Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao XXXIX Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao So Paulo - SP 05 a 09/09/2016
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A representao da mdia jornalstica na graphic novel Prsepolis1
Ana Beatriz LEITE DE SOUZA2
Diego dos Santos BARBOSA3
Ricardo Jorge de Lucena LUCAS4
Universidade Federal do Cear, Fortaleza, CE
Resumo
A leitura que os produtos culturais fazem das prticas jornalsticas inserem o ethos da
profisso no imaginrio coletivo da sociedade e servem de reflexo ao campo de trabalho.
Em contraponto aos quadrinhos de super-heris, que criam uma imagem romantizada do
jornalismo, os quadrinhos no-ficcionais trazem um retrato mais prximo da realidade. Este
artigo se propem a analisar a representao da mdia jornalstica na graphic novel
autobiogrfica Perspolis, da quadrinista iraniana Marjane Satrapi. luz da anlise do
discurso (AD), leva-se em considerao o contexto cultural e familiar da autora, pontuais no
que diz respeito s formas de representao adotadas na narrativa.
Palavras-chave
Jornalismo; histria em quadrinhos; ethos; anlise do discurso.
Introduo
A busca pela verdade e exatido e a noo da responsabilidade social em ser os
ouvidos e os olhos remotos do pblico (LAGE, 2011, p. 23) e de seus profissionais
enquanto porta-vozes da opinio pblica (TRAQUINA, 2005, p. 48) so valores que
circundam o ethos jornalstico. Alm de nortear o campo profissional, esses valores so
1 Trabalho apresentado na Diviso Temtica de Jornalismo, da Intercom Jnior XII Jornada de Iniciao Cientfica em
Comunicao, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao.
2 Estudante do 6 semestre do Curso de Jornalismo da UFC. E-mail: [email protected]
3 Estudante do 6 semestre do Curso de Jornalismo da UFC. E-mail: [email protected]
4 Orientador do trabalho. Professor dos cursos de Jornalismo e de Publicidade e Propaganda do Instituto de Cultura e Arte
da Universidade Federal do Cear (ICA-UFC) e do Programa de Ps-Graduao em Comunicao da Universidade
Federal do Cear (PPGC-UFC). Coordenador do projeto de extenso Oficina de Quadrinhos UFC. E-mail:
mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]
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refletidos no imaginrio da sociedade a partir da leitura feita pelos produtos culturais a
respeito da profisso.
Acompanhados do ethos que norteia o jornalismo e tomando como base sua
competncia especfica de fornecer informao sociedade (TRAQUINA, 2008), a
literatura, o cinema, as histrias em quadrinhos e outros diversos formatos de produtos
culturais de massa ajudaram a criar o modelo de jornalista-heri que coloca a profisso
acima de tudo e luta at o fim pela verdade dos fatos (TRAVANCAS, 2003, p. 01).
Nas histrias em quadrinhos, esse modelo aparece, na maior parte das vezes, atravs
da representao do super-heri que, nas horas vagas, trabalha como reprter. Por outro
lado, os quadrinhos no-ficcionais, por possurem um carter referencial, trazem um retrato
mais realista da profisso e ressaltam a ambiguidade existente dentro do campo.
Neste artigo, analisaremos como se d essa representao na graphic novel
autobiogrfica Perspolis, que conta a vida da quadrinista Marjane Satrapi durante a
Revoluo Iraniana e Revoluo Islmica. A reflexo leva em conta a noo de pacto
autobiogrfico proposto por Lejeune (1975), que exige a identidade entre autor, narrador e
personagem, alm da problematizao do mesmo a partir do conceito de cartoon self
(HATFIELD, 2005). Para a anlise em si, levantamos todos os momentos em que a mdia
jornalstica aparece na narrativa e escolhemos trechos especficos de oito captulos da
graphic novel para analisarmos luz da Anlise do Discurso (AD).
Quadrinhos autobiogrficos
A produo de histrias em quadrinhos , muitas vezes, injustamente colocada em
um patamar abaixo da produo literria e de artes visuais. Isso porque, apesar de no poder
ter propriedade reivindicada por nenhuma cultura ou pas especfico (MAZUR E
DANNER, 2014), os quadrinhos se popularizaram ao redor do mundo atravs das tirinhas
publicadas em jornais, geralmente com temticas leves e tom cmico, o que contribuiu para
criar a noo de que so uma leitura destinada para crianas.
Porm, desde os primrdios existiu uma produo alternativa em paralelo
produo de massa, que resultou no surgimento de gneros que ajudam a desconstruir tal
estigma, como, por exemplo, os quadrinhos no-ficcionais e os autobiogrficos. O ano de
1992 foi um grande marco nesse sentido, quando Art Spiegelman ganhou um prmio
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Pulitzer pela graphic novel Maus, a nica HQ a ganhar a famosa premiao, o que ajudou
a popularizar outros quadrinhos que trazem relatos pessoais.
A autobiografia nos quadrinhos segue o mesmo pacto proposto por Lejeune (1975)
autobiografia em prosa: ao contrrio do romance, gnero em que o autor atesta o carter de
fico, os escritos autobiogrficos, ao explicitarem a identidade entre autor, narrador e
personagem, assumem um carter referencial, que diz respeito uma realidade externa ao
texto. Ou seja, a identidade entre autor, narrador e personagem a condio sine qua non
de uma autobiografia (ALBERTI, 1991, p. 75), seja ela em prosa ou em quadros.
Apesar de partilharem do mesmo pacto, as produes autobiogrficas de quadrinhos
e da literatura possuem uma caracterstica primordial diferente. Tal divergncia provm de
um aspecto que diferencial tambm das duas artes no geral: o planejamento visual. Na 9
arte h a presena do cartoon self (HATFIELD, 2005), a representao visual do prprio
autor, que cria uma dualidade entre objetividade e subjetividade.
a explorao grfica dessa dualidade que distingue os quadrinhos
autobiogrficos da maioria das autobiografias em prosa. Diferente
da narrao em primeira pessoa, que trabalha de dentro para fora,
descrevendo eventos como o experienciado pelo autor, os
quadrinhos trabalham ostensivamente de fora para dentro,
apresentando eventos de uma (imaginada) posio de objetividade,
ou pelo menos distncia. (HATFIELD, 2005, p. 115)5
Por permitir um distanciamento crtico caracterstico dos relatos em terceira pessoa,
a presena do cartoon self cria um nvel de identidade entre autor, narrador e protagonista
maior que o alcanado pelo texto escrito. Entretanto, o efeito ambguo e, por mais que
confira objetividade, o cartoon self, assim como o personagem da autobiografia em prosa,
no o autor, mas sim a representao dele por ele prprio criada.
Do ponto de vista da relao entre autor e narrador, teramos uma
identidade clara, assumida, que se manifesta no presente da
enunciao: o autor que escreve aquelas linhas; ele que narra, no
momento presente, a histria. J entre autor e personagem, o que
teramos no constitui identidade, mas, antes, uma relao de
semelhana, uma vez que o sujeito do enunciado (personagem),
apesar de inseparvel da pessoa que produz a narrao (o autor-
narrador est falando dele mesmo), dela est afastado. (ALBERTI,
1991, p. 76)
5 Traduo nossa. Original: "It is the graphic exploitation of this duality that distinguishes autobiography comics from
most autobiography in prose. Unlike first-person narration, which works from the inside out, describing events as
experienced by the teller, cartooning ostensibly works from the outside in, presenting events from an (imagined) position
of objectivity, or at least distance.
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Para Alberti (1991), a partir do momento em que o autor reconstri os
acontecimentos a serem relatados, assume que a relao entre ele e o personagem no so
de identidade, mas sim de semelhana. O cartoon self, portanto, por mais que assuma o
papel do relato em terceira pessoa, estaria apenas promovendo a iluso da unidade do eu
(p. 79), semelhante ao que ocorre com o uso da primeira pessoa na prosa.
No toa, ao estudar poesias autobiogrficas, Combe (2010) defende a aproximao
entre fico e a autobiografia, assim como a existncia de um eu-lrico dentro desta, o que
ele chama de sujeito autobiogrfico ficcionalizado. Para o autor, todo discurso
referencial comporta fatalmente uma parte de inveno ou de imaginao que alude
'fico' (p. 123). Isto no compromete o atestado de realidade proposto por Lejeune,
porm, importante o reconhecimento de que a autobiografia uma construo feita a
partir do ponto de vista do autor.
A representao do jornalismo nos quadrinhos
Os produtos culturais, em suas mais variadas formas, podem ser entendidos como a
cultura falando em voz alta dela ela mesma e, portanto, so espaos vlidos de reflexo
sobre o campo jornalstico (SANSEVERINO, 2015). A literatura e o cinema foram os
principais agentes na criao da imagem que a sociedade possui do jornalista. Mas as
histrias em quadrinhos, enquanto produtos culturais de massa, tambm ajudaram a
construir mitos e romancear atividades e profissionais, como foi o caso da imprensa e dos
jornalistas (TRAVANCAS, 2003, p. 1).
Talvez devido aproximao histrica entre o jornal impresso e o formato dos
quadrinhos, o jornalismo esteve presente em grande parte das principais histrias, em umas
de forma mais direta, como profisso do personagem protagonista, em outras compondo o
background da narrativa. Alm disso, a responsabilidade social do jornalista enquanto
vigilante do poder poltico que protege os cidados contra os abusos (histricos) dos
governantes (TRAQUINA, 2005, p. 48) o aproxima da figura do super-heri.
Clark Kent, o alter ego do principal super-heri americano, o Superman, um
reprter renomado, e mesmo Tintin, personagem criado em 1929 por Herg que no possui
nenhum tipo de superpoder, ganha o carter heroico ao viver suas aventuras como reprter
investigativo. Os dois personagens so o maior exemplo da romantizao do ofcio do
jornalista nos quadrinhos, onde h muitos super-heris jornalistas, mas so poucos os
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super-viles jornalistas (DUTRA, 2003, p. 20). Porm, independente do formato, a
representao da profisso costuma vir acompanhada por uma ambiguidade:
possvel observar verses do jornalismo como quarto poder que
trabalha para a populao, vigiando os demais poderes e garantindo
o bem comum, e como quarto poder perverso, que manipula as
informaes e, consequentemente, a sociedade por meio das
notcias que escolhe divulgar" (SANSEVERINO, 2015, p. 23)
Nos quadrinhos, esse outro lado do jornalismo levantado a partir das histrias de
um outro grande super-heri, o Homem Aranha. Nelas, a imagem do quarto poder
perverso pode ser atribuda ao editor-chefe do Clarim Dirio, jornal para o qual Peter Park
faz trabalhos como fotgrafo, que deseja a todo custo moldar uma opinio pblica negativa
respeito do Homem Aranha. Mas o prprio protagonista, mesmo que carregue os
princpios ticos comuns aos super-heris, tambm no representa o jornalista ideal, j que
se utiliza de sua condio de vida dupla para conseguir material jornalstico.
Por trs dessa imagem est o prprio ethos jornalstico, que determinante no s
para os profissionais do campo e na elaborao da mitologia que encobre a atividade, como
tambm projetado do imaginrio coletivo da sociedade (TRAQUINA, 2003). A
ambiguidade surge porque, ao ocupar um local privilegiado de discurso, que deveria ser
aproveitado tendo em mente a responsabilidade social da profisso, h ao jornalista a
possibilidade de manipulao da realidade.
Os quadrinhos no-ficcionais assumem uma condio referencial que muito se
assemelha ao fazer jornalstico em si e, portanto, retratam a realidade de forma mais
verossmil. Ainda assim, a imagem do jornalismo costuma vir acompanhada da mesma
dualidade. Nosso objeto de anlise, a graphic novel Perspolis, relata um contexto
especfico de uma sociedade autoritria, onde podem ser lidas duas verses da mdia: a que
manipula as informaes, vinculada ao Estado, e quela a qual os cidados podem recorrer
para estarem bem informados, a fonte da verdade.
Perspolis
Perspolis a graphic novel, ou seja, histria em quadrinhos que possui o
tamanho de um livro e foi escrita de modo a ser lida como uma nica narrativa (WEINER,
2005), autobiogrfica da iraniana Marjane Satrapi, publicada originalmente em quatro
volumes pela editora francesa LAssociation, entre os anos 2000 e 2003, e em volume nico
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traduzido pela Companhia das Letras, em 2007, no Brasil, que conta a vida da quadrinista
durante a Revoluo Iraniana e Revoluo Islmica. A histria ganhou ainda uma verso
animada que foi indicada ao Oscar na categoria Melhor Animao, em 2008.
A narrativa do livro pode ser dividida em trs partes. A primeira, onde aparece o
cartoon self da autora ainda criana, aos 10 anos, retrata as transformaes decorrentes do
incio da revoluo, quando o x Reza Pahlevi foi deposto e o Ir foi declarado uma
Repblica Islmica, em 1979. A segunda parte diz respeito adolescncia de Marje, vivida
longe da famlia em um pas estrangeiro, a ustria, com costumes e princpios diferentes
dos seus, perodo no qual passou por uma crise de identidade.
Na terceira e mais breve parte da narrativa, acompanhamos o amadurecimento da
autora, de volta terra natal, e os caminhos profissionais que a levaram pela segunda vez
Europa, especificamente Frana, onde se estabeleceu como ilustradora e quadrinista. Com
traos simples, o que marca a graphic novel o tom intimista, que consegue dar leveza
temas to srios e pesados.
A representao da mdia em Perspolis
A partir de um levantamento, constatamos que a representao da mdia jornalstica
em Perspolis est presente em oito captulos: A Festa, As Ovelhas, A Viagem,
Os F-14, As Joias, O Cigarro, O Legume e A Parablica. Dentre esses,
escolhemos trechos especficos para a anlise. Antes de adentrarmos na dinmica analtica,
contudo, cabem aqui algumas ressalvas e informaes contextuais que auxiliaro na
compreenso geral da anlise.
Na HQ, presenciamos um Ir em guerra. Marjane Satrapi protagonista e autora da
histria vive no perodo descrito com seus pais, estes intelectuais liberais que, como
percebe-se pelo desenrolar da narrativa, ainda mantm alguns vnculos ideolgicos com o
governo anterior. Por essa razo, o ambiente em que a garota se encontra de bastante
esclarecimento cultural. Tambm na poca em questo, a mdia tradicional era controlada
pelo grupo islmico.
Apresentados esses dados, iniciemos o estudo da representao miditica em
Perspolis. Para tal, a estratgia metodolgica principal escolhida para examinar o
material em questo a Anlise de Discurso (AD). Sabe-se que o discurso est diretamente
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relacionado interao entre os sujeitos, uma vez que nele so manifestadas, implcita ou
explicitamente, ideologias, vises ou opinies. O discurso o espao em que saber e
poder se unem, se articulam, pois quem fala, fala de algum lugar, a partir de um direito
que lhe reconhecido socialmente (BRANDO, 2006: 7).
Tomando tal definio como referncia, um exame atento permite perceber que o
jornalismo tradicional divulgado pelo grupo islmico no poder geralmente retratado na
HQ como um informante negativo, manipulador e questionvel, tal como nos exemplos:
Trecho do captulo A Festa (Imagem 1)
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Trecho do captulo As Ovelhas (Imagem 2)
Algumas marcas deixam clara a proposta de retratar o jornalismo como traioeiro.
Esto presentes tanto na representao imagtica da histria ao estarem em contato com
meios de comunicao ou expressando uma opinio baseadas em algo visto na televiso ou
no jornal, as personagens so apresentadas cabisbaixas (Imagem 1) ou desesperadas
(Imagem 2) , como no vocabulrio utilizado nessas situaes. Palavras como ignorncia
e expresses como na TV e a bunda deles evocam o teor opinativo sobre a atividade
jornalstica sustentado pelas personagens da HQ.
Observemos agora os seguintes quadrinhos:
Trecho do captulo A Viagem (Imagem 3)
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Trecho do captulo As Joias (Imagem 4)
Especialmente nessas imagens, podemos notar o reforo que dado ao fato de que a
famlia Satrapi superiormente intelectual e crtica aos outros personagens retratados. O
mesmo encontrado tanto no desdm presente na fala do pai de Marje quando o
noticirio televisivo repassa informaes a respeito da importncia do uso de vu pelas
mulheres (Imagem 3) quanto pela afirmao ao frentista do posto de gasolina de que
praticamente no existe imprensa no pas (Imagem 4).
Levando em conta essas marcas, tem-se, de um ponto de vista dialgico, que um
discurso de manipulao levantado para referenciar o ethos jornalstico na histria.
Segundo Bakhtin (1979;1981), toda linguagem dialgica, o que nos faz concluir que,
nesse dilogo existente entre os diferentes discursos que configuram uma comunidade, uma
cultura ou uma sociedade, o dialogismo um elemento que inaugura a natureza
interdiscursiva da linguagem.
Entre Marjani Satrapi, seus parentes, os amigos de seus parentes e a mdia h,
portanto, uma comunicao dialgica baseada em uma perspectiva assimtrica e
desarmoniosa em ambos os planos de anlise. Por isso, curioso notar o quanto a fala de
Marjane, no ltimo quadrinho da Imagem 2, cria uma ambivalncia entre a fala prpria e o
discurso repassado pelo noticirio televisivo e, consequentemente, incorporado ao discurso
da mesma, fenmeno que Lopez Velasco (2003) descreve como o cumprimento da prpria
utilidade da notcia.
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A notcia um dos eixos norteadores dos parmetros sociais de
normalidade e anormalidade. Ao lidar essencialmente com o que
inesperado, incomum ou perigoso, o jornalismo acaba indicando o
que seria socialmente desejvel, normal ou adequado. De forma
mais ampla, o jornalismo constri sentidos sobre a realidade, em um
processo de contnua e mtua interferncia indo alm, o
jornalismo atua como estruturador do real (LOPEZ VELASCO,
2003, p. 20)
Contudo, h em Perspolis uma emissora que encarada pelos personagens como
a nica fonte segura de informaes sobre o mundo, em contrapartida ao padro
manipulador da mdia islmica: a emissora pblica de rdio e televiso do Reino Unido,
BBC (British Broadcasting Corporation), citada nos excertos:
Trecho do captulo Os F-14 (Imagem 5)
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Trecho do captulo O Cigarro (Imagem 6)
Nesses casos, o discurso transmitido contrrio ao primeiro, questionvel e
traioeiro evidenciado igualmente por marcas lingusticas e imagticas, na mesma
medida englobando tambm componentes estruturais miditicos. Afinal, a BBC, por ser
um veculo de comunicao de outro pas, chancelada como um produto seguro, que
oferece uma viso analtica e verdadeira da guerra que estava acontecendo.
Algumas marcas lingusticas fortes: no primeiro caso, nota-se a utilizao de
expresses como preciso desconfiar dessas notcias (Imagem 5) e Na BBC, logo em
seguida, positivando a imagem da emissora. J no segundo caso, tem-se que as
personagens so sempre retratadas, quando em contato com as notcias da BBC, em xtase,
alegres, vibrantes, ou demonstrando confiana o trao do desenho da autora-quadrinista
evoca todas essas nuances com propriedade.
Tal dicotomia quanto a validade da atividade jornalstica a boa e a m
imprensa encontra prerrogativas de explicao no estudo de Machado (2006).
Entre as grandes problematizaes a serem feitas sobre o
jornalismo, est a relao entre sua natureza pblica e a exigncia
de que seja um lugar de circulao de diferentes saberes sobre os
fatos e o mundo. Assim, somente a pluralidade de perspectivas de
enunciao pode configurar o jornalismo como um campo plural e
representativo da diversidade social (MACHADO, 2006, p. 9)
A descrio levanta consideraes, ento, a respeito da polifonia, ou a capacidade do
jornalismo de abranger o maior nmero possvel de vozes no produto veiculado
sociedade. Em Perspolis, tal caracterstica perpassa o componente estritamente
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jornalstico e reverbera na escolha dos cidados de qual a melhor e mais confivel fonte de
notcias no caso, como mencionado, a BBC.
Simbologias
Tambm relevante destacar que algumas partes do livro se utilizam de fortes
simbologias, e o jornalismo se enquadra nisso. Na parte da histria que se passa no Ir, a
mdia est bastante presente, tanto na TV, como no rdio e no jornal impresso. J no
perodo que se passa na Europa quando Marjane se muda para a ustria a televiso
transmite como que uma miscelnea de temas e assuntos, como evidencia a imagem 7:
Trecho do captulo O Legume (Imagem 7)
O texto da graphic novel tambm se utiliza de simbologias para passar como a
funo social do jornalismo uma das caractersticas de seu ethos , no que toca a informar
a populao europeia, pode gerar pnico nas pessoas.
Trecho do captulo A Parablica (Imagem 8)
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Na imagem acima, mais uma vez presenciamos o senso crtico apurado de Marjane.
Todavia, o foco recai sobretudo no objetivo da mdia iraniana em fazer propaganda contra o
ocidente, destacando o poder do enunciador, entendido como as pessoas de cujo ponto de
vista so apresentados os acontecimentos (DUCROT, 1987, p. 195) e refletindo sobre o
alcance que a voz dessa persona pode gerar no mbito em que se divulga a informao a
partir da monofonia que evoca.
Machado (2006) pondera que quando um mesmo locutor adota posicionamentos
ambguos, o que seria um texto monofnico pode ser, na verdade, polifnico (p.9). Ou
como, neste caso, a empresa jornalstica se utiliza do recurso do pavor para acobertar de
acordo com os personagens o real intento da poltica islmica: causar desassossego no
cotidiano ocidental.
No toa, outro simbolismo utilizado pela histria (Imagem 9) diz respeito forma
encontrada para passar uma mensagem de que uma nova conscincia popular estava se
abrindo devido, principalmente, disseminao do uso das antenas parablicas no Ir.
Resultado: outros veculos jornalsticos estariam disposio das pessoas para que elas
mesmas pudessem emitir opinio a respeito dos fatos. Em suma, abria-se, ali, perspectivas
para a consolidao de um novo ethos jornalstico para as massas.
Trecho do captulo A Parablica (Imagem 9)
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Consideraes Finais
A proposta deste artigo foi analisar a forma como a mdia retratada na graphic
novel Perspolis. Mais que realizar uma descrio de como o jornalismo apresentado na
publicao, averiguaram-se sentidos construdos por instncias jornalsticas quando se est
em um perodo de guerra, das formas de divulgao das informaes em momentos de
turbulncia social, econmica e poltica.
A anlise revelou que na histria em quadrinhos em questo predomina o discurso
de que a mdia islmica especificamente durante a Revoluo Iraniana e Islmica
oferecia populao um recorte parcial do que acontecia no pas e no restante do mundo. A
partir da diferenciao da famlia de Marjane Satrapi, um cl culto e intelectualizado, foi
possvel inferir os sentidos de verdade construdos pela mdia local em contrapartida
emissora britnica BBC, o que refletiu na forma de enquadramento de ambas as fontes de
notcias taxadas pelos personagens como falsa (mdia islmica) e verdadeira (BBC).
No outro lado dessa discusso, aprumou-se o conhecimento a respeito de algumas
simbologias utilizadas pelas principais fontes de notcia para validar o discurso que desejam
passar, refletindo a prpria dinmica de trabalho do Jornalismo, onde a segmentao e a
verticalizao de contedo (o que se deve e o que no se deve ser veiculado) so
componentes basilares para a conservao do ethos de cada empresa, cada canal.
Tal anlise se faz de grande necessidade para compreendermos no apenas como os
diferentes produtos culturais oferecem um panorama conceitual sobre como a mdia
encarada, como tambm para aprofundarmos nossa viso sobre as formas de produo
jornalstica que se perfazem em perodos de guerra. Implicitamente, tentamos responder as
perguntas: Quais estratgias jornalsticas eram utilizadas para divulgar as informaes
naquele perodo? e como esse contedo dialoga com a produo miditica na
contemporaneidade? .
Especialmente sobre a segunda indagao, a resposta que fica, aps a anlise dos
discursos estudados, demonstra que, no importa se nos encontramos em perodos belicosos
ou no: o fato que o Jornalismo possui maneiras prprias, uma linguagem especfica para
comunicar, atendendo interesses particulares sejam eles os da prpria empresa, ou
maiores, em nome da sociedade, como realmente deve ser.
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