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A representação da mídia jornalística na graphic novel “Pérsepolis”1

Ana Beatriz LEITE DE SOUZA2

Diego dos Santos BARBOSA3

Ricardo Jorge de Lucena LUCAS4

Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE

Resumo

A leitura que os produtos culturais fazem das práticas jornalísticas inserem o ethos da

profissão no imaginário coletivo da sociedade e servem de reflexão ao campo de trabalho.

Em contraponto aos quadrinhos de super-heróis, que criam uma imagem romantizada do

jornalismo, os quadrinhos não-ficcionais trazem um retrato mais próximo da realidade. Este

artigo se propõem a analisar a representação da mídia jornalística na graphic novel

autobiográfica “Persépolis”, da quadrinista iraniana Marjane Satrapi. À luz da análise do

discurso (AD), leva-se em consideração o contexto cultural e familiar da autora, pontuais no

que diz respeito às formas de representação adotadas na narrativa.

Palavras-chave

Jornalismo; história em quadrinhos; ethos; análise do discurso.

Introdução

A busca pela verdade e exatidão e a noção da responsabilidade social em “ser os

ouvidos e os olhos remotos do público” (LAGE, 2011, p. 23) e de seus profissionais

enquanto “porta-vozes da opinião pública” (TRAQUINA, 2005, p. 48) são valores que

circundam o ethos jornalístico. Além de nortear o campo profissional, esses valores são

1 Trabalho apresentado na Divisão Temática de Jornalismo, da Intercom Júnior – XII Jornada de Iniciação Científica em

Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.

2 Estudante do 6º semestre do Curso de Jornalismo da UFC. E-mail: [email protected]

3 Estudante do 6º semestre do Curso de Jornalismo da UFC. E-mail: [email protected]

4 Orientador do trabalho. Professor dos cursos de Jornalismo e de Publicidade e Propaganda do Instituto de Cultura e Arte

da Universidade Federal do Ceará (ICA-UFC) e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade

Federal do Ceará (PPGC-UFC). Coordenador do projeto de extensão Oficina de Quadrinhos UFC. E-mail:

[email protected]

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refletidos no imaginário da sociedade a partir da leitura feita pelos produtos culturais a

respeito da profissão.

Acompanhados do ethos que norteia o jornalismo e tomando como base sua

competência específica de fornecer informação à sociedade (TRAQUINA, 2008), a

literatura, o cinema, as histórias em quadrinhos e outros diversos formatos de produtos

culturais de massa ajudaram a criar o “modelo de jornalista-herói que coloca a profissão

acima de tudo e luta até o fim pela verdade dos fatos” (TRAVANCAS, 2003, p. 01).

Nas histórias em quadrinhos, esse modelo aparece, na maior parte das vezes, através

da representação do super-herói que, nas horas vagas, trabalha como repórter. Por outro

lado, os quadrinhos não-ficcionais, por possuírem um caráter referencial, trazem um retrato

mais realista da profissão e ressaltam a ambiguidade existente dentro do campo.

Neste artigo, analisaremos como se dá essa representação na graphic novel

autobiográfica “Persépolis”, que conta a vida da quadrinista Marjane Satrapi durante a

Revolução Iraniana e Revolução Islâmica. A reflexão leva em conta a noção de pacto

autobiográfico proposto por Lejeune (1975), que exige a identidade entre autor, narrador e

personagem, além da problematização do mesmo a partir do conceito de cartoon self

(HATFIELD, 2005). Para a análise em si, levantamos todos os momentos em que a mídia

jornalística aparece na narrativa e escolhemos trechos específicos de oito capítulos da

graphic novel para analisarmos à luz da Análise do Discurso (AD).

Quadrinhos autobiográficos

A produção de histórias em quadrinhos é, muitas vezes, injustamente colocada em

um patamar abaixo da produção literária e de artes visuais. Isso porque, apesar de não poder

ter propriedade reivindicada por nenhuma cultura ou país específico (MAZUR E

DANNER, 2014), os quadrinhos se popularizaram ao redor do mundo através das tirinhas

publicadas em jornais, geralmente com temáticas leves e tom cômico, o que contribuiu para

criar a noção de que são uma leitura destinada para crianças.

Porém, desde os primórdios existiu uma produção alternativa em paralelo à

produção de massa, que resultou no surgimento de gêneros que ajudam a desconstruir tal

estigma, como, por exemplo, os quadrinhos não-ficcionais e os autobiográficos. O ano de

1992 foi um grande marco nesse sentido, quando Art Spiegelman ganhou um prêmio

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Pulitzer pela graphic novel “Maus”, a única HQ a ganhar a famosa premiação, o que ajudou

a popularizar outros quadrinhos que trazem relatos pessoais.

A autobiografia nos quadrinhos segue o mesmo pacto proposto por Lejeune (1975) à

autobiografia em prosa: ao contrário do romance, gênero em que o autor atesta o caráter de

ficção, os escritos autobiográficos, ao explicitarem a identidade entre autor, narrador e

personagem, assumem um caráter referencial, que diz respeito à uma “realidade” externa ao

texto. Ou seja, “a identidade entre autor, narrador e personagem é a condição sine qua non

de uma autobiografia” (ALBERTI, 1991, p. 75), seja ela em prosa ou em quadros.

Apesar de partilharem do mesmo pacto, as produções autobiográficas de quadrinhos

e da literatura possuem uma característica primordial diferente. Tal divergência provém de

um aspecto que é diferencial também das duas artes no geral: o planejamento visual. Na 9º

arte há a presença do cartoon self (HATFIELD, 2005), a representação visual do próprio

autor, que cria uma dualidade entre objetividade e subjetividade.

É a exploração gráfica dessa dualidade que distingue os quadrinhos

autobiográficos da maioria das autobiografias em prosa. Diferente

da narração em primeira pessoa, que trabalha de dentro para fora,

descrevendo eventos como o experienciado pelo autor, os

quadrinhos trabalham ostensivamente de fora para dentro,

apresentando eventos de uma (imaginada) posição de objetividade,

ou pelo menos distância. (HATFIELD, 2005, p. 115)5

Por permitir um distanciamento crítico característico dos relatos em terceira pessoa,

a presença do cartoon self cria um nível de identidade entre autor, narrador e protagonista

maior que o alcançado pelo texto escrito. Entretanto, o efeito é ambíguo e, por mais que

confira objetividade, o cartoon self, assim como o personagem da autobiografia em prosa,

não é o autor, mas sim a representação dele por ele próprio criada.

Do ponto de vista da relação entre autor e narrador, teríamos uma

identidade clara, assumida, que se manifesta no presente da

enunciação: é o autor que escreve aquelas linhas; é ele que narra, no

momento presente, a história. Já entre autor e personagem, o que

teríamos não constitui identidade, mas, antes, uma relação de

semelhança, uma vez que o sujeito do enunciado (personagem),

apesar de inseparável da pessoa que produz a narração (o autor-

narrador está falando dele mesmo), dela está afastado. (ALBERTI,

1991, p. 76)

5 Tradução nossa. Original: "It is the graphic exploitation of this duality that distinguishes autobiography comics from

most autobiography in prose. Unlike first-person narration, which works from the inside out, describing events as

experienced by the teller, cartooning ostensibly works from the outside in, presenting events from an (imagined) position

of objectivity, or at least distance”.

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Para Alberti (1991), a partir do momento em que o autor reconstrói os

acontecimentos a serem relatados, assume que a relação entre ele e o personagem não são

de identidade, mas sim de semelhança. O cartoon self, portanto, por mais que assuma o

papel do relato em terceira pessoa, estaria “apenas promovendo a ilusão da unidade do eu”

(p. 79), semelhante ao que ocorre com o uso da primeira pessoa na prosa.

Não à toa, ao estudar poesias autobiográficas, Combe (2010) defende a aproximação

entre ficção e a autobiografia, assim como a existência de um eu-lírico dentro desta, o que

ele chama de sujeito autobiográfico “ficcionalizado”. Para o autor, “todo discurso

referencial comporta fatalmente uma parte de invenção ou de imaginação que alude à

'ficção'” (p. 123). Isto não compromete o atestado de realidade proposto por Lejeune,

porém, é importante o reconhecimento de que a autobiografia é uma construção feita a

partir do ponto de vista do autor.

A representação do jornalismo nos quadrinhos

Os produtos culturais, em suas mais variadas formas, podem ser entendidos como a

cultura falando em voz alta dela ela mesma e, portanto, são espaços válidos de reflexão

sobre o campo jornalístico (SANSEVERINO, 2015). A literatura e o cinema foram os

principais agentes na criação da imagem que a sociedade possui do jornalista. Mas as

histórias em quadrinhos, enquanto produtos culturais de massa, também ajudaram a

“construir mitos e romancear atividades e profissionais, como foi o caso da imprensa e dos

jornalistas” (TRAVANCAS, 2003, p. 1).

Talvez devido à aproximação histórica entre o jornal impresso e o formato dos

quadrinhos, o jornalismo esteve presente em grande parte das principais histórias, em umas

de forma mais direta, como profissão do personagem protagonista, em outras compondo o

background da narrativa. Além disso, a responsabilidade social do jornalista enquanto

“vigilante do poder político que protege os cidadãos contra os abusos (históricos) dos

governantes” (TRAQUINA, 2005, p. 48) o aproxima da figura do super-herói.

Clark Kent, o alter ego do principal super-herói americano, o Superman, é um

repórter renomado, e mesmo Tintin, personagem criado em 1929 por Hergé que não possui

nenhum tipo de superpoder, ganha o caráter heroico ao viver suas aventuras como repórter

investigativo. Os dois personagens são o maior exemplo da romantização do ofício do

jornalista nos quadrinhos, onde “há muitos super-heróis jornalistas, mas são poucos os

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super-vilões jornalistas” (DUTRA, 2003, p. 20). Porém, independente do formato, a

representação da profissão costuma vir acompanhada por uma ambiguidade:

É possível observar versões do jornalismo como quarto poder que

trabalha para a população, vigiando os demais poderes e garantindo

o bem comum, e como quarto poder perverso, que manipula as

informações e, consequentemente, a sociedade por meio das

notícias que escolhe divulgar" (SANSEVERINO, 2015, p. 23)

Nos quadrinhos, esse “outro lado” do jornalismo é levantado a partir das histórias de

um outro grande super-herói, o Homem Aranha. Nelas, a imagem do “quarto poder

perverso” pode ser atribuída ao editor-chefe do Clarim Diário, jornal para o qual Peter Park

faz trabalhos como fotógrafo, que deseja a todo custo moldar uma opinião pública negativa

à respeito do Homem Aranha. Mas o próprio protagonista, mesmo que carregue os

princípios éticos comuns aos super-heróis, também não representa o jornalista ideal, já que

se utiliza de sua condição de vida dupla para conseguir material jornalístico.

Por trás dessa imagem está o próprio ethos jornalístico, que é determinante não só

para os profissionais do campo e na elaboração da mitologia que encobre a atividade, como

também é projetado do imaginário coletivo da sociedade (TRAQUINA, 2003). A

ambiguidade surge porque, ao ocupar um local privilegiado de discurso, que deveria ser

aproveitado tendo em mente a responsabilidade social da profissão, há ao jornalista a

possibilidade de manipulação da realidade.

Os quadrinhos não-ficcionais assumem uma condição referencial que muito se

assemelha ao fazer jornalístico em si e, portanto, retratam a realidade de forma mais

verossímil. Ainda assim, a imagem do jornalismo costuma vir acompanhada da mesma

dualidade. Nosso objeto de análise, a graphic novel “Persépolis”, relata um contexto

específico de uma sociedade autoritária, onde podem ser lidas duas versões da mídia: a que

manipula as informações, vinculada ao Estado, e àquela a qual os cidadãos podem recorrer

para estarem bem informados, “a fonte da verdade”.

Persépolis

“Persépolis” é a graphic novel, ou seja, história em quadrinhos que possui o

tamanho de um livro e foi escrita de modo a ser lida como uma única narrativa (WEINER,

2005), autobiográfica da iraniana Marjane Satrapi, publicada originalmente em quatro

volumes pela editora francesa L’Association, entre os anos 2000 e 2003, e em volume único

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traduzido pela Companhia das Letras, em 2007, no Brasil, que conta a vida da quadrinista

durante a Revolução Iraniana e Revolução Islâmica. A história ganhou ainda uma versão

animada que foi indicada ao Oscar na categoria Melhor Animação, em 2008.

A narrativa do livro pode ser dividida em três partes. A primeira, onde aparece o

cartoon self da autora ainda criança, aos 10 anos, retrata as transformações decorrentes do

início da revolução, quando o xá Reza Pahlevi foi deposto e o Irã foi declarado uma

República Islâmica, em 1979. A segunda parte diz respeito à adolescência de Marje, vivida

longe da família em um país estrangeiro, a Áustria, com costumes e princípios diferentes

dos seus, período no qual passou por uma crise de identidade.

Na terceira e mais breve parte da narrativa, acompanhamos o amadurecimento da

autora, de volta à terra natal, e os caminhos profissionais que a levaram pela segunda vez à

Europa, especificamente à França, onde se estabeleceu como ilustradora e quadrinista. Com

traços simples, o que marca a graphic novel é o tom intimista, que consegue dar leveza à

temas tão sérios e pesados.

A representação da mídia em “Persépolis’”

A partir de um levantamento, constatamos que a representação da mídia jornalística

em “Persépolis” está presente em oito capítulos: “A Festa”, “As Ovelhas”, “A Viagem”,

“Os F-14”, “As Joias”, “O Cigarro”, “O Legume” e “A Parabólica”. Dentre esses,

escolhemos trechos específicos para a análise. Antes de adentrarmos na dinâmica analítica,

contudo, cabem aqui algumas ressalvas e informações contextuais que auxiliarão na

compreensão geral da análise.

Na HQ, presenciamos um Irã em guerra. Marjane Satrapi – protagonista e autora da

história – vive no período descrito com seus pais, estes intelectuais liberais que, como

percebe-se pelo desenrolar da narrativa, ainda mantêm alguns vínculos ideológicos com o

governo anterior. Por essa razão, o ambiente em que a garota se encontra é de bastante

esclarecimento cultural. Também na época em questão, a mídia tradicional era controlada

pelo grupo islâmico.

Apresentados esses dados, iniciemos o estudo da representação midiática em

“Persépolis”. Para tal, a estratégia metodológica principal escolhida para examinar o

material em questão é a Análise de Discurso (AD). Sabe-se que o discurso está diretamente

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relacionado à interação entre os sujeitos, uma vez que nele são manifestadas, implícita ou

explicitamente, ideologias, visões ou opiniões. “O discurso é o espaço em que saber e

poder se unem, se articulam, pois quem fala, fala de algum lugar, a partir de um direito

que lhe é reconhecido socialmente” (BRANDÃO, 2006: 7).

Tomando tal definição como referência, um exame atento permite perceber que o

jornalismo tradicional – divulgado pelo grupo islâmico no poder – é geralmente retratado na

HQ como um informante negativo, manipulador e questionável, tal como nos exemplos:

Trecho do capítulo “A Festa” (Imagem 1)

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Trecho do capítulo “As Ovelhas” (Imagem 2)

Algumas marcas deixam clara a proposta de retratar o jornalismo como traiçoeiro.

Estão presentes tanto na representação imagética da história – ao estarem em contato com

meios de comunicação ou expressando uma opinião baseadas em algo visto na televisão ou

no jornal, as personagens são apresentadas cabisbaixas (Imagem 1) ou desesperadas

(Imagem 2) –, como no vocabulário utilizado nessas situações. Palavras como “ignorância”

e expressões como “na TV” e “a bunda deles” evocam o teor opinativo sobre a atividade

jornalística sustentado pelas personagens da HQ.

Observemos agora os seguintes quadrinhos:

Trecho do capítulo “A Viagem” (Imagem 3)

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Trecho do capítulo “As Joias” (Imagem 4)

Especialmente nessas imagens, podemos notar o reforço que é dado ao fato de que a

família Satrapi é superiormente intelectual e crítica aos outros personagens retratados. O

mesmo é encontrado tanto no desdém presente na fala do pai de Marje – quando o

noticiário televisivo repassa informações a respeito da importância do uso de véu pelas

mulheres (Imagem 3) – quanto pela afirmação ao frentista do posto de gasolina de que

praticamente não existe imprensa no país (Imagem 4).

Levando em conta essas marcas, tem-se, de um ponto de vista dialógico, que um

discurso de manipulação é levantado para referenciar o ethos jornalístico na história.

Segundo Bakhtin (1979;1981), “toda linguagem é dialógica”, o que nos faz concluir que,

nesse diálogo existente entre os diferentes discursos que configuram uma comunidade, uma

cultura ou uma sociedade, o dialogismo é um elemento que inaugura a natureza

interdiscursiva da linguagem.

Entre Marjani Satrapi, seus parentes, os amigos de seus parentes e a mídia há,

portanto, uma comunicação dialógica baseada em uma perspectiva assimétrica e

desarmoniosa em ambos os planos de análise. Por isso, é curioso notar o quanto a fala de

Marjane, no último quadrinho da Imagem 2, cria uma ambivalência entre a fala própria e o

discurso repassado pelo noticiário televisivo e, consequentemente, incorporado ao discurso

da mesma, fenômeno que Lopez Velasco (2003) descreve como o cumprimento da própria

utilidade da notícia.

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A notícia é um dos eixos norteadores dos parâmetros sociais de

normalidade e anormalidade. Ao lidar essencialmente com o que é

inesperado, incomum ou perigoso, o jornalismo acaba indicando o

que seria socialmente desejável, normal ou adequado. De forma

mais ampla, o jornalismo constrói sentidos sobre a realidade, em um

processo de contínua e mútua interferência – indo além, o

jornalismo atua como estruturador do real (LOPEZ VELASCO,

2003, p. 20)

Contudo, há em “Persépolis” uma emissora que é encarada pelos personagens como

a única fonte segura de informações sobre o mundo, em contrapartida ao padrão

“manipulador” da mídia islâmica: a emissora pública de rádio e televisão do Reino Unido,

BBC (British Broadcasting Corporation), citada nos excertos:

Trecho do capítulo “Os F-14 (Imagem 5)

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Trecho do capítulo “O Cigarro” (Imagem 6)

Nesses casos, o discurso transmitido – contrário ao primeiro, questionável e

traiçoeiro – é evidenciado igualmente por marcas linguísticas e imagéticas, na mesma

medida englobando também componentes estruturais midiáticos. Afinal, a BBC, por ser

um veículo de comunicação de outro país, é chancelada como um produto “seguro”, que

oferece uma visão analítica e “verdadeira” da guerra que estava acontecendo.

Algumas marcas linguísticas fortes: no primeiro caso, nota-se a utilização de

expressões como “é preciso desconfiar dessas notícias” (Imagem 5) e “Na BBC, logo em

seguida”, positivando a imagem da emissora. Já no segundo caso, tem-se que as

personagens são sempre retratadas, quando em contato com as notícias da BBC, em êxtase,

alegres, vibrantes, ou demonstrando confiança – o traço do desenho da autora-quadrinista

evoca todas essas nuances com propriedade.

Tal dicotomia quanto a validade da atividade jornalística – a “boa” e a “má”

imprensa – encontra prerrogativas de explicação no estudo de Machado (2006).

Entre as grandes problematizações a serem feitas sobre o

jornalismo, está a relação entre sua natureza pública e a exigência

de que seja um lugar de circulação de diferentes saberes sobre os

fatos e o mundo. Assim, somente a pluralidade de perspectivas de

enunciação pode configurar o jornalismo como um campo plural e

representativo da diversidade social (MACHADO, 2006, p. 9)

A descrição levanta considerações, então, a respeito da polifonia, ou a capacidade do

jornalismo de abranger o maior número possível de “vozes” no produto veiculado à

sociedade. Em “Persépolis”, tal característica perpassa o componente estritamente

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jornalístico e reverbera na escolha dos cidadãos de qual a melhor e mais confiável fonte de

notícias – no caso, como mencionado, a BBC.

Simbologias

Também é relevante destacar que algumas partes do livro se utilizam de fortes

simbologias, e o jornalismo se enquadra nisso. Na parte da história que se passa no Irã, a

mídia está bastante presente, tanto na TV, como no rádio e no jornal impresso. Já no

período que se passa na Europa – quando Marjane se muda para a Áustria – a televisão

transmite como que uma miscelânea de temas e assuntos, como evidencia a imagem 7:

Trecho do capítulo “O Legume” (Imagem 7)

O texto da graphic novel também se utiliza de simbologias para passar como a

função social do jornalismo – uma das características de seu ethos –, no que toca a informar

a população europeia, pode gerar pânico nas pessoas.

Trecho do capítulo “A Parabólica” (Imagem 8)

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Na imagem acima, mais uma vez presenciamos o senso crítico apurado de Marjane.

Todavia, o foco recai sobretudo no objetivo da mídia iraniana em fazer propaganda contra o

ocidente, destacando o poder do enunciador, “entendido como ‘as pessoas de cujo ponto de

vista são apresentados os acontecimentos’” (DUCROT, 1987, p. 195) e refletindo sobre o

alcance que a voz dessa persona pode gerar no âmbito em que se divulga a informação a

partir da monofonia que evoca.

Machado (2006) pondera que quando um mesmo locutor adota posicionamentos

ambíguos, “o que seria um texto monofônico pode ser, na verdade, polifônico” (p.9). Ou

como, neste caso, a empresa jornalística se utiliza do recurso do pavor para acobertar – de

acordo com os personagens – o real intento da política islâmica: causar desassossego no

cotidiano ocidental.

Não à toa, outro simbolismo utilizado pela história (Imagem 9) diz respeito à forma

encontrada para passar uma mensagem de que uma nova consciência popular estava se

abrindo devido, principalmente, à disseminação do uso das antenas parabólicas no Irã.

Resultado: outros veículos jornalísticos estariam à disposição das pessoas para que elas

mesmas pudessem emitir opinião a respeito dos fatos. Em suma, abria-se, ali, perspectivas

para a consolidação de um novo ethos jornalístico para as massas.

Trecho do capítulo “A Parabólica” (Imagem 9)

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Considerações Finais

A proposta deste artigo foi analisar a forma como a mídia é retratada na graphic

novel “Persépolis”. Mais que realizar uma descrição de como o jornalismo é apresentado na

publicação, averiguaram-se sentidos construídos por instâncias jornalísticas quando se está

em um período de guerra, das formas de divulgação das informações em momentos de

turbulência social, econômica e política.

A análise revelou que na história em quadrinhos em questão predomina o discurso

de que a mídia islâmica – especificamente durante a Revolução Iraniana e Islâmica –

oferecia à população um recorte parcial do que acontecia no país e no restante do mundo. A

partir da diferenciação da família de Marjane Satrapi, um clã culto e intelectualizado, foi

possível inferir os sentidos de verdade construídos pela mídia local em contrapartida à

emissora britânica BBC, o que refletiu na forma de enquadramento de ambas as fontes de

notícias – taxadas pelos personagens como “falsa” (mídia islâmica) e “verdadeira” (BBC).

No outro lado dessa discussão, aprumou-se o conhecimento a respeito de algumas

simbologias utilizadas pelas principais fontes de notícia para validar o discurso que desejam

passar, refletindo a própria dinâmica de trabalho do Jornalismo, onde a segmentação e a

verticalização de conteúdo (o que se deve e o que não se deve ser veiculado) são

componentes basilares para a conservação do ethos de cada empresa, cada canal.

Tal análise se faz de grande necessidade para compreendermos não apenas como os

diferentes produtos culturais oferecem um panorama conceitual sobre como a mídia é

encarada, como também para aprofundarmos nossa visão sobre as formas de produção

jornalística que se perfazem em períodos de guerra. Implicitamente, tentamos responder as

perguntas: “Quais estratégias jornalísticas eram utilizadas para divulgar as informações

naquele período? ” e “como esse conteúdo dialoga com a produção midiática na

contemporaneidade? ”.

Especialmente sobre a segunda indagação, a resposta que fica, após a análise dos

discursos estudados, demonstra que, não importa se nos encontramos em períodos belicosos

ou não: o fato é que o Jornalismo possui maneiras próprias, uma linguagem específica para

comunicar, atendendo interesses particulares – sejam eles os da própria empresa, ou

maiores, em nome da sociedade, como realmente deve ser.

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Referências bibliográficas

ALBERTI, V. Literatura e autobiografia: a questão do sujeito na narrativa. Estudos Históricos. Rio

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