
quais substituíram o transatlântico europeu com a naturalidade com que o automóvel
tomou o lugar ao trem de ferro. Os grandes edifícios têm plataformas para os aviões
particulares como as casas têm, hoje, uma garage para o carro. A cidade vai, agora,
até Nova Iguassú, com a continuidade das ruas. Há serviço aéreo para São Paulo
de dez em dez minutos, e aeronaves de luxo das onze horas para um almoço em
Petrópolis, as quais reporão o assinante no Rio à meia hora, tendo ele gasto uma
hora à mesa. A campanha contra o papel, que ameaçava destruir todas as florestas
139
da terra, instituiu o jornal-verbal: quem quer ter notícias do que está acontecendo no
mundo põe um pequeno fone portátil ao ouvido e aperta um botão, ou entra em
qualquer estabelecimento de comércio, onde grandes aparelhos anunciam as
novidades da hora. Há romances e novelas vendidos em pequenos discos: adquire-
se Shakespeare comprimido, e mete-se no bolso, para ouvir em casa. A ponte Rio-
Niterói ficou destinada, agora, aos tradicionalistas, porque toda a gente prefere os
grandes comboios aéreos da linha Angra dos Reis - Cabo Frio. Alguns jornais-
falados pedem providências contra a demora na retirada dos fios que serviram,
outrora, aos carros que ligavam aereamente o Pão de Açúcar à Urca, esta ao
Corcovado, o Corcovado ao Bico do Papagaio e este ao Dedo de Deus, fios esses
que embaraçam o vôo aos aviões do serviço urbano. A carne verde vem,
diariamente, de Goiás e do Pará, em carros frigoríficos que viajam a 8.000 metros de
altura. Fornece-se leite e vinhos como se fornecia gasolina em 1933; deita-se a
moeda em um orifício, e abre-se uma torneira para receber o líquido
correspondente. Novas bebidas foram inventadas; e entre estas uma, do químico
americano Lowell, a qual, tomada quando se vai embarcar em avião, faz com que o
individuo perca durante cinco horas 40% do seu peso. Um aparelho instalado na
praça Mem de Sá permite assistir, vendo e ouvindo, o combate que se está travando
entre alemães e franceses, e que é a "revanche" dos franceses, derrotados pelos
alemães em 1952. A pólvora, tão humanitária, foi, infelizmente, abolida: toda a
campanha é feita com eletricidade e gases venenosos.
Sob a cidade visível, estende-se outra: há, por baixo do Rio de Janeiro, todo
um labirinto de avenidas iluminadas por meio de raios solares artificiais (sem
lâmpadas), no qual fervilham cerca de 30% dos quatorze milhões de habitantes que
agora possui a metrópole brasileira. Não obstante a atividade da vida subterrânea, a
multiplicidade registrou em 1999 nada menos de 8.754.728 ícaro-movéis, isto é,
aparelhos de vôo para uma pessoa só, e que podem ser guardados em casa ou
trazidos debaixo do braço como os guarda-chuvas dos nossos avós...
Chegado, porém, a esse ponto das minhas cogitações, vejo que se corporifica
diante de mim uma figura sorridente, misto de deus e demônio. É Pamórfio.
– De que sorris? – indago.
– Da tua ingenuidade. Para atingir a realidade quanto ao Futuro, falta fôlego
aos cavalos da tua imaginação!
E dissipa-se, como uma nuvem.
140
Os olhos que comiam carne
Na manhã seguinte à do aparecimento, nas livrarias, do oitavo e último
volume da História do Conhecimento Humano, obra em que havia gasto catorze
anos de uma existência consagrada, inteira, ao estudo e à meditação, o escritor
Paulo Fernando esperava, inutilmente, que o sol lhe penetrasse no quarto.
Estendido, de costas, na sua cama de solteiro, os olhos voltados na direção da
janela que deixara entreaberta na véspera para a visita da claridade matutina, ele
sentia que a noite se ia prolongando demais. O aposento permanecia escuro. Lá
fora, entretanto, havia rumores de vida. Bondes passavam tilintando. Havia barulho
de carroças no calçamento áspero. Automóveis buzinavam como se fosse dia alto.
E, no entanto, era noite, ainda. Atentou melhor, e notou movimento na casa.
Distinguia perfeitamente o arrastar de uma vassoura, varrendo o pátio. Imaginou que
o vento tivesse fechado a ]anela, impedindo a entrada do dia. Ergueu, então, o braço
e apertou o botão da lâmpada. Mas a escuridão continuou. Evidentemente, o dia não
lhe começava bem. Comprimiu o botão da campainha. E esperou.
Ao fim de alguns instantes, batem docemente à porta.
– Entra, Roberto.
O criado empurrou a porta, e entrou.
– Esta lâmpada está queimada, Roberto? – indagou o escritor, ao escutar os
passos do empregado no aposento.
– Não, senhor. Está até acesa.
– Acesa? A lâmpada está acesa, Roberto? – exclamou o patrão, sentando-se
repentinamente na cama.
– Está, sim, senhor. O doutor não vê que está acesa, por causa da janela que
está aberta.
– A janela está aberta, Roberto? – gritou o homem de letras, com o terror
estampado na fisionomia.
– Está, sim, senhor. E o sol está até no meio do quarto.
Paulo Fernando mergulhou o rosto nas mãos, e quedou-se imóvel, petrificado
pela verdade terrível. Estava cego. Acabava de realizar-se o que há muito
prognosticavam os médicos.
141
A notícia daquele infortúnio em breve se espalhava pela cidade,
impressionando e comovendo a quem a recebia. A morte dos olhos daquele homem
de quarenta anos, cuja mocidade tinha sido consumida na intimidade de um
gabinete de trabalho, e cujos primeiros cabelos brancos haviam nascido à claridade
das lâmpadas, diante das quais passara oito mil noites estudando, enchia de pena
os mais indiferentes à vida do pensamento. Era uma força criadora que desaparecia.
Era uma grande máquina que parava. Era um facho que se extinguia no meio da
noite, deixando desorientados na escuridão aqueles que o haviam tomado por guia.
E foi quando, de súbito, e como que providencialmente, surgiu na imprensa a
informação de que o professor Platen, de Berlim, havia descoberto o processo de
restituir a vista aos cegos, uma vez que a pupila se conservasse íntegra, e se
tratasse, apenas, de destruição ou defeito do nervo óptico. E, com essa informação,
a de que o eminente oculista passaria em breve pelo Rio de Janeiro, a fim de
realizar uma operação desse gênero em um opulento estancieiro argentino, que se
achava cego há seis anos e não tergiversara em trocar a metade da sua fortuna pela
antiga luz dos seus olhos.
A cegueira de Paulo Fernando, com as suas causas e sintomas, enquadrava-
se rigorosamente no processo do professor alemão: dera-se pelo seccionamento do
nervo óptico. E era pelo restabelecimento deste, por meio de ligaduras artificiais com
uma composição metálica de sua invenção, que o sábio de Berlim realizava o seu
milagre cirúrgico. Esforços foram empregados, assim, para que Platen
desembarcasse no Rio de Janeiro por ocasião de sua viagem a Buenos Aires.
Três meses depois, efetuava-se, de fato, esse desembarque. Para não perder
tempo, achava-se Paulo Fernando, desde a véspera, no Grande Hospital das
Clínicas. E encontrava-se já na sala de operações, quando o famoso cirurgião
entrou, rodeado de colegas brasileiros, e de dois auxiliares alemães, que o
acompanhavam na viagem, e apertou-lhe vivamente a mão.
Paulo Fernando não apresentava, na fisionomia, o menor sinal de emoção. O
rosto escanhoado, o cabelo grisalho e ondulado posto para trás, e os olhos abertos,
olhando sem ver: olhos castanhos, ligeiramente saídos, pelo hábito de vir beber a
sabedoria aqui fora, e com laivos escuros de sangue, como reminiscência das noites
de vigília. Vestia pijama de tricoline branca, de gola caída. As mãos de dedos
magros e curtos seguravam as duas bordas da cadeira, como se estivesse à beira
de um abismo, e temesse tombar na voragem.
142
Olhos abertos, piscando, Paulo Fernando ouvia, em torno, ordens em alemão,
tinir de ferros dentro de uma lata, jorro d'água, e passos pesados ou ligeiros, de
desconhecidos. Esses rumores eram, no seu espírito, causa de novas reflexões.
Só agora, depois de cego, verificara a sensibilidade da audição, e as suas
relações com a alma, através do cérebro. Os passos de um estranho são
inteiramente diversos daqueles de uma pessoa a quem se conhece. Cada criatura
humana pisa de um modo. Seria capaz de identificar, agora, pelo passo, todos os
seus amigos, como se tivesse vista e lhe pusessem diante dos olhos o retrato de
cada um deles. E imaginava como seria curioso organizar para os cegos um álbum
auditivo, como os de datiloscopia, quando um dos médicos lhe tocou no ombro,
dizendo-lhe amavelmente:
– Está tudo pronto... Vamos para a mesa... Dentro de oito dias estará bom. .
O escritor sorriu, cético. Lido nos filósofos, esperava, indiferente, a cura ou a
permanência na treva, não descobrindo nenhuma originalidade no seu castigo e
nenhum mérito na sua resignação. Compreendia a inocuidade da esperança e a
inutilidade da queixa. Levantou-se, assim, tateando, e, pela mão do médico, subiu
na mesa de ferro branco, deitou-se ao longo, deixou que lhe pusessem a máscara
para o clorofórmio, sentiu que ia ficando leve, aéreo, imponderável. E nada mais
soube nem viu.
O processo Platen era constituído por uma aplicação da lei de Roentgen, de
que resultou o Raio-X, e que punha em contacto, por meio de delicadíssimos fios de
"hêmera", liga metálica recentemente descoberta, o nervo seccionado. Completava-
o uma espécie de parafina adaptada ao globo ocular, a qual, posta em contacto
direto com a luz, restabelecia integralmente a função desse órgão. Cientificamente,
era mais um mistério do que um fato. A verdade, era que as publicações européias
faziam, levianamente ou não, referências constantes às curas miraculosas
realizadas pelo cirurgião de Berlim, e que seu nome, em breve, corria o mundo,
como o de um dos grandes benfeitores da Humanidade.
Meia hora depois as portas da sala de cirurgia do Grande Hospital de Clínicas
se reabriam e Paulo Fernando, ainda inerte, voltava, em uma carreta de rodas
silenciosas, ao seu quarto de pensionista. As mãos brancas, postas ao longo do
corpo, eram como as de um morto. O rosto e a cabeça envoltos em gaze, deixavam
à mostra apenas o nariz afilado e a boca entreaberta. E não tinha decorrido outra
hora, e já o professor Platen se achava, de novo, a bordo, deixando a
143
recomendação de que não fosse retirada a venda, que pusera no enfermo, antes de
duas semanas.
Doze dias depois passava ele, de novo, pelo Rio, de regresso para a Europa.
Visitou novamente o operado, e deu novas ordens aos enfermeiros. Paulo Fernando
sentia-se bem. Recebia visitas, palestrava com os amigos. Mas o resultado da
operação só seria verificado três dias mais tarde, quando se retirasse a gaze. O
santo estava tão seguro do seu prestígio que ia embora sem esperar pela
verificação do milagre.
Chega, porém, o dia ansiosamente aguardado pelos médicos, mais do que
pelo doente. O Hospital encheu-se de especialistas, mas a direção só permitiu, na
sala em que se ia cortar a gaze, a presença dos assistentes do enfermo. Os outros
ficaram fora, no salão, para ver o doente, depois da cura.
Pelo braço de dois assistentes, Paulo Fernando atravessou o salão. Daqui e
dali, vinham-lhe parabéns antecipados, apertos de mão vigorosos, que ele agradecia
com um sorriso sem endereço. Até que a porta se fechou, e o doente, sentado em
uma cadeira, escutou o estalido da tesoura, cortando a gaze que lhe envolvia o
rosto.
Duas, três voltas são desfeitas. A emoção é funda, e o silêncio completo,
como o de um túmulo. O último pedaço de gaze rola no balde. O médico tem as
mãos trêmulas. Paulo Fernando, imóvel, espera a sentença final do Destino.
– Abra os olhos! – diz o doutor.
O operado, olhos abertos, olha em torno. Olha e, em silêncio, muito pálido, vai
se pondo de pé. A pupila entra em contacto com a luz, e ele enxerga, distingue, vê.
Mas é espantoso o que vê. Vê, em redor, criaturas humanas. Mas essas criaturas
não têm vestimentas, não têm carne; são esqueletos apenas; são ossos que se
movem, tíbias que andam, caveiras que abrem e fecham as mandíbulas! Os seus
olhos comem a carne dos vivos. A sua retina, como os raios-X, atravessa o corpo
humano e só se detém na ossatura dos que a cercam, e diante das cousas
inanimadas! O médico, à sua frente, é um esqueleto que tem uma tesoura na mão!
Outros esqueletos andam, giram, afastam-se, aproximam-se, como um bailado
macabro!
De pé, os olhos escancarados, a boca aberta e muda, os braços levantados
numa atitude de pavor, e de pasmo, Paulo Fernando corre na direção da porta, que
adivinha mais do que vê, e abre-a. E o que enxerga, na multidão de médicos e de
144
amigos que o aguardam lá fora, é um turbilhão de espectros, de esqueletos que
marcham e agitam os dentes, como se tivessem aberto um ossuário cujos mortos
quisessem sair. Solta um grito e recua. Recua, lento, de costa, o espanto estampado
na face. Os esqueletos marcham para ele, tentando segurá-lo.
– Afastem-se ! Afastem-se – intima, num urro que faz estremecer a sala toda.
E, metendo as unhas no rosto, afunda-as nas órbitas, e arranca, num
movimento de desespero, os dois glóbulos ensanguentados, e tomba escabujando
no solo, esmagando nas mãos aqueles olhos que comiam carne, e que, devorando
macabramente a carne aos vivos, transformavam a vida humana, em torno, em um
sinistro baile de esqueletos...
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