Marcos Barbosa
Volume V – Coleção Uni-Verso e Prosa de Marcos Barbosa
A Rainha Encantada
Viagens oníricas de um Rei após a Terceira Guerra Mundial Um Rei Encantado viaja todas as noites ao outro lado do mundo, na veloci-dade do pensamento
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Prefácio
Por Ester Farias de Oliveira
Tarefa difícil a minha... Elabo-
rar um prefácio para essa obra pri-
ma.
Antes, sinto que tenho a obri-
gação de falar um pouco sobre o au-
tor.
Marcos Barbosa é um parado-
xo. Quem o conhece pessoalmente
entenderia logo o porquê dessa
constatação intrigante.
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Residente em Águas Lindas de
Goiás, sua casa fica em frente à Pra-
ça da Conquista e a Escola Santa Lú-
cia. Marcos exerceu por um curto
período o magistério na Escola JK,
localizada nessa cidade. Em suas
longas caminhadas pelas redonde-
zas, sempre recebe um ou outro
cumprimento carinhoso com a alcu-
nha de “Professor”.
Perguntei a ele porque não
deu continuidade a carreira de ma-
gistério, ao perceber o respeito dos
jovens quando o chamavam de pro-
fessor. Para minha surpresa ele res-
pondeu que não sabe ensinar para
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quem não tem o desejo de aprender
e guarda uma grande admiração aos
professores que desenvolvem essa
capacidade de mover o desejo de
aprendizagem nos alunos.
Marcos faz política sem ser
político; ensina, mas não se autode-
nomina professor; constrói, mas não
é engenheiro; é jornalista, mas não
produz polêmica; é corretor de imó-
veis, mas não tem ambição material.
Essa obra é o espelho de seu
espírito. Um ser que admira outros
seres, respeita a natureza e dá o re-
cado, usando uma técnica eficiente
que penetra na alma do leitor.
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O ser que captar a mensagem
das linhas, entrelinhas, reticências e
três vírgulas (inovação gramatical de
Marcos Barbosa), dessa magnífica
obra terá um contato imediato com
o paradoxo do bem.
A missão de mover uma inqui-
etação auspiciada pelo espírito da
bondade divina é aqui, neste traba-
lho, tão objetiva e cristalina quanto à
própria personalidade do autor.
A Rainha Encantada
A Rainha Encantada beijou o
Rei, como o fazia todos os dias e
acordou sua majestade do sono pro-
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fundo. Ele só acordava assim... Dor-
mia como uma pedra,,, um sono só e
acordava de uma vez, sem sinal de
sonolência com o beijo da rainha
mais amada do planeta.
¬ Sabe de uma coisa?... - Já foi
falando ao Rei como se fosse a con-
tinuação de uma conversa inacabada
um pouco antes - Se nós fôssemos
acreditar em teoria ninguém jogava
água no fogo, porque teoricamente
causaria um incêndio, uma vez que
oxigênio e hidrogênio, que com-
põem a água, são combustíveis.
¬ Parece até que você estava
acompanhando o meu sonho fora
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deste corpo. Deixe-me te contar
uma história... Desde a última guer-
ra,,, catastrófica,,, que destruiu toda
a tecnologia dos países que domina-
vam nosso planeta e instalamos o
nosso reino no menor continente,
toda noite eu visito outros reinos,
repúblicas e tribos sem forma defi-
nida de governo.
¬ Interessante... E como é que
eles administram a coisa pública?
Alguns grupos se tornaram
selvagens, seguindo teorias anar-
quistas e acreditam sinceramente
que a desgraça da humanidade é a
luta pelo poder do homem sobre o
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homem. Aprendo muito observando
os acontecimentos humanos, a natu-
reza se refazendo... etc. Como tenho
o privilégio de não ser visto quando
saio do corpo,,, em sonho,,, posso
observar tudo minuciosamente, mas
não tenho o direito e nem o poder
de interferir no livre arbítrio deles.
¬ Amor, não interrompendo a
sua história, mas o que isso tem a
ver com a água e o fogo? Você não
está desviando o foco?
¬ Calma... Eu vou chegar lá...
Nesta noite eu assisti a caminhada
de uma tribo que vai se encontrar
pela primeira vez com outras tribos.
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Uma delas é formada por jovens me-
tidos a intelectuais, metidos a cien-
tistas, artistas, criados no usufruto
de toda a parafernália tecnológica
que o dinheiro podia comprar. Vivi-
am, antes da catástrofe, uma vida
artificial de luxo tecnológico,,, des-
conhecendo completamente a natu-
reza. Eram, como diríamos em ou-
tros tempos, os filhinhos de papai, ...
Enfim, a elite da juventude hit-tech
antes da catástrofe causada pela
Terceira Guerra Mundial.
¬ Não tinha como evitar essa
Terceira Guerra, Amor? A história
conta que no Terceiro Milênio da Era
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Cristã, aqui na terra fizeram um êxo-
do interplanetário para colonizar
planetas distantes e criar uma civili-
zação pacífica em outros sistemas
solares ... Como é que pôde aconte-
cer esse retrocesso?
¬ Ela foi protelada há milênios
por sábios diplomatas que aparece-
ram misteriosamente, vindos de ou-
tros planetas, para evitar a inevitável
última guerra. – Mas voltando aos
jovens criados sob a égide da tecno-
logia avançada, “hit-tech” eles não
conheciam o fogo em seu estado na-
tural, porque tudo que precisavam
era feito com micro-ondas, raio laser
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e outras fontes de calor que o ele-
tromagnetismo podia proporcionar.
Água,,, então nem se fala! Era um
produto comercial caríssimo, de
composição H2O, útil para beber e
sabiam teoricamente que esse pro-
duto era usado na indústria de ali-
mentos.
¬ Mas como foi o encontro das
tribos essa noite?
¬ Ah! Sim!... Ainda não se en-
contraram, mas deixe-me descrever
a outra tribo. Era composta de cam-
poneses revolucionários e o ajunta-
mento de algumas tribos indígenas
da antiga América do Sul, sendo a
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maioria de índios brasileiros. Seus
costumes alimentares, seus folclo-
res, lendas e crenças foram preser-
vados pelo esforço conjunto de an-
tropólogos e indigenistas.
¬ Meu Rei, como foi o encon-
tro!? - Cobrou a rainha, quase irrita-
da.
¬ Em meu costumeiro passeio
onírico desta noite, eu estava obser-
vando a tribo dos jovens “hit-tech”.
Antes da catástrofe todas as famílias
ricas construíram depósitos subter-
râneos de alimentos não perecíveis,
reservatórios de água e alguns uten-
sílios domésticos e roupas, para so-
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breviverem confortavelmente por
algum tempo no caso de uma grande
guerra. Como a Guerra foi catastrófi-
ca e destruiu todas as cidades com
seus aparatos tecnológicos, estão
discutindo como vão fazer para ad-
quirir alimentos e roupas quando
acabarem as reservas.
¬ Esses meninos estão prepa-
rados pra enfrentar essa situação?
¬ Receio que não... Aquele
grupo que vi à noite é composto por
jovens teóricos, de diversas forma-
ções tecnológicas, mas não sabem
fazer ou consertar nada. Eram acos-
tumados com tudo era plug in play ...
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E agora?... Sabiam apenas trocar
placas de circuito impresso e peças
quando não compravam equipamen-
tos novos. A nova realidade desses
jovens é esta: shoppings destruídos;
cidades arrasadas; 66,6 por cento
de toda a população mundial morta.
Nós, aqueles jovens, os selvagens e
camponeses refugiados nas selvas
fazemos parte dos sobreviventes do
planeta. Somos apenas um terço da
população anterior à última guerra.
¬ Muito bem.... Estou curiosa
pra saber por que Vossa Majestade
associou sua viagem onírica com a
minha descrença nas teorias, exem-
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plificada no paradoxo da água com o
fogo.
¬ Pois bem... Chegou a vez de
satisfazer sua curiosidade. A tribo jo-
vem, de alta tecnologia, “hit-tech”,
não tinha em seus quadros nenhum
físico experimental, nenhum biólo-
go, e muito menos um antropólogo.
Aliás, eles odiavam “esse tipo de
gente”. Antes da guerra, já diziam:
Esse “bicho grilo” não faz parte da
minha tribo, para qualquer pessoa
“não iniciada” na alta tecnologia.
¬ O que isso tem a ver com ...,
interrompeu a Rainha.
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¬ Tem a ver que como eles
não tinham conhecimento das coisas
naturais, principalmente do fogo e
da água, chegaram ao ponto de criar
mecanismos de proteção para dis-
tanciar esses dois elementos porque
temiam uma explosão. Na cabeça
deles é preciso isolar água e fogo.
¬ E como eles estão fazendo
comida?
¬ A comida deles está pronta,
tudo artificial, por um ano estão com
a sobrevivência garantida. Água
também, pois seus pais providencia-
ram um gigantesco reservatório sub-
terrâneo de Água.
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¬ E o fogo para iluminação?
¬ Descobriram na semana pas-
sada, depois de muita leitura vascu-
lhando livros impressos que encon-
traram nas ruinas de uma biblioteca
antiga. Na verdade, um museu. Os li-
vros de papel, velhos, poeirentos,
mofados e desprezados por todos,
agora estavam servindo para reinici-
ar uma nova era.
¬ Descobriram o que meu Rei?
¬ Descobriram que podem fa-
zer fogo usando uma lente de au-
mento, focalizando os raios solares
concentrados sobre papéis, folhas
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secas ou panos velhos. Já estão fa-
zendo fogueiras, e acendendo tochas
para iluminar uma espécie de caver-
na subterrânea de concreto. Mas,
por ignorância, morrem de medo de
aproximar o fogo da água, porque de
acordo com seus poucos conheci-
mentos de química, a água é com-
posta de dois elementos explosivos
ou combustíveis, o Oxigênio e o Hi-
drogênio.
¬ Santa ignorância!
¬ Pelo menos eles estão mais
adiantados que as tribos de antro-
poides, quando na primeira era gla-
cial descobriram o fogo atritando
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madeira ou pedra. Também deram
muita sorte ao encontrar uma lente
convexa nos escombros da cidade.
Mas é como você comentou de ma-
nhã, que oxigênio e hidrogênio do
qual a água é feita, teoricamente
deveriam incendiar na presença do
fogo.
¬ É... Até que é compreensí-
vel... Esses jovens são teóricos e não
conhecem, na prática, a natureza da
água e do fogo. É uma pena que
Vossa Majestade não possa ajudá-
los...
¬ Prosseguindo, a tribo dos fi-
lhinhos de papai preparou uma ex-
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cursão para tentar algum contato
com outros sobreviventes. Nunca ti-
nham visto córregos, lagoas, matas e
foi o que encontraram depois de al-
guns quilômetros de caminhada, já
distantes das ruínas da cidade. Cada
um levava cinco litros de água, mais
uma quantidade equivalente daque-
la comida insossa. Combinaram que
quando tivessem bebido metade da
água e metade da comida corres-
pondente, voltariam para a caverna
de concreto.
¬ Mas pra que levar tanta
Água, se poderiam reabastecer po-
tes e garrafas no caminho, em córre-
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gos e nascentes? Perguntou a Rai-
nha.
¬ Passando por córregos e
rios, todos ficavam estupefatos, Ma-
ravilhados ¬ “Olha aquilo ali!” ¬ “É
parecido com água...” ¬ “mas com
certeza não está preparada para
consumo”... ¬ “Não foi industrializa-
da”... Ao que outro respondia em
tom de arrogância: "Com certeza!
Temos que beber água preparada
para consumo com alta tecnolo-
gia..." E por aí continuavam a cami-
nhada, passando pelas poucas reser-
vas que não foram alvos da guerra e
nem destruídas pela civilização. Um
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membro da tribo deu o alerta “¬ Está
na hora de voltarmos, já bebi meta-
de da minha reserva de água e comi
quase toda a minha ração humana”.
Decidiram voltar para a caverna de
concreto armado.
¬ E não vão encontrar a outra
tribo?
¬ Vou dormir hoje à noite,
embarcar na minha viagem onírica e
amanhã te conto o que aconteceu.
¬ Mas amor V.M. não me dis-
se...
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¬ Calma tenha a paciência de
Rainha e só assim Vossa Majestade
vai inspirar a tranquilidade do Rei.
O Rei foi ao Trono, assinou uns
decretos, despachou com parlamen-
tares fazendo a interferência real
nas leis que estavam sendo prepara-
das por estes, recebeu juízes e auxi-
liou-os em seus julgamentos, ora
aumentando, ora diminuindo penas
e concedendo indultos de acordo
com o Real sentimento de justiça.
Saiu do Trono visivelmente
cansado e foi ao jantar com os Con-
selheiros Reais acompanhado da Ra-
inha. Ela, ansiosa para que o Rei se
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recolhesse aos aposentos, despa-
chou os convidados e se dirigiram
para a Câmara Real.
No Reino Encantado tudo foi
consertado rapidamente depois da
Guerra, tinha energia solar em todas
as casas do Reino e portanto a en-
cantadora rainha seduziu o Rei para
a banheira de hidro-massagem com
água mineral. Descansados e com a
energia desperta, à flor da pele, fo-
ram para a Câmara da Rainha e fize-
ram “aquilo” que todo casal saudá-
vel e normal faz toda noite.
Ao se deitar, já na Câmara do
Rei,,, adormeceu imediatamente,,,
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dormindo como uma pedra. Logo já
estava do outro lado do planeta.
Aqui neste hemisfério deixou seu
corpo adormecido,,, tranquilo,,, res-
pirando o ar puro de uma noite re-
frescante,,, e do outro lado um sol
tropical causticante, nem afetava o
Rei invisível que estava acompa-
nhando o encontro prestes a acon-
tecer.
Invisivelmente sua majestade
acompanhava os dois grupos: Os sel-
vagens e camponeses assessorados
por sociólogos, indigenistas e antro-
pólogos; e os filhinhos de papai,
chiques e avançados numa tecnolo-
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gia que não servia mais para nada,
naquele mundo destruído.
O Rei passou a noite de seu
reino e o dia do outro lado do mun-
do acompanhando tudo. Num ins-
tante passava, na velocidade do
pensamento, de uma tribo para a
outra, acompanhando todos os
acontecimentos, sem interferir, ape-
nas aprendendo.
Na hora combinada para acor-
dar, a Rainha o beijou na testa e o
Rei Encantado acordou.
¬ Então... Como foi sua viagem
onírica, meu amor?
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¬ Foi fantástica! Aqueles bur-
guesinhos mimados levantaram ce-
do, saíram da caverna e caminharam
em outra direção. Sem o saber to-
maram o caminho de uma reserva
indígena, no meio da selva, onde os
camponeses se refugiaram durante a
guerra, com todos os seus convida-
dos. Ali estavam os homens e mu-
lheres mais inteligentes e sábios do
país, os cientistas mais afamados em
todas as áreas do conhecimento
humano. Acompanhei, de outra di-
mensão da natureza, as suas discus-
sões, debates, aulas e palestras, to-
das voltadas para a reconstrução de
uma civilização pacífica.
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¬ E os filhinhos dos milioná-
rios? Fizeram contato?
¬ Quando entraram na reser-
va, viram aquelas índias lindas,
acompanhadas de mulheres brancas,
negras, vermelhas, amarelas, gente
de todas as raças tomando banho e
bebendo aquelas águas cristalinas.
¬ Como assim? Estavam pela-
dos, sem roupa de banho?
¬ Sim... Todo mundo nú...
Mas não foi isso que os chocou, mas
o inusitado da situação. Aqueles jo-
vens só conheciam água rotulada e
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aditivada para usos específicos em
cada situação do dia a dia.
¬ É verdade. O artificialismo
estava distanciando o homem da na-
tureza. – Comentou a Rainha.
¬ Minha Rainha, imagine o
susto daqueles burguesinhos mima-
dos, quando chegaram à aldeia po-
voada por índios, camponeses e in-
telectuais de todas as raças do pla-
neta...
¬ Ai meu Rei... O que aconte-
ceu?
¬ Ao chegarem... – O Rei falou
pausadamente, saboreando a curio-
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sidade da Rainha Encantada - ... Vi-
ram uma criança jogando água numa
fogueira onde os indígenas acaba-
ram de assar uns peixes.
¬ Entraram em desespero...
¬ Desespero é pouco... Saíram
correndo, apavorados, gritando para
todo mundo que as crianças iam in-
cendiar a aldeia e cada um tentava
explicar ao seu modo para indígenas,
camponeses, intelectuais de todas as
categorias... Até os físicos tiveram
que ouvir aqueles absurdos: “– Que
a água era uma substância explosiva,
que era h2o, oxigênio e hidrogênio
etc. e tal” – Enquanto aqueles jovens
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tentavam desesperadamente expli-
car o inexplicável, os aborígenes e
refugiados caiam na gargalhada. Uns
riam, outros vaiavam, debochando
do tom dogmático usado por aque-
les meninos e meninas, tentando en-
sinar o que não sabiam.
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