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A SOCIEDADE MODERNA: UMA CONSTRUÇÃO QUE TEVE SUA ORIGEM NA CULTURA, NA LITERATURA E NA
ARTE MEDIEVAIS
Maria Julia Werneck de Oliveira
Introdução
A Idade Média, considerada desde o Romantismo a época mais importante na
formação da civilização européia, caracteriza-se por valores culturais de inspiração clássica,
mas cristianizados pela ética e religiosidade. Os conventos, difusores da cultura monástica
(escrita e erudita), inicialmente em latim, expressam-na por meio de obras religiosas, morais e
filosóficas. Há, porém, uma convivência com a cultura laica ou profana, em língua vulgar,
refletindo a atmosfera cavaleiresca, aspirando a um novo ideal, além de afirmar um conceito
de vida alheio aos valores religiosos: a escola poética provençal, que influencia o lirismo
galego-português. A nossa proposta é destacar o legado da literatura e da arte mais
pormenorizadamente nessas culturas, enfatizando a poesia trovadoresca que, na Península
Ibérica, engloba composições líricas e satíricas, fontes importantes para o estudo da
construção da sociedade moderna.
A contribuição da cultura e da Arte Gótica
Para se compreender os principais aspectos das estruturas básicas da Idade Média, tais
como as religiosas, as literárias, as filosóficas e as demais como construtores da sociedade
moderna, é necessário que o preconceito surgido no Renascimento, subestimando o período
medieval seja ignorado. Dissociar o período de idéias negativas é colocar em evidência a
riqueza e distinguir a originalidade do posicionamento dos românticos, no século XIX, que
reconheceram no período medieval uma rica produção intelectual, contrariando a visão de que
a Idade Média não se configura como um período obscuro e inexpressivo.
Das guerras políticas e religiosas nasceram importantes nações como Portugal. Na
disputa contra os mouros instalados no sul do país desde o século VII, o país se lançou em
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uma resistência cristã empreendedora para repelir o inimigo. Nessa luta em defesa da fé e
reconquista da pátria, posicionam-se o lavrador1 (a espada lutadora que apóia a lavoura e a fé
em Deus), e os templos construídos. Na região do Minho, foi construída a Sé Catedral da
cidade de Braga, no século XII pelo Conde Henrique e Dona Teresa, onde os árabes, quatro
séculos antes, haviam destruído a primitiva Igreja de Santa Maria. Devem ser consideradas
também as catedrais de Lisboa, Évora, Coimbra e Porto – templos representativos da
religiosidade do povo português, desde a Idade Média até os dias atuais.
Essa estrutura essencialmente feudal de caráter agrário e de fragmentação política
(aparentemente inabalável) conheceu o seu maior opositor: o seguimento urbano mercantil
que, conseqüentemente, se sobressaiu devido ao surgimento de cidades que apareceram como
resultado da formação de vilas em regiões fronteiriças feudais. O desenvolvimento do
comércio e do artesanato urbano assinalou o aparecimento de uma nova classe social, a
burguesia, constituída por pessoas livres dos laços feudais, como os mercadores, banqueiros e
artesãos, entre outros.
As inovações não se limitaram, porém, à economia. A cultura laica esquecida dos
séculos anteriores diante do prevalecimento da cultura clerical, passou por uma fase de
imposição conhecida como Reação Folclórica, segundo Franco Júnior (1990). No mesmo
período foram escritos os primeiros capítulos da história literária européia, as canções de
gesta, as novelas de cavalaria e a lírica trovadoresca. Na arte, houve a preocupação de retratar
a natureza, recorrendo-se à observação dos sentidos de acordo com o interesse do artista,
sempre inclinado a representar experiências e sua sensibilidade, segundo Hauser (1980).
A natureza deveria ser compreendida pela tentativa de harmonização de Fé e Razão,
completando, assim, a dualidade manifestada nesse período. A arte gótica, fruto maior dessa
época, representa o idealismo filosófico de que a natureza já não é caracterizada pela ausência
do espírito, ou seja, tudo o que é real apesar de efêmero tem relação imediata com Deus:
aquilo que exprime a natureza divina tem significado e valor próprio para a arte. Gömbrich
(1988, p. 141 ) esclarece-nos que “as novas catedrais davam aos fiéis o vislumbre de um
mundo diferente. Eles ouviram falar, em sermões e cânticos, da Jerusalém Celestial (...) agora,
tal visão descera do Céu a Terra. Os fiéis, entregues à contemplação de toda essa beleza,
1 O grifo é nosso.
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podiam sentir que estavam mais próximos de entender os mistérios de um reino além do
alcance da matéria”.
O termo “gótico” é uma referência aos godos, povos bárbaros do norte europeu
escolhidos pelos italianos no Renascimento, com a finalidade de descrever as descomunais
construções que, na opinião deles, fugiam dos padrões da arquitetura, cuja concepção de belo
era o clássico da arte greco-romana. Com o passar do tempo, esse termo acabou perdendo o
caráter depreciativo, ficando definitivamente relacionado à arquitetura dos arcos ogivais.
O estilo gótico desenvolveu-se na Europa, principalmente na França a partir do século
XII, período de transformações importantes ocorridas com a crise do feudalismo e o
surgimento da burguesia. Tem-se, assim, uma centralização política e o desenvolvimento das
cidades. A população não é mais uma simples expectadora dos acontecimentos, embora ainda
presa à religiosidade, considerando a figura divina como elemento supremo.
A mobilidade espiritual é evidenciada de maneira geral nas obras de arte visual. Dessa
forma, sentindo a necessidade de demonstrar essa mudança, as catedrais tornam-se o reflexo
desse contexto: são mais altas, iluminadas e imponentes. Desaparece o medo que até então
havia sido implantado quanto ao fim do mundo e as idéias deixam de ser muito limitadas.
A arte gótica tem a sua maior expressão na arquitetura, caracterizada pela
verticalidade e harmonia de traços, com o objetivo de traduzir a harmonia divina. Fruto do
pensamento escolástico apóia-se nos princípios do simbolismo teológico: as paredes eram a
base espiritual da Igreja, os pilares representavam os santos e os arcos o caminho para Deus.
O seu estilo vertical arrojado exprime um entusiasmo religioso como nenhum outro.
A Natureza passa a ter uma relação imediata com Deus e tudo tem significado,
levando-se em conta a noção de níveis diferentes entre ambos. O sentimento pela natureza
provoca no homem a reflexão sobre si mesmo; ele é o seu principal representante com o
interesse centralizado no individual e no característico, pois até então somente os homens
célebres representavam a espécie humana. A natureza estática assume um dinamismo
acentuado, nunca visto antes. A verdade proposta anteriormente de forma unilateral é agora
dualista, ou seja, a natureza é caracterizada pela sua transparência espiritual, o homem é corpo
e alma e comunga a fé e a razão.
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A primeira Arte Gótica, também chamada Arte das Catedrais, consagrou-se em Saint-
Denis, com a edificação da catedral de Notre Dame de Chartres, na França e depois por toda
a Europa: Inglaterra, Alemanha, Áustria, Espanha e outros países.
As catedrais com suas torres pontiagudas e suas estátuas, entre outras características,
dão a impressão de altura e verticalidade. Já os vitrais permitem a entrada da luz do sol,
devido à transparência dos seus vidros multicoloridos, fazendo lembrar a presença divina.
Assim, a arquitetura gótica surgiu da necessidade de corresponder às euforias e ao misticismo
do povo. A construção gótica (Figura 1) diferenciou-se da românica pela elevação e pela
desmaterialização das paredes, como também pela distribuição de luz no espaço. Isso foi
possível somente pelas inovações arquitetônicas aplicadas na construção: o arco ogival ou em
ponta, responsável pela elevação vertical do edifício; o arcobotante, que permite o
contrabalanço da pressão exercida pelas abóbadas ogivais; a abóbada nervurada, uma das
mais marcantes características.
Figura 1. Catedral Colônia- Colônia- Alemanha
Há, ainda, os contrafortes, pilares introduzidos em uma parede externa do edifício, que
têm por objetivo reforçar e descarregar o peso das abóbadas, arcos, entre outras estruturas,
viabilizando a substituição das paredes espessas com janelas estreitas (estilo românico) por
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menores áreas de paredes e grandes áreas de vidros coloridos: os vitrais (Figura 2). Exerciam
uma função pedagógica, constituindo-se um dos meios de ensinar as populações analfabetas
por simbolizar e narrar episódios da História Sagrada. Para tanto, os artistas utilizavam
algumas técnicas com a finalidade de que as figuras ficassem mais nítidas, como as cores
puras (o vermelho, o azul, o amarelo, o verde), a altura, a largura e a bidimensionalidade. O
resultado desse trabalho de arte, como um conjunto, produz um efeito extraordinário de
suavidade e de arejamento.
Figura 2. Vitral – Igreja de Santa Ifigênia- São Paulo, SP
A rosácea, outro elemento arquitetônico, é de alta importância como característica
desse estilo e quase sempre está presente nas edificações. Apresenta forma circular, dividida
em delicados raios de pedra, semelhantes aos de uma roda, o que, para os cristãos da época,
tinha uma dupla simbologia: remete ao sol como símbolo de Cristo e à rosa como símbolo de
Maria.
Observa-se ainda a presença dos portais em número de três para dar acesso às três
naves do interior da catedral (uma central e duas laterais) e das esculturas associadas à
arquitetura gótica, que narram momentos distintos da vida de Cristo (Figura 3). Essas
esculturas enriquecem as construções e documentam nas paredes os aspectos valorizados da
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vida humana. Ao analisar os variados exemplos de esculturas e vitrais, percebe-se que as
catedrais góticas eram vistas pelos medievos como uma enciclopédia, onde se encontrava
todo o saber humano e o espiritual, lembrando que, naquele contexto, a maioria das pessoas
não sabia ler.
Os umbrais, colunas e estátuas que rodeiam os portais representam figuras humanas
que, muitas vezes, eram reis e rainhas do Antigo Testamento, como também santos e profetas.
Tais colunas eram minuciosamente trabalhadas nos traços fisionômicos e nos drapeados das
vestes, que fielmente seguiam os cânones da verticalidade, inspirados no estilo gótico. Dessa
forma, a população medieval valeu-se das artes visuais para ensinar a doutrina cristã,
deixando o seu legado às culturas posteriores.
Figura 3. Portal da Catedral
de Chartres – França.
As Iluminuras
A arte das Iluminuras também faz parte da contribuição da cultura, ligada à difusão
dos livros ilustrados dos mosteiros (Figura 4). Trata-se de uma arte decorativa que vem das
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paredes (os afrescos), dos vitrais e passam para o papel. Os manuscritos eram encomendados
por particulares, aristocratas e burgueses, por isso os livros como a Bíblia e os Evangelhos
eram ilustrados pelos iluministas góticos em formatos manejáveis. Esse trabalho ocupava as
margens da folha, assim os copistas já deixavam o espaço reservado para as ilustrações, os
cabeçalhos, os títulos ou as letras maiúsculas que iniciavam o texto.
Poucos eram possuidores das obras copiadas, o que lhe dá o caráter individualista e, essa
prática deu aos ilustradores muita habilidade, os quais acabaram influenciando novos
pintores. Uma das características comuns dessa arte é o esquema sistemático de cores,
baseado no vermelho, azul e ouro, com pequenas áreas em outras cores, conforme se pode
observar no exemplo abaixo:
Figura 4. Iluminura.
Livro de Horas
A contribuição da literatura – a poesia lírico-trovadoresca
A poesia trovadoresca floresceu num período de intenso controle da moral e do
comportamento da sociedade dos séculos XI ao XIV. Tal literatura pode ser estudada, além
dos aspectos literários, como subsídio histórico capaz de esclarecer uma grande parte desse
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período singularmente confuso e contrastado. O amor como motivo maior dessa poesia é
marca absoluta das cantigas denominadas “de amigo” por ser um sentimento, na opinião de
muitos autores, que só convinha à mulher. A relação entre a mulher e o amor nas cantigas se
dá de forma tão estreita que ambos constituem um universo de constantes provações diante de
toda estruturação social e religiosa. Em outras palavras, mesmo quando o trovador finge
sentimentos femininos não deixa de representar, com grande realismo as convencionalidades
formadoras das instituições medievais.
Sempre representando um grande desafio ao universo masculino, no que se refere ao
controle e ao domínio, as mulheres da Idade Média Central viveram na prática os
desconcertantes códigos de postura e comportamento elaborados a partir de uma imensa
tradição cultural, por vezes misógina, que encontra suas raízes séculos antes da Primeira Idade
Média. Já na Literatura Latina, muitos autores como Juvenal (60? - 130?) advertiam,
satirizando em suas obras o caráter malévolo das mulheres, principalmente se o assunto
envolvia algum sentimento que representasse certa igualdade entre os sexos. Tais sátiras
foram ao longo dos anos, e ainda são representativas pela sua capacidade de expressar o
universal.
Com a ascensão do cristianismo toda sociedade européia viu-se envolta em uma
atmosfera construtora de um universo totalmente integrado em um misticismo católico. A
importância da mulher nessa nova cultura (Lapa, 1973) elevou-se indiscutivelmente fazendo-
a, em teoria, igual ao homem. Como causa provável dessa transformação pode-se atribuir a
crescente popularização do culto à Virgem Maria. Não devemos, entretanto, considerar que tal
projeção sobre o universo feminino tenha sido rápida e totalizante. Afinal, é certo que todo
arsenal misógino renitente em todas as estruturas medievais não é fruto de um momento, mas
de toda uma tradição.
Nas canções trovadorescas notamos reflexos dessa tradição. Nas cantigas de amigo,
possuidoras de um realismo singular e representante de um lirismo muito antigo do Noroeste
da Península Ibérica, percebemos a luta travada pela menina entre a paixão, o amor e o dever
de se manter dentro dos limites impostos por rígidos códigos morais. Segundo Costa Pimpão
(1947), as cantigas de amigo correspondem a um grande número de composições de maior
variedade formal e psicológica, mas que tem isto de comum: de serem postas na boca de uma
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mulher - não da mulher já subordinada às suas obrigações matrimoniais, mas da donzela, da
jovem menina.
A luta entre a paixão e o dever e ainda as dores do sofrimento fazem esta poesia tão
dramática e capaz de traduzir não só a ternura do alvorecer do amor, mas também (sem a
embaraçosa disciplina do amor cortês de mesura) as mais variadas e contraditórias expressões
sentimentais femininas. Em outras palavras, desvenda-se nas cantigas de amigo o tumulto de
sentimentos antes resguardados pelo comedimento. É de modo legítimo que essa explosão de
paixão, cujos exemplos sem dúvida são numerosos, comprova satisfatoriamente o dinamismo
do perfil psicológico feminino dessas canções.
Na relação com seus confidentes a menina tem como interlocutores a mãe, a irmã, o
próprio amigo (namorado), a natureza, as amigas e as donas. Com estes interlocutores é que
se realizam as mais dramáticas revelações, preocupações e confidências de sofrimento (coita)
amoroso. É válido atentarmos para o fato de que o convívio com outras mulheres em
sociedade era parte essencial do cotidiano feminino da época.
O mar, os santuários isolados, a quem acorriam os peregrinos, as colinas, os sombrios
pinheirais da Galícia, tudo possui vida nas cantigas de amigo, tornando-as imorredouras. É
quase sempre nas romarias, junto ao santuário, que a entrevista amorosa se realiza, exibindo-
se as habilidades coreográficas, os vestidos novos se exibem para encantar o amigo. Do
mesmo modo os encontros na fonte, ou à espera no monte, longe da vila, as idas às ribanceiras
onde o amigo deveria embarcar ou desembarcar, os passeios ao longo da ribeira do rio fazia
parte do jogo amoroso e do cotidiano das cantigas. Destaca-se a presença e o papel da mãe
que apoiava ou condenava esses amores, porque sabia o peso da sociedade sobre a mulher.
É à mãe que, nas cantigas, a moça pede licença para ir falar com o namorado (Mia
madre, venho-vos rogar) e toma-a como confidente da sua paixão (Madre, passou per aqui
um cavaleiro); com ela também desabafa a raiva ("sanha") provocada pela traição do
namorado (Ai madre, ben vos digo, de Pero García Burgalês), ou confessa-lhe a fidelidade
amorosa, que a leva a aspirar à morte, embora reconheça a traição (Non chegou, madr',o meu
amigo, D. Denis).
Por sua vez, a mãe também aconselha a filha e chama-a à realidade, convencendo-a da
indiferença do amigo, como registra a cantiga Filha, o que queredes ben, de Joan Servando:
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Filha, o que queredes ben partiu-s’agora d’aquen e non vos quiso veer; e ides vós ben querer
a quen vos non quer veer?
Filha, que mal baratades que o, sen meu grad’ amades, pois que vos non quer veer;
e ides vós ben querer a quen vos non quer veer? Por esto lhi quer’ eu mal, mha filha, e non por al,
porque vos non quis veer; e ides vós ben querer
a quen vos non quer veer?
Andades por el chorando, e foi ora a San Servando
e non vos quiso veer; e ides vós ben querer
a quen vos non quer veer? (CV746, CBN 1088, Cant. d’ Amigo, Crest. Arc.)
Pertencente ao Ciclo Alfonsino, a cantiga retrata o reflexo das relações familiares, a
importância da intervenção da mãe e as reações sentimentais que suscita. A mãe chama a
atenção da filha pela sua insistência de amar alguém (sem o seu consentimento) que não a
quis ver: Filha, o que queredes ben/ partiu-s’ agora d’aquen/ e non vos quiso veer.
Evidencia-se a insatisfação da mãe pelo fato de o amigo ignorar a menina, registrada no
paralelismo estrutural e semântico do terceiro verso de cada estrofe: e non vos quiso veer;/
pois que vos non quer veer; porque vos non quis veer;/ e non vos quiso veer.
De acordo com Lapa (1973), os dois grandes caracteres intrínsecos da cantiga de
amigo resumem-se ao estado sentimental criado à menina pela ausência do amigo e a situação
doméstica da filha sob a proteção e vigilância maternas. A mãe era a responsável não só pelo
bem estar da filha, mas, principalmente, pela sua moral perante a sociedade. Daí a expressão
sen o meu grad’, amades, ou seja, a filha apaixonara-se por um homem que não era do agrado
da mãe. Nota-se também que o texto se refere a San Servando, uma antiga basílica construída
na cidade de Toledo, às margens do Tejo, destruída pelos mouros e reedificada por D.
Afonso VI. Local de inúmeras romarias e peregrinações, muito comuns nessa época.
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As moças também se dirigiam às amigas, que recebiam o tratamento familiar de
"mana" ou "irmana", que partilhavam da alegria da volta do amigo ou da dor sentida pela
ausência dele (Que coita tamanha ei a sofrer). Assim, essas cantigas constituem a expressão
viva da vida dos namorados, em tom de confidência espontânea, livre dos convencionalismos,
evidenciados na cantiga de amor. Por essa razão, os sentimentos são expressos com
vivacidade ingênua: observa-se o sofrimento provocado pelo amor não correspondido; a coita
(ou a dor) originada na separação do namorado; a perda da doação de amor que o ele recebera
(a doã ou os "dons de amor") e o ciúme e revolta pela traição do amigo.
Nessas cantigas há também a expressão da obsessão amorosa, manifestada no sonho e
na insônia (Aquestas noites tam longas) e a indiferença resultante do despeito (Non vos
nembra, meu amigo). Os cancioneiros também registram atitudes de proteção dos amores da
filha e preparação dos encontros, exigindo segredo e discrição por parte dos amantes.
Há nessas cantigas uma intimidade afetiva com a natureza que difere em muito do
gosto apenas cenográfico da paisagem e que, segundo Lopes, relaciona-se com “o animismo
típico de certa mentalidade pré-mercantil” (1996, p.54). Existia, dessa forma, uma afinidade
“mágica” entre as pessoas e tudo que parece mover-se por uma força interna como as águas
dos rios, da fonte, as ondas do mar, as flores da avelaneira, os cervos do monte, a luz da alva.
É na presença desse cenário, além do sentimento, que notamos os elementos tipicamente
galego-portugueses na elaboração de sua poesia folclórica, como os traços bem distintivos de
flora – pinheiro, avelaneira –, paisagem física e humana – mar de Vigo, ribeiras, romarias a
San Servando, Santa Cecilia, San Simon, etc. De acordo com Lopes:
Todas essas coisas participavam ainda de tantas associações mágicas, as suas designações evocavam tantas correspondências entre o impulso amoroso e o florescer das arvores, o comportamento animal, os movimentos das coisas naturais, que o esquema repetitivo era como o imperceptível e subtil desenvolvimento de um tema através de modulações que sugerem os seus inesgotáveis nexos com a vida (LOPES, 1996:55).
Em todas as variedades temáticas como as pastorelas, albas, barcarolas, marinhas,
bailadas, romarias ou peregrinação ligadas à vida do campo ou ao meio burguês, refletem o
ambiente doméstico e familiar. A presença feminina é a marca maior, visto que a menina vive
sob a tutela da mãe, embora por vezes se rebele contra suas imposições. Assim consideradas,
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as cantigas não exprimem só o drama sentimental da menina provocado pela ausência do
amigo, como também testemunha as condições familiares da época em que a mãe possui
autoridade e exerce séria vigilância sobre a filha.
Há inúmeros outros exemplos que a filha pede a licença da mãe para falar com o
namorado: mia madre venho-vos rogar, tornando-a confidente da sua paixão. É também com
ela que desabafa a raiva (sanha) provocada por uma traição. Há também registros dos
conselhos da mãe que tenta chamar a filha à realidade, convencendo-a da indiferença ou do
mau caráter do amigo (como no exemplo acima).
Todas as cantigas revelam um realismo psicológico que ainda está muito presente nos
nossos dias, transmitindo com verossimilhança os estados de alma expressos com vivacidade
e autenticidade. Podemos considerar, sem dúvida, que a cultura medieval constitui-se uma
contribuição inestimável na construção do mundo moderno que tenta inovar e às vezes, até
negar essas raízes imorredouras.
REFERÊNCIAS
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GÖMBRICH, E.H. A História da Arte. 15ª. ed., Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC,
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HAUSER, A. História Social da Literatura e da Arte. Trad. Walter H. Geenen. São Paulo:
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LAPA, M. R. Lições de Literatura Portuguesa - época medieval. 8ª ed., Coimbra: Coimbra
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NUNES, J.J. Crestomatia Arcaica. 5ª. ed., Lisboa: Livraria Clássica, 1959.
PIMPÃO, A J. C. História da Literatura Portuguesa. Lisboa: Quadrantes, 1947.
LOPES, O. & SARAIVA, A. J. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Editora,
1996.
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