MATERIAL DIDÁTICO
A QUESTÃO RACIAL: AFRICANIDADE E
DEMOCRACIA
U N I V E R S I DA D E
CANDIDO MENDES
CREDENCIADA JUNTO AO MEC PELA PORTARIA Nº 1.282 DO DIA 26/10/2010
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Editoração
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SUMÁRIO
UNIDADE 1: INTRODUÇÃO ............................................................................................................................. 3
UNIDADE 2: QUESTÃO RACIAL: AFRICANIDADE E DEMOCRACIA ................................................... 4
UNIDADE 3: A CULTURA NEGRA NO BRASIL: AS DIFERENTES REPRESENTAÇÕES DA
AFRICANIDADE ................................................................................................................................................ 27
UNIDADE 4: OS ANOS 80. NOVAS PERSPECTIVAS PARA A BRASILIDADE E PARA A
AFRICANIDADE ................................................................................................................................................ 33
REFERÊNCIAS .................................................................................................................................................. 46
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UNIDADE 1: INTRODUÇÃO
Após a aprovação da lei n° 10.639/2003, que instituiu os trabalhos com a
história e a cultura africana no currículo escolar, todas as instituições de ensino,
mais rápida ou mais lentamente, passaram por processos de discussão e
readaptação de seus programas de ensino de História.
Várias são as questões que poderiam ser propostas para a problematização
dessa prática pedagógica, dessa forma, iniciaremos fazendo a discussão da visão
de África em nossa historiografia, que trás consigo as marcas do pensamento
eurocêntrico; e em seguida, pensaremos sobre o histórico das ações afirmativas.
Se procurarmos pela África, no pensamento histórico, veremos que, num
primeiro momento, para que os estudos sobre a África pudessem avançar além de
anotações sobre “a natureza exótica”, foi necessário vencer a idéia de que a África
era um continente sem História; isso porque desde Hegel, as sociedades asiáticas e
africanas eram vistas como sociedades estáticas.
Os africanos apareciam assim, como herdeiros de costumes rudimentares,
sociedades primitivas, paradas no tempo desde períodos imemoriais.
Essa forma de ver as culturas africanas, não se restringiu ao século XIX, nem
unicamente às pesquisas norteadas pelas ciências positivistas, influenciadas pelo
darwinismo social e nem somente aos trabalhos que seguiram a leitura do
materialismo histórico, perpassaram boa parte do século XX, como veremos nas
páginas a seguir.
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UNIDADE 2: QUESTÃO RACIAL: AFRICANIDADE E
DEMOCRACIA
Ivete Batista da Silva Almeida1
ETNIA, CULTURA E IDENTIDADE
A MESMA ESPÉCIE
“Há mais de cento e cinqüenta mil anos, a única parte do mundo em que
viviam seres morfologicamente iguais aos homens de hoje era a região dos
Grandes Lagos, nas nascentes do Nilo. Segundo Anta Diop, essa, entre
outras declarações, constitui a essência do último relatório apresentado por
Leaky, no VI Congresso Pan-Africano de Pré-história, em Adis Abebba, em
1971. A aceitação geral dessa hipótese da origem monogenética e africana
da humanidade suscita uma outra, não menos importante:
necessariamente, os primeiros homens eram etnicamente homogêneos e
negróides. É que, segundo a lei Gloger, os animais de sangue quente,
desenvolvendo-se em cima quente e úmido, secretam uma pigmentação
negra, chamada melanina. E como essa lei se aplica também aos homens,
segundo Anta Diop, conclui-se que a humanidade, na sua origem, teve
pigmentação escura. O branqueamento se deveu, então, a diferenças de
clima”.2
Os avanços das ciências vêm comprovando, a cada ano que passa, uma
inegável realidade: a despeito das diferenças fenotípicas3 e culturais 4 os homens
fazem parte de uma mesma espécie, formando várias e diferentes sociedades.
1 Ivete Batista da Silva Almeida é professora da Universidade de Taubaté, em São Paulo, ocupando a
cadeira de História da África e da Ásia. É autora de São Paulo durante a Revolução de 1932. e participou como colaboradora na elaboração de materiais didáticos e pára-didáticos na área de História. 2Diop, Anta. História da África II. África Antiga. Cap.I apud Mello, José Guimarães. Negros e Escravos na
Antigüidade. São Paulo: Arte & Ciência Editora, 2003, p. 73. 3 Diferenças ligadas à aparência física do indivíduo.
4 Diferenças ligadas ao modo de vida de cada grupo.
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Embora as diferenças fenotípicas, culturais e sociais sejam grandes e
diversas, sabemos que não são elas que definem, por si só, a convivência pacífica,
ou belicosa, entre os povos.
Desde a Antiguidade, durante o surgimento das primeiras civilizações,
foi a questão do poder, do privilégio e da dominação que norteou a situação de
submissão de uma cultura à outra.
A História, contudo, comprova o que o olhar congestionado pelo
eurocentrismo não nos deixa ver; pois no caso da África, durante o transcorrer da
História das Civilizações Ocidentais vários foram os lugares e os períodos de grande
florescimento cultural: o Norte teria sido o cenário de uma das mais elaboradas
culturas do mundo antigo; enquanto a arte e filosofia desapareciam durante a “Idade
das Trevas” na Europa, a cultura islâmica resplandecia na África, do Magreb à faixa
Sudanesa, trazendo consigo os estudos de astronomia, geografia, matemática e
mesmo a restauração dos textos clássicos dos filósofos gregos. Seriam as
mudanças trazidas pela Idade Moderna, as responsáveis pelos ideais e idéias de
desvalorização, domínio e destruição das culturas africanas.
Após o domínio neocolonial, desprezando toda a diversidade, riqueza e
talento das culturas africanas, já em nossa era, os frenologistas e os adeptos da
craniometria, movidos por teorias genéticas, advindas das pesquisas de Darwin,
transportadas agora para o contexto social, carregavam o evolucionismo de valores
morais amplamente condenáveis e passavam a associar as características físicas
dos indivíduos às características morais e capacidades intelectuais das diferentes
etnias, estabelecendo uma escala que tinha em sua base, o negro e, em seu topo,
como o ponto alto da evolução da raça humana, o branco.
Essas duas linhas que se diziam ‘científicas’, foram, mesmo no passado,
cientificamente refutadas, a medida em que o avanço da medicina e da psicologia
mostrou, já no final do XIX, que as habilidades, bloqueios de raciocínio, impulsos
psicológicos, valores morais, força ou fragilidade física, não estão de maneira
alguma relacionados a uma etnia em particular, mas sim aos cuidados com saúde do
corpo, da mente e do meio social ao qual o indivíduo é submetido em seu período de
formação. Na verdade, o que devemos ter em mente é que tais teorias raciais
(teorias que associam ‘raça’ a qualidades ou defeitos morais e intelectuais)
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acabavam servindo aos interesses da dominação, uma vez que o mundo, já no final
do século XIX, podia ser dividido em, praticamente, dois: um mundo branco e
desenvolvido, ao Norte – América do Norte e Centro-Norte da Europa – e o mundo
pobre ‘das raças inferiores’ ao Sul – os mestiços da América Latina, África, Ásia. Ao
explicar as diferenças sócio-econômicas a partir da cor da pele, as nações
capitalistas daquele momento imiscuíam-se de sua responsabilidade histórica;
legavam à origem étnica e não ao imperialismo, ao colonialismo e à exploração
o atraso e a miséria de grande parte das nações do mundo.
No caso brasileiro, o efeito das teorias raciais para o processo de aceitação
do elemento negro e sua cultura, foi catastrófico. O negro era associado a todas as
características nocivas do caráter humano; justificando-se assim o processo do
escravismo colonial e da atual pobreza do continente africano. Os costumes de
origem africana, por sua vez, eram conseqüentemente associados a manifestações
grosseiras, bárbaras ou demoníacas.
Além do preconceito, que passava a ser amparado por um pensamento
pseudo-científico, havia – e ainda há! – um grande desconhecimento em relação à
história e mesmo à organização geopolítica do continente africano.
É necessário lembrar que, até as primeiras décadas do século XX, o
modelo de pesquisa histórica, pautava-se nos princípios do positivismo, para
o qual a História só poderia ser reconstruída a partir da leitura dos
documentos escritos. Uma vez que muitas das sociedades africanas
produziram culturas ágrafas, tornavam-se, nessa perspectiva, literalmente
“sociedades sem História”.
O desconhecimento da História do continente somava-se ao
desconhecimento e ao preconceito em relação às culturas africanas, sendo que a
própria idéia de uma África etnicamente heterogênea, principalmente em se tratando
das áreas de predominância de povos de pele negra, era pouco discutida.
Foi – e ainda é! – comum entender-se erroneamente os povos negros não
como vários e diferentes – como realmente são -, mas como se fossem “uma coisa
só”; como se existisse ‘o povo africano’; não se percebe a existência das religiões
africanas, ao contrário, fala-se como se existisse ‘a religião africana’ e o mesmo para
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as culturas africanas, que comumente são classificadas pelo senso comum como, ‘a
cultura africana’.
A IDÉIA DE UMA SÓ AFRICA
A África é um grande continente, no qual praticamente todos os climas e
vegetações da terra estão presentes: o clima mediterrânico, o semi-árido e o
desértico ao Norte; as savanas e as florestas tropicais e equatoriais ao Centro-Sul; o
frio de montanha, na região elevadas e com neves eternas do Quênia. E não há
apenas diversidade natural, mas também diversidade humana e cultural. Estão
presentes hoje no continente: a população branca oriunda da Europa, que de lá
emigrou durante o período colonial; a população de origem árabe, presente no Leste
do continente desde a Antigüidade e na porção Norte, desde o século VIII; os
berberes – ou imazighen, ‘os homens livres’, como chamam a si mesmos – de
origens afro-asiáticas e que habitam o deserto do Saara desde antes da expansão
do Império Romano; e diversos outros grupos de origem africana, afro-asiática ou
mesmo asiática, como o grande número de indianos de Moçambique, além,
obviamente, das populações negras de origem africana.
Essa diversidade humana acompanha uma grande diversidade de
organizações sociais e culturais. Se adotarmos a idéia de que todos somos iguais
por sermos homo sapiens sapiens e que nossas diferenças na aparência são
apenas fruto de milhares de anos de adaptação aos diferentes meios naturais,
teremos que abandonar o critério raça e adotar um outro critério de diferenciação: o
critério de etnicidade ou grupo étnico. Por etnia ou grupo étnico entendemos um
grupo de indivíduos que possuem entre si, semelhanças lingüísticas, culturais
e também genéticas. Um grupo étnico convive ou pelo menos, se origina, num
mesmo território, sob uma mesma organização social e política.
Assim sendo, tomando a unidade étnica não somente como semelhança
genética, mas também lingüística e histórica, os grupos humanos na África
corresponderiam a algumas várias dezenas de etnias. A título de exemplo, tomemos
a questão lingüística. Utilizando o MSS COMPARISON, Jonh Greenberg catalogou
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730 línguas no continente africano. Não estamos nos referindo aos pidgins ou
dialetos, mas às línguas.
A partir de suas pesquisas, adotando o critério das semelhanças lingüísticas,
poderíamos agrupar hoje os povos africanos em quatro grandes núcleos fonéticos
(ou seja, línguas irmãs):
CONGO-CODOFANIANO
(Niger-congo +cordofaniano) línguas subsaarianas, faladas por centenas de povos
negro-africanos, praticantes das mais diversas formas de religião, das nativas
tradicionais, ao cristianismo e islamismo, ocupando um vasto território que se
estende da direção sul do Saara ao cone sul-africano.
Do núcleo congo-cordofaniano, derivam-se duas outras famílias lingüísticas:
1.1. Niger-congo, do Senegal ao Golfo do Benin, na Nigéria, englobando os povos
oeste-africanos, de línguas tradicionalmente chamadas sudanesas, distribuídas em
seis ramos:
a) Atlântico Ocidental (uolofe, fulani, serere, diola e outros);
b) Mandê (solinquê, suçu, malinque, bambara dentre outros);
c) Voltáico (senufo, moci, grunce, bariba dentre outros);
d) Kwa (ioruba, igbo, ijó, fon, ewe, gun, mahi dentre outros);
e) Benuê-congo (cambari, birom, ibibio, efique – na Nigéria – bitare, mambila,
banto dentre outras);
f) Adamaua Oriental (línguas da República Cetro-Africana: adamaua, imbaca,
songo dentre outras).
1.2 Cordofaniano, um pequeno grupo de línguas pouco conhecidas, faladas na
região do Cordofã, no Sudão.
NILO-SAARIANO
Línguas do Sul do Sudão e Sul do Saara (canure, songai dentre outras).
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AFRO-ASIÁTICO
Anteriormente chamadas de “hamito-semíticas”, são as línguas da África do Norte
(Etiópia, Somália e lago Chade), compreendendo cinco ramos:
a) Semítico (árabe e línguas etíopes);
b) Egípcio antigo;
c) Berbere (região do Magreb);
d) Cuxítico (Somália);
e) Chádico, do qual faz parte o hauçá (ou haussá) no Noroeste da Nigéria, na
África Ocidental, com extensão no Sudoeste da atual República do Níger.
COISSÃ
Pequeno grupo de línguas faladas na África do Sul e na Namíbia e ao longo
do deserto do Khalaari, cuja característica marcante são os cliques, motivo pelo qual
são conhecidas como línguas de clique. O termo é composto dos vocábulos
hotentotes ‘khoi’, como eles se denominam, e ‘san’ que significa: bosquímanos.5
Essa formidável diversidade lingüística demonstra-nos um pouco da
variedade e da pluralidade das culturas africanas. No caso da religiosidade e da
organização social, a diversidade também é grande.
No caso dos africanos escravizados durante o período colonial, desvendar-
lhes hoje as origens e ascendências, seria extremamente difícil, uma vez que os
portugueses, senhores e traficantes de africanos escravizados, interpretavam as
origens de suas peças de escravos – como eram chamados - sempre de maneira
errônea, empregando terminologias generalizantes a grupos distintos: sendo da
Costa dos Escravos, chamavam-nos yorubas ou mais comumente de nagôs; sendo
de Elmina, minas; sendo da região chádica, denominavam-lhes todos por haussás.
Na maioria das vezes, mesmo essa identificação genérica da procedência, referia-se
muito mais à região de embarque ou compra do aprisionado do que à sua região de
nascimento. Contudo, principalmente após os primeiros estudos, datados do final do
5 Informações colhidas e adaptadas da apostila para o curso de Línguas Africanas da FFLCH-USP, ministrado
pela profa. Margarida Maria Taddoni Petter e das obras de Castro, Yeda Pessoa de . Falares africanos na Bahia – um vocabulário afrobrasileiro. Topbooks, RJ, 2001 e Heine, Bern & Nurse, Derek (orgs) African Languages: an introduction. Cambridge University Press, 2000.
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século XIX e início do século XX, sobre as características físicas e culturais dos
africanos, passou-se a dividir os africanos e seus descendentes que aqui viviam, em
dois grandes grupos étnicos-culturais; a saber: os sudaneses e os bantos.
Os sudaneses corresponderiam, a um grande grupo, que engloba os povos
oriundos da faixa sudanesa; África Ocidental, Sudão Ocidental e costa setentrional
do Golfo da Guiné.
Os bantos corresponderiam aos povos da região do Congo e de Angola e
Golfo da Guiné.
Os antropólogos e historiadores estão de acordo em afirmar que, embora não
se possa quantificar exatamente, com precisão, é fato que, na primeira fase da
colonização e da produção canavieira, os escravizados vindos para o Nordeste
brasileiro – e principalmente para a capital, Salvador - eram sudaneses,
sobressaindo entre eles os de cultura yorubá. Quanto aos escravizados entre os
séculos XVIII e o XIX, que vieram principalmente para o Rio de Janeiro, seriam
aqueles pertencentes ao grupo dos bantos.
Essa diferença, não apenas física, mas cultural, foi percebida pela primeira
vez por Nina Rodrigues6 e deu origem a mais um preconceito alimentado pelas
teorias raciais. Tínhamos de um lado, os escravizados de cultura yorubá,
identificados genericamente como sudaneses, (também chamados de nagôs) eram
citadinos, usavam tecidos, eram iniciados na fina arte da fundição de metais e
cultuavam um panteão de deuses, que em alguns pontos se assemelhava ao
panteão da mitologia grega; do outro, os ditos bantos, em geral, vinham de regiões
de organização sócio-econômica menos complexa, em geral de aldeias submetidas
por outros reinos (comunidades em que apenas as mulheres plantavam e os
homens caçavam), vestiam-se com cascas de árvores e eram ditos animistas.
Observando tais características, sob a óptica das análises raciais, concluíam que
haveria um grupo de “africanos superiores”, os nagôs (sudaneses) e um grupo de
“africanos inferiores”: os bantos.
6 Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) legista, psiquiatra e antopólogo brasileiro. Foi professor da Faculdade
de Medicina da Bahia, onde desenvolveu suas pesquisas sobre os negros brasileiros. Seguindo os estudos da “antropologia patológica”, que associava inclinações morais e comportamentais às diferentes raças, elaborou o primeiro grande estudo sobre os diferentes grupos de africanos vindos para o Brasil. Em seus trabalhos, porém Nina era categórico em afirmar que “a raça branca é suprema” e que “o negro se encontra em uma outra fase do desenvolvimento intelectual e moral”. Rodrigues, Nina. Os africanos no Brasil. Brasília: UNB, 1988, 7ª edição.
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Na verdade, o que era classificado como uma cultura nagô mais elaborada,
era um mosaico formado por elementos de diferentes culturas da faixa sudanesa,
assim como no caso banto, tratava-se de um conjunto de características de
diferentes povos do tronco lingüístico banto.
Em suma, o que faltava compreender era que, além de se tratar de um
continente formado por centenas de povos e culturas, os princípios das culturas
africanas presentes aqui nas Américas não eram somente fruto de atavismos e
heranças ancestrais, mas também fruto de um processo extremamente traumático: a
diáspora atlântica.
IDENTIDADE, CULTURA E DIÁSPORA ATLÂNTICA
"Diáspora" tornou-se uma palavra-chave nas discussões atuais sobre história
e antropologia cultural, motivada pelos estudos da preservação e da regeneração
das identidades culturais originais, de diferentes comunidades que foram levadas à
dispersão. Cotidianos e idéias, de liberdade, equilíbrio e honra, são experimentados
por meio do recontar de histórias sobre práticas e façanhas passadas (de um
passado vivido ou recriado), enquanto a solidariedade social é assegurada por meio
de complexas formas culturais, instituições, mecanismos e redes, nacionais e
mesmo transnacionais que transmutam continuamente espaço em lugar7.
As comunidades diaspóricas são por excelência comunidades desenraizadas,
que criam estratégias de re-construção de valores e padrões culturais. Embora nos
últimos séculos alguns grupos humanos tenham vivido esse fenômeno numa
dimensão dramática – como no caso de africanos e judeus - esse destino movediço
tem se tornado cada vez mais característico de nossos tempos de mundo
globalizado. De fato, ser desenraizado, sentir-se em casa entre dois mundos, habitar
um ambiente cultural entre um passado perdido e um presente fluido, são aspectos
que, em diferentes intensidades e dimensões, descrevem com precisão a face das
sociedades urbanas contemporâneas.8 .
7 Pensamos lugar, como conceito, utilizado freqüentemente pela geografia humana. Conceito que se remete ao
sentimento de pertinência, o lugar é o espaço ao qual pertenço e me identifico. Ver em Santos, Milton. Pensando o Espaço do Homem.São Paulo, EDUSP, 2004. 8 RAPPORT, Nigel. Em louvor do cosmopolita irônico: nacionalismo, o "judeu errante" e a cidade pós-nacional.
Revista de Antropologia, 2002, vol.45, n.1, p.89-130.
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Não tendo surgido apenas nos tempos modernos e nem tendo desaparecido
com o término do escravismo colonial, ao contrário, o intenso trânsito de diferentes
grupos humanos marca, cada vez mais, as sociedades do mundo contemporâneo,
onde milhões de pessoas se deslocam diariamente fugindo da violência da guerra,
da fome, da desigualdade. Segundo Rapport:
As crônicas sobre diásporas – a do Atlântico negro, do judeu
metropolitano, os deslocamentos rurais em massa – constituem o
movimento de fundo da modernidade. Esses testemunhos históricos
colocam em questão e minam qualquer senso de origem simples ou
ingênuo, de tradição e de movimento linear. (...) A percepção do
migrante de ser desenraizado, de viver entre dois mundos, entre um
passado perdido e um presente não-integrado, talvez seja a metáfora
mais adequada dessa condição (pós-moderna).9
Rapport aponta com precisão o drama das sociedades hifenizadas, que
experimentam o “viver entre dois mundos”, dessa forma, ao estabelecer um paralelo
entre o caso de judeus, migrantes e africanos escravizados durante o escravismo
colonial, nos convida a refletir sobre os princípios comuns, encontrados em
diferentes processos históricos de dispersão, tal como o movimento de abandono,
acompanhado da necessidade de preservar e recriar costumes e memórias como
estratégia de sobrevivência dos princípios e valores mais profundos, da identidade e
da cultura de um povo.
“Integrada aos quadros da expansão imperial européia, a História da
África é, também e necessariamente, uma história diaspórica. Ao
longo de três séculos, 10 milhões de pessoas foram levadas do
continente africano para a América: ‘O drama mais espetacular dos
últimos mil anos da história da humanidade (...) uma tragédia que
fazia a da Grécia parecer mesquinha’ “10
9 RAPPORT, Nigel. Em louvor do cosmopolita irônico: nacionalismo, o "judeu errante" e a cidade pós-nacional.
Revista de Antropologia, 2002, vol.45, n.1, p.90. 10
Lara, Silvia. Mulheres Escravas, Identidades Africanas . Grupo de trabalho 3 . Acessado em 16/05/2007, em
http://www.desafio.ufba.br/gt3-006.html#1.
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A partir do fragmento do artigo de Silvia Lara, podemos observar que a
historiadora está em acordo com o pensamento de Rapport, quando este afirma que
a sensação de falta de lar manteve-se para o africano, esteja ele exilado do seu
continente em conseqüência do colonialismo, ou reconciliado com sua terra via o
momento da pós-colonialidade, dada a intensidade traumática da diáspora atlântica
do período colonial.
Embora não haja volta ao lar para ninguém no mundo moderno, porque,
conforme Rapport, a "consciência moderna" seria em si "alienada ou marginalizada";
o exílio dos africanos seria o ponto mais alto dessa história de desterritorialização,
constituindo-se assim no tema central do nascimento deste sentimento de perda na
cultura moderna.
Nenhum grupo sofreu tão intensamente a separação e foi tão brutalmente
obrigado a reconstruir sua leitura sobre si próprio e sobre seu lugar no mundo como
os povos negros, forçados a reconstruir seu modo de vida e, portanto, sua
identidade11. Abandonar o lugar de origem, em termos de construção da identidade
de um grupo, traz grandes danos, uma vez que o lugar em que vivemos não se
associa apenas a um conjunto de memórias de infância, como explica Milton Santos:
“O território em que vivemos é mais que um simples conjunto
de objetos, mediante os quais trabalhamos, circulamos, moramos,
mas também é um dado simbólico. A linguagem regional faz parte
desse mundo de símbolos e ajuda a criar esse amálgama, sem o
qual não se pode falar de territorialidade. Esta não provém do
simples fato de viver num lugar, mas da comunhão que com ele
mantemos.” 12
A dimensão das transformações provocaria efeitos visíveis na organização e
na expressão da identidade e da cultura afro-brasileira, uma vez que o sentimento
de pertencer a um lugar, a construção de uma identidade e a manifestação desses
sentimentos por meio das diferentes expressões culturais estariam intimamente
relacionados, como demonstra o eterno mestre Milton Santos:
11
Utilizamos identidade aqui, como o fazem Mintz e Price , em O Nascimento da Cultura Afro-Americana. Uma Perspectiva antropológica, ou seja, identidade como representação de um conjunto de experiências e valores produzidos e experimentados na cotidianidade. 12
SANTOS, Milton. O Espaço do cidadão. São Paulo: Nobel,1987, p.61
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“Cultura e territorialidade são, de certo modo, sinônimos. A cultura,
forma de comunicação do indivíduo e do grupo com o universo, é
uma herança, mas também um reaprendizado das relações
profundas entre o homem e o seu meio, um resultado obtido através
do próprio processo de viver. Incluindo o processo produtivo e as
práticas sociais, a cultura é o que nos dá a consciência de pertencer
a um grupo, do qual é o cimento. É por isso que as migrações
agridem o indivíduo, roubando-lhe parte do ser, obrigando-o a uma
nova e dura adaptação em seu novo lugar.” (SANTOS, 1987, p.61)
Perder o referencial de território significou aos africanos escravizados perder
os referenciais pelos quais definiam quem eram e o que significava ser quem eram13
estando eles, fora ou mesmo dentro da África. Assim, na análise das sociedades de
africanos nas Américas e seus descendentes, classificadas aqui como sociedades
diaspóricas, há um difícil jogo de compreensão do que é novo e do que é
reconstruído, mas ao pensarmos sobre os povos negros do período colonial, uma
questão se impõe sobre o esforço de reconstrução da vida num novo território: a
perda da liberdade.
Ao contrário dos migrantes nordestinos de hoje e dos judeus de ontem, os
africanos escravizados tiveram que reconstruir suas identidades individuais e
coletivas vencendo o obstáculo do escravismo; para isso também teriam que lançar
mão de estratégias para recriar laços de solidariedade, princípios de fé e de honra.
A ÁFRICA COMO ESPAÇO CULTURAL
Num primeiro momento, antes das ciências humanas discutirem de que
maneira as culturas africanas se organizaram ou re-organizaram após a diáspora
atlântica, foi necessário vencer a idéia de que a África era um continente sem
efervescência e densidade cultural, sem História; isso porque desde Hegel, as
sociedades asiáticas e africanas eram vistas como sociedades estáticas, Joseph Ki-
13
NAVARRETE, F. Las Relaciones interétnicas. México, Universidad Nacional Autónoma de México, 2004, p. 14-16.
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15
Zerbo lembra em sua História da África Negra a posição radical de Hegel em seu
Curso Sobre a Filosofia da História:
“A África não é uma parte histórica do mundo. Não tem movimentos,
progressos a mostrar, movimentos históricos próprios dela. Quer
dizer que a sua parte setentrional pertence ao mundo europeu
asiático. Aquilo que entendemos precisamente pela África é o
espírito a-histórico, o espírito não desenvolvido, ainda envolto em
condições de natural e que deve ser aqui apresentado apenas como
o limiar da história do mundo”.14
Em 1953, na quarta parte de seu estudo Les Races et l’Histoire, Eugène
Pittard, acompanha a mesma idéia semeada por Hegel, afirmando que:
“As raças africanas, propriamente ditas, postas à parte as do Egito e
de uma parte da África Menor, pouco participaram da História, tal
como a entendem os historiadores... Então, só duas raças humanas
que habitam a África desempenharam um papel eficiente na História
Universal: em primeiro lugar e de um modo considerável, os
egípcios; depois, os povos do norte da África”. 15
Os africanos apareciam assim, como herdeiros de costumes rudimentares,
sociedades primitivas, paradas no tempo desde períodos imemoriais, isso porque a
leitura hegeliana, fortalecida posteriormente tanto pela visão positivista quanto pela
leitura marxista sobre as sociedades e sobre a História, não reconhecia nas
sociedades negras a ação das transformações, a ação do tempo; o que significa
dizer que não reconhecia nestas culturas a existência de valores e princípios
relevantes, elas eram vistas como culturas selvagens, desprovidas de princípios
morais, éticos, políticos, desprovidos de saberes técnicos, interpretações religiosas e
filosóficas do mundo, sendo que para eles, o contato dos povos africanos com os
povos europeus – portadores e produtores de cultura – não poderia gerar uma troca
14
KI-ZERBO,J. História da África Negra. Volume I. Lisboa, Publicações Europa-América, 1972, p. 10. 15
PITTARD, E. Les races et l’histoire. Apud. GIORDANI, M.C. História da África. Petrópolis, Ed. Vozes, 1985, p. 07.
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– não haveria o que trocar – haveria apenas a absorção claudicante dos valores
europeus. O avanço, pelo ponto de vista das nações colonialistas, para a África,
seria a europeização da cultura africana e o branqueamento cultural.
Essa leitura, das culturas africanas, não se restringiu ao século XIX, nem
unicamente às pesquisas norteadas pelas ciências positivistas, influenciadas pelo
darwinismo social e nem somente aos trabalhos que seguiram a leitura do
materialismo histórico, perpassaram boa parte do século XX, influenciando mesmo
os novos intérpretes da análise historiográfica, como os historiadores franceses
ligados aos Annales Historique, que mantiveram, durante as primeiras fases de sua
produção intelectual, em relação à África, a visão de um universo estagnado, a-
histórico. Em seu artigo African Histories and the Dissolution of World History,
Steven Feierman, afirma que embora os Annales tenham trazido uma nova luz à
metodologia da pesquisa e da escrita da História, os estudos de Fernand Braudel -
representante da segunda geração dos Annales - sobre o Mediterrâneo, ainda
apresentam a África como coadjuvante de uma História que é marcadamente
eurocêntrica.
“Mesmo quando se refere ao ambiente africano, divide-o por critérios
raciais – África Branca e Negra, como sinônimo de África Islâmica e
não-islâmica (desprezando o fato de que várias regiões islamizadas
eram compostas por povos de pele negra), colocando o que
considera como África Branca – de maior contato com o mundo
europeu - como um universo dinâmico, em oposição ao que define
como África Negra: uma área passiva e inerte.”16
Somente em seu A Gramática das Civilizações17 é que Braudel se redime;
reconhecendo a existência de uma rica e pouco discutida História dos Povos
Africanos. Fruto dos apontamentos feitos para seus alunos nos inícios dos anos
sessenta, a obra, lançada apenas no final dos anos oitenta, recoloca em cena o
continente que havia sido preterido, no discurso braudeliano sobre o Mediterrâneo.
16
FIERMAN, Steven. African Histories and the Dissolution of World History. In: BATES, Robert; MUDIMBE, V.Y; O’BARR, Jean. Africa and the Disciplines. The Contribution of research I Africa to the Social Sciences and Humanities. Chicago, The University of Chicago, 1993, p. 172, 173,174. 17
Braudel, Fernand. A Gramática das Civilizações. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
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Todavia, permanece, mesmo na Gramática, a idéia de uma África bipartida, marcada
por implacáveis diferenças climáticas, físicas e, principalmente, que teria ganhado
mais do que perdido, com o processo de colonização.
O esforço pela compreensão da cultura afro-americana, a partir da
compreensão da complexidade do universo africano, corresponde a um exercício
reflexivo relativamente atual, marcado pela ação de intelectuais afro-americanos,
que tiveram intensa ação política em prol da defesa dos povos negros e mestiços.
Dentre os pioneiros, o grande destaque seria para W.E.B. Du Bois18 , o
primeiro panafricanista americano a defender que a unidade entre os negros
americanos e caribenhos, com os africanos, deveria basear-se na compreensão de
que na origem, seus problemas tinham uma raiz comum: o imperialismo.
O termo Panafricanismo foi cunhado pela primeira vez por Sylvester Willians,
advogado negro de Trinidad, por ocasião de uma conferência de intelectuais negros
realizada em Londres, em 1900. Willians levantava sua voz contra a expropriação
das terras dos negros sul-africanos pelos europeus e conclamava o direito dos
negros à sua própria personalidade.
É importante destacar que, dessa forma, o pensamento de Du Bois definia
como unidade, entre estas sociedades afro-americanas, o conjunto de circunstâncias
sociais, políticas, econômicas que impediam plenamente o desenvolvimento e o
reconhecimento digno dessas culturas em terras americanas e mesmo em terras
africanas, naquele momento sob o domínio do neo-colonialismo. O panafricanismo
não implica semelhanças em termos de reprodução do espaço africano no espaço
americano, mas em termos de busca por uma aliança de solidariedade e consciência
dos povos negros que têm uma mesma origem ontológica e sofreram o mesmo
drama: o da intervenção colonialista-imperialista.
É, de fato, a partir da aceitação da África como ambiente produtor de cultura
que a questão dos resultados da diáspora sobre essas culturas se impôs.
18
William Eduard Burghard Du Bois (W.E.B) nasceu em 1868 de uma família já de classe média em Massachusetts e morreu em Gana aos 95 anos, em 1963. Nesse mesmo ano realizava-se a grande manifestação pelos Direitos Civis de Martin Luther King e era criada a Organização da Unidade Africana, um embrião do seu sonho panafricano.Diplomado em Economia e História pelas universidades de Fisk e Harvard, com doutoramento em Sociologia em Berlim, Du Bois participou, em 1905, da criação do Movimento Niágara, pioneiro, no século 20, na luta política. Em 1908, ele liderou a criação da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (NAACP, da sigla em inglês) e foi o redator-chefe da Revista Crisis, órgão da associação. (Angola Press, http://angolapress-angop.ao Acessado em 10/12/2005)
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Não pretendemos, aqui, discutir cada um dos grandes temas e muito menos
cada um dos autores que se debruçaram sobre a questão da compreensão da África
como ambiente cultural e das culturas africanas durante a diáspora atlântica, assim,
propomos a leitura desse processo de construção de leituras sobre a África, a partir
da observação de três proposições, respondidas diferentemente, em diferentes
momentos da reflexão científica contemporânea sobre essa questão. Propomos
observar, na produção intelectual do início do século XX; dos anos 30-40 e dos anos
70-80, a forma como respondem a estas três proposições:
1) A África como universo cultural.
2) O que a diáspora teria feito aos princípios da cultura africana.
3) O que seria, a cultura afro-americana.
Tanto a produção intelectual brasileira quanto a estrangeira passaram,
durante essas décadas, por caminhos que nos apresentaram diferentes formas de
olhar as sociedades africanas e afro-americanas19.
O QUE ERA A CULTURA AFRICANA NA VISÃO DA INTELECTUALIDADE: OS
SÉCULOS XIX E XX
Numa primeira fase, fortemente inspirada pelas teorias raciais, entre aqueles
que se detiveram sobre os estudos da África, destacaríamos as leituras de Nina
Rodrigues como representante da visão positivista, fortemente influenciada pelas
pesquisas genéticas do período. Em seu trabalho, se por um lado rompia com a
idéia de África Negra como ambiente homogêneo, não pensando em povo africano
como um único conjunto, mas em povos africanos20, elencando cuidadosamente
fenótipos, nações, costumes e vocabulários; por outro, dava força à idéia de que os
africanos seriam, intelectual e moralmente, inferiores aos brancos, dizendo na
introdução de Os africanos no Brasil:
19
Em seu livro: Escravos, Roceiros e Rebeldes, Stuart B. Schwartz, descreve, no capítulo I a trajetória da historiografia nacional sobre cultura afro-brasileira. 20
Navarrete coloca esta questão em relação às leituras sobre o México, comenta que o conquistador, inicialmente tendia a vê-los como uma única cultura índia, sendo que são várias. Las Relaciones Interétnicas. Las Relaciones interétnicas. México, Universidad Nacional Autónoma de México, 2004. p. 17
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“...Como a extinção do tráfico, a escravidão precisou revestir a forma
toda sentimental de uma questão de honra e pundonor nacionais,
afinadas aos reclamos dos mais nobres sentimentos humanitários.
Para dar-lhes esta feição impressionante foi necessário ou
conveniente emprestar ao negro a organização psíquica dos
povos brancos mais cultos. Deu-se-lhe a supremacia no
estoicismo do sofrimento, fez-se dele a vítima consciente da mais
clamorosa injustiça social. Em tal emergência, podia protestar,
debalde, contra esses exageros a História toda, que nos mostra a
escravidão como um estádio fatal da civilização dos povos; em vão
continuaria a oferecer-lhe tácito desmentido a África inteira, onde a
intervenção dos europeus não conseguiu diminuir sequer a
escravidão; sem fruto podia clamar o exemplo de nossos negros e
mestiços, livres ou escravizados, que continuavam a adquirir e a
possuir escravos. O sentimento nobilíssimo da simpatia e
piedade, ampliado nas proporções de uma avalanche enorme na
sugestão coletiva de todo um povo, ao negro havia conferido, ex
autoritate própria , qualidades, sentimentos, dotes morais ou
idéias que ele não tinha, que ele não podia ter (grifo nosso); e
naquela emergência não havia que apelar de tal sentença, pois a
exaltação sentimental não dava tempo nem calma para reflexões e
raciocínios”.21
Observando o excerto de tão significativo nome do período, em termos de
pesquisa e, pensando em nossas três proposições, teríamos que:
1) A leitura sobre África, no início do século XX, não compreendia a África como
universo cultural, a África não possuiria nem História e nem cultura(!). Na leitura de
Nina, impregnada pelo darwinismo social, os povos negros não seriam produtores de
uma cultura22, não havendo o que se pensar em termos de bagagem cultural trazida
da África ou de reconstrução de valores e instituições; existiriam apenas costumes e
21
RODRIGUES, N. Os africanos no Brasil. Brasília, Coleção Temas Brasileiros, UNB, 1988, 7ª edição, p. 03. 22
No decorrer do livro, o autor expõe sua teoria de que o livro, os povos negros jamais conseguiram construir uma civilização, o que provaria sua inferioridade como espécie. Os africanos no Brasil. Rodrigues, Nina. UNB, 7
a.
ed.
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20
práticas selvagens23 que nada teriam a contribuir ou a acrescentar à cultura
brasileira, aliás, para ele seria justamente o contrário, a selvageria do elemento
negro seria uma erva daninha que ameaçaria a jovem flora da cultura brasileira.
2) Não haveria a dor do desenraizamento, pois os povos negros não eram vistos
como detentores de valores éticos e morais, como descreve no excerto o autor;
3) Não haveria uma cultura afro-americana. A mestiçagem teria como resultado
nefasto a degradação da cultura brasileira, uma vez que, o mestiço seria uma
espécie necessariamente inferior24, incapaz de assimilar uma cultura superior –
como era compreendida a européia – e condenado, assim, a se manter em seu
universo de obscurantismo selvagem.
Nos anos 30-40, uma outra leitura ganha força.
Embasadas no culturalismo e nos estudos antropológicos, leituras como as de
Fernando Ortiz, Tannembaun, Melville Herskovits e Gilberto Freyre, buscavam as
permanências dos costumes africanos na cultura brasileira e também acreditavam
na permeabilidade, na soma, no câmbio de práticas e princípios – entre a cultura
branca e as culturas negras – principalmente no que se refere às relações entre as
camadas inferiores da sociedade. A esse respeito, Lívio Sansone expõe sua
compreensão sobre o ponto de vista multiculturalista:
“Às vezes, a multiculturalidade se dá de forma autônoma, em que
não é preciso teorizar as tradições culturais e a manutenção da
diversidade cultural. É quando nos deparamos com o fenômeno que
alguns chamam de sincretismo – e que Fernando Ortiz e seu
contemporâneo Gilberto Freyre chamaram de hibridez25 – formas de
multiculturalidade em áreas de tolerância e espaços liminares. Nas
camadas populares brasileiras, isso não acontece nos moldes que os
23
Nas páginas 172 e 173 de Os africanos no Brasil, apresenta uma definição para selvagem, na qual define como característica para o ‘ser’ selvagem, em suma como: uma psicologia que estende qualidades humanas à toda a natureza; e no ponto de vista social, a necessidade de apoiar-se no totemismo, o que para o autor, comprovaria a adaptabilidade do termo ao africano. 24
As teorias de Lapouge e Eugéne Pittard, bem como a antropogeografia de Ratzel, influenciaram fortemente os intelectuais brasileiros em suas leituras sobre o brasileiro. Ler a esse respeito em LEITE, Dante Moreira. O Caráter Nacional Brasileiro. São Paulo, Ática, 1988 e também em ALMEIDA, Ivete Batista da Silva. O Olhar de quem faz: São Paulo Durante a Revolução de 32. São Paulo, Café Expresso, 2001. 25
Em seu trabalho, Sansone explica que, embora os termos “híbrido” e “transculturalismo” sejam muito utilizados hoje, a primeira utilização deve ser creditada a Ortiz e a Freyre. DADOS. Revista de Ciências Sociais, 2003.
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intelectuais querem, mas de forma muito mais cacofônica e confusa,
menos apolínea”. 26
Partindo do conceito de área cultural, a antropologia procurava pela
permanência de elementos, práticas e instituições africanas reconstruídas aqui, com
maior ou menor intervenção da cultura européia. A busca pela pureza dos princípios
culturais e a compreensão da transformação como perda da identidade, são
apresentadas por Navarrete, em seu Las Relaciones Interétnicas en Mexico em
que discute sobre a formação da cultura mexicana, expõe sua opinião, criticando
este mito da imutabilidade. Diz o autor:
“Em primeiro lugar, destaca-se que, ao definir as culturas indígenas
por seu passado, confirma-se a visão simplificadora que criticamos
acima. Em segundo lugar, muitos aspectos importantes das culturas
indígenas atuais não são de origem pré-hispânica, mas sim de
origem européia e são produto da criação cultural dos homens e
mulheres indígenas, posteriores à conquista...Isto não quer dizer,
todavia, que os indígenas de hoje não sejam autênticos, porque suas
culturas se alteraram há 500 anos. Significa que sua forma de ser
indígena hoje, não é igual ao que fora em tempos pré-hispânicos e a
legitimidade da identidade indígena de hoje não estaria arraigada à
uma continuidade deste passado pré-hispânico”.27
A crítica de Navarrete nos leva a alguns dos limites da leitura desse período
que teria construído uma visão sobre África e diáspora, apontando que:
1) No que se refere ao universo cultural africano, as produções da intelectualidade, a
partir dos anos 30-40, nos trazem uma África, agora sim, produtora de cultura,
dividida em diferentes nações com maior ou menor contato cultural entre si,
possuindo um conjunto de valores sociais e morais que ordenavam suas vidas;
2) Nesse contexto, o drama da diáspora seria superado a partir da re-união dos
indivíduos de mesmas áreas culturais; as semelhanças seriam recriadas pela
26
SANSONE, Lívio. Op cit., p.550. 27
NAVARRETE, F. Las Relaciones Interétnicas. Las Relaciones interétnicas. México, Universidad Nacional Autónoma de México, 2004. p. 14-15.
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memória de vivências anteriores e o produto desse processo, a cultura afro-
americana propriamente dita, seria assim, ora instrumento de resistência cultural
(quando resultado da reprodução do que se vivia lá, em África) ora produto da
aculturação (quando resultado da aceitação de elementos e produtos da cultura
européia).
3) Assim sendo, a cultura afro-americana legítima, seria a reprodução do mundo
africano em terras americanas; nesse processo de reconstrução, por vezes, alguns
princípios europeus, por diferentes motivos, eram somados aos princípios africanos,
nesse caso, o esforço dos pesquisadores era justamente buscar os ingredientes
puramente africanos, presentes nas culturas afro-americanas.28
Durante os anos 70-80, um novo grupo constrói suas reflexões durante um
período em que diferentes movimentos defendiam uma revisão dos limites, dos
excessos e das desigualdades, produzida pela sociedade burguesa.
Nesse contexto histórico de guerra-fria, a diáspora é lida como movimento de
ruptura e recriação (não somente a partir da memória, mas a partir das
necessidades impostas pelo cotidiano), esse pensamento é representado,
fundamentalmente pelo modelo Mintz & Price.
Em O Nascimento da Cultura Afro-americana, Mintz & Price, descrevem sua
versão para os passos que antecederam a formação de uma cultura afro-americana.
Inicialmente, na visão dos autores, o fenômeno da diáspora ganha grande destaque
na compreensão do processo. Diferentemente da geração anterior, não pensam na
dor da diáspora como motor da resistência – no sentido de preservar valores
culturais como um tesouro da memória – mas como um momento que exigiu destes
homens e mulheres a coragem de criar novas soluções para garantir-lhes a
sobrevivência.
Para Mintz, a permanência da África não estaria na reprodução literal de
práticas e instituições, mas sim “numa gramática profunda”, a África estaria na forma
de pensar e de organizar a vida (a África estaria viva na expressão mental e não
exatamente nas representações materiais do cotidiano).
Price insiste que, reconhecer o processo de formação de uma nova cultura
aqui na América não é o mesmo que defender a europeização dos africanos ou
28
Sobre esta discussão, ler também: MATORY, James Lorand. Jeje: Repensando nações e transnacionalismo. Mana – Estudos de Antropologia Social, ano 5, n.1, 1999, 57-80.
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23
acreditar que abriram mão de toda a sua bagagem cultural. Para o autor, tanto
europeus quanto africanos, tiveram que recriar valores sociais e culturais nas novas
terras da América:
Nenhum grupo, por mais bem equipado que esteja, ou por maior que
seja sua liberdade de escolha, é capaz de transferir de um local para
outro, intactos, o seu estilo de vida e as crenças e valores que lhe
são concomitantes. As condições dessa transposição, bem como as
características do meio humano e material que a acolhe, restringem,
inevitavelmente, a variedade e a força nas transposições eficazes.As
vantagens da liberdade, das quais desfrutavam os europeus, não
tinham como garantir um sucesso maior na transmissão cultural,
ainda que a liberdade tenha facilitado em muito a manutenção de
certas formas culturais. 29
Dessa forma, a crioulização seria o processo, pelo qual, africanos (e
europeus) foram construindo novos códigos lingüísticos, éticos, novos laços de
associação, novas estruturas religiosas – a partir do que cada um trazia de sua
cultura somado ao próprio contexto da vida e das relações da sociedade colonial na
América. A principal crítica que se faz ao modelo Mintz & Price é quanto à
supervalorização do “novo” e a pouca ênfase à transposição de práticas e
costumes.30 Portanto, para a nova historiografia, África e diáspora ficariam assim:
1) A África é compreendida como universo de grande heterogeneidade
cultural. Interpretação que também não pode ser superlativada e que recebeu
críticas uma vez que, principalmente no campo da lingüística, enquanto Mintz &
Price viam os escravizados como multidões que não se entendiam – dada à
diversidade lingüística – Thornton insistia na semelhança entre vários idiomas, além
da existência dos pidgins (códigos lingüísticos), entre grupos africanos, que
possibilitariam e facilitariam amplamente a comunicação entre os indivíduos.
29
MINTZ, S. & PRICE, R. O Nascimento da Cultura Afro-Americana. Uma Perspectiva antropológica. Rio de
Janeiro, Editora Pallas e Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2003, pág. 19. 30
Silvia Lara em seu artigo Mulheres Escravas, Identidades Africanas, critica Mintz e Price por “defenderem que o impacto do tráfico atlântico havia sido capaz de destruir identidades pré-existentes, enfatizando a importância de uma nova cultura”. Desafio UFBA. http://www.desafio.ufba.br/gt3-006.html#1, Acessado em. 09/09/2005.
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2) A diáspora seria a ruptura brutal com as identidades individuais e coletivas
dessas pessoas, não significando o esquecimento da cultura africana, mas sim a
necessidade de a partir dela, criar algo novo. Para algumas regiões brasileiras, nas
quais o abastecimento de mão-de-obra escrava era reduzido, a presença dos
valores culturais africanos, seria menor31, enquanto que, em regiões como o litoral
baiano, onde a manutenção do fluxo de escravizados fora intensa, haveria uma
renovação constante da presença africana, possibilitando até mesmo a
adoção/introdução e circulação de objetos cerimoniais, temperos e toda sorte de
instrumentos trazidos da África para um comércio colonial que envolvia senhores,
escravizados, forros e mestiços.
3) O que seria então a cultura afro-americana? Seria uma cultura nascida em
função das necessidades individuais e coletivas da nova condição em que se
encontravam os africanos-americanos e os seus descendentes, o novo status e o
novo mundo exigiam a formação de uma nova cultura que, todavia, não deixava de
ser uma cultura negra, pois, como colocam Mintz e Price, tratar a cultura como um
rol de traços, objetos ou palavras, é perder de vista a maneira como as relações
sociais são conduzidas através dela – e, portanto, é ignorar a maneira mais
importante pela qual ela pode modificar ou ser modificada.
Observada assim, a África e a dispersão de povos africanos teria, de fato,
como propõe Rapport, pontos de contato com a história de fixação, permanência e
transformação de outras culturas diaspóricas.
Estratégias de preservação de valores morais e éticos por meio da
manifestação do religioso, podem ser observados como estratégia de judeus e
também de afro-descendentes, incluindo-se aí, para ambos, até mesmo a questão
da língua que se mantém muito mais na religião do que no cotidiano; a criação de
um fluxo de produtos da terra de origem, gerando uma demanda de mercadorias –
tecidos, palhas, instrumentos, temperos, bebidas é a perfeita descrição do mercado
de Salvador colonial, com seus produtos da Costa dos Escravos.
Hoje, trabalhos como os de Karen Olwig, Robin Law, John Thornton, Costa e
Silva, mostram que o drama da diáspora é composto por uma grande
31
A reflexão de Mintz e Price, O Nascimento da Cultura Afro-Americana. Uma Perspectiva antropológica, se remete principalmente às sociedades que viveram exatamente este contexto de quase inexistência da renovação de contato com a África.
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movimentação; a cultura africana não reside apenas na memória, mas é revificada
pelos chegantes; escravizados, comerciantes, retornados. E, mesmo para aqueles
que estavam na África, a América e o comércio atlântico, tanto representavam o
pesadelo do apresamento, quanto a aventura e a possibilidade de comerciar, fazer
fortuna; representava para aqueles que retornavam à África e de lá, de volta para a
América, a permanência ou o reencontro com novos e velhos parentes.
As ciências humanas tendem hoje a uma leitura da identidade afro-americana
como híbrida, uma vez que assume uma natureza original, que se difere tanto da
matriz branca européia quanto da africana. Acompanhando a análise de Navarrete e
de Rapport, observamos que hoje, a discussão sobre identidade está se
desprendendo de referenciais que polarizam entre permanência e aculturação. Isso
porque, no caso das populações da América, o ser índio, como coloca Navarrete,
não nasce com as civilizações pré-hispânicas, é anterior e, o índio, continuará a ser
índio mesmo com as transformações sofridas por sua cultura no presente. O
nordestino continuará a ser herdeiro da cultura do sertão, do agreste e da primazia
do litoral da cana, mesmo adaptando-se ao mundo urbano das metrópoles do sul. A
identidade não está presa à organização material da vida, ela vai além.
Imaginar que a diáspora atlântica foi a única ruptura entre processos
ancestrais e, outras formas de organização sociais, religiosas ou de trabalho, é o
mesmo que imaginar que a África era de fato, um continente congelado no tempo; é
fundamental entendermos que as culturas africanas passaram por mudanças e
transformações e que, sem dúvida, a diáspora foi a mais forte e violenta de todas,
contudo, o ser africano vai além daquilo que era viver em terras haússa, igbo ou do
reino do Ngolo durante o século XVI. A cultura não pode ser vista como um
marcador de grupos porque ela vai sendo cambiada em função de diferentes
necessidades e processos inerentes aos grupos sociais. Assim, acreditamos que a
diáspora africana deve ser vista como um processo fundador de uma realidade
cultural extremamente complexa, que envolve o mundo colonial das Américas, o
mundo da costa atlântica africana e o mundo do trânsito atlântico, todos eles em
contato, todos eles em transformação.
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Nas palavras de Ulf Rannez, em Fluxos, fronteiras, híbridos32; o que
precisamos entender é que... Em um momento ou outro da história, nós ou nossos
antepassados podemos ter passado pela criolização, mas não estamos envolvidos
eternamente nesse processo, nem o fomos necessariamente no mesmo grau.
Não estamos eternamente envolvidos, porque a certa altura do processo
histórico, que nem seria possível datar, as sociedades híbridas consolidam uma
cultura que, embora formada por elementos distintos, ganha autonomia, funcionando
não mais a partir dos critérios de uma ou outra, mas a partir de sua própria lógica
interna. No caso brasileiro, embora seja comum ouvirmos a expressão: contribuição
africana para a cultura brasileira, seria importante compreendermos que, não se
trata de contribuição, doação que acrescenta um ponto a algo que já existia; não!
Não há cultura brasileira sem a cultura lusitana, ameríndia e africana. A cultura
brasileira tem três “pais”, sem um deles, ela não existiria.
Podemos pensar nas contribuições italianas, japonesas, holandesas, que
tornaram a cultura brasileira mais rica, contudo, não há como pensar em cultura
brasileira se subtrairmos os elementos africanos, indígenas ou lusitanos. Devemos
nos remeter, portanto ao papel da cultura africana na formação da cultura
brasileira.
32
Hannerz, Ulf. Fluxos, fronteiras, híbridos: palavras-chave da antropologia transnacional. Revista Mana, vol 03, n.1, Rio de Janeiro, abril de 1997.
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UNIDADE 3: A CULTURA NEGRA NO BRASIL: AS
DIFERENTES REPRESENTAÇÕES DA AFRICANIDADE
Para pensarmos com clareza sobre a questão da aceitação da cultura e do
indivíduo de origem africana, é fundamental que compreendamos que, o que temos
aqui, como arcabouço cultural, não é a reprodução de padrões, mas a reelaboração
de princípios e valores a partir de um conjunto de experiências e vivências.
Em segundo lugar, é fundamental que tenhamos claro que, embora as
culturas africanas sejam base fundadora da cultura brasileira, a presença africana
torna-se mais visível em alguns aspectos, na mesma medida em que se torna
invisível em outros, embora esteja – de forma mais evidente ou menos evidente –
sempre presente.
Desde a abolição, tanto a presença dos afrodescendentes em alguns
aspectos e espaços da vida social quanto sua ausência total em outros, é
perceptível.
Em seu trabalho Quotidiano e Poder, a professora Maria Odila Leite nos
mostra que, no caso das mulheres, negras e mulatas, libertas, forras ou negras
nascidas livres, o mercado de trabalho era estreito, no que se refere aos tipos de
oportunidades. A mulher negra livre trabalharia no universo doméstico; como
empregada, faxineira, passadeira, cozinheira, ama, dama de companhia, embora
seu espectro de ação fosse quase que unicamente a casa, a demanda por essa
mão-de-obra, principalmente nas cidades, era grande. No caso dos homens, a
situação era ambígua, poder-se-ia ver o homem negro ou mulato em diferentes
atividades, em geral como trabalhador braçal ou ajudante, contudo a demanda era
pequena, preferia-se, na maioria das vezes, o branco.
Essa situação de invisibilidade faria com que, principalmente no caso das artes, a
presença afrodescendente fosse sendo sentida lentamente e com maior destaque
naquelas em que a veiculação dependia somente dos espaços populares; ou seja,
seria entre as classes pobres, nas várzeas, nos terreiros e bares de esquina que a
música, a dança e o esporte daria lugar à expressão das culturas africanas.
Todavia, exteriorizar a identidade africana, a porção africana de nossa cultura
e nossa linguagem, nas primeiras décadas do século, não era uma prática bem
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vinda. Até o final da década de 1910, a abolição ainda era uma realidade muito
recente e os elementos das culturas africanas eram tidos como manifestações
inferiores. Dizia-se: “coisa de gente ignorante, pobre”, “coisa de negro”.
Seria somente na década de 1920, com a influência do pensamento
modernista e as discussões sobre a busca pela brasilidade e o rompimento com os
padrões europeizados, que os princípios e as heranças das culturas africanas
seriam vistos como “preciosos testemunhos de nossa cultura original”.
Nesse modelo de brasilidade original alguns ícones foram erigidos: a cultura
caipira e mameluca, como cultura legítima – no caso de São Paulo - a cultura de
origem africana, nascida nos morros da cidade do Rio de Janeiro e a cultura de
origem africana, presente em Salvador – Bahia. Propomos uma breve análise das
duas últimas, uma vez que, no caso paulista, a presença do elemento africano na
cultura surgida no interior do estado foi pequena.
Para o antropólogo Lívio Sansone, o processo de aceitação da cultura negra,
aqui no Brasil, teria passado por um processo definido por ele como mercantilização.
Para o pesquisador, à medida que foi sendo criada uma demanda por um símbolo
de brasilidade, um elemento cultural que representasse as nossas origens e não a
mimese dos valores e modelos europeus, as manifestações culturais dos grupos
afrodescendentes “ascenderam dos guetos ao estatuto de pedra angular da
representação da brasilidade”33 ; alçadas assim, a categoria de produto para o
consumo das massas.
Nesse contexto, duas cidades eram identificadas como berços das
manifestações culturais que representariam de fato a brasilidade: o Rio de Janeiro,
associada a uma cultura menos africana e mais mestiça e, Salvador, associada a
uma cultura puramente negra.
Entre os anos 20 e 60, a discussão sobre a existência de uma identidade
nacional era muito intensa. Nos anos 30 e 40, principalmente, motivados pelas
questões que envolviam o nacionalismo, intelectuais, jornalistas e mesmo homens
do governo, posicionavam-se reconhecendo tais expressões culturais como
símbolos do Brasil.
33
SANSONE, Livio. Os objetos da identidade negra: consumo, mercantilização, globalização e a criação de culturas negras no Brasil. Mana. [online]. 2000, vol. 6, no. 1 [cited 2007-05-16], pp. 87-119. Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132000000100004&lng=en&nrm=iso>. ISSN 0104-9313. doi: 10.1590/S0104-93132000000100004
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Façamos aqui uma breve pausa, uma retrospectiva do caminho trilhado pelas
formas de compreensão das culturas africanas vistas por nós até aqui: Inicialmente,
ao chegarem em terras americanas, conforme as teorias de Mintz & Price, os
africanos teriam construído um novo universo cultural, profundamente ligado aos
valores e modelos deixados na África, mas ao mesmo tempo, fortemente associado
à realidade e às experiências vividas a partir da diáspora. Essa cultura, não seria
mais puramente africana, mas afroamericana. Durante o período colonial, era
associada, pela Igreja, ao paganismo, à luxúria e ao demônio. Já no século XIX e
início do século XX, com base nas teorias raciais, a cultura afrobrasileira era vista
como manifestação de barbárie. Mas, a partir dos anos 20, com a busca por uma
identidade, por uma brasilidade legítima, artistas e intelectuais, imbuídos pelo
espírito nacionalista do movimento modernista buscavam um símbolo para a cultura
nacional e o negro – e a cultura produzida pelo negro brasileiro – tornou-se esse
símbolo.
No caso do Rio de Janeiro, o carnaval e o samba foram escolhidos, entre os
anos vinte e os anos sessenta, como representantes da brasilidade. Contudo,
embora ambos fossem nitidamente criações dos grupos negros brasileiros, eram
compreendidos – carnaval e samba – como manifestações não puras, uma vez que
o primeiro era a versão negra, a interpretação negra, de uma festividade européia e,
o segundo, uma expressão musical que, àquela data, era fortemente marcada pelo
violão, trazido da música ibérica. De toda forma, o processo de elevação de uma
expressão cultural ao status de representação do coletivo deve ser entendido como
um processo artificial e generalizante, que empobrece o real, uma vez que a cultura
brasileira e, particularmente, a carioca, era reduzida ao samba e ao carnaval.
A umbanda, por sua vez, também era reconhecida pelos antropólogos e
estudiosos do período como manifestação cultural de origem legitimamente africana
– sendo, portanto, ligada às raízes de nossa história – mas tal qual o carnaval e o
samba, a umbanda também era compreendida como uma manifestação da cultura
negra já poluída, branqueada, pois apresentava influências não africanas, ao
agregar elementos do kardecismo e até mesmo do catolicismo popular.
Enquanto as expressões culturais cariocas eram, assim, vistas como
branqueadas, no caso baiano, a relação era oposta. Para os antropólogos, o Rio
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simbolizaria a cultura negra mestiça, enquanto a Bahia simbolizaria a cultura negra
em seu estado puro, plenamente conservada; os terreiros e a culinária, dentre outras
expressões, eram, tal qual o samba e o carnaval, divulgados e comercializados,
porém com o aval de brasilidade legítima. É importante apenas, antes de darmos
seguimento à discussão, lembrarmos que, a idéia de retenção e preservação plena
dos costumes é, hoje, criticada tanto por historiadores da cultura quanto por
antropólogos, uma vez que concebemos identidade e cultura como expressões das
vivências e relações cotidianas somadas às tradições e às memórias individuais e
coletivas.
Mesmo artistas, escritores e músicos do Rio de Janeiro, olhavam a Bahia
como uma fonte de pureza da cultura afro-brasileira. Sobre essa questão, Sansone
explica que:
“No Rio, dos anos 20 aos 50, a cultura negra foi largamente
mercantilizada em torno do Carnaval, enquanto na Bahia,
aproximadamente no mesmo período constituiu-se como uma cultura
religiosa e mercantilizada em torno do universo simbólico do sistema
religioso afro-brasileiro e de seus objetos “africanos”. O candomblé e
as interpretações da cultura negra e da vida social em geral, como
algo que girava em torno desse sistema religioso, foram os
responsáveis, em grande parte, pela posição superior que a Bahia
ganhou na escala Herskovits de africanismo e na América:com o
interior do Suriname e o Haiti, esta foi a região onde supostamente
os traços africanos teriam sido mais retidos. “34
Vários foram os antropólogos que se interessaram pelo estudo da cultura
africana na Bahia, certos de que ali, os costumes centenários de alguns povos
estariam sendo reproduzidos de maneira pura. Melville Herskovits, Franklin Frazier,
Roger Bastides, Pierre Verger, foram figuras fundamentais que, com seus estudos,
respaldaram a criação do Museu Afro-brasileiro da Bahia, que tinha como principal
ponto de exposição de seu acervo, as peças ligadas aos orixás e ao candomblé,
34
SANSONE, Livio. Os objetos da identidade negra: consumo, mercantilização, globalização e a criação de culturas negras no Brasil. Mana. [online]. 2000, vol. 6, no. 1 [cited 2007-05-16], pp. 87-119. Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132000000100004&lng=en&nrm=iso>. ISSN 0104-9313. doi: 10.1590/S0104-93132000000100004
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organizadas, lado a lado com os seus correlativos africanos. Assim, a partir desse
ponto de vista a questão da cultura que busca por uma brasilidade em sua origem
afro-brasileira, na Bahia, ganha um caráter fortemente regional, é a baianidade e
não a brasilidade que surge, como destaca Sansone:
“ Cultura afro-baiana é um termo que geralmente se aplica a uma
definição restrita de cultura com o algo centrado em torno da prática
e dos símbolos do sistema religioso afro-brasileiro que se articula na
culinária (caracterizada pelo uso do azeite de dendê e por uma
associação mágica de cada ingrediente e cada prato com um santo
do panteão do candomblé) e na música de percussão (com cada
batida de tambor destinada a chamar um determinado santo ou
relacionada a uma parte da liturgia do candomblé). Até os anos 70,
nas Ciência Sociais, a cultura afro-baiana era definida como um
fenômeno da classe baixa. Indivíduos da classe média, argumentava
Bastides(1967), só poderiam participar da cultura afro-brasileira pelo
‘princípio de corte’, desenvolvendo uma consciência dupla ou mesmo
uma personalidade dividida, metade branca e metade negra (de
classe baixa). Do contrário, tais indivíduos estariam expostos a
esquizofrenia. Para Bastides e muitos outros (Ramos, 1939; Carneir,
1937), a prática da cultura negra não se podia conciliar com a
mobilidade social ascendente (Figueiredo, 1999) e, mais geralmente,
com a modernidade”.35
Além do candomblé, também as baianas – negras do tabuleiro – e a culinária,
passaram a fazer parte do roteiro de elementos puramente africanos, preservados
no seio da cultura brasileira.
Em meio ao espírito de culto ao corpo e à forma física que toma conta do
mundo, principalmente a partir dos anos trinta36 , a capoeira tornou-se oficialmente a
35
SANSONE, Livio. Os objetos da identidade negra: consumo, mercantilização, globalização e a criação de culturas negras no Brasil, [online]. Op cit,, pp. 87-119. 36
Lembramos que as teorias de supremacia racial e formação de homens perfeitos, defendia amplamente a prática de esportes e da realização de exercícios físicos, o que, no Brasil, iria cuminar na criação da Juventude Brasileira, durante a ditadura de Vargas, órgão que visava a formação física e moral dos jovens, aos moldes da Juventude Alemã de Hitler
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arte marcial brasileira em função de sua origem reconhecidamente afrobrasileira.
Sansone nos descreve o contexto:
“De uma forma que lembra a distinção, formalizada também
naqueles anos, entre a umbanda e o candomblé, a capoeira foi
dividida em duas escolas, com regras, associações e relações
políticas diferentes. A regional era (e ainda é) mais acrobática, rápida
e aparentemente violenta. A angola, por sua vez, sempre se
caracterizou como mais suave, acompanhada de canções que
incluem muitas palavras tidas como de origem africana, mais lenta e
mais estreitamente associada ao auto-conhecimento e à negritude”.
37
37
SANSONE, Livio. Os objetos da identidade negra: consumo, mercantilização, globalização e a criação de culturas negras no Brasil. Mana. [online]. 2000, vol. 6, no. 1 [cited 2007-05-16], pp. 87-119. Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132000000100004&lng=en&nrm=iso>. ISSN 0104-9313. doi: 10.1590/S0104-93132000000100004
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UNIDADE 4: OS ANOS 80. NOVAS PERSPECTIVAS PARA A
BRASILIDADE E PARA A AFRICANIDADE
Retomemos a questão destacando que, se um certo reconhecimento da
presença africana na formação da cultura brasileira surge a partir do desejo de
alcançar a verdadeira identidade nacional, a brasilidade; a partir das pesquisas
retencionas, ou seja, das pesquisas antropológicas que buscavam as
características africanas puramente preservadas, a busca por uma brasilidade
se transforma na busca pela africanidade38, ou seja, pela presença e pela
preservação de manifestações que têm a sua origem no universo de nossos
antepassados, anteriormente à diáspora atlântica. Ou seja, para os
retencionistas, só há brasilidade, se há africanidade e, só há africanidade se o
costume ancestral estiver puramente preservado.
Essa busca por uma africanidade, associou-se à luta por visibilidade e justiça
social, para os grupos de afrodescendentes.
Contudo, segundo Sansone, haveria uma situação paradoxal se formando: se por
um lado as camadas populares consumiam e assimilavam os produtos da cultura
afrobrasileira, por outro, à medida em que se forma uma classe média negra, essa
tenderia a não consumi-los. Ora, uma vez que a construção da identidade está
associada às experiências cotidianas, à medida que passamos a ter uma classe
média formada por negros brasileiros, esses tenderiam a não se identificar com os
produtos culturais associados ao cotidiano e aos valores das camadas populares.
Obviamente, à medida que os afrodescendentes passaram a compor um grupo de
maior poder de consumo, passavam também a desejar consumir produtos culturais
que simbolizam esse status econômico. É o processo natural em uma sociedade
capitalista e burguesa.
Não iremos aqui, discutir se o consumo como prática de identificação social é
ou não uma prática ligada à consciência ou à alienação; nosso objetivo é apresentar
38
Na verdade, a africanidade pode ser compreendida como a manifestação de elementos e princípios da cultura africana, estando eles somados ou não a outros princípios culturais. Como no caso do samba, que traz consigo a percurssão africana e o violão português.
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e por em discussão os mecanismos de funcionamento de nossa sociedade que é
burguesa e capitalista, na qual a cultura também se torna produto de consumo.
Nessa perspectiva, o consumo das várias vertentes contemporâneas da black
music americana, a prática do basquete, a adoção de um padrão de moda ligado
aos grupos negros norteamericanos, são exemplos de modelos e expressões
culturais – ligadas a uma africanidade contemporânea - adotadas pela classe média
afrodescendente nas últimas décadas.
Em relação ao corpo, o cabelo é um bom exemplo de adoção de uma nova
estética.
Nos anos 60, os cabelos crespos eram símbolo de aceitação da negritude.
Isso porque, nas primeiras décadas do século XX, o padrão de beleza exigia,
principalmente das mulheres negras, que tentassem ao máximo, camuflar seus
cabelos crespos, tornando-os esticados. Com a expansão do movimento americano
do Black Power, imagens de James Brown e The Jackson Five, incentivaram a
exposição de grandes cabeleiras crespas, simbolizando o orgulho negro.
Hoje, como num contra-movimento, os jovens negros exigem seu direito de
manterem seus cabelos como bem entenderem. Lisos, crespos, trançados,
coloridos, alongados. Embora os ativistas mais radicais vejam essa tendência como
um branqueamento induzido pelo poder do consumismo, aqueles que defendem a
nova estética questionam: Por que o branco e, principalmente, a mulher branca,
pode pintar, alisar ou encrespar seus cabelos sem perder a identidade e os negros
não? Por que o terno e os cabelos pintados, no branco significam elegância e no
negro significam ‘falta de consciência?
Não podemos cair na tentação de congelar a cultura afro-americana – e
conseqüentemente afro-brasileira – pois, no ensejo de retermos as origens, as
raízes e a essência africana das culturas americanas, caímos no erro de não permitir
aos afro-descendentes que transformem e reconstruam seus símbolos de identidade
e suas expressões culturais. Se a cultura não é um elemento estático, se está
sempre em transformação, não podemos rotular de grupos ancestrais os afro-
descendentes e os indígenas, exigindo deles que permaneçam como acreditamos
que viviam seus ancestrais.
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É importante ainda lembrarmos que, em termos de cultura mercantilizada, é a
industria cultural norte-americana que reabastece o mercado de estilos e produtos
culturais para o público afro, isso porque o acesso aos produtos culturais vindos
diretamente do continente africano, mesmo hoje com a globalização, é muitíssimo
pequeno. Dessa forma, produtos de beleza, roupas, adereços, e mesmo músicas e o
padrão de beleza de celebridades negras, são ditados pela imagem do
afroamericano estadunidense.
A MÚSICA COMO EXPRESSÃO DA IDENTIDADE
Na verdade, os anos 80, trouxeram consigo, não somente a adoção de novos
padrões pelos afrodescendentes de classe média, mas há uma grande
transformação nos modelos culturais também das classes baixas. O funk e o próprio
movimento do poder negro ganharam grande projeção.
Os artistas brasileiros, em sua maioria, sempre lidaram bem com a questão
da fusão de influências, no caso da música não foi diferente. No cenário atual, o pop,
rock, funk, rap, música eletrônica, mesclam-se com nossa tradição, produzindo
tendências como o samba-rock ou o funk carioca.
A importância que a música negra consegue atingir no século XX é
espetacular, tanto em sua variedade, aqui nas Américas – jazz, blues, rhythm and
blues, soul, ska, reggae e, os nossos, o samba, o axé-music, dentre outros – quanto
em sua veiculação e distribuição para todo o mundo. Sem dúvida, em termos de
mundialização da cultura, a música representaria um dos mais bem sucedidos entre
os produtos culturais de expressão estético-comportamental mundializados.
Como foi citado anteriormente, também em relação à música, o acesso à
música popular, ou pop produzida na África de hoje, é praticamente nulo no Brasil,
com exceção de raras gravações de artistas americanos, integrados ao mercado
fonográfico e que abrem espaço para grupos de origem africana – como o álbum
Graceland, editado por Paul Simon, com a participação do grupo Ladysmith Black
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Mambazo39. Em geral, o acesso ao que está sendo produzido na África de hoje, fica
restrito àqueles que viajam para o exterior.
Em termos de música produzida por culturas afro com grande penetração
mundial, o reggae seria hoje um exemplo bastante significativo, uma vez que
representa ao mesmo tempo, uma estética corporal, uma filosofia, um espírito
religioso, uma musicalidade, unindo questões antigas – como a espiritualidade e a
relação com a natureza – e questões extremamente atuais como a emancipação do
negro e fim do preconceito racial.
Mesmo no caso baiano, podemos notar a antiga imagem retencionista se
dissipando e, uma nova cultura afro surgindo; uma cultura que surge com a
necessidade das novas gerações expressarem sua realidade urbana, eletrônica e
atual.
Na década de 70, a juventude afrodescendente de Salvador, funde a
tendência dos instrumentos elétricos do rock à musicalidade do carnaval baiano.
Surgem assim, os blocos afro-carnavalescos como o Ilê Aye, dando início a uma
nova tradição; a partir da invenção dos blocos, o carnaval da Bahia ganharia uma
marca própria, um símbolo de sua identidade afrobrasileira, jovem, alegre, elétrica e
inclusiva. Esse fenômeno que não se reduziria a um fenômeno musical, mas
estético, deu origem a várias outras manifestações atuais ligadas à questão da
identidade, da cidadania e da estética. É o caso dos blocos como o Olodum, que
hoje, tal qual o movimento reggae, não se limita a uma estética musical, mas a uma
postura e uma forma de atuação contra a discriminação e a falta de oportunidade
das comunidades negras carentes.
Produto das mudanças urbanísticas e econômicas sofridas por Salvador nos
últimos 30 anos, como a abertura das avenidas centrais, a implantação do Centro
Industrial de Aratu, do Pólo Petroquímico de Camaçari e da reurbanização do centro
histórico, o movimento dos blocos de carnaval da Bahia, desdobra-se hoje num
movimento de exportação definido como axé-music; uma expressão musical que não
nasce com o intuito de levar mensagens de reflexão, mas única e tão somente o
sentimento de alegria e agradecimento pela vida.
39
Álbum Graceland, de Paul Simon. Warner Music, 2004. O álbum conta com a participação do principal vocalista do grupo Ladysmith Black Mambazo, o cantor sulafricano Joseph Shabalala, que na faixa Homeless, canta em zulu.
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Contudo, apesar da música negra ter alcançado um enorme nível de projeção
mercadológica, não se pode afirmar que, tendo a arte como alavanca, as
comunidades negras tenham se beneficiado a ponto de ascenderem socialmente em
grande número. A ascensão é particularizada, uma vez que, tal qual no caso do
esporte, o sucesso de indivíduos isolados, embora seja exemplar para os jovens que
por aí virão, não se constitui em fenômeno, que provoca transformações
significativas nas relações de dominação.
AÇÃO POLÍTICA E AFRICANIDADE: O MOVIMENTO NEGRO
“(...) extinguir, anular, abolir o complexo de inferioridade (dos mais
escuros); desmoralizar, esclarecer e purificar um falso complexo de
superioridade (dos mais claros) para que, por processo educacional
justo e perfeito, não haja mais no Brasil, um negro ou branco, mas
simplesmente, brasileiro.” (Azevedo, 1952, p. 159)
A organização dos brasileiros afro-descendentes em torno de sua legítima
integração na sociedade, após a abolição, possui uma história longa. Se durante o
período de escravidão, organizaram-se por meio de irmandades religiosas, com a
abolição e a chegada da república, outros seriam os meios de veicularem suas
idéias e se organizarem na luta pela cidadania.
No período do Estado Novo, vários jornais, em São Paulo, se faziam porta-
voz do movimento negro. Em geral, a intenção era dar visibilidade à questão do
preconceito deixando claro que não havia o desejo de um conflito entre brancos e
negros; segundo Silva, o principal foco de atuação desses grupos, àquele tempo,
eram a educação e a solidariedade. Para alguns autores como Hanchard, o espírito
de congregar as demandas do movimento negro às de outros grupos da sociedade
que também desejavam protestar, teria enfraquecido o movimento e tornado mais
lento o processo de definição de um perfil mais objetivo ao movimento.
A crescente urbanização e industrialização pelas quais passavam o país a
partir dos anos 40, tornavam mais visíveis as reações racistas da sociedade branca
e burguesa fazendo com que casos de racismo fossem, com freqüência,
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denunciados pelos jornais do movimento negro; diante disso, era necessário
organizar-se e agir:
“O ano de 1945 foi muito fértil na realização de congressos e
convenções de partidos políticos. Mas, também, houve reuniões,
congressos e convenções da raça negra. Bem ou mal, intencionados,
os líderes negros de São Paulo movimentaram-se, fazendo reviver a
luta que nossos antepassados iniciaram com a campanha da
Abolição”. (Luiz Lobato, Senzala – Revista Mensal para o negro,
1946, p. 14)
“Convém destacar-se – e isso faço com satisfação – que o negro de
Porto Alegre está sendo atacado de uma sede de elevação cultural
que muito nos anima. Não é muito raro encontrar-se jovens pretos
cursando as escolas superiores. E isso é indício muito significativo,
uma recomendação para os negros da cidade. (Heitor Nunes Fraga,
Quilombo, jan/jul.,1949:4)
Lembrando o movimento negro norte-americano, que desde o tempo de
Edward Du Bois, defendia a necessidade de elevar o nível de escolaridade da
população negra para que pudesse ganhar autonomia, aqui no Brasil, na segunda
metade dos anos 40, com a redemocratização, essa também era a tônica: luta
contra o racismo e pelo fim do mito da inferioridade racial.40 O fim da ditadura traria
uma euforia e um sentimento de que era aquele o momento ideal para conquistar
atravessar o estágio da denúncia e alcançar o da implementação real das
reivindicações do movimento:
“É cedo, muito cedo mesmo para se tentar uma apreciação
sociológica ou histórica do importante acontecimento que assinala o
surto, ou melhor, o ressurgimento de livre associação do negro
brasileiro, sufocado durante vários anos pela orientação política que
julgava a opinião pública do país (...) Está-se, portanto no início de
40
Na verdade, já no início dos anos 40, a luta contra a idéia de inferioridade racial já era intensa; em 1941, a Associação José do Patrocínio teria apresentado ao presidente Getúlio Vargas, segundo Joselina da Silva, uma documentação solicitando a proibição dos anúncios discriminatórios contra os trabalhadores negros e seu pedido teria sido atendido catorze meses mais tarde.
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uma campanha formidável à qual se deve dar o caráter de uma
revolução construtiva, no sentido social e político”. Alvorada, janeiro
de 1946, p. 1, São Paulo.)
A principal reivindicação era quanto ao fim do racismo e da desigualdade no
mercado de trabalho onde, tanto homens quanto mulheres de origem negra
encontravam uma forte resistência.
Dessa forma, enquanto em São Paulo organizava-se em 1945 a Convenção
Nacional do Negro, organizava-se também as seguintes associações:
- Cruzada Social e Cultural do Preto Brasileiro;
- Centro de Cultura Luiz Gama;
- Frente Negra Trabalhista;
- Associação do Negro Brasileiro.
Além disso, foram criados jornais como O Alvorada, O Niger, O Novo
Horizonte, O Mundo Novo, A Tribuna Negra e a revista Senzala.(Silva, 2003).
No Rio de Janeiro, nesse mesmo período, ligados ao movimento negro,
surgiram:
- Grupo de Afoxé Associação Recreativa Filhos de Gandhi;
- Teatro Experimental do Negro (que seria levado também para São
Paulo);
- União dos Homens de Cor;
- União Cultural dos Homens de Cor;
- Teatro Popular Brasileiro;
- Renascença Clube;
- Orquestra Afro-Brasileira.
Em Santa Catarina o movimento da segunda metade da década de 40 foi
marcado pela:
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- União dos Homens de Cor;
- Teatro Experimental Negro.
Em Porto Alegra, além do Clube Floresta Aurora, que existia desde o XIX,
surgem:
- Centro Literário de Estudos Afro-Brasileiros;
- Clube Satélite Prontidão.
Em Belo Horizonte, existiam entre outros:
- Turma Auriverde;
- Grêmio Literário Cruz e Souza;
- Associação José do Patrocínio.
Nos anos 50, no Congresso do Negro Brasileiro, apontaria para a criação de
uma Confederação Nacional de Entidades Negras. (Silva, 2003).
O período da ditadura militar faria com que o movimento negro mais uma vez
se visse fundido aos movimentos sociais de esquerda que lutavam por igualdade e
democracia.
O período do regime militar correspondeu a um momento histórico no qual as
organizações do movimento negro se articularam por todo o país. Em São Paulo, o
Grupo Evolução de Campinas, fundado em 71 e o Festival Comunitário Negro
Zumbi, representavam o movimento no interior; enquanto que na capital, o Instituto
de Estudos Afro-Brasileiros, fundado por Abdias Nascimento em 1980, tornou-se
uma referência aos acadêmicos. No Rio de Janeiro o Instituto de Pesquisa da
Cultura Negra, a Sociedade de Estudos de Cultura Negra no Brasil, a sociedade de
Intercâmbio Brasil África, o Grupo de Estudos André Rebouças, dentre outro. Na
Bahia o núcleo Cultural Afro-Brasileiro, O Grupo de Teatro Palmares Iñaron e muitos
outros.
O final da censura e, a denúncia de diversos abusos e violências contra a
população negra fez com que em junho de 1978, diante de denúncias jornalísticas
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sobre a brutalidade policial para com os cidadãos negros, fosse fundado o
Movimento Unificado contra a Discriminação Racial que, após a sua oficialização,
realizou um ato público nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo no dia 7
de julho de 1978. Em julho de 1978 o movimento foi rebatizado para Movimento
Negro Unificado contra a Discriminação Racial e em dezembro de 1979, durante o 1º
Congresso realizado no Rio de Janeiro, passou a chamar-se Movimento Negro
Unificado (MNU), como é conhecido até os nossos dias.
AS AÇÕES AFIRMATIVAS DO GOVERNO
Se no passado, a cultura negra, seus objetos, representações e
manifestações eram alvos de preconceito, hoje, várias dessas manifestações
culturais se tornaram produtos da cultura de massas, todavia, isso não significa que
alcançamos um estágio de igualdade, reconhecimento e respeito pelos brasileiros
negros.
Abusos acontecem todos os dias, direitos são desrespeitados e, grande parte
da comunidade de afro-descendentes ainda encontra muita resistência no momento
em que tentam competir no mercado de trabalho.
Em função disso, o governo procura fazer sua parte por meio de intervenções
legais. Essa atitude não é nova, uma vez que a própria discriminação racial também
não é novidade no Brasil. Um exemplo de medida compensatória efetivada no
passado é a lei de 1968, definida após uma pesquisa do Ministério do Trabalho
ainda durante o período do Regime Militar, que indicava uma crescente
discriminação contra o brasileiro negro no mercado de trabalho. Dizia o relatório:
“Depois de uma pesquisa para estabelecer a percentagem da mão-
de-obra negra, no mercado de trabalho e, destacados os ramos mais
procurados por essa população deveríamos partir para uma lei que
regulasse o assunto (...) Essa lei poderia estabelecer, por exemplo,
que certas empresas seriam obrigadas a manter em seus quadros
20% de empregados de cor; algumas 15% e outras 10%, conforme o
ramo de suas atividades e respectivo percentual de demanda. (Jornal
do Brasil, 05/11/1968, p.3).
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De fato, o que levou o ministério a fazer tal relatório na época, foi o crescente
número de denúncias de casos de racismo e violência contra os afrodescendentes.
Entre situações de impedimento de circulação em lugares que “não aceitavam
negros” a desconfiança quanto a indivíduos negros que não pareciam “ser pessoa
de bem”; até os casos de homens e mulheres que se sentiam no direito de não
atender aos direitos do cidadão negro. Salta-nos aos olhos, porém, o caso de um
menino negro que, na Bahia, foi impedido de brincar num parque por ser negro,
sendo que o vigia que o expulsara também era negro. Chama-nos a atenção por ser
um caso emblemático. Na época – tal qual como hoje – a atitude do vigia resultou
em comentários, na imprensa: “Os negros têm preconceito contra eles próprios”; e
“os negros são mais preconceituosos que os próprios brancos”.
O que casos como esse traz a tona não é somente uma atitude
preconceituosa, mas sim o efeito nocivo causado por centenas de anos de
desigualdade de direitos.
Na verdade, o que os séculos de escravidão e as décadas de teorias de
inferioridade produziram foi um imaginário coletivo no qual o negro aparece como
um indivíduo legitimamente inferior. Provavelmente aquele vigia não deve ter lido as
teorias raciais de Nina Rodrigues ou de Gobineau, mas viveu desde criança em uma
sociedade que através das formas como estavam estruturadas as relações, as
formas como eram apresentados os agentes sociais, a forma como ele próprio fora
tratado, justificavam uma pseudo realidade que, para ele – e para milhares de
brasileiros – parecia verdadeira: “lugar de negro não é aqui”. Segundo a filósofa
Marilena Chauí, a crítica é a única arma contra a alienação. No caso do preconceito
não é diferente. Uma consciência alienada não poderá romper as barreiras do
preconceito.
Uma legião de brasileiros negros, mal escolarizados ou não-escolarizados,
dificilmente teria ferramentas para diferenciar o que é do direito e o que lhe é
imposto pela dominação.
Em suma, a pobreza e a baixa escolaridade acabam se tornando armas para
a manutenção da dominação, da desigualdade e do preconceito, pois sem
conhecimento e compreensão da realidade o indivíduo não tem como saber quando
sofre injustiça e muito menos aonde ir e o que fazer para legitimar seus direitos.
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Hoje, duas ações afirmativas foram realizadas pelo governo com o objetivo de
atingir justamente a questão da formação de uma consciência mais crítica em
relação à questão do preconceito. Uma amplamente aplaudida e, outra, polêmica.
Acredita-se que, parte do preconceito que ainda persiste está ligado ao fato
de que, embora seja de comum acordo que a cultura africana e os povos africanos
são fundadores incontestes da cultura brasileira, nós brasileiros conhecemos pouco
ou mesmo nada, sobre o continente africano e suas sociedades. Como coloca o
antropólogo da Universidade de São Paulo, o Prof. Kabengele Munanga, quando
pensamos em África, o que nos vem à mente é o Tarzan e os animais da floresta...41
O professor Munanga prossegue lembrando que algumas antigas verdades, com os
estudos das últimas décadas, foram derrubadas; como a de que o Brasil teria sido o
último país a abolir a escravidão (Munanga lembra que a Arábia Saudita só a aboliu
em 1962) ou a de que os africanos escravizados eram levados somente para as
América e em pequeno número para a Europa (o professor destaca que países do
Oriente Médio negociavam africanos aprisionados e feitos escravos desde o século
VI e só cessaram esse comércio, oficialmente na metade do século XX, sendo que,
extra-oficialmente, ainda o fazem).42
O desconhecimento da riqueza física, cultural e histórica da África é um dos
grandes trunfos do preconceito. A idéia de raça inferior ainda é alimentada pela
justificativa – oriunda das teorias raciais – de um continente atrasado por culpa de
seu povo inferior. Desconhecer o passado recente dos países africanos e mesmo
dos países asiáticos, só fortalece as antigas teorias que serviram unicamente à
dominação imperialista. Se a nossa república tem 118 anos e justificamos nossos
erros por sermos uma nação jovem, o que dizer das repúblicas africanas que não
completaram sequer seus primeiros quarenta anos de independência?
Uma ação que veio com o objetivo de diminuir o desconhecimento que temos
em relação às culturas africanas e seus povos foi a criação da Lei nº 10.639/2003,
que institui o ensino de História da África e da Cultura Afrobrasileira no Ensino
Fundamental. Inicialmente essa lei causou espanto, pois exigia dos professores que
ensinassem algo que não aprenderam em seus cursos de Licenciatura, e pior, que
41
Ver a fala na íntegra, em entrevista publicada em Ao Mestre com Carinho. http://www.aomestre.com.br/ent/e_kabengele.htm 42
Ao Mestre com Carinho. http://www.aomestre.com.br/ent/e_kabengele.htm
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trabalhassem, inicialmente, praticamente sem material de apoio didático ou
paradidático.
A lei forçou tanto o mercado editorial, quanto as universidades, a produzirem
materiais para a demanda que se criou. Coleções didáticas como História &
Cidadania (2004) e para-didáticos como Os africanos e seus descendentes no Brasil
(2002), ambos de Alfredo Boulos Júnior, foram publicações que como outras que
vieram a seguir, auxiliaram e muito, os professores em sua nova jornada.
Um efeito positivo e que já pode ser sentido nas séries iniciais das escolas
que já trabalham com esses conteúdos é que, embora as crianças cheguem à
escola carregada de idéias preconceituosas e depreciativas sobre as culturas
africanas, à medida que vão aprendendo sobre sua história e sobre a sua
importância para a formação da nossa cultura, forma-se um outro olhar.
A outra ação, que causa polêmica até hoje, é a chamada Lei de Cotas, que
nasceu com o Projeto de Lei 73/99. De lá para cá, vários estados adotaram a política
de cotas em suas universidades estaduais – a de Brasília, Rio de Janeiro e Bahia
são exemplos. Todavia, muito se discute sobre a aplicação da lei para todas as
instituições de nível superior, isso porque se por um lado os defensores do projeto
alegam que por meio das vagas especiais os afrodescendentes oriundos de famílias
de baixa renda, terão uma oportunidade maior para competir no mercado de
trabalho – fazendo crescer uma classe média de brasileiros negros, que poderá
exigir e fazer valer seu direito de cidadãos – por outro, aqueles que são contrários
alegam que a Lei só viria a respaldar a diferença e o preconceito, tratando não com
igualdade, mas com distinção o cidadão brasileiro de ascendência africana, que,
quando advindo de família de baixa renda, deveria, sim receber, em sua formação,
uma educação adequada e de qualidade para que, no momento da disputas de
vagas pudesse competir, não por migalhas, mas com igualdade pelas mesmas
vagas dos jovens de famílias de maior poder aquisitivo. Outros alegam ainda que o
conceito de afrodescendente, num país como o nosso é extremamente vago, uma
vez que, com exceção dos imigrantes do final do XIX e início do XX, entre as
famílias que se formaram, aqui, anteriormente, no período colonial, a ascendência
negra é praticamente uma certeza.
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Seja por um ou por outro argumento, o que devemos levar conosco dessa
longa discussão é que o mundo sofreu grandes transformações, as sociedades e as
relações já não são mais as mesmas que era há cem anos atrás, mas cabe a nós
educadores, fazermos com que alguns antigos conceitos e preconceitos, arraigados
aos imaginários do senso comum, sejam transformados, passem por um processo
de análise crítica, que só pode ser realizado com o auxílio da educação, da
informação e da reflexão.
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REFERÊNCIAS
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