Download - Abecedário Gil Deleuze

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Arquivado em: Esquizoanlise Escrito por Bernardo Rieux Sb, 06 de Agosto de 2005 15:27 Algum internauta paciente e muito bem intencionado tomou a iniciativa de fazer a traduo das mais de 7 horas de entrevista feitas a Deleuze por Claire Parnet, compiladas em vdeo. Abaixo, segue o resultado. [pesquisa de livros de Gilles Deleuze] A clusula Claire Parnet [1994]: Gilles Deleuze sempre se negou a aparecer na TV. Mas atualmente ele acha sua doena to parecida com a petite mort, da cano de A. Souchon, que mudou de opinio. Mantive, porm, sua declarao ["a clusula"], feita em 1988, no incio da filmagem: Gilles Deleuze [1988]: Voc escolheu um abecedrio, me preveniu sobre os temas, no conheo bem as questes, mas pude refletir um pouco sobre os temas... Responder a uma questo, sem ter refletido, para mim algo inconcebvel. O que nos salva a clusula. A clusula que isso s ser utilizado, se for utilizvel, s ser utilizado aps minha morte. Ento, j me sinto reduzido ao estado de puro arquivo de Pierre-Andr Boutang, de folha de papel, e isso me anima muito, me consola muito, e quase no estado de puro esprito, eu falo, falo ...aps minha morte... e, como se sabe, um puro esprito, basta ter feito a experincia da mesa girante [do espiritismo], para saber que um puro esprito no d respostas muito profundas, nem muito inteligentes, um pouco vago, ento est tudo certo, tudo certo para mim, vamos comear: A, B, C, D... o que voc quiser. A de Animal CP: Ento comeamos com A. A Animal. Poderamos considerar sua a frase de W. C. Fields: "Um homem que no gosta nem de crianas, nem de animais no pode ser totalmente ruim". Por enquanto, deixemos de lado as crianas, sei que voc no gosta muito de animais domsticos, e nem prefere, como Baudelaire ou Cocteau, os gatos aos cachorros. Em compensao, voc tem um bestirio, ao longo de sua obra, que bastante repugnante, ou seja, alm das feras, que so animais nobres, voc fala muito do carrapato, do piolho, de alguns pequenos animais como esses, repugnantes, e alm disso, que os animais lhe serviram muito desde O anti-dipo. Um conceito importante em sua obra o devir-animal. Qual , ento, sua relao com os animais? GD: Os animais no so... O que voc disse sobre minha relao com os animais domsticos, no o animal domstico, domado, selvagem, o que me preocupa. O problema que os gatos, os cachorros, so animais familiares, familiais, e verdade que desses animais domados, domsticos, eu no gosto. Em compensao, gosto de animais domsticos no-familiares, no-familiais. Gosto, pois sou sensvel a algo neles. Aconteceu comigo o que acontece em muitas famlias. No tinha gato, nem cachorro. Um de meus filhos com Fanny trouxe, um dia, um gato que no era maior que sua mozinha. Ele o tinha encontrado, estvamos no campo, em um palheiro, no sei bem onde, e a partir desse momento fatal, sempre tive um gato em casa. O que me incomoda nesses bichos? Bem, no foi um calvrio, eu suporto, o que me incomoda... no gosto dos roadores, um gato passa seu tempo se roando, roando em voc, no gosto disso. Um cachorro diferente, o que reprovo, fundamentalmente, no cachorro, que ele late. O latido me parece ser o grito mais estpido. E h muitos gritos na Natureza! H uma variedade de gritos, mas o latido , realmente, a vergonha do reino animal. Suporto, em compensao, suporto mais, se no durar muito, o grito, no sei como se diz, o uivo para a lua, um cachorro que uiva para a lua, eu suporto mais. CP: O uivo para a morte. GD: Para a morte, no sei, suporto mais que o latido. E, quando soube que cachorros e gatos fraudavam a previdncia social, minha antipatia aumentou. Ao mesmo tempo, o que digo bem bobo, porque as pessoas que gostam verdadeiramente de gatos e cachorros tm uma relao com eles que no humana. Por exemplo, as crianas, tm uma relao com eles que no humana, que uma espcie de relao infantil ou... o importante ter uma relao animal com o animal. O que

ter uma relao animal com o animal? No falar com ele... Em todo caso, o que no suporto a relao humana com o animal. Sei o que digo porque moro em uma rua um pouco deserta e as pessoas levam seus cachorros para passear. O que ouo de minha janela espantoso. espantoso como as pessoas falam com seus bichos. Isso inclui a prpria psicanlise. A psicanlise est to fixada nos animais familiares ou familiais, nos animais da famlia, que qualquer tema animal... em um sonho, por exemplo, interpretado pela psicanlise como uma imagem do pai, da me ou do filho, ou seja, o animal como membro da famlia. Acho isso odioso, no suporto. Devemos pensar em duas obras primas de Douanier Rousseau: o cachorro na carrocinha que realmente o av, o av em estado puro, e depois o cavalo de guerra, que um bicho de verdade. A questo : que relao voc tem com o animal? Se voc tem uma relao animal com o animal... Mas geralmente as pessoas que gostam dos animais no tm uma relao humana com eles, mas uma relao animal. Isso muito bonito, mesmo os caadores, e no gosto de caadores, enfim, mesmo eles tm uma relao surpreendente com o animal. Acho que voc me perguntou, tambm, sobre outros animais. verdade que sou fascinado por bichos como as aranhas, os carrapatos, os piolhos. to importante quanto os cachorros e gatos. E tambm uma relao com animais, algum que tem carrapatos, piolhos. O que quer dizer isto? So relaes bem ativas com os animais. O que me fascina no animal? Meu dio por certos animais nutrido por meu fascnio por muitos animais. Se tento me dizer, vagamente, o que me toca em um animal, a primeira coisa que todo animal tem um mundo. curioso, pois muita gente, muitos humanos no tm mundo. Vivem a vida de todo mundo, ou seja, de qualquer um, de qualquer coisa, os animais tm mundos. Um mundo animal, s vezes, extraordinariamente restrito e isso que emociona. Os animais reagem a muito pouca coisa. H toda espcie de coisas... Essa histria, esse primeiro trao do animal a existncia de mundos animais especficos, particulares, e talvez seja a pobreza desses mundos, a reduo, o carter reduzido desses mundos que me impressiona muito. Por exemplo, falamos, h pouco, de animais como o carrapato. O carrapato responde ou reage a trs coisas, trs excitantes, um s ponto, em uma natureza imensa, trs excitantes, um ponto, s. Ele tende para a extremidade de um galho de rvore, atrado pela luz, ele pode passar anos, no alto desse galho, sem comer, sem nada, completamente amorfo, ele espera que um ruminante, um herbvoro, um bicho passe sob o galho, e ento ele se deixa cair, a uma espcie de excitante olfativo. O carrapato sente o cheiro do bicho que passa sob o galho, este o segundo excitante, luz, e depois odor, e ento, quando ele cai nas costas do pobre bicho, ele procura a regio com menos plos, um excitante ttil, e se mete sob a pele. Ao resto, se se pode dizer, ele no d a mnima. Em uma natureza formigante, ele extrai, seleciona trs coisas. CP: este seu sonho de vida? isso que lhe interessa nos animais? GD: isso que faz um mundo. CP: Da sua relao animal-escrita. O escritor, para voc, , tambm, algum que tem um mundo? GD: No sei, porque h outros aspectos, no basta ter um mundo para ser um animal. O que me fascina completamente so as questes de territrio e acho que Flix e eu criamos um conceito que se pode dizer que filosfico, com a idia de territrio. Os animais de territrio, h animais sem territrio, mas os animais de territrio so prodigiosos, porque constituir um territrio, para mim, quase o nascimento da arte. Quando vemos como um animal marca seu territrio, todo mundo sabe, todo mundo invoca sempre... as histrias de glndulas anais, de urina, com as quais eles marcam as fronteiras de seu territrio. O que intervm na marcao , tambm, uma srie de posturas, por exemplo, se abaixar, se levantar. Uma srie de cores, os macacos, por exemplo, as cores das ndegas dos macacos, que eles manifestam na fronteira do territrio... Cor, canto, postura, so as trs determinaes da arte, quero dizer, a cor, as linhas, as posturas animais so, s vezes, verdadeiras linhas. Cor, linha, canto. a arte em estado puro. E, ento, eu me digo, quando eles saem de seu territrio ou quando voltam para ele, seu comportamento... O territrio o domnio do ter. curioso que seja no ter, isto , minhas propriedades, minhas propriedades maneira de Beckett ou de Michaux. O territrio so as propriedades do animal, e sair do territrio se

aventurar. H bichos que reconhecem seu cnjuge, o reconhecem no territrio, mas no fora dele. CP: Quais? GD: uma maravilha. No sei mais que pssaro, tem de acreditar em mim. E ento, com Flix, saio do animal, coloco, de imediato, um problema filosfico, porque... misturamos um pouco de tudo no abecedrio. Digo para mim, criticam os filsofos por criarem palavras brbaras, mas eu, ponha-se no meu lugar, por determinadas razes, fao questo de refletir sobre essa noo de territrio. E o territrio s vale em relao a um movimento atravs do qual se sai dele. preciso reunir isso. Preciso de uma palavra, aparentemente brbara. Ento, Flix e eu construmos um conceito de que gosto muito, o de desterritorializao. Sobre isso nos dizem: uma palavra dura, e o que quer dizer, qual a necessidade disso? Aqui, um conceito filosfico s pode ser designado por uma palavra que ainda no existe. Mesmo se se descobre, depois, um equivalente em outras lnguas. Por exemplo, depois percebi que em Melville, sempre aparecia a palavra: outlandish, e outlandish, pronuncio mal, voc corrige, outlandish , exatamente, o desterritorializado. Palavra por palavra. Penso que, para a filosofia, antes de voltar aos animais, para a filosofia surpreendente. Precisamos, s vezes, inventar uma palavra brbara para dar conta de uma noo com pretenso nova. A noo com pretenso nova que no h territrio sem um vetor de sada do territrio e no h sada do territrio, ou seja, desterritorializao, sem, ao mesmo tempo, um esforo para se reterritorializar em outra parte. Tudo isso acontece nos animais. isso que me fascina, todo o domnio dos signos. Os animais emitem signos, no param de emitir signos, produzem signos no duplo sentido: reagem a signos, por exemplo, uma aranha: tudo o que toca sua tela, ela reage a qualquer coisa, ela reage a signos. E eles produzem signos, por exemplo, os famosos signos... Isso um signo de lobo? um lobo ou outra coisa? Admiro muito quem sabe reconhecer, como os verdadeiros caadores, no os de sociedades de caa, mas os que sabem reconhecer o animal que passou por ali, a eles so animais, tm, com o animal, uma relao animal. isso ter uma relao animal com o animal. formidvel. CP: essa emisso de signos, essa recepo de signos que aproxima o animal da escrita e do escritor? GD: . Se me perguntassem o que um animal, eu responderia: o ser espreita, um ser, fundamentalmente, espreita. CP: Como o escritor? GD: O escritor est espreita, o filsofo est espreita. evidente que estamos espreita. O animal ... observe as orelhas de um animal, ele no faz nada sem estar espreita, nunca est tranqilo. Ele come, deve vigiar se no h algum atrs dele, se acontece algo atrs dele, a seu lado. terrvel essa existncia espreita. Voc faz a aproximao entre o escritor e o animal. CP: Voc a fez antes de mim. GD: verdade, enfim... Seria preciso dizer que, no limite, um escritor escreve para os leitores, ou seja, "para uso de", "dirigido a". Um escritor escreve "para uso dos leitores". Mas o escritor tambm escreve pelos no-leitores, ou seja, "no lugar de" e no "para uso de". Escreve-se pois "para uso de" e "no lugar de". Artaud escreveu pginas que todo mundo conhece. "Escrevo pelos analfabetos, pelos idiotas". Faulkner escreve pelos idiotas. Ou seja, no para os idiotas, os analfabetos, para que os idiotas, os analfabetos o leiam, mas no lugar dos analfabetos, dos idiotas. "Escrevo no lugar dos selvagens, escrevo no lugar dos bichos". O que isso quer dizer? Por que se diz uma coisa dessas? "Escrevo no lugar dos analfabetos, dos idiotas, dos bichos". isso que se faz, literalmente, quando se escreve. Quando se escreve, no se trata de histria privada. So realmente uns imbecis. a abominao, a mediocridade literria de todos as pocas, mas, em particular, atualmente, que faz com que se acredite que para fazer um romance, basta uma historinha privada, sua historinha privada, sua av que morreu de cncer, sua histria de amor, e ento se faz um romance. uma vergonha dizer coisas desse tipo. Escrever no assunto privado de algum. se lanar, realmente, em uma histria universal e seja o romance ou a filosofia, e o que isso quer dizer...

CP: escrever "para" e "pelo", ou seja, "para uso de" e "no lugar de". o que disse em Mil plats, sobre Chandos e Hofmannsthal: "O escritor um bruxo, pois vive o animal como a nica populao frente qual responsvel". GD: isso. por uma razo simples, acredito que seja bem simples. No uma declarao literria a que voc leu de Hofmannsthal. outra coisa. Escrever , necessariamente, forar a linguagem, a sintaxe, porque a linguagem a sintaxe, forar a sintaxe at um certo limite, limite que se pode exprimir de vrias maneiras. tanto o limite que separa a linguagem do silncio, quanto o limite que separa a linguagem da msica, que separa a linguagem de algo que seria... o piar, o piar doloroso. CP: Mas de jeito algum o latido? GD: No, o latido no. E, quem sabe, poderia haver um escritor que conseguisse. O piar doloroso, todos dizem, bem, sim, Kafka. Kafka A metamorfose, o gerente que grita: "Ouviram, parece um animal". Piar doloroso de Gregor ou o povo dos camundongos, Kafka escreveu pelo povo dos camundongos, pelo povo dos ratos que morrem. No so os homens que sabem morrer, so os bichos, e os homens, quando morrem, morrem como bichos. A voltamos ao gato e, com muito respeito, tive, entre os vrios gatos que se sucederam aqui, um gatinho que morreu logo, ou seja, vi o que muita gente tambm viu, como um bicho procura um canto para morrer. H um territrio para a morte tambm, h uma procura do territrio da morte, onde se pode morrer. E esse gatinho que tentava se enfiar em um canto, como se para ele fosse o lugar certo para morrer. Nesse sentido, se o escritor algum que fora a linguagem at um limite, limite que separa a linguagem da animalidade, do grito, do canto, deve-se ento dizer que o escritor responsvel pelos animais que morrem, e ser responsvel pelos animais que morrem, responder por eles... escrever no para eles, no vou escrever para meu gato, meu cachorro. Mas escrever no lugar dos animais que morrem levar a linguagem a esse limite. No h literatura que no leve a linguagem a esse limite que separa o homem do animal. Deve-se estar nesse limite. Mesmo quando se faz filosofia. Fica-se no limite que separa o pensamento do no-pensamento. Deve-se estar sempre no limite que o separa da animalidade, mas de modo que no se fique separado dela. H uma inumanidade prpria ao corpo humano, e ao esprito humano, h relaes animais com o animal. Seria bom se terminssemos com o A. B de Beber CP: Vamos passar para o B. CP: B um pouco particular, sobre a bebida. Voc bebeu e parou de beber. Eu gostaria de saber quando voc bebia, o que era beber? Tinha prazer, ou o qu? GD: Bebi muito, bebi muito. Parei, bebi muito... Seria preciso perguntar a outras pessoas que beberam, perguntar aos alcolatras. Acho que beber uma questo de quantidade, por isso no h equivalente com a comida. H gulosos, h pessoas... comer sempre me desagradou, no para mim, mas a bebida uma questo... Entendo que no se bebe qualquer coisa. Quem bebe tem sua bebida favorita, mas nesse mbito que ele entende a quantidade. O que quer dizer questo de quantidade? Zomba-se muito dos drogados, ou dos alcolatras, porque eles sempre dizem: "Eu controlo, paro de beber quando quiser". Zombam deles, porque no se entende o que querem dizer. Tenho lembranas bem claras. Eu via bem isso e acho que quem bebe compreende isso. Quando se bebe, se quer chegar ao ltimo copo. Beber , literalmente, fazer tudo para chegar ao ltimo copo. isso que interessa. CP: sempre o limite? GD: Ser que o limite? complicado. Em outros termos, um alcolatra algum que est sempre parando de beber, ou seja, est sempre no ltimo copo. O que isto quer dizer? um pouco como a frmula de Pguy, que to bela: no a ltima ninfia que repete a primeira, a primeira ninfia que repete todas as outras e a ltima. Pois bem, o primeiro copo repete o ltimo, o ltimo que conta. O que quer dizer o ltimo copo para um alcolatra? Ele se levanta de manh, se for um alcolatra da manh, h todos os gneros, se for um alcolatra da manh, ele tende para o momento

em que chegar ao ltimo copo. No o primeiro , o segundo, o terceiro que o interessa, muito mais, um alcolatra malandro, esperto. O ltimo copo quer dizer o seguinte: ele avalia, h uma avaliao, ele avalia o que pode agentar, sem desabar... Ele avalia. Varia para cada pessoa. Avalia, portanto, o ltimo copo e todos os outros sero a sua maneira de passar, e de atingir esse ltimo. E o que quer dizer o ltimo? Quer dizer: ele no suporta beber mais naquele dia. o ltimo que lhe permitir recomear no dia seguinte, porque, se ele for at o ltimo que excede seu poder, o ltimo em seu poder, se ele vai alm do ltimo em seu poder para chegar ao ltimo que excede seu poder, ele desmorona, e est acabado, vai para o hospital, ou tem de mudar de hbito, de agenciamento. De modo que, quando ele diz: o ltimo copo, no o ltimo, o penltimo, ele procura o penltimo. Ele no procura o ltimo copo, procura o penltimo copo. No o ltimo, pois o ltimo o poria fora de seu arranjo, e o penltimo o ltimo antes do recomeo no dia seguinte. O alcolatra aquele que diz e no pra de dizer: vamos... o que se ouve nos bares, to divertida a companhia de alcolatras, a gente no se cansa de escut-los, nos bares quem diz: o ltimo, e o ltimo varia para cada um. E o ltimo o penltimo. CP: tambm quem diz: amanh paro. GD: Amanh eu paro? No, ele no diz: amanh eu paro; diz: paro hoje para recomear amanh. CP: Ento, j que beber sempre parar de beber, como se pra de beber totalmente, j que voc parou? GD: muito perigoso, me parece que acontece rpido. Michaux disse tudo, os problemas de droga e os problemas de lcool no esto to separados. H um momento em que isso se torna perigoso demais, porque, a tambm uma crista, como quando eu dizia "a crista entre a linguagem e o silncio", ou a linguagem e a animalidade, uma crista, um estreito desfiladeiro. Tudo bem beber, se drogar, pode-se fazer tudo o que se quer, desde que isso no o impea de trabalhar, se for um excitante normal oferecer algo de seu corpo em sacrifcio. Beber, se drogar so atitudes bem sacrificais. Oferece-se o corpo em sacrifcio. Por qu? Porque h algo forte demais, que no se poderia suportar sem o lcool. A questo no suportar o lcool, , talvez, o que se acredita ver, sentir, pensar, e isso faz com que, para poder suportar, para poder controlar o que se acredita ver, sentir, pensar, se precise de uma ajuda: lcool, droga, etc. A fronteira muito simples. Beber, se drogar, tudo isso parece tornar quase possvel algo forte demais, mesmo se se deve pagar depois, sabe-se, mas em todo caso, est ligado a isto, trabalhar, trabalhar. E evidente que quando tudo se inverte, e que beber impede de trabalhar, e a droga se torna uma maneira de no trabalhar, o perigo absoluto, no tem mais interesse, e, ao mesmo tempo, percebe-se, cada vez mais, que quando se pensava que o lcool ou a droga eram necessrios, eles no so necessrios. Talvez se deva passar por isso, para perceber que tudo o que se pensou fazer graas a eles podia-se fazer sem eles. Admiro muito a maneira como Michaux diz: agora, tornou-se, tudo isso ... ele pra. Eu tenho menos mrito, porque parei de beber por razes de respirao, de sade, etc., mas evidente que se deve parar ou se privar disso. A nica justificao possvel se isso ajuda o trabalho. Mesmo se se deve pagar fisicamente depois. Quanto mais se avana, mais a gente diz a si mesmo que no ajuda o trabalho... CP: Por um lado, como Michaux, preciso ter se drogado, bebido muito para poder se privar em um estado desses. Por outro lado, voc diz: quando se bebe, isso no deve impedir o trabalho, mas porque se entreviu algo que a bebida ajudava a suportar. E esse algo no a vida. A h a questo dos escritores de que se gosta. GD: Sim, a vida. CP: a vida? GD: algo forte demais na vida, no algo terrificante, algo forte demais, poderoso demais na vida. Acredita-se, de modo um pouco idiota, que beber vai coloc-lo no nvel desse algo mais poderoso. Se pensar em toda a linhagem dos grandes americanos. De Fitzgerald a... um dos que mais admiro Thomas Wolfe. uma srie de alcolatras, ao mesmo tempo que isso o que lhes permite, os ajuda, provavelmente, a perceber algo grande demais para eles.

CP: , mas tambm porque eles perceberam algo da potncia da vida, que nem todos podem perceber, porque sentiram algo da potncia da vida. GD: O lcool no o far sentir... CP: ... que havia uma potncia da vida forte demais para eles, e que s eles podiam perceber. GD: Certo. CP: E Lowry tambm? GD: Certo. Claro, eles fizeram uma obra e o que foi o lcool para eles? Eles se arriscaram, arriscaram porque pensaram, com ou sem razo, que isso os ajudava. Eu tive a sensao de que isso me ajudava a fazer conceitos, estranho, a fazer conceitos filosficos. Ajudava, depois percebi que j no ajudava, que me punha em perigo, no tinha vontade de trabalhar se bebesse. Ento se deve parar. simples. CP: uma tradio americana, so poucos os escritores franceses que confessaram sua queda pelo lcool. Alm disso, h algo que faz parte da escrita... GD: Os escritores franceses no tm a mesma viso de escrita. No sei se fui to marcado pelos americanos, uma questo de viso, de vidncias, aqui considera-se que a filosofia, a escrita, uma questo... De maneira modesta, ver algo, que os outros no vem, no esta a concepo francesa da literatura, mas note, houve tambm muitos alcolatras na Frana. CP: Mas eles param de escrever, na Frana. Tm muita dificuldade, os que conhecemos. Poucos filsofos confessaram sua queda pela bebida. GD: Verlaine morava na rua Nollet, aqui ao lado. CP: Exceto Rimbaud e Verlaine. GD: Aperta o corao, pois quando pego a rua Nollet, digo: era este o percurso de Verlaine para ir beber seu absinto. Parece que morou em um apartamento horrvel. CP: Os poetas e o lcool, conhecemos mais. GD: Um dos maiores poetas franceses, que andava pela rua Nollet. Uma maravilha. CP: Na casa dos amigos? GD: Provavelmente. CP: Enfim, os poetas, sabemos que houve mais etlicos. Bem, terminamos com o lcool. GD: Puxa, estamos indo rpido! CP: Vamos passar ao C. O C vasto. C de Cultura CP: Se se pode abusar um certo tempo do lcool, da cultura no se deve ir alm da dose. at um pouco repugnante. Bem, terminamos com o lcool. GD: Puxa, estamos indo rpido! CP: Vamos passar ao C. O C vasto. GD: O que ? CP: C de Cultura. GD: Sim, por que no? CP: Voc diz no ser culto. Diz que s l, s v filmes ou s olha as coisas para um saber preciso: aquele de que necessita para um trabalho definido, preciso, que est fazendo, mas, ao mesmo tempo, voc vai todos os sbados a uma exposio, a um filme do grande campo cultural, tem-se a impresso de que h uma espcie de esforo para a cultura, que voc sistematiza e que tem uma prtica cultural, ou seja, que voc sai, faz um esforo, tende a se cultivar e, entretanto, diz que no culto. Como explica tal paradoxo? Voc no culto? GD: No, quando lhe digo que no me vejo, realmente, como um intelectual, no me vejo como algum culto por uma razo simples: que quando vejo algum culto, fico assustado, no fico to admirado, admiro certas coisas, outras, no, mas fico assustado. A gente nota algum culto. um saber sobretudo assustador. Vemos isso em muitos intelectuais, eles sabem tudo, bem, no sei, sabem tudo, esto a par de tudo, sabem a histria da Itlia, da Renascena, sabem geografia do Plo Norte, sabem... podemos fazer uma lista, eles sabem tudo, podem falar de tudo. abominvel.

Quando digo que no sou culto, nem intelectual, quero dizer algo bem fcil, que no tenho saber de reserva. Pelo menos no tenho esse problema. Com minha morte, no se precisar procurar o que tenho para publicar, nada, pois no tenho reserva alguma. No tenho nada, proviso alguma, nenhum saber de proviso, e tudo o que aprendo, aprendo para certa tarefa, e, feita a tarefa, esqueo. De modo que, se dez anos depois, sou forado, isso me alegra, se sou forado a me colocar em algo vizinho ou no mesmo tema, tenho de recomear do zero. Exceto em alguns casos raros, pois Spinoza est em meu corao, no o esqueo, meu corao, no minha cabea, seno... Por que no admiro essa cultura assustadora? Pessoas que falam... CP: erudio ou opinio sobre tudo? GD: No erudio, eles sabem falar, primeiro viajaram, viajaram na Histria, na Geografia, sabem falar de tudo. Ouvi na TV, assustador, ouvi nomes, ento, como tenho muita admirao, posso dizer, gente como Umberto Eco, prodigioso, o que quer que lhe digam, pronto, como se apertassem em um boto, e ele sabe, alm disso... No posso dizer que invejo isso. Fico assustado, mas no invejo. O que a cultura? Ela consiste em falar muito, no posso me impedir de... sobretudo agora que no dou mais aula, estou aposentado, falar, acho cada vez mais, falar um pouco sujo. um pouco sujo, a escrita limpa. Escrever limpo e falar sujo. sujo porque fazer charme. Nunca suportei colquios, estive em alguns quando era jovem, mas nunca suportei colquios. No viajo. Por que no? Porque... os intelectuais... eu viajaria se... enfim, no. Alis, no viajaria, minha sade me probe, mas as viagens dos intelectuais so uma palhaada. Eles no viajam, se deslocam para falar, partem de um lugar onde falam e vo para outro para falar. E, mesmo no almoo, eles vo falar com os intelectuais do lugar. No vo parar de falar. No suporto falar, falar, falar, no suporto. Como me parece que a cultura est muito ligada fala. Nesse sentido, odeio a cultura, no consigo suport-la. CP: Voltaremos a falar disso, a escrita limpa, a fala suja, pois voc foi um grande professor e a soluo... GD: diferente. CP: Voltaremos a isso. A letra P est ligada a seu trabalho de professor. Falaremos da seduo. Queria voltar a algo que voc evitou, que seu esforo, a disciplina que voc se impe, mesmo no precisando dela, para ver, por exemplo, nos ltimos 15 dias, a exposio de Polcke, no Museu de Arte Moderna. Voc vai com freqncia, ou semanalmente, ver um grande filme ou uma exposio de pintura. Voc no erudito, no culto, no tem admirao por pessoas cultas, como acaba de dizer. A que corresponde tal esforo? prazer? GD: Claro, prazer, enfim, nem sempre, mas penso nessa histria de estar espreita. No acredito na cultura; acredito, de certo modo, em encontros. E no se tm encontros com pessoas. As pessoas acham que com pessoas que se tm encontros. terrvel, isso faz parte da cultura, intelectuais que se encontram, essa sujeira de colquios, essa infmia, mas no se tem encontros com pessoas, e sim com coisas, com obras: encontro um quadro, encontro uma ria de msica, uma msica, assim entendo o que quer dizer um encontro. Quando as pessoas querem juntar a isso um encontro com elas prprias, com pessoas, no d certo. Isso no um encontro. Da os encontros serem decepcionantes, uma catstrofe os encontros com pessoas. Como voc diz, quando vou, sbado e domingo, ao cinema, etc., no estou certo de ter um encontro, mas parto espreita. Ser que h matria para encontro, um quadro, um filme, ento formidvel. Dou um exemplo, porque, para mim, quando se faz algo, trata-se de sair e de ficar. Ficar na filosofia tambm como sair da filosofia? Mas sair da filosofia no quer dizer fazer outra coisa, por isso preciso sair permanecendo dentro. No fazer outra coisa, escrever um romance, primeiro eu seria incapaz, e mesmo se fosse capaz, isso no me diria nada. Quero sair da filosofia pela filosofia. isso o que me interessa. CP: O que isso quer dizer? GD: Dou um exemplo, como isso para depois de minha morte, posso deixar de ser modesto. Acabo de escrever um livro sobre um grande filsofo chamado Leibniz e insistindo em uma noo

que me parece importante nele, mas que muito importante para mim: a noo de dobra. Considero que fiz um livro de filosofia sobre essa noo, um pouco estranha, de dobra. O que me acontece depois? Recebo cartas, como sempre, h cartas insignificantes, mesmo se so encantadoras e calorosas, e me toquem muito. So cartas que me dizem, muito bem... so cartas de intelectuais que gostaram ou no do livro. E ento recebo duas cartas, dois tipos de cartas, em que esfrego os olhos... H cartas de pessoas que dizem: "Mas sua histria de dobra, somos ns". E percebo que so pessoas que fazem parte de uma associao que agrupa 400 pessoas na Frana, hoje, e deve crescer. a associao de dobradores de papis, eles tm uma revista, me enviam a revista e dizem: "Concordamos totalmente, o que voc faz o que fazemos". Digo para mim: isso eu ganhei. Recebo outra carta, e falam da mesma maneira e dizem: "A dobra somos ns". uma maravilha. Primeiro isso lembra Plato, porque em Plato... os filsofos, para mim, no so pessoas abstratas, so grandes escritores, grandes autores bem concretos. Em Plato h uma histria que me enche de alegria, e est ligada ao incio da filosofia, voltaremos a isso depois. O tema de Plato : ele d uma definio, por exemplo, o que o poltico? O poltico o pastor dos homens, e sobre isso h muita gente que diz: o poltico somos ns, por exemplo, o pastor chega e diz: visto os homens, logo sou o verdadeiro pastor dos homens. O aougueiro diz: alimento os homens, sou o pastor dos homens. Os rivais chegam... Tive esta experincia, os dobradores de papis chegam e dizem: a dobra somos ns. Os outros, que me enviaram o mesmo tipo de carta, incrvel, foram os surfistas. primeira vista no h relao alguma com os dobradores de papis. Os surfistas dizem: "concordamos totalmente, pois, o que fazemos? Estamos sempre nos insinuando nas dobras da natureza. Para ns, a natureza um conjunto de dobras mveis. Ns nos insinuamos na dobra da onda, habitar a dobra da onda a nossa tarefa". Habitar a dobra da onda e, com efeito, eles falam disso de modo admirvel. Eles pensam, no se contentam em surfar, eles pensam o que fazem. Voltaremos a falar disto se chegarmos ao esporte [sport], ao S... CP: Est longe. Partimos do encontro, so encontros, os dobradores de papis? GD: So encontros. Quando digo sair da filosofia pela filosofia... Sempre me aconteceu isso, so encontros, encontrei os dobradores de papis, no preciso v-los, alis, ficaramos decepcionados, provavelmente, eu ficaria, e eles ainda mais. No preciso v-los, mas tive um encontro com o surfe, com os dobradores de papis, literalmente, sa da filosofia pela filosofia, isso um encontro. Acho que os encontros... quando vou ver uma exposio, estou espreita, em busca de um quadro que me toque, de um quadro que me comova, quando vou ao cinema, no vou ao teatro, o teatro longo demais, disciplinado demais, demais. E no me parece uma arte... a no ser Bob Wilson e Carmelo Bene. No acho que o teatro seja voltado para nossa poca, exceto nesses casos extremos. Mas ficar quatro horas sentado em uma poltrona ruim, primeiro por motivos de sade, isso liquida o teatro para mim. Uma exposio de pintura, ou o cinema... Sempre tenho a impresso que posso ter o encontro com uma idia. CP: Mas o filme, por mera distrao, no existe? GD: Isso no cultura. CP: No cultura, mas no h distrao? GD: Minha distrao ... CP: Tudo est em seu trabalho. GD: No um trabalho, a espreita, estou espreita de algo que passa dizendo para mim... isso me perturba. muito divertido. CP: Mas no Eddie Murphy que vai te perturbar? GD: No ...? CP: Eddie Murphy um... GD: Quem ? CP: Um ator cmico americano, cujos ltimos filmes so verdadeiros sucessos. Nunca vai ver...? GD: No conheo. S vi Benny Hill na TV. Benny Hill me interessa, no escolho, necessariamente, coisas muito boas, tenho razes para me interessar.

CP: Mas quando sai, para um encontro? GD: Quando saio, se no h idia para tirar da, se no digo: havia uma idia... O que um grande cineasta? Vale tambm para cineastas, o que me toca na beleza, por exemplo, um grande como Minnelli ou como Losey, o que me toca neles? Eles so perseguidos por idias, uma idia... CP: Est queimando a letra I. GD: Idia... CP: Est queimando a letra I, pare logo. GD: Paramos a, mas isso o que me parece ser um encontro. Temos encontros com coisas, antes de os ter com pessoas. CP: Nesse momento, para falar de um perodo preciso, que o do momento, voc tem muitos encontros? GD: Acabo de dizer: os dobradores, os surfistas, o que mais quer? No so encontros com intelectuais. Ou ento, se encontro um intelectual por outras razes, no porque gosto dele, por aquilo que ele faz, seu trabalho atual, seu charme, tudo isso. Temos encontros com o charme, com o trabalho das pessoas, e no com as pessoas, no dou a mnima para elas. CP: Alm disso eles podem roar, como os gatos? GD: Se s tiverem isso, o roar, o latido, terrvel. CP: Retomamos os perodos ricos e os perodos pobres da cultura. Voc acha que no estamos em um perodo to rico, vejo voc sempre irritado diante da TV, dos programas literrios, que no citaremos, embora no momento em que isso for exibido os nomes sero outros, acha que um perodo rico ou um perodo pobre, o que vivemos? GD: pobre, e, ao mesmo tempo, no angustiante. Me faz rir. Na minha idade, digo para mim: no a primeira vez que h perodos pobres. Digo: o que vivi desde que tenho idade para me entusiasmar um pouco. Vivi a Liberao. A Liberao foi um dos perodos mais ricos que se possa imaginar. Descobria-se ou redescobria-se tudo, na Liberao. Tinha havido a guerra, etc. No era pouco. Descobria-se tudo: o romance americano, Kafka, havia uma espcie de mundo da descoberta, havia Sartre, no se pode imaginar o que foi, intelectualmente, o que se descobria ou redescobria em pintura, etc. CP: No cinema? GD: preciso entender coisas como a grande polmica: deve-se queimar Kafka? inimaginvel, hoje parece um pouco infantil, mas era uma atmosfera criadora. Ento conheci o antes de 68, que foi um perodo muito rico at depois de 68, enquanto que, nesse entremeio havia perodos pobres. So normais, perodos pobres. No a pobreza que incmoda, a insolncia ou a impudncia daqueles que ocupam os perodos pobres. Eles so mais maldosos do que as pessoas geniais que se animam nos perodos ricos. CP: So geniais ou obedientes, pois se fala da polmica sobre Kafka na Liberao... Vi fulano de tal dizer, contente e rindo, que nunca havia lido Kafka. GD: Claro, so contentes, quanto mais bobos, mais contentes. So os que consideram, voltamos a isso, que literatura contar uma histria pessoal. Se se acha isso, no preciso ler Kafka. No h necessidade de se ler muita coisa, pois se se tem uma escrita bonitinha, se , por natureza, igual a Kafka. No trabalho. Como te explicar? Para falar de coisas mais srias que esses tolos: fui ver, h pouco tempo, um filme... CP: De Paradjanov. GD: No, esse admirvel, mas um filme emocionante, de um russo... que fez seu filme h trinta anos, e ele s passou agora. CP: La commissaire? GD: La commissaire. Entendi algo que me pareceu emocionante, o filme era muito bom, perfeito, mas eu pensava, com terror ou com uma espcie de compaixo, que era um filme como os russos faziam antes da guerra.

CP: Do tempo de Eisenstein? GD: Do tempo de Eisenstein, de Dovjenko, estava tudo ali: a montagem paralela, sublime, etc., como se nada tivesse acontecido desde a guerra, como se nada tivesse acontecido no cinema. Dizia para mim: foroso, o filme bom, mas estranho. CP: No muito bom. GD: Por isso no era bom. Era algum que trabalhava to sozinho que... filmava como h vinte anos. No que fosse ruim, era muito bom, prodigioso, h vinte anos... E tudo o que havia acontecido depois, ele no soubera, crescera em um deserto, terrvel, atravessar um deserto no grande coisa, no atravessar um perodo de deserto. O terrvel nascer nele, crescer em um deserto, horrvel, suponho, pois deve-se ter uma impresso de solido. CP: Para os que tm 18 anos agora? GD: Sim, sobretudo porque... esse o problema nos perodos pobres. Quando as coisas desaparecem ningum se d conta, por uma razo simples, quando alguma coisa desaparece, ela no faz falta. O perodo staliniano fez desaparecer a literatura russa, mas os russos no se deram conta, o grosso dos russos, o conjunto dos russos no se deu conta, uma literatura que foi perturbadora em todo o sculo 19, desaparece. Dizem: "agora h os dissidentes, etc.", mas no mbito do povo, do povo russo, sua literatura, sua pintura desapareceram, e ningum se deu conta. Para se dar conta do que acontece hoje, h, claro, novos jovens que so, com certeza, geniais. Suponhamos, a expresso no boa, os novos Beckett de hoje... CP: Tive medo, pensei que fosse dizer os Novos Filsofos. GD: Mas os novos Beckett hoje, suponhamos que no sejam publicados. Afinal, por pouco Beckett no foi publicado. evidente que no faltaria nada. Por definio, um grande autor ou um gnio algum que faz algo novo, se esse novo no aparece, isso no incomoda, no faz falta a ningum, j que no se tinha idia disso. Se Proust, Kafka no tivessem sido publicados, no se pode dizer que Kafka faria falta. Se o outro tivesse queimado toda a obra de Kafka, ningum poderia dizer: Ah, como faz falta! Pois no se teria idia do que desapareceu. Se os novos Beckett so impedidos de ser publicados pelo sistema atual da edio, no se poder dizer: Ah, como fazem falta! Ouvi uma declarao, que talvez seja a mais descarada que j ouvi em minha vida. No ouso dizer quem. algum ligado ao ramo editorial que, em um jornal, atreveu-se a declarar: "Hoje no arriscamos mais cometer os erros da Gallimard..." CP: No tempo de Proust? GD: Recusando Proust, pois com os meios que se tem hoje... CP: Os caadores de cabeas... GD: Acredita-se que se tm, hoje, os meios para encontrar os novos Proust, e os novos Beckett. Significa que se teria um contador Geiger e o novo Beckett, ou seja, algum perfeitamente inimaginvel, j que no se sabe o que ele faria de novo, ele emitiria um som... CP: Se o passassem sobre sua cabea? GD: O que define a crise hoje, pois h todas essas bobagens? Vejo a crise hoje ligada a trs coisas, mas ela no durar, sou muito otimista, o que define um perodo de deserto , primeiramente, que os jornalistas conquistaram a forma-livro. Eles sempre escreveram, acho bom que escrevam. Mas quando comearam a escrever livros, eles se deram conta de que passavam a outra forma, que no era a mesma coisa que escrever seu artigo. CP: Antes os escritores que eram os jornalistas. Mallarm podia fazer jornalismo. O inverso no aconteceu. GD: Agora o inverso, o jornalista como jornalista conquistou a forma-livro, acha normal escrever um livro, como se fosse s um artigo. Isso no bom. A segunda razo que se generalizou a idia de que qualquer um pode escrever, pois a escrita vista como uma historinha de cada um, contada a partir dos arquivos de famlia, sejam eles constitudos de anotaes ou guardados na memria. Todo mundo teve uma histria de amor, todo mundo teve uma av doente, uma me que morria de modo terrvel. Dizem: isso d um romance. Mas isso no d um romance de modo algum... A terceira

razo que, os verdadeiros clientes mudaram, e percebe-se isso, exceto as pessoas... Vocs esto a par, os clientes mudaram, quero dizer, quem so os clientes da televiso? No so mais os ouvintes, so os anunciantes. So eles os verdadeiros clientes. Os ouvintes tm o que os anunciantes querem. CP: Os telespectadores. Qual a terceira razo? GD: Os anunciantes so os verdadeiros clientes, eu dizia, na edio h um risco de que os verdadeiros clientes dos editores no sejam os leitores em potencial, que sejam os distribuidores, quando eles forem, realmente, os clientes dos editores, o que acontecer? O que interessa aos distribuidores a rotao rpida, quer dizer, coisas de grandes mercados de rpida rotao, regime do best-seller, etc.; ou seja, que toda a literatura, se ouso dizer, la Beckett, toda a literatura criadora ser esmagada por natureza. CP: Isso j existe, pr-formam-se as necessidades de um pblico. GD: Sim, mas isso que define o perodo de seca, modelo Pivot. a nulidade, a literatura, o desaparecimento de qualquer crtica em nome da promoo comercial, mas quando digo: no grave, quero dizer, evidente que haver circuitos paralelos, ou um circuito onde haver um mercado negro, etc., no possvel que um povo viva... A Rssia perdeu sua literatura, ela vai reconquist-la, tudo se ajeita, os perodos ricos sucedem aos perodos pobres. Ai dos pobres! CP: Ai dos pobres? Sobre essa idia de mercado paralelo ou negro, j faz muito tempo que os sujeitos so pr-formados, ou seja, um ano v-se, claramente, nos livros publicados, a guerra, no ano seguinte a morte dos pais, no outro a ligao com a natureza, mas nada parece se formar. Como isso ressurge? J viu ressurgir um perodo rico de um pobre? GD: J. CP: Voc assistiu? GD: Sim, depois da Liberao, a coisa no ia bem, e ento houve 68. Entre o grande perodo criador da Liberao e o incio da Nouvelle Vague... CP: Quando foi? Em 60? GD: 60, e mesmo antes. Entre 60 e 72 houve, de novo, um perodo rico. E isso se reformou em... um pouco o que diz Nietzsche, algum lana uma flecha, uma flecha no espao, ou ento um perodo, uma coletividade lana uma flecha e depois ela cai, depois algum a pega e a reenvia para outro lugar. A criao funciona assim, a literatura passa sobre desertos. D de Desejo CP: D de Desejo. Tudo o que sempre quiseram saber sobre o desejo. Primeira lio: S se pode desejar em um conjunto. Ento, sempre se deseja um todo. Vamos passar a D. Para D, preciso de meus papis, pois vou ler o que h no Petit Larousse Illustr, em "Deleuze", que tambm se escreve com D. L-se: "Deleuze, Gilles, filsofo francs, nascido em Paris, em 1925". GD: Talvez hoje esteja no Larousse. CP: Hoje, estamos em 1988. GD: Eles mudam todo ano. CP: "Com Flix Guattari, ele mostra a importncia do desejo e seu aspecto revolucionrio frente a toda instituio, at mesmo psicanaltica". E indicam a obra que demonstra tudo isso: O anti-dipo, em 1972. Como voc , aos olhos de todos, o filsofo do desejo, eu gostaria que falssemos do desejo. O que era o desejo? Vamos colocar a questo do modo mais simples: quando O anti-dipo... GD: No era o que se pensou, em todo caso. Estou certo disso, mesmo naquele momento, ou seja, as pessoas mais encantadoras que eram... foi uma grande ambigidade, um grande mal-entendido, um pequeno mal-entendido. Queramos dizer uma coisa bem simples. Tnhamos uma grande ambio, a saber, que at esse livro, quando se faz um livro porque se pretende dizer algo novo. Achvamos que as pessoas antes de ns no tinham entendido bem o que era o desejo, ou seja, fazamos nossa tarefa de filsofo, pretendamos propor um novo conceito de desejo. As pessoas, quando no fazem filosofia, no devem crer que um conceito muito abstrato, ao contrrio, ele remete a coisas bem simples, concretas. Veremos isso. No h conceito filosfico que no remeta a determinaes no filosficas, simples, bem concreto. Queramos dizer a coisa mais simples do

mundo: que at agora vocs falaram abstratamente do desejo, pois extraem um objeto que , supostamente, objeto de seu desejo. Ento podem dizer: desejo uma mulher, desejo partir, viajar, desejo isso e aquilo. E ns dizamos algo realmente simples: vocs nunca desejam algum ou algo, desejam sempre um conjunto. No complicado. Nossa questo era: qual a natureza das relaes entre elementos para que haja desejo, para que eles se tornem desejveis? Quero dizer, no desejo uma mulher, tenho vergonha de dizer uma coisa dessas. Proust disse, e bonito em Proust: no desejo uma mulher, desejo tambm uma paisagem envolta nessa mulher, paisagem que posso no conhecer, que pressinto e enquanto no tiver desenrolado a paisagem que a envolve, no ficarei contente, ou seja, meu desejo no terminar, ficar insatisfeito. Aqui considero um conjunto com dois termos, mulher, paisagem, mas algo bem diferente. Quando uma mulher diz: desejo um vestido, desejo tal vestido, tal chemisier, evidente que no deseja tal vestido em abstrato. Ela o deseja em um contexto de vida dela, que ela vai organizar o desejo em relao no apenas com uma paisagem, mas com pessoas que so suas amigas, ou que no so suas amigas, com sua profisso, etc. Nunca desejo algo sozinho, desejo bem mais, tambm no desejo um conjunto, desejo em um conjunto. Podemos voltar, so fatos, ao que dizamos h pouco sobre o lcool, beber. Beber nunca quis dizer: desejo beber e pronto. Quer dizer: ou desejo beber sozinho, trabalhando, ou beber sozinho, repousando, ou ir encontrar os amigos para beber, ir a um certo bar. No h desejo que no corra para um agenciamento. O desejo sempre foi, para mim, se procuro o termo abstrato que corresponde a desejo, diria: construtivismo. Desejar construir um agenciamento, construir um conjunto, conjunto de uma saia, de um raio de sol... CP: De uma mulher. GD: De uma rua. isso. O agenciamento de uma mulher, de uma paisagem. CP: De uma cor... GD: De uma cor, isso um desejo. construir um agenciamento, construir uma regio, realmente agenciar. O desejo construtivismo. O anti-dipo, que tentava... CP: Espere, eu queria... GD: Sim? CP: por ser um agenciamento, que voc precisou, naquele momento, ser dois para escrever por ser em um conjunto, que precisou de Flix, que surgiu em sua vida de escritor? GD: Flix faria parte do que diremos, talvez, sobre a amizade, sobre a relao da filosofia com algo que concerne amizade, mas, com certeza, com Flix, fizemos um agenciamento. H agenciamentos solitrios, e h agenciamentos a dois. O que fizemos com Flix foi um agenciamento a dois, onde algo passava entre os dois, ou seja, so fenmenos fsicos, como uma diferena, para que um acontecimento acontea, preciso uma diferena de potencial, para que haja uma diferena de potencial precisa-se de dois nveis. Ento algo se passa, um raio passa, ou no, um riachinho... do campo do desejo. Mas um desejo isso, construir. Ora, cada um de ns passa seu tempo construindo, cada vez que algum diz: desejo isso, quer dizer que ele est construindo um agenciamento, nada mais, o desejo no nada mais. CP: um acaso se... porque o desejo sentido, enfim, existe em um conjunto ou em um agenciamento, que O anti-dipo, onde voc comea a falar do desejo, o primeiro livro que voc escreve com outra pessoa, com Flix Guattari? GD: No, voc tem razo, era preciso entrar nesse agenciamento novo para ns, escrever a dois, que ns dois no vivamos da mesma maneira, para que algo acontecesse, ou seja, e esse algo era, finalmente, uma hostilidade, uma reao contra as concepes dominantes do desejo, as concepes psicanalticas. Era preciso ser dois, foi preciso Flix, vindo da psicanlise, eu me interessando por esses temas, era preciso tudo isso para dizermos que havia lugar para fazer uma concepo construtiva, construtivista do desejo. CP: Voc poderia definir, de modo sucinto, como v a diferena entre o construtivismo e a interpretao analtica? GD: Acho que bem simples. Nossa oposio psicanlise mltipla, mas quanto ao problema do

desejo, ... que os psicanalistas falam do desejo como os padres. No a nica aproximao, os psicanalistas so padres. De que forma falam do desejo? Falam como um grande lamento da castrao. A castrao pior que o pecado original. uma espcie de maledicncia sobre o desejo, que assustadora. O que tentamos fazer em O anti-dipo? Acho que h trs pontos, que se opem diretamente psicanlise. Esses trs pontos so... isso por meu lado, acho que Flix Guattari tambm no, no temos nada para mudar nesses trs pontos. Estamos persuadidos, achamos em todo caso, que o inconsciente no um teatro, no um lugar onde h dipo e Hamlet que representam sempre suas cenas. No um teatro, uma fbrica, produo. O inconsciente produz. No pra de produzir. Funciona como uma fbrica. o contrrio da viso psicanaltica do inconsciente como teatro, onde sempre se agita um Hamlet, ou um dipo, ao infinito. Nosso segundo tema que o delrio, que muito ligado ao desejo, desejar delirar, de certa forma, mas se olhar um delrio, qualquer que seja ele, se olhar de perto, se ouvir o delrio que for, no tem nada a ver com o que a psicanlise reteve dele, ou seja, no se delira sobre seu pai e sua me, delira-se sobre algo bem diferente, a que est o segredo do delrio, delira-se sobre o mundo inteiro, delirase sobre a histria, a geografia, as tribos, os desertos, os povos... CP: ... o clima. GD: ... as raas, os climas, em cima disso que se delira. O mundo do delrio : "Sou um bicho, um negro!", Rimbaud. : onde esto minhas tribos? Como dispor minhas tribos? Sobreviver no deserto, etc. O deserto ... O delrio geogrfico-poltico. E a psicanlise reduz isso a determinaes familiares. Posso dizer, sinto isso, mesmo depois de tantos anos, depois de O anti-dipo, digo: a psicanlise nunca entendeu nada do fenmeno do delrio. Delira-se o mundo, e no sua pequena famlia. Por isso que... Tudo isso se mistura. Eu dizia: a literatura no um caso privado de algum, a mesma coisa, o delrio no sobre o pai e a me. O terceiro ponto... Significa isso, o desejo se estabelece sempre, constri agenciamentos, se estabelece em agenciamentos, pe sempre em jogo vrios fatores. E a psicanlise nos reduz sempre a um nico fator, e sempre o mesmo, ora o pai, ora a me, ora no sei o que, ora o falo, etc. Ela ignora tudo o que mltiplo, ignora o construtivismo, ou seja, agenciamentos. Dou um exemplo: falvamos de animal, h pouco. Para a psicanlise, o animal uma imagem do pai. Um cavalo uma imagem do pai. ignorar o mundo! Penso no pequeno Hans. O pequeno Hans uma criana sobre a qual Freud d sua opinio, ele assiste um cavalo que cai na rua, e o charreteiro que lhe d chicotadas, e o cavalo que d coices para todos os lados. Antes do carro, era um espetculo comum nas ruas, devia ser uma grande coisa para uma criana. A primeira vez que um garoto via um cavalo cado na rua e que um cocheiro meio bbado tentava levant-lo com chicotadas, devia ser uma emoo, era a chegada da rua, a chegada na rua, o acontecimento da rua, sangrento, tudo isso... E ento ouvem-se os psicanalistas, falar, enfim, imagem de pai, etc., mas na cabea deles que a coisa no vai bem. O desejo foi movido por um cavalo que cai e batido na rua, um cavalo morre na rua, etc. um agenciamento fantstico para um garoto, perturbador at o fundo. Outro exemplo, posso dizer... Falvamos de animal. O que um animal? Mas no h um animal que seria a imagem do pai. Os animais, em geral, andam em matilhas, so matilhas. H um caso que me alegra muito. um texto que adoro, de Jung, que rompeu com Freud, depois de uma longa colaborao. Jung conta a Freud que teve um sonho, um sonho de ossurio, sonhou com um ossurio. E Freud no compreende nada, literalmente, ele diz o tempo todo: se sonhou com um osso, a morte de algum, quer dizer a morte de algum. E Jung no pra de lhe dizer: no estou falando de um osso, sonhei com um ossurio... Freud no compreende. No v a diferena entre um ossurio e um osso, ou seja, um ossurio so centenas de ossos, so mil, dez mil ossos. Isso uma multiplicidade, um agenciamento, ... passeio em um ossurio, o que significa isso? Por onde o desejo passa? Em um agenciamento sempre um coletivo. Coletivo, construtivismo, etc. isso o desejo. Onde passa meu desejo entre os mil crnios, os mil ossos? Onde passa meu desejo na matilha? Qual minha posio na matilha? Sou exterior matilha? Estou ao lado, dentro, no centro dela? Tudo isso so fenmenos de desejo. isso o desejo. CP: Como o O anti-dipo foi escrito em 72, esse agenciamento coletivo vinha a calhar depois de

68, era toda uma reflexo... daqueles anos e contra a psicanlise, que continuava seu negcio de pequena loja... GD: S o fato de dizer: o delrio delira as raas e as tribos, delira os povos, delira a histria e a geografia, me parece ter estado de acordo com 68. Ou seja, parece-me ter trazido um pouco de ar so a todo esse ar fechado e malso dos delrios pseudo-familiais. Vimos que era isso, o desejo. Se comeo a delirar, no para delirar sobre minha infncia, a tambm, sobre minha histria privada. Delira-se... O delrio csmico... Delira-se sobre o fim do mundo, delira-se sobre as partculas, os eltrons e no sobre papai-mame... evidente. CP: Sobre esse agenciamento coletivo do desejo, penso em certos contra-sensos. Lembro-me que em Vincennes, em 72, na faculdade, havia pessoas que punham em prtica esse desejo e isso acabava em amores coletivos, no tinham compreendido bem. Houve muitos loucos em Vincennes, como vocs partiam de uma esquizo-anlise para combater a psicanlise, todo mundo achava que era legal ser louco, ser esquizo. Vamos cenas inverossmeis entre os estudantes. Queria que contasse casos engraados ou no desses contra-sensos sobre o desejo. GD: Eu poderia falar dos contra-sensos abstratamente. Consistiam em duas coisas, havia dois casos, que d no mesmo. Havia os que pensavam que o desejo era o espontanesmo, e havia todo tipo de movimentos espontneos, o espontanesmo. CP: Os clebres maos-spontex... GD: E os outros que pensavam que o desejo era a festa. Para ns, no era nem um nem outro, mas no tinha importncia, pois, de qualquer modo, havia agenciamentos que aconteciam, havia coisas que mesmo os loucos... havia tantos, de todos os tipos. Fazia parte do que acontecia naquele momento, em Vincennes. Mas os loucos tinham sua disciplina, tinham sua maneira de... faziam seus discursos, suas intervenes, entravam em um agenciamento, tinham seu agenciamento, mas entravam em agenciamentos. Tinham uma espcie de astcia, de compreenso, de grande benevolncia, os loucos. Se quiser, na prtica, eram sries de agenciamentos que se faziam e desfaziam. Na teoria, o contra-senso era dizer: o desejo a espontaneidade. De modo que ramos chamados de espontanestas, ou ento era a festa, mas no era isso. Era... a filosofia dita do desejo consistia, unicamente, em dizer para as pessoas: no vo ser psicanalizados, nunca interpretem, experimentem agenciamentos, procurem agenciamentos que lhes convenham. O que era um agenciamento? Um agenciamento, para mim, e Flix, no que ele pensasse diferentemente, pois era, talvez... no sei. Para mim, eu manteria que havia quatro componentes de agenciamento. Por alto, quatro, no prefiro quatro a seis... Um agenciamento remetia a estados de coisas, que cada um encontre estados de coisas que lhe convenha. H pouco, para beber... gosto de um bar, no gosto de outro, alguns preferem certo bar, etc... Isso um estado de coisas. Nas dimenses do agenciamento, enunciados, tipos de enunciados, e cada um tem seu estilo, h um certo modo de falar, andam juntos, no bar, por exemplo, h amigos, e h uma certa maneira de falar com os amigos, cada bar tem seu estilo. Digo bar, mas vale para qualquer coisa. Um agenciamento comporta estados de coisas e enunciados, estilos de enunciao. interessante, a Histria feita disto, quando aparece um novo tipo de enunciado? Por exemplo, na revoluo russa, os enunciados do tipo leninista, quando eles aparecem, como, em que forma? Em 68, quando apareceram os primeiros enunciados ditos de 68? bem complexo. Todo agenciamento implica estilos de enunciao. Implica territrios, cada um com seu territrio, h territrios. Mesmo numa sala, escolhemos um territrio. Entro numa sala que no conheo, procuro o territrio, lugar onde me sentirei melhor. E h processos que devemos chamar de desterritorializao, o modo como samos do territrio. Um agenciamento tem quatro dimenses: estados de coisas, enunciaes, territrios, movimentos de desterritorializao. E a que o desejo corre... CP: Voc no se sente responsvel pelas pessoas que tomaram drogas? Ou, lendo muito ao p da letra O anti-dipo, no como Cato, que incita os jovens a fazer bobagens? GD: Sentimo-nos responsveis por tudo, se algo d errado. CP: E os efeitos de O anti-dipo?

GD: Sempre me esforcei para que desse certo. Em todo caso, nunca, acho, minha nica honra, nunca me fiz de esperto com essas coisas, nunca disse a um estudante: isso, drogue-se voc tem razo. Sempre fiz o que pude para que ele sasse dessa, porque sou muito sensvel coisa minscula que de repente faz com que tudo vire trapo. Que ele beba, muito bem... Ao mesmo tempo, nunca pude criticar as pessoas, no gosto de critic-las. Acho que se deve ficar atento para o ponto em que a coisa no funciona mais. Que bebam, se droguem, o que quiserem, no somos policiais, nem pais, no sou eu quem deve impedi-los ou ... mas fazer tudo para que no virem trapos. No momento em que h risco, eu no suporto. Suporto bem algum que se droga, mas algum que se droga de tal modo que, no sei, de modo selvagem, de modo que digo para mim: pronto, ele vai se ferrar, no suporto. Sobretudo o caso de um jovem, no suporto um jovem que se ferra, no suportvel. Um velho que se ferra, que se suicida, ele teve sua vida, mas um jovem que se ferra por besteira, por imprudncia, porque bebeu demais... Sempre fiquei dividido entre a impossibilidade de criticar algum e o desejo absoluto, a recusa absoluta de que ele vire trapo. um desfiladeiro estreito, no posso dizer que h princpios, a gente sai fora como pode, a cada vez. verdade que o papel das pessoas, nesse momento, de tentar salvar os garotos, o quanto se pode. E salv-los no significa fazer com que sigam o caminho certo, mas impedi-los de virar trapo. s o que quero. CP: Mas sobre os efeitos de O anti-dipo, houve efeitos? GD: Foi impedir que eles virassem trapos, que naquele momento... que um cara que desenvolvia... um incio de esquizofrenia fosse colocado em boas condies, no fosse jogado num hospital repressivo, tudo isso... Ou ento que algum que no suportava mais, um alcolatra, onde ia mal, fazer com que ele parasse... CP: Porque era um livro revolucionrio, na medida em que parecia, para os inimigos desse livro, e para os psicanalistas, uma apologia da permissividade, e dizer que tudo era desejo... GD: De forma alguma... Esse livro, ou seja, quando se l esse livro, ele sempre teve uma prudncia, me parece, extrema. A lio era: no se tornem trapos. Quando nos opnhamos..., no paramos de nos opor ao processo esquizofrnico como o que ocorre num hospital, e para ns, o terror era produzir uma criatura de hospital. Tudo, menos isso! E quase diria que louvar o aspecto de valor da "viagem", daquilo que, naquele momento, os anti-psiquiatras chamavam de viagem ou processo esquizofrnico, era um modo de evitar, de conjurar a produo de trapos de hospital, a produo dos esquizofrnicos, a fabricao de esquizofrnicos. CP: Voc acha, para terminar com O anti-dipo, que h ainda efeitos desse livro, 16 anos depois? GD: Sim, pois um bom livro, pois h uma concepo do inconsciente. o nico caso em que houve uma concepo do inconsciente desse tipo, sobre os dois ou trs pontos: as multiplicidades do inconsciente, o delrio como delrio-mundo, e no delrio-famlia, o delrio csmico, das raas, das tribos, isso bom. O inconsciente como mquina, como fbrica e no como teatro. No tenho nada a mudar nesses trs pontos, que continuam absolutamente novos, pois toda a psicanlise se reconstituiu. Para mim, espero, um livro que ser redescoberto, talvez. Rezo para que o redescubram. E de Enfance [Infncia] CP: E de Enfance [Infncia]. Lembranas distantes. Os primeiros anos de vida, a crise, a Frente Popular e a chegada da guerra. CP: E de Enfance [Infncia]. Voc costuma dizer que comeou sua vida na Av. Wagram, pois nasceu no 17 distrito de Paris. Depois, foi morar com sua me na R. Daubigny, no 17 distrito, e, agora, mora perto da Place Clichy, bairro mais pobre, tambm no 17, R. de Bizerte. Como estar morto quando este filme for exibido, posso dar o seu endereo. Primeiro, quero saber se a sua famlia o que chamamos de burguesa e de direita. GD: Eu sempre digo onde moro quando me fazem a pergunta. Houve de fato uma queda. Comecei por cima, pelo alto do 17, um bairro muito bonito. E durante a minha infncia, vivi a crise antes da guerra. Uma das lembranas que tenho da infncia durante a crise era a quantidade de apartamentos vazios. As pessoas estavam sem dinheiro mesmo e havia apartamentos para alugar por toda a

cidade. Meus pais tiveram de deixar o apartamento chique do alto do 17, perto do Arco do Triunfo, e desceram, mas ainda era bom, perto do Boulevard Malesherbes. Era numa ruazinha, a R. Daubigny. Depois, quando eu voltei para Paris, j mais velho, fui para a fronteira do 17 distrito, que mais proletrio, na R. Nollet e R. Toussaint. Perto da casa onde morou Verlaine, que tambm no era rico. Foi mesmo uma queda. Dentro de alguns anos, no sei onde estarei. Mas no deve melhorar em nada. CP: Em Saint-Quen, talvez? GD: , pode ser. Mas a minha famlia era uma famlia burguesa. No era de direita, ou melhor era, sim, de esquerda que no era. Preciso me situar, pois no tenho lembranas de infncia. No tenho lembranas porque a memria uma faculdade que deve afastar o passado em vez de acion-lo. preciso muita memria para rejeitar o passado, porque no um arquivo. Ento, tenho esta lembrana: havia aquelas placas nos apartamentos onde estava escrito "Aluga-se". Eu vivi muito aquela crise. CP: Que anos eram estes? GD: No lembro os anos. No sei, devia ser entre... Entre 1930-1935. 1930... No me lembro mais. CP: Voc tinha 10 anos. GD: As pessoas no tinham dinheiro. Nasci em 1925. E me lembro da preocupao com o dinheiro. Foi o que me impediu de ir no colgio dos jesutas, pois meus pais no tinham mais dinheiro. Eu estava destinado aos jesutas e acabei no liceu por causa da crise. Mas o outro aspecto... Deixe-me ver... Havia outro aspecto da crise, mas no sei mais. No sei mais, mas no importa. E ento, houve a guerra. Quando digo que era uma famlia de direita... Eu me lembro muito bem, eles no se recuperaram e por isso que entendo melhor alguns patres de hoje. O pavor que eles tinham da Frente Popular era uma coisa inacreditvel. Talvez muitos patres no tenham vivido isso, mas deve restar alguns que conheceram esta fase. Para eles, a Frente Popular ficou marcada como a imagem do caos, pior do que Maio de 68. E me lembro de que toda esta burguesia de direita percebia o sintoma. Todos eram anti-semitas e Leon Blum foi uma coisa impressionante. O dio que Mends-France carregou nas costas no foi nada perto do que Blum carregou. Pois ele foi de fato o primeiro. A reao causada pelas frias remuneradas foi impressionante! CP: O primeiro judeu de esquerda conhecido? GD: Sim, eu diria que Blum foi pior do que o diabo. No possvel entender como Ptain tomou o poder daquela forma sem conhecer o nvel de anti-semitismo da Frana e da burguesia francesa naquele momento. O dio das medidas sociais tomadas pelo governo de Leon Blum. Foi impressionante! Imagine meu pai, que era meio "Cruz de Fogo"... Isso era comum naquela poca! Portanto, era uma famlia de direita inculta. Havia uma burguesia culta, mas a minha era inculta. Completamente inculta. Mas meu pai era, como se costumava chamar, um homem muito distinto, afvel, distinto e encantador. Eu ficava espantado com esta violncia contra Blum. Ele vinha da guerra de 1914. Tudo se encaixa. um mundo fcil de ser entendido em geral, mas que no se pode imaginar em detalhes. Os combatentes da Guerra de 1914, o anti-semitismo, o regime da crise, a prpria crise... Que crise era essa que ningum entendia? CP: Qual era a profisso dele? GD: Era engenheiro. Mas era um engenheiro muito especial. Tenho a lembrana de duas atividades dele. No sei se foi criao dele ou se trabalhava com isso, mas era um produto para impermeabilizar os tetos. Impermeabilizao dos tetos. Mas com a crise, ele ficou com apenas um operrio, um italiano. Ainda mais um estrangeiro... As coisas iam muito mal. O negcio acabou falindo e ele foi parar em uma indstria mais "sria" que fabricava bales. Aqueles bales... Aquelas coisas... As aeronaves. Entende, no ? Mas foi num momento em que no serviam mais para nada. Tanto que, em 1939, voavam pelos cus de Paris para frear avies alemes. Eram como pombos voadores. Quando os alemes se apoderaram da fbrica em que meu pai trabalhava, eles foram bem mais sensatos e a transformaram em fbrica de botes inflveis, que teriam mais serventia. Mas no fizeram bales, nem zepelins. Ento, eu vi o nascimento da guerra. Eu devia ter

uns 14 anos e me lembro muito bem das pessoas... elas sabiam muito bem que tinham ganho um ano com Munique; um ano e alguns meses, mas a guerra estava a. A guerra se sucedeu crise. Era uma atmosfera muito tensa em que as pessoas mais velhas do que eu devem ter vivido momentos terrveis. Quando os alemes chegaram de fato, devastaram a Blgica, entraram na Frana e tudo o mais. Eu estava em Deauville, porque era o lugar em que meus pais sempre passavam as frias de vero. Eles j tinham voltado. Foram e nos deixaram l, o que era impensvel, pois tnhamos uma me que nunca havia nos deixado, etc... Ficamos em uma penso; nossa me tinha nos deixado com uma senhora que era a dona desta penso. E eu fui escola durante um ano em Deauville, em um hotel que foi transformado em liceu. E os alemes estavam chegando. No, estou confundindo tudo. Isso foi no incio da guerra. De qualquer forma, eu estava em Deauville. Quando, h pouco, falei das frias remuneradas, eu me lembro que a chegada das frias remuneradas praia de Deauville foi uma coisa! Para um cineasta, isso poderia virar uma obra-prima, pois era prodigioso ver aquela gente vendo o mar pela primeira vez! Eu vi uma pessoa vendo o mar pela primeira vez na vida e esplndido! Era uma menina da regio de Limousin que estava conosco e que viu o mar pela primeira vez. Se existe alguma coisa inimaginvel quando nunca se o viu, esta coisa o mar. A gente pode imaginar que seja grandioso, infinito, mas tudo isso perde a fora quando se v o mar. Aquela menina ficou umas quatro ou cinco horas diante do mar, completamente abobalhada, e no se cansava de ver um espetculo to sublime, to grandioso! Ento, na praia de Deauville, que sempre tinha sido exclusiva dos burgueses, como se fosse propriedade deles, de repente, chega o povo das frias remuneradas... Pessoas que nunca tinham visto o mar. E foi fantstico. Se o dio entre as classes tem algum sentido so palavras como as que dizia a minha me que, no entanto, era uma mulher fabulosa , sobre a impossibilidade de se freqentar uma praia em que havia gente como aquela. Foi muito duro. Acho que eles, os burgueses, nunca esqueceram. Maio de 68 no foi nada perto disso. CP: Fale mais do medo que eles tinham. GD: O medo de que isso nunca fosse parar. Se davam frias remuneradas aos operrios, todos os privilgios burgueses estavam ameaados. Os locais freqentados eram como questes de territrio. Se as empregadas vinham para as praias de Deauville era como se, de repente, voltssemos era dos dinossauros. Era uma agresso. Pior do que os alemes. Pior do que os tanques alemes chegando na praia! Voc entende? Era indescritvel! CP: Era gente de outro mundo. GD: E isso era apenas um detalhe, mas quanto ao que estava acontecendo nas fbricas? Nunca esqueceram isso. Acho at que este medo hereditrio. No quero dizer que Maio de 68 no foi nada. outra histria. Mas tambm no se esqueceram de 68. Enfim... Eu estava l em Deauville sem meus pais, e com meu irmo. Quando os alemes realmente invadiram, foi a que deixei de ser bobo. Eu era um rapaz extremamente medocre na escola, no tinha interesse por nada, a no ser por uma coleo de selos, que era a minha maior atividade e eu era um pssimo aluno. At que aconteceu comigo o que acontece com muita gente. As pessoas que despertam sempre o so por causa de algum em algum momento. E no meu caso, neste hotel que virou escola, havia um cara jovem que me pareceu extraordinrio porque falava muito bem. Para mim, foi um despertar absoluto. Eu tive a sorte de encontrar este cara que, mais tarde, ficou relativamente conhecido. Primeiro, porque ele tinha um pai famoso e, depois, porque ele foi muito ativo na esquerda, s que bem mais tarde. Ele se chamava Halbwachs. Pierre Halbwachs, filho do socilogo. Naquela poca, ele era muito jovem e tinha uma cara estranha. Era muito magro, muito alto... Na minha lembrana, ele era alto. E ele s tinha um olho. Um olho aberto e o outro fechado. No tinha nascido assim, mas era assim, como um cclope. Tinha cabelos muito cacheados, como uma cabra... Alis, mais do que um carneiro. Quando fazia frio, ele ficava verde, roxo, tinha uma sade extremamente frgil, tanto que ele foi reformado no exrcito e colocado como professor durante a guerra para preencher as vagas. Para mim, foi uma revelao. Ele era cheio de entusiasmo. No sei mais em que ano eu estava, talvez 3 ou 4 ano ginasial, mas ele comunicava aos alunos, ou pelo menos a mim, algo que

foi uma reviravolta para mim. Eu estava descobrindo alguma coisa. Ele nos falava de Baudelaire e lia muito bem. E ns nos aproximamos. Claro, ele tinha percebido que me impressionava muito. Eu me lembro que, no inverno, ele me levava para a praia de Deauville. E eu o seguia, colava nele, literalmente. Eu era seu discpulo. Tinha encontrado um mestre. Ns nos sentvamos nas dunas e, em meio ao vento, ao mar, era fantstico, ele me lia Les nourritures terrestres. Ele gritava, pois no havia ningum na praia no inverno. Ele gritava: "Les nourritures terrestres", e eu estava sentado ao lado dele, com medo de algum aparecer. Eu achava tudo aquilo estranho. E ele lia muitas coisas, era muito variado. Ele me fez descobrir Anatole France, Baudelaire, Gide... Acho que estes eram os principais. Eram as suas grandes paixes. E eu fui transformado, absolutamente transformado. Mas logo comearam os comentrios sobre aquele homem com aquela figura, aquele seu olho e o menino que estava sempre atrs dele. Iam sempre juntos praia, etc. A senhora que me hospedava ficou logo preocupada, me chamou, disse que era responsvel por mim na falta de meus pais e que queria me alertar sobre certas relaes. Eu no entendi nada. No entendi, pois, se havia uma relao pura, incontestvel e aberta, era justamente a nossa. S depois, eu percebi que consideravam Pierre Halbwachs um pederasta perigoso. Ento, eu disse a ele: "Estou chateado, pois a senhora que me hospeda disse..." Eu o chamava de "senhor" e ele me chamava de "voc". "Ela disse que no devo v-lo, que no normal, nem correto". E ele me disse: "No se preocupe, nenhuma senhora resiste a mim. Vou falar com ela, explicar tudo e ela ficar tranqila". Ele tinha me tornado esperto o bastante para me deixar em dvidas. Eu no estava tranqilo. Tinha um pressentimento ruim. Achava que a velha senhora no se convenceria. E, de fato, foi um desastre. Ele foi ver a senhora que escreveu imediatamente para meus pais pedindo que me tirassem de l rpido porque ele era algum extremamente suspeito. A tentativa dele foi um fracasso total. Mas eis que os alemes chegaram. A guerra estava comeando. Os alemes chegaram e meu irmo e eu samos de bicicleta ao encontro de meus pais que tinham ido para Rochefort. A fbrica tinha se mudado para l, fugindo-se dos alemes. Fomos de Deauville a Rochefort de bicicleta e ainda me lembro de ter ouvido o famoso discurso infame de Ptain no albergue de uma aldeia. Meu irmo e eu estvamos de bicicleta e, em um cruzamento, quem encontramos? Parecia desenho animado: em um carro, estavam o velho Halbwachs, o filho e um esteta que se chamava Bayer. Eles estavam indo para perto de La Rochelle. Era o destino. Mas estou contando isso s para dizer que, depois de ter reencontrado Halbwachs, eu o conheci bem melhor e no tinha mais admirao por ele. Mas isso me mostrou que foi no momento em que eu o admirei com 14, 15 anos que eu tive razo. CP: Depois, voltou a Paris, ao Liceu Carnot, com um certo pesar, j que as frias haviam acabado. Neste liceu, teve aulas de Filosofia. Foi nesta poca que Merleau-Ponty era professor l, mas voc entrou numa turma em que no havia Merleau-Ponty. Seu professor chamava-se Sr. Viale. Acho que era este o nome, no? GD: Sim, o Sr. Viale. Tenho dele uma lembrana comovida. Foi por acaso. Houve a distribuio dos alunos... Eu poderia ter tentado passar para a turma de Merleau-Ponty, mas no tentei, no sei por qu. Viale foi... curioso, porque Halbwachs me fez sentir alguma coisa do que era a Literatura, mas, desde as primeiras aulas de Filosofia, eu soube que era isso que eu faria. Eu me lembro de coisas esparsas, aqui e ali. Em Filosofia, eu me lembro de quando soubemos da chacina de Oradour. Tinha acontecido naquela poca. bom lembrar que eu estava em uma turma de pessoas um pouco politizadas, sensveis s questes nazistas. Eu estava na turma de Guy Moquet. Eu me lembro disso. Havia uma atmosfera estranha nesta turma. De qualquer forma, lembro da forma como foi anunciado Oradour. Foi um fato marcante entre os rapazes de 17 anos... No sei com que idade se passava a prova final. Talvez, 17, 18 anos ou 16, 17 anos. CP: Normalmente, 18 anos. GD: Sim, me lembro bem. Quanto a Viale, era um professor que falava baixo, j era velho. Eu gostava imensamente dele. De Merleau-Ponty, tenho a lembrana da melancolia. Carnot era um grande liceu no qual havia uma balaustrada ao longo de todo o primeiro andar. E havia o olhar melanclico de Merleau-Ponty que observava as crianas brincando e gritando. Uma grande

melancolia. Era como se ele dissesse: "O que estou fazendo aqui?" Enquanto que Viale, de quem eu gostava muito, estava no fim de sua carreira. Eu tambm me liguei muito a ele. Ficamos muito ligados e, como morvamos perto um do outro, voltvamos sempre juntos. Ns falvamos sem parar. Sabia que eu faria Filosofia ou no faria nada. CP: Logo nas primeiras aulas? GD: Sim, sim! Foi como quando eu soube que existiam coisas to estranhas quanto o que chamavam de conceitos. Para mim, teve o mesmo efeito do que para outros a descoberta de um personagem de fico. Como fiquei emocionado ao descobrir Monsieur de Charlus! Ou um grande personagem de romance, ou Vautrin. Ou ainda Eugnie Grandet. Quando eu aprendi o que Plato chamava de "idia", me parecia ter vida! Era animado! Eu sabia que era isso; que, para mim, era isso. CP: E voc logo se tornou bom aluno? O melhor? GD: Sim. A, eu no tinha mais problemas escolares. Desde Halbwachs, tornei-me bom aluno! Era bom em Letras. At mesmo em Latim, eu era bom. Eu era um bom aluno. Em Filosofia, um timo aluno. CP: Queria que voltssemos a uma coisa. As turmas no eram politizadas naquela poca? Voc disse que a sua turma era especial, pois havia Guy Moquet, etc. GD: No era possvel ser politizado durante a guerra. Certamente havia rapazes de 17, 18 anos que estavam na Resistncia. Mas quem estava na Resistncia se calava, a menos que fosse um cretino. No se pode falar em politizao. Havia pessoas indiferentes e as favorveis ao governo de Vichy. CP: Havia a Ao Francesa? GD: No era a Ao Francesa, era muito pior. Eram os "Vichyssois". No h comparao com a politizao em pocas de paz, j que os elementos realmente ativos eram os resistentes ou jovens com alguma relao com a Resistncia. No tinha nada a ver com politizao; era mais secreto. CP: Mas, em sua turma, havia pessoas simpatizantes? Jovens que simpatizavam com a Resistncia? GD: Sim, posso citar Guy Moquet, que foi morto. Acabou sendo assassinado pelos nazistas um ano depois. CP: Mas vocs falavam a esse respeito? GD: Sim, claro. Como eu disse, o aviso, a comunicao imediata de Oradour tinha a ver com comunicao secreta, com o telgrafo, pois a notcia se espalhou e, no mesmo dia, todas as escolas parisienses j sabiam. Saber imediatamente do ocorrido em Oradour foi uma das coisas mais emocionantes para mim. CP: Para fechar a infncia, seno no terminamos nunca, a sua parece ter tido pouca importncia para voc. Voc no fala dela e nem uma referncia. Temos a impresso de que a infncia no importante para voc. GD: Sim, claro. quase em funo de tudo o que acabo de dizer. Acho que a atividade de escrever no tem nada a ver com o problema pessoal de cada um. No disse que no se deve investir toda a sua alma. A literatura e o ato de escrever tm a ver com a vida. Mas a vida algo mais do que pessoal. Na literatura, tudo o que traz algo da vida pessoal do escritor por natureza desagradvel. lamentvel, pois o impede de ver, sempre o remete para seu pequeno caso particular. Minha infncia nunca foi isso. No que eu tenha horror a ela! Mas o que me importa, na verdade, como j dizamos: "H o devir-animal que envolve o homem e o devir-criana". Acho que escrever um devir alguma coisa. Mas tambm no se escreve pelo simples ato de escrever. Acho que se escreve porque algo da vida passa em ns. Qualquer coisa. Escreve-se para a vida. isso. Ns nos tornamos alguma coisa. Escrever devir. devir o que bem entender, menos escritor. fazer tudo o que quiser, menos arquivo. Respeito o arquivo em si. Neste caso, sim, quando arquivo. Mas ele tem interesse em relao a outra coisa. Se o arquivo existe justamente porque h uma outra coisa. E, atravs do arquivo, pode se entender alguma coisinha desta outra coisa. Mas a simples idia de falar da minha infncia no s porque ela no tem interesse algum me parece o contrrio de toda a Literatura. Se me permite, vou ler uma coisa que j li mil vezes e que todos os escritores j

disseram. Mas vi este livro ontem, eu no o conhecia. de um grande poeta russo, Mandelstam. Eu o estava lendo ontem. CP: Ele tem um nome lindo, poderia diz-lo. GD: Sim, Ossip. Nesta frase, ele diz... o tipo de frase que me transtorna. E o papel do professor este: comunicar e fazer com que crianas apreciem um texto. Foi o que Halbwachs fez por mim. Ele diz que no entende que algum como Tolstoi se apaixone por arquivos familiares. Ele continua. "Eu repito: a minha memria no amor, mas hostilidade. Ela trabalha no para reproduzir, mas para afastar o passado. Para um intelectual de origem medocre, a memria intil. Basta-lhe falar dos livros que leu e sua biografia est feita. Dentre as geraes felizes, onde a epopia fala atravs de hexmetros e crnicas, para mim, parece um sinal de pasmaceira. Entre mim e o sculo, h um abismo, um fosso repleto de tempo fremente. O que queria dizer a minha famlia? Eu no sei. Era gaga de nascena e, no entanto, tinha algo a dizer. Sobre mim e muitos dos meus contemporneos, pesa a gagueira de nascimento. Aprendemos no a falar, mas a balbuciar. Foi s quando demos ouvidos ao barulho crescente do sculo e fomos embranquecidos pela espuma de sua crista que adquirimos uma linguagem". Para mim, isso quer dizer que... Quer dizer de fato que escrever mostrar a vida. testemunhar em favor da vida, dos idiotas que esto morrendo. gaguejar na lngua. Fazer literatura apelando para a infncia tornar a Literatura parte de seu caso particular. fazer literatura barata, so os best-sellers. realmente uma porcaria. Se no se leva a linguagem at o ponto em que se gagueja o que no fcil, pois no basta gaguejar assim , se no se vai at este ponto. Na Literatura, de tanto forar a linguagem at o limite, h um devir animal da prpria linguagem e do escritor e tambm h um devir criana, mas que no a infncia dele. Ele se torna criana, mas no a infncia dele, nem de mais ningum. a infncia do mundo. Os que se interessam pela sua prpria infncia que se danem e que continuem a fazer a Literatura que eles merecem. Se h algum que no se interessa por sua prpria infncia, este algum Proust. A tarefa do escritor no vasculhar os arquivos familiares, no se interessar por sua prpria infncia. Ningum se interessa por isso. Ningum digno de alguma coisa se interessa por sua infncia. A tarefa outra: devir criana atravs do ato de escrever, ir em direo infncia do mundo e restaurar esta infncia. Eis as tarefas da Literatura. CP: E a criana nietzschiana? GD: Nietzsche, entre outros, sabia disso, assim como Mandelstam sabia. Todos os escritores sabem disso. Mas eu insisto. No consigo pensar em outra frmula alm desta: escrever devir, mas no tornar-se escritor, nem um memorialista. Nada disso. No porque vivi uma histria de amor que vou escrever um romance. horrvel pensar assim. No apenas medocre, horrvel! CP: H uma exceo regra: Nathalie Sarraute, uma escritora fabulosa, escreveu um livro chamado Infncia. Um momento de fraqueza? GD: Absolutamente! Nathalie Sarraute uma escritora fabulosa, mas no um livro sobre a infncia dela. um livro no qual ela testemunha, reinventa... CP: Banquei o advogado do diabo. GD: Eu sei, mas um papel muito perigoso. Ela inventa a infncia do mundo. O que interessa a N. Sarraute de sua infncia? So algumas frmulas estereotipadas das quais ela vai tirar maravilhas. Pode ser o que ela fez com as ltimas palavras de ... De quem mesmo? CP: Tchekov. GD: As ltimas palavras de Tchekov. Ela tirou da. Depois, ela pega de novo uma menina que ouviu algum dizer: "Como vai?" e vai criar um mundo de linguagem, fazer proliferar a linguagem. Claro que Nathalie Sarraute no se interessa por sua prpria infncia! CP: Tudo bem, mas mesmo assim... GD: Claude Sarraute talvez se interesse, mas Nathalie Sarraute, no. CP: Claro, claro. Aceito tudo isso. Mas, de alguma forma, foi um treinamento precoce que o levou Literatura? Voc reprimiu a infncia e a rejeitou como uma inimiga. Isso foi a partir de que idade? um treinamento? Por outro lado, a infncia sempre volta, mesmo que seja de uma forma

revoltante. preciso treinar quase diariamente? Precisa ter uma disciplina cotidiana? GD: Isso simplesmente acontece, eu acho. A infncia, a infncia... Como tudo, preciso saber separar a infncia ruim da boa. O que interessante? A relao com o pai, a me e as lembranas da infncia no me parecem interessantes. interessante e rico para si prprio, mas no para escrever. H outros aspectos da infncia. Falamos h pouco do cavalo que morreu na rua, antes do surgimento do carro. Encontrar a emoo da criana... Na verdade, "uma" criana. A criana que "eu" fui no quer dizer nada. Mas eu no sou apenas a criana que fui, eu fui "uma" criana entre muitas outras. Eu fui "uma criana qualquer". E foi assim que eu vi o que era interessante e no como "eu era a tal criana". "Eu vi um cavalo morrer na rua antes que surgissem os carros". No estou falando por mim, mas por aqueles que viram. Muito bem, muito bem... Perfeito. uma tarefa do tornar-se escritor. Algum fator fez com que Dostoivski o visse. H uma pgina inteira em Crime e castigo, eu acho, sobre o cavalo que morre na rua. Nijinski, o danarino, o viu. Nietzsche tambm viu. J estava velho quando o viu em Turim, eu acho. Muito bem! CP: E voc viu as manifestaes da Frente Popular. GD: Sim, eu vi estas manifestaes, vi meu pai dividido entre sua honestidade e seu anti-semitismo. Eu fui "uma" criana. Eu sempre insisti no fato de que no se entende o sentido do artigo indefinido. "Uma" criana espancada, "um" cavalo chicoteado. No quer dizer "eu". O artigo indefinido de uma extrema riqueza. CP: So as multiplicidades. Falaremos disso. GD: Sim, a multiplicidade. F de Fidelidade CP: F de Fidelidade. Fidelidade no gera amizade. Tudo isso vem de um mistrio muito maior. Com o Gordo e o Magro, e Bouvard e Pecuchet. Vamos passar para a letra F. GD: Vamos ao F. CP: Escolhi a palavra Fidelidade. Fidelidade para falar de amizade, j que h 30 anos, amigo de Jean-Pierre Braunberger. E todos os dias, vocs se telefonam ou se vem. como um casal. Voc fiel s suas amizades, fiel a Flix Guattari, a Jerme Lindon, a Elie, a Jean-Paul Manganaro, Pierre Chevalier... Seus amigos so muito importantes para voc. Franois Chtelet e Michel Foucault eram seus amigos e voc os homenageou como amigos com grande fidelidade. Queria saber se a impresso de a fidelidade estar obrigatoriamente ligada amizade correta? Ou ser o contrrio? GD: No h Fidelidade. s uma questo de convenincia, j que comea com F. CP: Sim, e o A j foi preenchido. GD: outra coisa. A amizade. Por que se amigo de algum? Para mim, uma questo de percepo. o fato de... No o fato de ter idias em comum. O que quer dizer "ter coisas em comum com algum"? Vou dizer banalidades, mas se entender sem precisar explicar. No a partir de idias em comum, mas de uma linguagem em comum, ou de uma pr-linguagem em comum. H pessoas sobre as quais posso afirmar que no entendo nada do que dizem, mesmo coisas simples como: "Passe-me o sal". No consigo entender. E h pessoas que me falam de um assunto totalmente abstrato, sobre o qual posso no concordar, mas entendo tudo o que dizem. Quer dizer que tenho algo a dizer-lhes e elas a mim. E no pela comunho de idias. H um mistrio a. H uma base indeterminada... verdade que h um grande mistrio no fato de se ter algo a dizer a algum, de se entender mesmo sem comunho de idias, sem que se precise estar sempre voltando ao assunto. Tenho uma hiptese: cada um de ns est apto a entender um determinado tipo de charme. Ningum consegue entender todos os tipos ao mesmo tempo. H uma percepo do charme. Quando falo de charme no quero supor absolutamente nada de homossexualidade dentro da amizade. Nada disso. Mas um gesto, um pensamento de algum, mesmo antes que este seja significante, um pudor de algum so fontes de charme que tm tanto a ver com a vida, que vo at as razes vitais que assim que se torna amigo de algum. Vejamos o exemplo de frases! H frases que s podem ser ditas se a pessoa que as diz for muito vulgar ou abjeta. Seria preciso pensar em

exemplos e no temos tempo. Mas cada um de ns, ao ouvir uma frase deste nvel, pensa: "O que acabei de ouvir? Que imundicie essa?" No pense que pode soltar uma frase destas e tentar voltar atrs, no d mais. O contrrio tambm vale para o charme. H frases insignificantes que tm tanto charme e mostram tanta delicadeza que, imediatamente, voc acha que aquela pessoa sua, no no sentido de propriedade, mas sua e voc espera ser dela. Neste momento nasce a amizade. H de fato uma questo de percepo. Perceber algo que lhe convm, que ensina, que abre e revela alguma coisa. CP: Decifrar signos. GD: Exatamente. Disse muito bem. s o que h. Algum emite signos e a gente os recebe ou no. Acho que todas as amizades tm esta base: ser sensvel aos signos emitidos por algum. A partir da, pode-se passar horas com algum sem dizer uma palavra ou, de preferncia, dizendo coisas totalmente insignificantes. Em geral, dizendo coisas... A amizade cmica. CP: Voc gosta muito dos cmicos, das duplas de amigos, como Bouvard e Pecuchet, Mercier e Camier... GD: Sim, Jean-Pierre e eu somos uma plida reproduo de Mercier e Camier. Eu estou sempre cansado, no tenho boa sade, Jean-Pierre hipocondraco e nossas conversas so do tipo de Mercier e Camier. Um diz ao outro: "Como est?" O outro responde: "Uma bela viola, sem muito bolor". uma frase cheia de charme. Tem de gostar de quem a diz. Ou: "Estou como uma rolha no balano do mar". So boas frases. Com Flix diferente, no somos Mercier e Camier, estamos mais prximos de Bouvard e Pcuchet. Com tudo o que fizemos juntos, mergulhamos em uma tentativa enciclopdica. E dizemos coisas como: "Temos a mesma marca de chapu!" E volta a tentativa enciclopdica, a de fazer um livro que aborde todos os saberes. Com outro amigo, poderia ser uma rplica de o Gordo e o Magro. No que se deva imitar estas grandes duplas, mas amizade isso. Os grandes amigos so Bouvard e Pcuchet, Camier e Mercier, o Gordo e o Magro, mesmo que estes tenham brigado. Pouco importa. Na questo da amizade, h uma espcie de mistrio. Isso diz respeito direto Filosofia. Porque na palavra "filosofia" existe a palavra "amigo". Quero dizer que o filsofo no um sbio. Do contrrio, seria cmico. Ao p da letra, o "amigo da sabedoria". O que os gregos inventaram no foi a sabedoria, mas a estranha idia de "amigo da sabedoria". Afinal, o que quer dizer "amigo da sabedoria"? Esse que o problema. O que a filosofia e o que pode ser amigo da sabedoria? Quer dizer que o amigo da sabedoria no sbio. H uma interpretao bvia que : "Ele tende sabedoria". No por a. O que inscreve a amizade na filosofia e que tipo de amizade? H alguma relao com um amigo? O que era para os gregos? O que quer dizer "amigo de"? Se interpretamos "amigo" como aquele que "tende a", amigo aquele que pretende ser sbio sem ser sbio. Mas o que quer dizer "pretender ser sbio"? Quer dizer que h outro. Nunca se o nico pretendente. Se h um pretendente, porque h outros, quer dizer que a moa tem vrios pretendentes. CP: No se o prometido da sabedoria, -se apenas um pretendente. GD: Exatamente. Ento, h pretendentes. E o que os gregos inventaram? Na minha opinio, na civilizao grega, eles inventaram o fenmeno dos pretendentes. Quer dizer que eles inventaram a idia de que havia uma rivalidade entre os homens livres em todas as reas. No havia esta idia de rivalidade entre homens livres, s na Grcia. A eloqncia. por isso que so to burocrticos. a rivalidade entre os homens livres. Ento, eles se processam mutuamente, os amigos tambm. O rapaz ou a moa tem pretendentes. Os pretendentes de Penlope. Este o fenmeno grego por excelncia. Para mim, o fenmeno grego a rivalidade dos homens livres. Isso explica "amigo" na Filosofia. Eles pretendem, h uma rivalidade em direo a alguma coisa. A qu? Podemos interpretar, tendo em vista a histria da Filosofia. Para alguns, a Filosofia est ligada ao mistrio da amizade. Para outros, est ligada ao mistrio do noivado. E talvez seja por a. Les fianailles rompues [O noivado rompido], Kierkegaard. No h Filosofia sem este texto, sem o primeiro amor. Mas como j dissemos, o primeiro amor a repetio do ltimo, talvez seja o ltimo amor. Talvez o casal tenha uma importncia na Filosofia. Acho que s saberemos o que a Filosofia quando forem

resolvidas as questes da noiva, do amigo, do que o amigo, etc... isso que me parece interessante. CP: E Blanchot na amizade? Havia uma idia de... GD: Blanchot e Mascolo so os dois homens atuais que, em relao Filosofia, do importncia amizade. Mas num sentido muito especial. Eles no dizem que preciso ter um amigo para ser filsofo; eles consideram que a amizade uma categoria ou uma condio do exerccio do pensamento. isso que importa. No o amigo em si, mas a amizade como categoria, como condio para pensar. Da, a relao Mascolo-Antelme, por exemplo. Da, as declaraes de Blanchot sobre a amizade. Eu tenho a idia de que... Eu adoro desconfiar do amigo. Para mim, amizade desconfiana. H um verso de que gosto muito, e me impressiona muito, de um poeta alemo, sobre a hora entre co e lobo, a hora na qual ele se define. a hora na qual d