A RESISTÊNCIA NAS RELAÇÕES DE PODER: UM DIÁLOGO
SOBRE O MASSACRE EM MANAUS
Andressa Capistrano Saraiva1
Antônio Carlos do Nascimento Osório2
RESUMO:
No sistema prisional brasileiro, é cada vez mais frequente mortes por conflitos entre presos.
No primeiro dia do ano de 2017, um massacre resultou na morte de 56 presos no Complexo
Penitenciário Anísio Jobim (COMPAJ), em Manaus, no Amazonas. A onda de violência nas
cadeias se espalhou por outras regiões do país. Ao todo, foram 133 mortes em apenas 14
dias, o número de mortes ultrapassou os 111 presos mortos do massacre do Carandiru, em
1992, no estado de São Paulo. Uma vez que a repercussão desses acontecimentos trouxe à
tona o debate sobre as condições do sistema penal brasileiro, o artigo em questão propõe
analisar no massacre em Manaus as relações de poder e as brechas na qual se desenvolvem
atitudes de resistência ao regime de poder posto. No intento de dialogar sobre os recentes
acontecimentos no sistema penal brasileiro, intitulado pela mídia como "crise no sistema
penitenciário", este trabalho sistematiza-se a partir dos três níveis das análises do poder
propostas por Foucault (2004): as relações estratégicas, as técnicas de governo, os níveis de
dominação; além de breves considerações alicerçadas nos direitos humanos acerca do
esquadrinhamento social munido do aprisionamento.
Palavras-chave: Resistência. Relações de poder. Sistema prisional. Massacre.
1 INTRODUÇÃO
Nos sistemas penais brasileiros, é cada vez mais frequente mortes por conflitos entre
presos. No primeiro dia do ano de 2017, um massacre resultou na morte de 56 presos no
Complexo Penitenciário Anísio Jobim (COMPAJ), em Manaus, no Amazonas. Após 17
horas de rebelião, 225 presos conseguiram escapar, dos quais 81 foram localizados. A onda
1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso
do Sul (UFMS). Membro do Grupo de Estudos/CNPq: Estudos e Investigações Acadêmicas nos Referenciais
Foucaultianos (GEIARF). E-mail: [email protected]. 2 Professor Titular dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Psicologia da Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul e, coordenador do Grupo de Estudos e Investigações Acadêmicas nos Referenciais
Foucaultianos (GEIARF). E-mail: [email protected].
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de violência nas cadeias se espalhou pela Região Norte do país. No dia 2 de janeiro, quatro
presos morreram na Unidade Prisional do Puraquequara (UPP), localizada na zona leste de
Manaus. No dia 8 de janeiro, outros quatro presos foram mortos em uma rebelião na Cadeia
Pública Desembargador Raimundo Vidal Pessoa, no centro de Manaus, reativada para
receber presos transferidos do (COMPAJ) após o massacre (GLOBO-G1, 2017)3.
Uma vez que a repercussão desses acontecimentos trouxe à tona o debate sobre as
condições do sistema penal brasileiro, o artigo em questão propõe analisar no massacre em
Manaus as relações de poder e as brechas na qual se desenvolvem atitudes de resistência ao
regime de poder posto4.
São recorrentes discursos denunciativos acerca da realidade social, discursos que não
estão isentos de um interesse político ou econômico. Entretanto, tendo em vista a dinâmica
dessas instituições o processo se dá de modo inverso, como salienta Foucault (1999a), o
funcionamento da prisão fabrica delinquentes ao impor técnicas de controle e punição. Sendo
assim, compreende-se que:
[...] para a prisão, não teria sentido limitar-se aos discursos pronunciados
sobre a prisão. Há igualmente os que vêm da prisão, as decisões, os
regulamentos que são elementos constituintes da prisão, o funcionamento
mesmo da prisão que tem suas estratégias, seus discursos não formulados,
suas astúcias que não são, afinal, as de ninguém, mas que são todavia
vividas, asseguram o funcionamento e a permanência da instituição
(FOUCAULT, 2010b, p. 158).
Como aponta Foucault (2010b), o que se tentaria reconstituir é o emaranhado do
discurso no processo, na história “essa espécie de discurso contra o poder, esse
3 Em consonância aos acontecimentos descritos, no dia 4 de janeiro, duas mortes foram registradas em Patos,
no sertão da Paraíba. Dois dias depois, 33 presos morreram na rebelião de Boa Vista, em Roraima. No dia 12
de janeiro dois morreram na Casa de Custódia de Maceió, e mais dois em Tupi Paulista, no estado de São
Paulo. Em 14 de janeiro, 26 presos morreram na Penitenciária Estadual de Alcaçuz em Nísia Floresta no Rio
Grande do Norte. No mesmo dia, houve mais duas mortes em presídios de Santa Catarina e outras duas em
uma penitenciária na região metropolitana de Curitiba. Ao todo, foram 133 mortes em apenas 14 dias, o número
de mortes ultrapassou os 111 presos mortos do massacre do Carandiru, em 1992, no estado de São Paulo. 4 De acordo com as investigações, a causa das rebeliões e mortes é uma guerra entre uma facção do Amazonas,
e um grupo rival, de cadeias da Região Sudeste, segundo a polícia do Amazonas, José Roberto Fernandes
Barbosa, o “Zé Roberto da Compensa”, chefe da facção que controla o tráfico de drogas na Região Norte do
país, foi quem deu a ordem para o massacre no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (COMPAJ), ao menos
sete presos são apontados como líderes do massacre.
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contradiscurso sustentado pelos prisioneiros ou por aqueles aos quais chamam de
delinquentes, é isso o que conta, e não uma teoria sobre a delinquência”.
Na análise das relações de poder, Foucault busca compreender como estas relações
irão constituir a prática dos discursos, isto é, produzir saberes. As relações de poder
constituem-se como estratégias que visam legitimar um discurso, portanto, legitimar um
saber, neste sentido, o saber jurídico em torno dos indivíduos designados como bandidos. “E
para compreender o que são as relações de poder, talvez devêssemos investigar as formas de
resistência e as tentativas de dissociar estas relações” (FOUCAULT, 1995).
Foucault (1995), propõe que o poder só é exercido sobre sujeitos livres. A relação de
poder e a insubmissão da liberdade não podem ser separadas, é medíocre presumir um
antagonismo entre poder e liberdade, uma vez que a liberdade surge como condição de
existência do poder. Portanto, mais do que um antagonismo entre poder e liberdade, há um
agonismo, uma incitação recíproca e constante de luta.
No intento de dialogar sobre os recentes acontecimentos no sistema penal brasileiro,
intitulado pela mídia como "crise no sistema penitenciário", com as relações de poder
propostas por Foucault, o artigo sistematiza-se a partir dos três níveis das análises do poder:
“as relações estratégicas, as técnicas de governo, os níveis de dominação”, além do
esquadrinhamento social munido do aprisionamento (FOUCAULT, 2010c).
2 ANÁLISES DO PODER EM FOUCAULT
Problematizar a concepção de poder ante as formas de resistências e como se
efetivam no exercício de um poder, compreende uma das questões fundamentais nas análises
de Foucault. As resistências do sujeito são uma recusa a qualquer forma de poder que torna
os indivíduos sujeitados.
A constituição de sujeito em Foucault está intimamente relacionada a noção de poder,
muito embora Foucault não estivesse interessado em formular um conceito pré-concebido
de sujeito. As análises por ele empregadas permitem indagar o poder como um domínio de
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relações estratégicas, relações que visam o controle de uns sobre os outros, e que para isso
se utilizam das mais diversas técnicas.
Tendo como objeto de análise as relações de poder, Foucault propõe a
intransitividade da liberdade, isto é, relações de poder implicam em formas de resistência,
são as relações de poder que legitimam o poder, na força das ações de uns sobre os outros.
Podemos também falar de estratégia própria às relações de poder na
medida em que estas constituem modos de ação sobre a ação possível,
eventual, suposta dos outros. Podemos então decifrar em termos de
“estratégias” os mecanismos utilizados nas relações de poder. Porém, o
ponto mais importante é evidentemente a relação entre relações de poder e
estratégias de confronto. Pois, se é verdade que no centro das relações de
poder e como condição permanente de sua existência, há uma
“insubmissão” e liberdades essencialmente renitentes, não há relação de
poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem inversão eventual;
toda relação de poder implica, então, pelo menos de modo virtual, uma
estratégia de luta, sem que para tanto venham a se superpor, a perder sua
especificidade e finalmente a se confundir (FOUCAULT, 1995, p. 248).
Os conceitos de práticas de si e cuidado de si, extraídos da antiguidade greco-romana,
foram imprescindíveis para Foucault (2010a) analisar o modo pelo qual o sujeito se constitui
ativamente na sociedade. Termos estes relacionados aos jogos de verdade, em outras
palavras, consiste nas formas de se posicionar como sujeito, transformando-se diante de
valores instituídos como a loucura, o crime e a sexualidade. A resistência manifesta-se em
práticas de si, na qual o sujeito exerce uma relação consigo mesmo, promovendo uma
transformação e produzindo novos jogos de verdade.
Para observar as formas de resistência, consideremos as rebeliões nas prisões
brasileiras, e que mais recentemente trazem um dado importante, segundo Salla (2006), com
as rebeliões, muitos presos são mortos e ao contrário do que se cogita, as mortes não ocorrem
por ação policial, mas em geral por conflitos internos ou mesmo disputas entre grupos
criminosos.
Assim, além de denunciarem condições precárias de encarceramento que
continuam a predominar no Brasil, as rebeliões têm revelado uma baixa
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capacidade do Estado em controlar a dinâmica prisional, em fazer valer
princípios fundamentais de respeito à integridade física dos indivíduos
presos, permitindo que grupos criminosos imponham uma ordem interna
sobre a massa de presos (SALLA, 2006, p. 277).
Em meados dos séculos XVI e XVII irrompe saberes e práticas com o intuito de
exercer o governo da vida humana, os quais Foucault denomina como biopolítica. Deste
período em diante, os regimes de governo terão como prioridade administrar com eficiência
as potencialidades da vida humana. "No contexto das técnicas de governo, a vida humana
foi percebida como uma potência essencial ao poder do Estado e do mercado" (RUIZ, 2012).
Com precisão, Ruiz (2012), pontua as novas técnicas de governo político que se
desenvolveram por meio das mais variadas práticas discursivas, tais como a medicina social,
o urbanismo, a segurança e a economia. A preocupação dos discursos modernos desses
saberes está em governar a vida humana, onde cada área desenvolveu técnicas distintas para
intervir sobre parcelas da vida humana. As técnicas de governo objetivam sujeitos vivos que
devem ser cuidados como pacientes, vigiados por segurança, ordenados por urbanismo,
controlados pelos impostos e treinados como recursos produtivos.
Todos esses espaços se caracterizam pelas inovadoras técnicas de governo
e também por serem espaços produtores de verdades. Cada espaço
produziu verdades e discursos sobre os sujeitos e a vida a ponto de produzir
os sujeitos desses espaços e o seu modo de vida. O manicômio produziu
discursos sobre a loucura, mas também construiu o louco: o padrão de
normalidade e a loucura que levou a definir os sujeitos. A prisão criou
verdades sobre o criminoso, seu controle e vigilância, ao ponto de induzir
um modo de subjetivação pela disciplina do panoptismo. As técnicas de
governo se tornaram também modos de subjetivação e espaços criadores
de verdades (RUIZ, 2012).
As relações de poder são intrínsecas à vida em sociedade, estas aglutinam os jogos
estratégicos que compõem seja relações familiares, amorosas ou informais. Nessas relações
estratégicas são constituídas as técnicas de governo como forma de operacionalizar
condutas. Ressalta-se que as técnicas de governo não são em absoluto intoleráveis, ainda que
seu processo possibilite o regulamento e a manutenção de estados de dominação, estes sim
intoleráveis, visto que nessas circunstâncias os sujeitos, objetos das relações de poder,
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encontram-se desprovidos de meios para enfrentar a conduta daqueles que as exercem, ou
seja, relações cristalizadas. No entanto, o exercício do poder não é uma dominação unilateral,
que atravessa a sociedade em toda sua extensão, senão uma relação recíproca resultante do
encontro entre as técnicas de dominação exercidas sobre os outros e as técnicas de si, que o
indivíduo pode mobilizar para seu proveito (MARTINS, 2013).
Análogo as proposições indicadas no decorrer do artigo, reitera-se que o poder só
pode ser exercido sobre sujeitos livres. Por sujeitos livres, Foucault (1995) compreende
sujeitos individuais ou coletivos que têm diante de si uma gama de possibilidades em que
diversas condutas, reações e modos de comportamento podem tomar lugar. Tal
posicionamento de Foucault demarca em seu pensamento a distinção entre relações de poder,
relações de violência e estados de dominação. Estes dois últimos seriam relações fixas e
cristalizadas, onde não admitiria a pluralidade que encontramos nas relações de poder.
Nas relações de poder, o que se busca é o domínio, e esse domínio é marcado pelo
controle. No sistema penal este controle é exercido pelas técnicas de governo, no qual este
sujeito encarcerado tem destino certo, o assujeitamento.
As rebeliões nos presídios brasileiros que culminaram na morte de aproximadamente
133 presos, mobilizaram um arsenal de dispositivos por parte do governo, na tentativa de
conter as brechas que margeiam as relações de poder.
Para apreender a questão do sujeito, a partir de instituições como a prisão, que fazem,
de certos sujeitos, objetos de saber e de dominação, há que se questionar toda essa tecnologia
do poder investida sobre o corpo e produzida por discursos da psicologia, da psiquiatria, da
criminologia, da sociologia, da psicologia social, etc. Discursos que não passam de
instrumentos para assegurar o funcionamento e a permanência da instituição-prisão, o corpo
entra em um tipo de maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe
(FOUCAULT, 1999b, 2010b, 2010c).
Como principais medidas para mitigar o fracasso das prisões, o Fundo Penitenciário
Nacional (FunPen) repassou R$ 1,2 bilhão aos fundos penitenciários estaduais. Cada estado
brasileiro recebeu pouco menos de R$ 45 milhões, cerca de R$ 32 milhões para a construção
de novos presídios e aproximadamente R$ 12 milhões para equipamentos. Ainda como
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medida emergente, os possíveis líderes da rebelião em Manaus foram transferidos para
presídios federais.
Entretanto, sem dúvida, evidencia-se como providência mais significativa pelo
Governo o lançamento do Plano Nacional de Segurança Pública (BRASIL, 2017), este
contendo três pontos principais: a racionalização e modernização do sistema penitenciário;
o combate integrado às organizações criminosas transnacionais, como tráfico de drogas e
armas; a redução dos homicídios dolosos, do feminicídio e violência contra a mulher. O atual
Presidente da República autorizou a construção de cinco novos presídios federais de
segurança máxima em cada uma das regiões brasileiras.
Não obstante, 100 homens da Força Nacional de Segurança Pública foram enviados
para Manaus e Boa Vista, sem contar o auxílio despendido a sete estados (Acre, Roraima,
Amazonas, Tocantins, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Rondônia).
Em vista da situação alarmante que se encontram os presos provisórios no Brasil, em
uma integração entre o Ministério da Justiça e Cidadania e a Defensoria Pública, será criada
uma força-tarefa para analisar a situação dos presos provisórios no estado do Amazonas,
como forma de procurar reduzir a população carcerária no estado, tanto que 432 presos
provisórios foram libertados no mutirão.
O Ministério da Justiça e Cidadania anunciou ainda a criação de um Grupo Nacional
de Intervenção Penitenciária formado por agentes penitenciários cedidos pelos Estados para
atuarem nos presídios brasileiros para a contenção e solução de problemas.
Diante das infindáveis medidas empreendidas pelo Governo como forma de mascarar
um problema e não chegar a uma solução de fato, tomemos o questionamento proposto por
Foucault:
Mas talvez devamos inverter o problema e nos perguntar para que serve o
fracasso da prisão; qual é a utilidade desses diversos fenômenos que a
crítica, continuamente, denuncia: manutenção da delinquência, indução em
reincidência, transformação do infrator ocasional em delinquência. Talvez
devamos procurar o que se esconde sob o aparente cinismo da instituição
penal que, depois de ter feito os condenados pagar sua pena, continua a
segui-los através de toda uma série de marcações (1999b, p.226).
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Segundo Foucault (2008b), é absolutamente possível, analisar a prisão a partir das
funções ideais que se espera dela – quer seja castigar, ressocializar, restabelecer a ordem,
enfim – e a partir disso, traçar quais funções foram, de fato, desempenhadas, ou seja,
estabelecer o que era previsto e o que foi efetivamente alcançado enquanto finalidade da
prisão. Porém, ao analisá-la pela tecnologia do poder disciplinar, a recolocamos em uma
economia geral de poder5. A essa questão, o autor discorre:
[...] se percebe que a história real da prisão sem dúvida não é comandada
pelos sucessos e fracassos da sua funcionalidade, mas que ela se inscreve
na verdade em estratégias e táticas que se apóiam até mesmo nos próprios
déficits funcionais. Portanto: substituir o ponto de vista interno da função
pelo ponto de vista externo das estratégias e táticas (FOUCAULT, 2008b,
p. 158).
Considerando o exposto, a prisão é uma organização demasiado complexa para que
se reduza a funções puramente negativas de exclusão; seu custo, sua importância, o cuidado
que se emprega para administrá-la, as justificações que se tenta dar, tudo isso parece indicar
que ela possui funções positivas.
Historicamente, a prisão precede à sua recorrente utilização nas leis penais. Ela se
constituiu antes, por todo o tecido social, em processos para repartir os indivíduos, fixá-los,
distribuí-los e classificá-los nos aparatos sociais, de modo a formar sobre esses indivíduos
um saber que se acumula e se centraliza, e assim, por meio de um trabalho preciso sobre seu
corpo, torna-los dóceis e úteis (FOUCAULT, 1999b). Nesse sentido, a prisão surge como
instituição apenas no início do século XIX, quase sem justificação teórica (FOUCAULT,
2005a).
Sendo assim, instituições como a prisão, têm por finalidade não excluir, senão, fixar os
indivíduos a um aparelho de normalização. Nas palavras de Foucault (2005b):
5 É expressa pelas tecnologias de segurança: “série de técnicas de vigilância, de vigilância dos indivíduos, de
diagnóstico do que eles são, de classificação de sua estrutura mental, da sua patologia própria, etc.”
(FOUCAULT, 2008a, p. 11).
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[...] mesmo se os efeitos das instituições são a exclusão do indivíduo, elas
têm como finalidade primeira fixar os indivíduos em um aparelho de
normalização dos homens. A fábrica, a escola, a prisão ou os hospitais têm
por objetivo ligar o indivíduo a um processo de produção, de formação ou
de correção dos produtores. Trata-se de garantir a produção ou os
produtores em função de uma determinada norma (p. 114).
Desse modo, as instituições representam o espaço de entrecruzamento das relações
de saber e poder e utilizam mecanismos disciplinares que visam, tornar os corpos dóceis.
Foucault (1999b), apresenta a noção de “docilidade” como um mecanismo que une ao corpo
analisável o corpo manipulável. É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser
utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado. A disciplina fabrica corpos moldáveis,
ela é a técnica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como
instrumentos de seu exercício.
Ainda que para disciplinar esses corpos – visando alcançar certa normalidade – seja
necessário o uso da força e da violência, a sociedade não o rejeita, pelo contrário, legitima
essas práticas:
No grande panoptismo social cuja função é precisamente a transformação
da vida dos homens em força produtiva, a prisão exerce uma função muito
mais simbólica e exemplar do que realmente econômica, penal ou
corretiva. A prisão é a imagem da sociedade e a imagem invertida da
sociedade, imagem transformada em ameaça (FOUCAULT, 2005b,
p.123).
O panoptismo reflete uma das características da nossa sociedade, na qual os
indivíduos são vigiados, punidos e normatizados. O efeito mais significativo do panóptico6
é provocar nos indivíduos um estado consciente e constante de visibilidade que garanta a
execução automática do poder (FOUCAULT, 1999b).
6 Modelo arquitetônico idealizado em 1785 pelo filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham “o panóptico é um
local privilegiado para tornar possível a experiência com homens, e para analisar com toda certeza as
transformações que se pode obter neles. O Panóptico pode até constituir-se em aparelho de controle sobre seus
próprios mecanismos. Em sua torre de controle, o diretor pode espionar todos os empregados que tem a seu
serviço: enfermeiros, médicos, contramestres, professores, guardas; poderá julgá-los continuamente, modificar
seu comportamento, impor-lhes métodos que considerar melhores” (FOUCAULT, 1999b, p. 169).
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A potência da prisão está justamente, na permanente capilaridade que a alimenta e a
esvazia, ela prevalece por conta de todo um sistema que engole, cuspe, aspira, despeja esses
sujeitos (FOUCAULT, 2010b).
A instituição prisão é, de longe, um iceberg. A parte aparente é a
justificativa: "É preciso prisões porque há criminosos." A parte escondida
é o mais importante, o mais temível: a prisão é um instrumento de repressão
social. Os grandes delinquentes, os grandes criminosos não representam
5% do conjunto dos prisioneiros [...] A maior parte das pessoas ignora isso,
pois justifica-se sempre a existência das prisões pela existência dos grandes
criminosos (FOUCAULT, 2010b, p. 9).
Por outro lado, eliminar a prisão não significa resolver o problema, longe disso, os
mecanismos se reinventam, e a marginalização realizada pela prisão, seria então efetivada
por outros meios (FOUCAULT, 2013).
Rebouças (2015), aponta para as questões atuais na luta por direitos humanos, de
modo a pensar outras concepções de subjetividade, empreendida com base no referencial
foucaultiano que revelam esse sujeito em seus interditos: loucura, delinquência e
sexualidade.
Pôr alguém na prisão, mantê-lo em prisão, privá-lo de alimento, de
aquecimento, impedi-lo de sair, de fazer amor etc., é bem essa a
manifestação de poder mais delirante que se possa imaginar (FOUCAULT,
2010b, p. 41).
Não há método para compreender o que ocorre nas prisões brasileiras que não
atravesse, direta ou indiretamente, as mesmas problemáticas levantadas por Foucault:
A prisão é a eliminação física das pessoas que saem dela, que morrem nela,
às vezes diretamente, e quase sempre indiretamente, uma vez que elas não
podem mais encontrar um emprego, não têm nenhum meio de subsistência,
não podem mais reconstituir uma família. E, a força de passarem de uma
prisão a uma outra, de um crime a um outro, elas acabam por serem de fato
eliminadas fisicamente (FOUCAULT, 2010b, p. 139).
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Rebouças (2015) argumenta que para lidar com a hiperinflação de discursos sobre
direitos humanos, esvaziados, sobretudo, da capacidade de transformação social e
emancipação dos sujeitos envolvidos, negando-se nas condições concretas de existência, à
maior parte dos sujeitos, qualquer identificação com elementos deste discurso de direitos e
de condição humana, é preciso problematizar de que sujeito se fala e que sujeito se deseja
constituir quando se trata de enunciar direitos humanos.
Em seu manifesto: Os direitos do homem em face dos governos (2010e), Foucault
chama a sociedade para a luta por direitos humanos, luta esta que deve escapar de discursos
ingênuos, como ele cita na sua experiência enquanto militante:
A experiência mostra que se pode e se deve recusar o papel teatral da pura
e simples indignação que nos propõem [...] A vontade dos indivíduos deve
inscrever-se em uma realidade de que os governos quiseram reservar-se o
monopólio, esse monopólio que é preciso arrancar pouco a pouco e a cada
dia (FOUCAULT, 2010e, p. 370).
Segundo o autor, é necessário transgredir e sair do campo das tentativas, embora, o
discurso da segurança apareça como argumento para legitimar práticas que visam manter
esses sujeitos confinados o máximo de tempo possível, por representarem para a sociedade
um perigo permanente. Política do encarceramento que fez aumentar a população dessas
instituições, bem como, a violência (FOUCAULT, 2010d).
Foucault (2010d, 2010f), destaca que na atualidade, essa população é julgada como
“categoria de indivíduos a ser eliminada definitivamente (pela morte ou pela prisão)”. No
entanto, a prisão não é alternativa à morte, ela traz, em verdade, a morte consigo. Pois, contra
a violência na e da prisão, os presos só têm seus corpos para se defenderem e seus corpos a
proteger. É de vida ou de morte que se trata as prisões.
3 BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DO ESQUADRINHAMENTO SOCIAL
MUNIDO DO APRISIONAMENTO
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A prisão é uma organização demasiado complexa para que se a reduza a funções
puramente negativas de exclusão; seu custo, sua importância, o cuidado que se emprega para
administrá-la, as justificações que se tenta dar, tudo isso parece indicar que ela possui
funções positivas. A questão torna-se então indagar-se sobre qual o papel que a sociedade
faz seu sistema penal desempenhar, qual o objetivo buscado, quais os efeitos produzidos por
todos esses procedimentos de punição e encarceramento.
Pensar o sujeito na perspectiva foucaultiana significa entender que ao mesmo tempo
que este sujeito é objeto, ele também é detentor do conhecimento, uma vez que para
Foucault, o sujeito se constitui pelos jogos de verdade aos quais se encontra assujeitado, com
brechas para a manifestação da liberdade, possibilitando assim, romper com tal lógica. Em
outras palavras, este só é sujeito na liberdade de fazer escolhas, isto é, nas práticas de si. Para
que isto seja possível, é preciso dar voz a esse sujeito, rompendo com a sobreposição de
saberes que apenas visam rotulá-lo.
O princípio do sistema penal, em teoria, é a ressocialização do preso. Entretanto, esta
proposição é falaciosa, embora executada pelo discurso do encarceramento, não é efetiva,
não é real. Sabe-se, a partir de Foucault, que o funcionamento da prisão produz criminosos,
indivíduo preso ao crime e condenado a ser criminoso para sempre, isto é, condenado a ser
útil para o Estado.
Ainda que se constate a ineficácia do sistema penal, vislumbra-se como principais
medidas do governo para estancar um massacre que durante semanas perdurou os noticiários
de todo país, a construção de mais presídios, bem como técnicas mais sofisticadas de
disciplinamento.
Compreende-se, a partir de Foucault, que não há resolutividade em tentar acabar com
as facções criminosas, elas são condições do sistema penal, a relação é simbiótica. Há que
se entender que toda forma de resistência denota em resposta ao regime de poder imposto.
Enquanto se problematizar o crime por casos isolados e não no âmbito social, as relações
tendem a tornar-se cada vez mais frágeis.
É imprescindível que se fale sobre as prisões, afinal, desempenham funções muito
específicas no tecido social. O fracasso e a reforma permanente da prisão representam apenas
condições para que possam existir. Sobre isso, vale o questionamento: Fracasso de quem?
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Para quem? Com efeito, a possibilidade que temos é a de procurar o que se esconde sob o
aparente cinismo da instituição penal que, depois de ter feito os presos pagarem sua pena,
continuam a segui-los através de toda uma série de controles.
Apesar das críticas dirigidas a instituição-prisão, o artigo não buscou tratar de uma
reforma ou mesmo de uma não reforma da prisão, mas sim, apresentar que no interior do
sistema penal subsiste um sistema de punição, que independe a instituição, seja escolar,
hospitalar, o fato é que o sistema de poder que perpassa as instituições é coextensivo à nossa
sociedade.
O problema não é extinguir ou não as prisões, nem mesmo propor um modelo de
prisão que seja efetivo em suas práticas institucionais, a questão, é sim, compreender o
processo pelo qual a sociedade condena à marginalidade uma parcela da população. Visto
que, se atualmente é a prisão responsável pela marginalização, caso esta venha a desaparecer,
a sociedade simplesmente reinventaria outro meio de cumprir esse papel, ou seja, o problema
não cessa.
Em suma, o massacre que em um primeiro momento foi intitulado como massacre
em Manaus – município onde as rebeliões tiveram início – deixou 56 presos mortos no
Complexo Penitenciário Anísio Jobim (COMPAJ). As rebeliões se propagaram para demais
regiões do país deixando mais mortos, e os acontecimentos foram amplamente divulgados
pela mídia, exigindo por parte do governo, medidas emergentes. Nesse sentido, buscou-se
analisar nas rebeliões das prisões brasileiras, atitudes de resistência de sujeitos encarcerados,
como recusa a qualquer forma de poder que os submeta a modelos disciplinares.
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