A Brusca
Agustina Bessa Luís
AGUSTINA BESSA LUÍS nasceu em Vila Meã (Amarante), em 15 de Outubro de
1922. Data de 1948 o seu primeiro romance, Mundo Fechado, publicando novo
romance em 1950, Os Super-Homens. Um e outro passam despercebidos.
Porém, logo no primeiro se define um certo hermetismo que caracteriza toda a
obra romanesca de Agustina Bessa Luís - "o estranho sortilégio de um belo
mundo fechado" -, que quinze anos mais tarde inicia a publicação do ciclo As
Relações Humanas. Entretanto, de 1951 a 1953 publica os Contos
Impopulares, depois reunidos em volume. A Sibila data de 1954 (Prémio Delfim
Guimarães 1953 e Prémio Eça de Queirós 1954) e impõe a sua autora como um
dos nomes mais importantes da literatura, portuguesa contemporânea. A
Muralha (1957), O Susto (1958), Ternos Guerreiros (1960), O Manto (1961) e O
Sermão do Fogo (1963) são outros tantos romances escalonados ao longo de um
processo de maturação que mais se acentua a partir de Os Quatro Rios (1964),
obra que dá início ao ciclo As Relações Humanas, depois completado por A
Dança das Espadas (1965) e Canção diante de uma Porta Fechada (1966 -
Prémio Ricardo Malheiros). Se "para o artista, para o psicólogo, não há almas
simples", como o diz a própria autora dos Contos Impopulares, tão-pouco o são,
efectivamente, as das personagens de Agustina Bessa Luís. Situando
habitualmente as suas obras no ambiente burguês da região do Minho - em
que o pitoresco, descrito com minúcia, assume um carácter sobretudo mágico -
, nele faz mover personagens muitas vezes caprichosas mas persistentes nas
suas paixões, ora megalómanas, ora mesquinhas. A prosa tumultuosa e
ambígua de Agustina Bessa Luís sugere admiravelmente aquilo a que Rilke
chamou o "oculto e culpado Deus-Rio do sangue", as forças cegas e indomáveis
que animam o Homem, presentes e manifestas no desejo. Os dois romances por
ora incluídos no ciclo A Bíblia dos Pobres -Homens e Mulheres (Prémio
Nacional de Novelística) e As Categorias- datam de 1967 e 1970. Agustina
Bessa Luís publicou ainda uma peça de teatro, O Inseparável (1958), e um livro
de viagens, Embaixada a Calígula (1961). Tendo representado Portugal na II
Rencontre de Lourmarin (1959) a convite da Faculdade de Letras e de Ciências
Humanas de Aix-en-Provence e da Fundação Laurent-Vibert, foi membro do
Conselho Director da Comunità Europea degli Scrittori (1961-1962). A novela
inédita que dá o título a esta recolha data de 1970 e é bem representativa da
obra de Agustina Bessa Luís. Juntamente com A Brusca publicam-se diversos
contos dados à estampa em publicações avulsas, de 1958 a 1967.
AGUSTINA BESSA LUÍS
© Agustina Bessa Luís e Editorial Verbo. 1971
Composto e impresso por Gris, Impressores
Lisboa
A BRUSCA
EDITORIAL VERBO
A BRUSCA
Viajando um dia de Lisboa ao Porto, o senhor d'Além, homem organizado nos
vícios e promíscuo nas confidências, queixou-se ao seu amigo Camilo Timóteo
dos seus desgostos de família. Tinha uma casa em Além, freguesia que confina
com outra de nome Sabadim, donde foi natural um pregador famoso em
oratória e carneiro de tigelada. Estas terras estendiam-se pela fecunda região
de Montélios e eram muito povoadas de solares e ricas mansões de lavoura. O
senhor d'Além pegou no seu feltro cinzento, deu um jeito revirado e pensativo
às largas abas, e disse:
- Se não fosse não sei porquê, vendia aquela casa. Minha mãe casou lá e custa-
me ver que a desrespeitam com orgias que não posso travar. Meu irmão serve-
se dela para paródias, e passam-se lá cenas vergonhosas.
- Compro-a eu - disse Camilo Timóteo. Era o terceiro filho duma boa família de
província que vivia de rendas mas que, passados os tempos auspiciosos,
instalava os caseiros nos seus palácios arruinados. Este Camilo Timóteo era de
génio fadista mas agradável. Nunca se casara. Tinha gostos literários e eram
célebres as suas verrinas em verso e as suas cartas de recomendação.
O estilo era jocoso e empolado, e o espírito bastante fino, ainda que tortuoso.
Camilo Timóteo tinha quarenta e muitos anos, era boa figura e bem
conversado. Todavia, uma doença que sofrera em criança tornara-o incapaz de
procriar. Isto afectou, com o tempo, o seu carácter, que se fez desconfiado e
muito susceptível. Porém, na data em que viajava com o senhor d'Além e ouvia
os seus desabafos, parecia apenas um simpático provinciano com o seu fato
demasiado elegante e um embrulho de pastéis folhados, presente dilecto para
uma prima mais preferida. Na narrativa do senhor d'Além havia alguma coisa
que despertou um desejo estranho na sua alma. Ele não conhecia a casa da
Brusca, mas um ânimo perverso e enigmático pesou na sua decisão. - Compro-
a-disse, com desenvoltura desafiadora que era nele um atractivo. São vulgares
estes negócios rápidos entre gente da província. O tédio inspira-os, o orgulho
mantém-nos. Camilo Timóteo não surpreendeu o seu companheiro de viagem;
este conhecia o génio original que predomina nos filhos terceiros de casas que a
mediocridade ameaça. E a oportunidade de se livrar dum irmão libertino fez
com que sustentasse com boa cara a sua palavra. Assim mudou de mãos a
casa da Brusca.
Quando tomou conta da nova propriedade, Camilo Timóteo transferiu para lá
os seus livros e as velhas cadeiras de palhinha, e instalou-se. Os azulejos da
grande varanda aberta para a estrada e os campos estavam intactos ainda.
Mostravam cenas de caça e de lenhadores que derrubavam árvores. No azul de
Delft perfilavam-se veados reais e francolins. E entre as colunatas de mármore
que sustentavam o alpendre havia Uns canteiros de terra sorvada e pálida onde
floriam, sem folhas, gerânios cor-de-rosa. A capela era pequena, de tecto em
aduelas pintado com acantos e florões fantásticos. No altar, carregado de talhas
e pés de vinha desabrochados em oiro, um Santo Antão, com olhos vidrosos de
lagartixa, tinha o ar escanhoado e prestável dum bom empregado de loja de
fazendas. Toda a capela vibrava duma força pagã e destemida. Ainda que de
aparência tão sossegada no seu pequeno pedestal de escaiola, Santo Antão
devia encarar ainda uma visão lúbrica nessa flora vermelha suspensa do tecto.
Eram corolas como ventres abertos, eram curvas de lianas e de palmas tecendo
um ramo ardente sem princípio nem fim. Camilo Timóteo achou a capela
escura e desproporcionada. Fechou-a à chave e deixou-a frequentar pela escada
exterior que ela tinha, permitindo que lá fizessem novenas algumas donzelas
magras e opiniosas. Antigamente, a casa da Brusca ocupava um terreno
desafogado ao fundo duma alameda de nogueiras francesas. Mas a estrada
nacional rasgou a propriedade, e os senhores d'Além, mal humorados,
venderam as vessadas com os seus tanques, e as nogueiras francesas foram
pouco a pouco derrubadas. Eram dos poucos exemplares desse tipo que havia
na região, e constava que tinham sido trazidas pelos condes borguinhões. Agora
a casa da Brusca estava recuada só três passos da estrada, e algumas sebes
anémicas de buxo desenhavam um arabesco pobre diante das portas de
enormes fechaduras chapeadas em losango. Nas traseiras não havia também
muita largueza; só um jardim em que se pressentia a traça arábica, com uma
fonte baixa e laranjeiras. Camilo Timóteo não teve muito por que se felicitar.
Depois dum Inverno que passou na capital, doente com antrazes, afeiçoou-se a
uma mulher da vida chamada Tília, ou de nome completo Domitília; trouxe-a
com ele para a Brusca, e aceitou como seu filho uma criança que dela nasceu.
A província, senhores, deixai-me contar: todas as violências do lugar-comum,
todas as sevícias do sentimento que se não espelha nos interesses têm aí o seu
reinado. Se sois altruísta, magnânimo, desafectado de ambições, pródigo de
certas profecias do coração, não demoreis os vossos passos nessas belas vilas
tão inofensivas para o forasteiro e tão inquietantes para o que projecta
mudança. Na província, o costume é o soberano. Pensai alterá-lo, e tereis
arcontes e beleguins, trovadores e donas contra a vossa vida. Proclamai uma
inovação, e cozinheiras honestas, magas do bolinho de bacalhau e da lampreia
bordalesa, hão-de ministrar-vos uma mistura ervada. A paz da província
chama-se prudência. Uma prudência ataviada de simpatias e consentimentos,
às vezes uma prudência chamada instinto clerical, botânico, que destila veneno
e doçura da mesma planta. Se quereis viver seguro, não useis dos vossos
demónios na província, ou o vosso fígado será devo-
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rado. Prometeu foi um provinciano demissionário. Podeis ser originais, mas não
criadores; podeis morrer de tédio, mas não de amor.
A população bem pensante duma vila que tinha ainda em bom estado o paço
dos seus condes contemporâneos de D. Afonso, o Bolonhês, podia compreender
Camilo Timóteo se ele fosse um violento ou um místico. Mas era um homem
sensível que se refugiava numa secura um pouco desdenhosa. Conversava bem,
mas saía raramente de casa. Um irmão que tinha, mais velho do que ele,
frequentador de boticas e em boas relações com as casas principais, tomara-lhe
um rancor profundo depois que o viu dar ao bastardo da Tília o nome dum avô
de honrosa nomeada. Sabia-se de boa fonte do desastre físico de Camilo
Timóteo. Este "saber de boa fonte" inclui, na província, as maiores sevícias
morais, as maiores depredações da dignidade humana. Uma palavra velada,
outra confidencial, podem fazer pesar sobre a vida duma pessoa a pedra dum
túmulo. Camilo Timóteo tornou-se raivoso depois de ter sido apenas infeliz. E
todos os anos a Tília dava à luz um novo rebento que ele baptizava com os
nomes mais célebres da família ilustre de que descendia.
Não só a sua degradação teve esse recurso para ofender os manes em que toda
a terra comungava, como se reflectiu na própria casa da Brusca. Porque a
chamavam assim, era de incerta explicação. A Brusca era um palácio com
trezentos anos e tinha boa fachada com varandas corridas rematadas no estilo
barroco em moda
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na sua época. Não dispunha de muito terreno em volta, o que lhe limitava a
grandeza. Mas Nazoni, que tanto fez pelos mestres canteiros portugueses, se
não pela arquitectura, devia ter aconselhado os planos da Brusca, tanto mais
que, no tempo, os senhores d'Além eram afortunados de prebendas e
protecções. Uma das meninas da Brusca fora a La Vallière da era de Pombal,
uma espécie de Flor da Murta sem cronista. Os senhores d'Além ainda tinham
em casa baús de couro vermelho e cheios de vestidos de corte. As ruches e as
rendas desfaziam-se, mas as sedas dos teares de Lião eram ainda muito belas;
um que outro saiote bordado foi cair nas arcas das sés, feito casula de
Pentecostes.
A casa da Brusca tinha uma entrada nobre de tecto artesonado. Cada caixilho
era pintado por um artista de Braga e mostrava os mistérios do Rosário com
muito pormenor de fauna e flora local. O conjunto resultava de bom parecer,
com a Virgem amamentando ou dormindo debaixo dum salgueiro; um cão
amarelo e orelhudo, como os há por toda a província, meios traçados de furões,
aparecia por toda a parte, na singela composição da paz rural, entre milhos,
latadas e feiras de ano. O tecto da Brusca era considerado uma jóia de
artesanato, aparentado de perto com um Fra Angélico de sandália cardada,
sustentado a boroa e azeitonas.
Toda a casa, naquele correr de três salas com varandas de ferros cordoveses,
sofreu novos desastres com a prole da Tília que ia crescendo. Apareceram
quartos esquinados e ergueram-se tabiques num estilo aciganado.
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Parecia que uma turba de saltimbancos acampara nos salões, com as suas
tendas, os seus cães e o guarda-roupa sujo. Depois, como uma clarabóia
gigante, chegou a abrir-se uma galeria junto ao telhado. Era como se o coração
da Brusca fosse arrancado. Aquele vão enorme, banhado duma luz poeirenta,
causava o confrangimento dum corpo aberto para uma autópsia. A Tília,
mulher guedelhuda e caprichosa, comandava as obras sem que Camilo
Timóteo lhe pusesse travão. Ele era-lhe reconhecido porque lhe vira sempre
dedicação, e não pensava em impor-lhe os seus próprios valores. Privá-la da
maternidade parecia-lhe cruel. Amava as crianças com um certo desprezo sem
ilusões. Achava perversas as leis da espécie e, no entanto, sagradas. Uma
mulher fecunda causava-lhe uma certa inquietação e até surpresa sempre
nova; e, desse modo, quando a Tília apareceu grávida pela segunda vez e calou
durante uns tempos o seu estado, ele sentiu-se comovido, mais do que
humilhado. Ela era ainda rapariga e, apesar da sua vida desabusada, guardava
nela uma certa candura, uma espécie de confiança na vida que excluía todo o
pudor. Esse segundo filho teve-o dum dançarino então muito conhecido nos
ranchos populares. Era um homenzinho arisco e vaidoso, mestre na gota e, no
vira cruzado. Gabava-se de ser o pai de três ou quatro crianças da Tília, mas
não era verdade. Depois que ele mostrara desprezar Camilo Timóteo e se riu
dele, a- Tília deixou de lhe falar. Procurou-a bastantes vezes, mas só encontrou
uma frieza que ele não soube explicar. Até na
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traição há uma fidelidade própria; uma mulher pode servir os sentidos e
guardar um respeito descarnado e extremo àquele a quem acaba de trair.
Camilo Timóteo compreendia estas coisas. O ramo de Jessé não' 'floria nele,
mas nem por isso deixava de sentir uma grande e piedosa paixão pelo milagre
da vida. Amou sempre essa mulher ignorante e libertina, sem tentar seduzi-la
com a estéril verdade do seu espírito. Amou os filhos dela como se Deus lhos
confiasse. Foi contra o pequeno mundo dos seus pais e avós que a sua cólera se
levantou.
Tudo o que podia significar infâmia para o preconceito e escândalo para a lei da
comunidade ele usou como bandeira e atirou à cara dos homens bons. Tornou-
se escárnio de novos e anátema de velhos. Os mais vulgares tentaram achar
nele companhia dos seus vícios; como só encontraram um homem que mal
pousava o livro que lia para lhes dar as boas-vindas, retiraram-se
desconcertados. Aquela figura esmerada e bela parecia deslocada na casa da
Brusca. Quando chovia, estendia-se a roupa molhada nas salas. O vapor da
água cheirava a barreia e descolava os restos das sedas verde-limo e cor de
morango das paredes. As crianças pequenas urinavam no chão ou entornavam
a sopa que algum cachorro rabudo e sonolento ia lamber. E, como os Invernos
eram frios, as braseiras com brasas de vide sucediam-se, deixando cair tições
que lavravam grandes lagartas de fogo nos sobrados. Ainda que muito
abastado, Camilo Timóteo chegou quase a viver na miséria;
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isso porque deu ao desleixo actualizar as rendas e vigiar as propriedades. Os
filhos da Tília cresceram como vadios e tiveram pouca instrução, mostrando
tendências mais para servir tiranos, do que para governarem haveres.
Um dia de Agosto pela tarde, o senhor d'Além passou na estrada e foi
surpreendido pelo aspecto da Brusca, que não via há muito tempo. As silvas e
as ervas cresciam afogando os poucos palmos de terra da entrada. Havia poios
e caganitas de ovelhas nos lugares outrora ajardinados, e a nobre varanda
conventual tinha um colchão de folhelho com a nódoa mijada a secar ao sol.
Aquela fachada de varandas de procissão ainda era sumptuosa; mas, mais do
que a ruína, um ignóbil abandono marcava a Brusca como uma bofetada. O
senhor d'Além sabia dessa prole da Tília que Camilo Timóteo' assinava como
sua; mas sentiu um desprezo que lhe cortou a fala, quando um bando de cinco
crianças ávidas e tristonhas veio rodeá-lo.
- O dono não está?-perguntou, hesitante.
- Tu quem és? - disse um dos meninos. Eram todos rapazes. Talvez a Tília,
como Lady Macbeth, gerasse só anjos machos no seu seio implacável. O senhor
d'Além refreou a zanga. Ele sabia que os filhos dos lavradores da região interior,
a meia légua da orla marítima, eram selvagens como os pastores do Barroso e
tratavam toda a gente com um descaro primitivo. Mas encontrar daquilo num
solar urbano como era a Brusca parecia-lhe chocante. Com o curto pingalim de
baleia
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que trazia sempre com ele quando saía a pé, arredou os pequenos que lhe
cortavam a entrada. Deixaram-no ir. No entanto, não adiantou muito. Uma
mulher de olhos esverdeados veio recebê-lo. Era a Tília. Tinha um ar melífluo e
uns longes de mulata nas feições. Depois de muitos anos, não perdera a
languidez fadista de meretriz que se refresca na soleira da sua casa. Tinha um
sorriso flácido e pensativo, quase encantador. Alguma coisa de submisso,
interesseiro e fútil emanava dela. Lady Macbeth não era decerto sua parenta. A
Tília era uma crioula clara sem mais horizonte do que as intrigas da matriz,
como diria Stendhal em anotação à margem dos mais finos sentimentos. Ela
dobrou o avental sobre o ventre, para disfarçar o desarrumo de toda a sua
pessoa. Estava grávida outra vez.
- Não sei se ele está em casa - disse, cautelosamente. O senhor d'Além entrou
para o átrio enquanto ela ia anunciá-lo. O átrio e a escada eram, na
arquitectura do Minho, o testemunho viril do amo da casa. O senhor d'Além
sofreu mais um abalo; o tecto, com os seus caixilhos pintados, tinha sido
completamente arrancado. Parecia, à primeira vista, que um incêndio tinha
devorado a Brusca, deixando aberta uma veia de estuque enegrecida no correr
das paredes mestras. - Eu bem dizia, ele não está- gritou a mulher, de cima.
Mostrava não ter vontade de descer outra vez, e, debruçada na faixa de pedra
do corrimão, ela olhava para o visitante com tranquila manha. Via-se que
mentia e que isso lhe agradava. O senhor d'Além saiu dali eno-
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jado e disse, a quem encontrou pela frente, ao atravessar a vila:
- Foi para isso que eu me desfiz da casa! Meu irmão era gandaeiro, este é um
bandalho. -E tomou um café com bagaço na praça, sentado numa das cadeiras
de ferro vermelhas que davam classe de turismo à terra, ainda que o mais das
vezes estivessem ocupadas por negociantes e funcionários públicos. O
tesoureiro da Fazenda assoou o grande nariz romano e dobrou o lenço em
quatro antes de o guardar outra vez.
- É uma pena -disse.- É mesmo uma pena. O senhor d'Além atirou uma moeda
para cima da mesa, que caiu no chão. Não se dignou apanhá-la. Sentia-se
afrontado e sem forças para suportar a veemência dos seus sentimentos. Tudo
estava degradado, as coisas já não eram o que tinham sido. Lembrou-se com
delicada saudade dos tempos em que tudo parecia mais seguro e mais
próspero. Havia costumes fantásticos, como a batalha das cântaras de barro na
terça-feira de Entrudo. As raparigas jogavam as cantarinhas de mão em mão
até que caíam no chão e se partiam. Donde vinha esse uso estranho? Eram
oferendas que se dedicavam a um deus prestes a despertar do sono do Inverno?
Ao senhor d'Além nunca lhe ocorrera investigar nada disso, mas agora
lembrava-se dessas coisas com angústia e lancinante tristeza, ilembrava-se de
crimes, de raptos, de paixões. A província fora o cofre das lendas, havia sempre
a asa dum mistério sobre uma casa e um lugar; os canaviais tinham segredos
para contar. - É
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uma pena- repetiu o tesoureiro. E o seu grande nariz concordou plenamente,
que sim, que era uma pena. tesoureiro era talvez um dos amantes da Tília,
havia quem o jurasse. A cumplicidade que se produziu em volta dos bastardos
fez com que a vila em peso os adoptasse. Os amigos professam na comunidade
das aberrações, mais do que no recreio das virtudes. Enquando cresciam, os
filhos da Tília iam obtendo um lugar ao sol na feira das opiniões.
Insatisfeito com o desabafo que tivera, o senhor d'Além pensou recorrer a
intermediários para novo negócio entre ele e Camilo Timóteo. Comprava a
Brusca outra vez, estava decidido. Havia um homem indicado para abordar
essa empresa. Era o Claudino, rendeiro de terras e um novo tipo de
administrador urbano que se interpunha entre o valor das fazendas e os lucros
dos proprietários. Sagaz e mandrião, um desses leigos que sabem de leis sem
ter ido a Coimbra e aconselham os processos dos litigantes de má fé, o
Claudino conhecia a fundo as crónicas da província e era uma Torre do Tombo
conversável.
Vivia o Claudino no meio duns grandes lameiros murados a sul por um bosque
de mimosas. A casa, dessas casas de mestres-de-obras em cujos corredores mal
cabe um caixão e que têm janelas altas como panos de altares, parecia feita
para receber uma colónia de férias. O recheio era duma vulgaridade pomposa.
As falsas antiguidades dos leilões do Porto misturavam-se às mobílias de pau-
preto com sofás hidrópicos e incha-
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dos. A mulher de Claudino era uma senhora magra e despretensiosa, uma
Madame Renal que desse à maternidade o picante duma relação proibida. Ver a
maneira como ela usava de autoridade e ternura com o seu filho Adriano
causava uma angústia misturada de estranha excitação. Era uma mulher que
se conservava jovem à custa de ignorar o tempo que não era partilhado com o
próprio filho. Em solteira, ela escrevia uns "versos fabulosos", com o que teve
fama entre as irmãs. Se fosse rica, baptizavam-na de excêntrica. Tinha olhos
azuis que, quando não usava os horríveis óculos de aros de oiro, eram belos,
com a doçura um pouco enigmática dos míopes. Chamava-se Isabel, tinha
cabelo louro, usava-o cortado modestamente e sem graça. O senhor d'Além
causou nela boa impressão, pois se criara com cavalheiros e seu avô jantava
uma vez por semana com um fidalgo estúpido como uma corneta, mas que
tinha distintas maneiras. Infelizmente, a pelintrice tornara-a desconfiada. Com
receio de ser antiquada, era prolixa e sem estilo. Aceitando o convite para
almoçar, o senhor d'Além ria-se vendo que ela servia aperitivos e punha na
mesa talheres de peixe, além de lavabos de prata. "Onde vai ela buscar tudo
isto?", pensou, divertido. A etiqueta, trazida na bagagem das duquesas de
Abrantes, caía mal naquelas paragens de Montélios onde S. Fortunato dormira
o sono derradeiro.
- Desculpe a sem-cerimónia. Nós somos assim, gente simples e sem pretensões
... - Ela comia às bicadinhas leves o seu bolo de cenoura. - Adivinhe do que
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é feito... - Ela tinha grande orgulho em fazer surpresas daquelas, excitava-a a
ideia de que confundiam a cenoura com gemas de ovos.
O senhor d'Além mostrou-se muito mau conhecedor. Ela exultava. -Veja se
gosta... Veja primeiro se gosta...
"Como é capaz de dormir com um homem?", pensou, subitamente, o senhor
d'Além. Corou como se tivesse proferido essas mesmas palavras. Mas Claudino,
festivo, subserviente, oferecia-lhe agora o seu vinho do Porto, um líquido pardo
de velho que era. Tinha perdido o aroma e adelgaçara, mas o senhor d'Além
elogiou-o correctamente, olhando-o à transparência. "É um homem como deve
ser", pensou Isabel. "Não faz bochechos como os que se julgam apreciadores."
Nunca o senhor d'Além lhes tinha dado a honra de sentar-se à sua mesa. Ela
reparou que ele comia sem dar demasiada atenção aos bocados que lhe
serviam. Isabel achou isso de boa educação, mas ficou um pouco humilhada.
Estava mais habituada à galhofa de compadres em que se apreciam os petiscos
e se trocam receitas; e o prazer glutão é uma espécie de anonimato em que se
confraterniza sem que o diálogo desperte outros abismos. O ágape era um pacto
de silêncios, ela percebia isso.
O senhor d'Além falou sem grandes rodeios das suas intenções. E, à medida
que ia enumerando e frisando as causas morais que o moviam a reaver a
Brusca, Claudino enchia-se de suspeita, de cálculo, de cobiça. Quando o
senhor d'Além se foi embora, o Claudino,
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que o acompanhara até à estrada, solícito, intrigante, faustoso de atenções, veio
para casa em passo demorado. Era um homem corpulento, quase pletórico,
bombástico de bom senso. Era indispensável nos enterros e nos casamentos;
consolava a família dorida, organizava os cortejos, sabia de praxes como
ninguém. A mulher aborrecia-se com ele tanto como uma loira imaginativa se
pode aborrecer com um ambicioso sem recursos. Eles viviam em casa
arrendada, não possuíam terras, e isso colocava-os numa classe de gente
menos digna de consideração do que um jornaleiro. Eram uma espécie de
cobradores de dízimos, algo de aparentado com o usurário e o salteador. A
própria exuberância prestimosa de Claudino, a secura de espírito de sua
mulher, que passava por brandura de alma, acabaram por estabelecer a
confiança e compensar a sociedade da má impressão que ela tinha de sofrer por
sua causa.
- Isabelinha - disse Claudino, de maneira sonhadora e contagiosa que era a que
ele tinha para as ocasiões interesseiras, larvadas, sublimes de planos ainda mal
esboçados no seu coração de proprietário falhado. - Isabelinha, esta casa
parece um sanatório, mas não tem categoria.
Ela olhou-o por detrás dos óculos de aros de oiro, com rápida estratégia. Não
disse nada. Nunca fora indiscreta nem se metera em assuntos de
administração. Mas a sua presença fria e dum rigor quase sensual podia mover
um homem a um negócio ousado e até a um crime. Compreendeu que a casa
da Brusca estava no
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seu caminho. Não mexeria uma palha, não diria nada. Porém, se fosse preciso
sacrificar alguém, Isabelinha também não tomaria conhecimento.
- Espera, não me leves o copo- disse Claudino, porque ela arrumava a mesa até
à última migalha, fechando os armários à chave com ar de carcereira bastante
inquietador. Tirou o vinho de maneira leve, astuciosa e que parecia distraída.
- Esta casa é boa. Tem muito pé direito e janelas bastantes.
- Sim, mas não é isso. As pessoas vêm aqui e perguntam sempre: "É
arrendada?" E fazem pouco de nós.
- A minha consciência não me acusa de nada. O chão está encerado e limpo e
os móveis foram pagos. E temos um telhado novo.
Claudino estranhou de repente ter-se casado com ela. Era como uma galinha-
da-índia, empertigada e até bonita; mas descarnada até à alma. Quando estava
prestes a desistir de pensar na Brusca, com a varanda nobre onde dantes se
liam sextilhas, Isabelinha disse: - Camilo Timóteo não tem muitos amigos, e
bem precisava ...
Saiu da sala com o tabuleiro dos copos e ouviam-se tilintar quando ela
esbarrava nas paredes do estreito corredor. Claudino esteve oito dias sem
abordar o assunto. Mas as coisas sabiam-se, tinham visto o senhor d'Além na
sua companhia naquele quelho deserto que conduzia à estrada. Uma tarde,
pagou o café ao filho
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da Tília, aquele que era guapo, com cintura quebrada de dançarino.
- Vou amanhã ao Porto; queres ir?
- Para quê ?
- Vou arrematar umas coisas num leilão que lá há. Ajudas-me a trazê-las.
- São caixotes ? Não ando aos carregos.
- Não, não é isso. Depois vês. Se não queres, cá me arranjo. Era pelo passeio,
andas por aí...
O Luís Gonzaga deixou-se cativar. Tinha dezoito anos, davam-se-lhe quinze.
Comia como um lobo, mas era sempre o mesmo esbarrigado e esguio como um
torça!. A mãe nunca o mimara, mas Camilo Timóteo sim. Comprava-lhe tudo o
que ele pedia quando saía com ele, até que o menino cresceu e se fez tunante e
endiabrado. Da escola colheu algumas varadas com o ponteiro do quadro preto.
A Tília tirou-o a tempo, que lho desorelhavam. Mal sabia tirar a prova dos nove
e que o primeiro rei dera uma corrida na mãe Tareja, em São Mamede. Luís
Gonzaga foi um dia a Guimarães e pôs-se a olhar com arranco a carapaça do
Henriques. "Que sorte! Tinha cada braço!" E pareceu-lhe que a vida não o
ajudava, embora, desde a masseira à horta, não deixasse migalha nem raiz.
O Claudino levou-o ao Porto, mostrou-lhe até o Convento das Clarissas e a sala
onde estivera a Teresa do Amor de Perdição. -Olha, tínhamos lá um tecto
igualzinho! - fez o Gonzaga. E maravilhou-se de que
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aquilo pudesse ser obra importante. - Vendemo-lo há dois anos.
-Foi o teu pai quem mandou?
-'Ele não; quando não temos dinheiro, diz assim: "Do céu há-de cair". A minha
mãe fez o negócio com um antiquário. Ele quis-nos comprar também toda a
talha do nosso altar. Das cabeças dos anjos fazia candeeiros. Mas meu pai
tinha a chave e não a deu.
O Gonzaga era um menino descrente e sempre esfomeado. Vivia numa espécie
de sonho veloz desde a infância, um sonho que tinha algo de imerecido, mas
que era afinal a sua vida. Há pessoas que, emancipadas ou não, se comportam
como loucas. Assim a Tília e toda a gente que ela conhecia na cidade,
cortadores de calçado seus vizinhos, pasteleiros e alfaiates e outros; não
gozavam sequer a vida nos raros momentos de compostura que ela lhes
permitia. Eram dementes, possuídos do desejo de destruir, homens que não
sabiam como usar a força do seu fracasso, os recalques e os medos. Exibiam os
seus crimes domésticos, eram ao mesmo tempo redentores e carrascos e
morriam, por acaso, no cimo dum poste, na cama dum hospital. Mas tinham
vaidades estranhas que até o mais profundo das suas alcovas sujas não podia
conhecer. Porque esperavam? Que queriam? Os seus gritos atravessavam as
paredes. Contavam um martírio desabusado, a tristeza, a solidão mesquinha.
Camilo Timóteo tinha pela sua amante e as crianças que ela ia dando à luz
uma fraqueza enorme. "São loucos. Não os posso curar, deixá-los
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como são." E o programa solícito da gente espiritual, a campanha higiénica dos
costumes causavam-lhe tédio e, ao mesmo tempo, envergonhava-se de não
sentir nada de experimentável, de não ter um plano de vida.
Com a intimidade conseguida com o Gonzaga., Claudino fez-se o homem de
confiança na Brusca. Não entrava lá, mas passou a emprestar dinheiro à Tília
em quantias pequenas e sem fiador. Um dia disse, muito paternal:
- Viveis como ratos e sem ser preciso.
- Os caseiros não pagam. Pedem obras, agora é uma mina, amanhã são
ramadas ou cortes novas. - O Gonzaga fez estalar os dedos esqueléticos.
Parecia um jeito rufia, mas nele significava só desapontamento. O Claudino riu-
se.
-Olha que pobrezinhos!
Até aí o Gonzaga e os irmãos julgavam-se pouco mais do que pedintes. A
Brusca dia a dia se ia desfazendo, os cães comiam abóbora crua e não havia
lençóis nas camas, só liteiros velhos pouco asseados. Mas o Claudino
despertava-os para o mundo do crédito; podiam hipotecar e ter dinheiro fácil,
comprar coisas com que mal queriam sonhar, gastar como homens, sem ter por
detrás a garantia dalgum velho que os compadecia. Quando o senhor d'Além foi
informado, era tarde. A Brusca caíra na garra da usura, seria muito' difícil
resgatá-la. Mais uma vez Camilo Timóteo enxovalhava os seus manes; deixá-la-
ia correr a última miséria.
25
- Você traiu-me - disse o senhor d'Além. - Mandei que me comprasse a casa.
Aquele "mandei" causou um suor frio no Claudino. Sentiu o desprezo que bania
de qualquer competição o filho de patrão de casa de comidas que ele era. O pai
era, de facto, um estalajadeiro. Falava-se que alugava quartos em condições
suspeitas, mas depois passou o alvará e foi para a cidade. O nó górdio do seu
destino fora o casamento com Isabelinha; ela tinha papéis de crédito e algumas
jóias.
- O Camilo Timóteo não vende aquela casa. Há-de enterrar-se nela, foi ele que o
disse. Há-de cair-lhe em cima, e ele lá dentro. Podia compô-la e não quer. Podia
mudar-se para outra e não se mexe.
- Que mal lhe fez a Brusca?-disse o d'Além, meio estupefacto.
-'Isso não sei. Que quer? O diabo que lhe assiste não é muito explicado. Há
homens que têm demónios conversadores que falam por eles e os entregam ao
juízo do mundo. Este não. É um diabo mudo.
O senhor d'Além teve um gesto arreliado. Aquele diálogo começava a parecer-
lhe caricato; os filósofos pelintras não têm por eles a poesia dos filósofos
pobres; fazem de latão os pensamentos mais espirituosos e diamantinos.
Retirou-se amuado. Como casava uma filha em Abril, esqueceu-se um bocado
de tudo aquilo. Convidara dois ministros e quatro subsecretários; tinha muitas
dores de cabeça para que o caviar chegasse fresco de Londres. A honra do
caviar é uma comédia singular
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que se não escreveu, que eu saiba. O senhor d'Além não tinha nela o principal
papel; os seus antepassados não comiam caviar, mas sim trutas salmonadas, o
que não era pior. Mas um vizinho seu, industrial, escalou os céus da
gastronomia em poucos anos de produção de pano riscado e de fibras têxteis. E
servia pepinos salgados, desses de que Gogol tanto fala; assim como caviar, de
que ele fala menos nos seus serões ucranianos.
Entretanto, na casa da Brusca nascia outro menino. Parecia menos raquítico
do que os precedentes, porque o pai era, ao que se dizia, o ferreiro mais bonito
da região. Tinha olhos azuis e bigodinho preto. A profissão de ferreiro traz
consigo uma sugestão misteriosa; do mais profundo dos tempos, deuses
andróginos da terra e do céu,- eles chamam o poder da montanha sagrada
sobre os homens. A cova onde cintila o fogo, o tinir da bigorna, o branco
resplendor do metal ardente, têm um efeito calmante sobre os que são tentados
pela morte. Há algo de sacerdotal nesse mester que se relaciona com a matéria
inerte moldada à experiência que nela faz o homem. A Tília não sabia destas
coisas; no entanto, o seu filho era belo e de feitio sossegado. Não chegou a ser
inteligente; mas a inteligência não pertence à arte curativa nem é o ventre de
Vulcano que a engendra.
Camilo Timóteo escolheu para essa criança o nome do seu avô paterno, que
fora juiz desembargador, memorável por um discurso que escreveu quando da
visita do príncipe D. Luís a Viana. Mouzinho fez com que
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o jovem herdeiro da coroa não o proferisse; os bons mestres são, em geral,
gente impolítica.
Camilo Timóteo tinha perto de setenta anos e não gozava de boa saúde. Vivia
com grande desconforto, a casa da Brusca era tão fria que às vezes sair para
fora equivalia a ir procurar uma temperatura mais doce. Quando soube que o
senhor d'Além o queria ver, desculpou-se, mas sentiu pena. Achou que ele
tinha algum direito de lhe pedir contas do estado da sua formosa casa, mas
pensou: "E a casa de Deus que nós somos, como a entregamos nós depois de
morrer?" Não era de modo nenhum um místico, mas assaltavam-no agora
ideias perniciosas e tristes. Tudo o que aprendera e em que se fundara o seu
comportamento até aos quarenta anos lhe parecia uma mentira grosseira. A
honra dos homens, pela qual eles causavam tantos desastres, servia para que
eles vivessem em conflito e, por meio deste, fossem efectuadas irrisórias
transformações. Transformar não era averiguar a verdade. Não tinha forças
para amar os filhos da Tília, mulher simples que não compreendia sequer a sua
condescendência. Porém dava-lhes o nome que o mundo lhes ia pedir depois,
um belo nome constelado de factos distintos e estúpidas façanhas. Isso
correspondia a uma verdade corrente; ele não queria ofender ninguém, mas um
vagabundo sempre aproveita com um achado que faz. Os nomes ilustres que
punha a essas crianças talvez lhes servissem de exorcismo e as poupassem a
alguns azares.
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Toda a gente se insurgiu mais ainda dessa vez contra o que chamavam uma
patifaria. Só Claudino não se atreveu a usar tal linguagem; não era rico nem
marcado por nenhum privilégio, não podia exprimir-se com tanta franqueza.
Há na província três tons de locução: o livre, que se divide em desabusado e em
autoritário; o facecioso, que pode ser satírico e debochado; e, enfim, o razoável,
que convém aos homens que dependem sempre de alguém, funcionários do
clero ou do Governo, ou pequenos comerciantes em vias de falir ou de se
salvarem por casamento ou herança. A promoção afecta o terceiro tom, como o
vento afecta a fecundação das plantas. Claudino pertencia a esse tipo de
homens que nunca riem em primeiro lugar quando ouvem um bom dito. No
breve instante que vai da emoção provocada pelo trocadilho até ao esgar que o
há-de celebrizar ou reduzir a nada, ele percorria toda a escala das
conveniências. Nunca tomava uma atitude; quando muito informava-se. E
deixava-se ficar rigorosamente nas meias tintas, pronto a escapar-se pelas
malhas duma consciência isenta e 'sempre atrasada aos seus próprios
expedientes.
Claudino tinha bastantes dívidas. Não só sofria da mania das pechinchas e
andava pelos leilões como um podengo lambareiro, como Isabelinha, sem sair
de casa, sem ser mulher cara, o obrigava a despesas inquietantes. Ela
arranjava-se para gastar na mesa três vezes mais do que um bom clérigo em
jantar de confissões.
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Além disso, tinha particular engenho para pérgulas, grutas, fontes decorativas.
O seu bosque de mimosas estava ornamentado com banquinhos rústicos; e
mandara construir dois tanques quase com dimensões olímpicas. É preciso
dizer que Isabelinha chamara Adriano ao seu filho, grande e manso cordeiro da
Cólquida, com cabelos amarelos, porque admirava o imperador romano que
teve esse nome. E admirava-o por coleccionador de memórias e copiador de
maravilhas. Ela era uma mulher capaz de criar uma cultura, de tanto que
imprimia no mundo que a rodeava os gostos que não tinha.
Com tudo isto, Claudino não tinha maneira de juntar um pataco. Mas desde
que vira no rosto do senhor d'Além a decepção e a cólera ao falar do mau
destino da Brusca, só pensou em consegui-la. Isabelinha não o dissuadiu. Ela
tinha um tremor de beicinho quando se referia a uma casa dela. E se essa casa
fosse um palácio, por miserável e arruinado que estivesse, isso podia
transformá-la numa megera radiante, que disso tinha costado. As avós e as
tias, marcadas duma atrofia de matriz que as fez mandonas e organizadoras,
estavam-lhe bem no sangue.
- Faz o que quiseres; eu não me meto nisso - disse, virtuosa. Estava no' seu
quarto de dormir, que tinha cinco janelas veladas com mantos de filet. O corpo
dela mal se percebia debaixo da pesada colcha. Parecia o sono de Santa Úrsula
dum Carpaccio do Minho, ela assim visionária e pudica na grande cama de
casal. Claudino
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pousou-lhe a mão no ombro e retirou-a logo. Nunca lhe tocava à luz do dia;
havia alguma coisa naqueles olhos cintilantes e no entanto frios que o
incomodava.
Claudino fez-se encontrado com o Monteiro das Arcas, industrial afortunado
que começara com uma oficina de mobílias e foi patrão de tecelagens. Nunca
chegou a ter grandes fábricas, mas ganhou muito dinheiro em lances,
oportunidades, bambúrrios. Tinha uma sensibilidade de gastador, mais do que
de homem que acumula. Comprava tudo o que lhe desse prazer, e não cuidava
muito da reputação. Tinha uma fisionomia peculiar de cínico sem bases; a
honra do caviar passava-se com ele, pois era requintado em tudo que pudesse
proporcionar-lhe crédito. De resto, era homem ainda elegante, um desses
últimos figurinos que se vestem às seis da tarde para sair e voltam às sete da
manhã, frescos, afáveis com o porteiro e a padeira que encontram à porta de
casa e parecendo sempre um pouco dispostos a financiar uma revolução social-
democrata. Não lhe falem em greves e salários, que ele dirá, com o seu risinho
confortado : "Eles até têm razão ..." Nunca se sabia quando o Monteiro Branco
vinha de más cabeçadas. Um ligeiro tique, que o fazia sacudir o molho das
chaves e escolher a que lhe era precisa, denunciava o seu nervosismo; talvez
tivesse perdido muito ao jogo, não se sabia. Mas ele também gostava de perder;
isso dava prestígio e intensidade à sua vida.
Claudino abordou-o uma vez no Porto. Monteiro jogava o bilhar com arte e
fantasia, era uma das suas
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prendas de boémio. Naquela sala onde pairava o fumo, uma sala de clube com
grandes reposteiros verdes, Monteiro movia-se com uma lentidão que tinha
qualquer coisa de ritual. Falava pouco, escolhendo os interlocutores. Não se
mostrou entusiasmado com o Claudino, mas, como todos os homens tirânicos,
era tolerante a respeito da sua própria corte. O Claudino não foi direito ao
assunto. Eram sete horas, e ele estudava as possibilidades de se fazer ouvir. Às
oito, falou pela primeira vez na Brusca, às oito e meia tomou um café, às nove
decidiu-se. Entretanto, Monteiro reflectia maduramente as suas jogadas.
Aplaudiam-no. Tinha uma claque de rapazes novos a quem, no Verão, por
influências suas, davam fichas nos casinos.
- Não sei o que está para aí a dizer. Quer dinheiro ? Empresto a toda a gente,
menos aos amigos. De outro modo, perco o amigo e o dinheiro.
O Claudino insurgiu-se, não queria dinheiro. Ele queria que o industrial o
substituísse e fosse lançar por ele; porque Camilo Timóteo estava nas últimas,
não durava oito dias, e a Brusca ia à praça. Havia poucos pretendentes, e, por
causa dos seus próprios credores, Claudino não queria propor-se a
proprietário. Era muito simples, era só isso. Monteiro Branco esfregou uns nos
outros os dedos ásperos de giz.
-A casa da Brusca? Não conheço. -Depois fez-se lembrado. - Um pardieiro com
varandas ferrugentas, na curva?
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- Pardieiro, pardieiro... Está velhota, mas a cantaria vale bem seiscentos
contos. Hoje já não se faz daquilo. Aqueles capitéis, aqueles penachos de pedra!
Derreteram-se ali muitos cruzados do Brasil.
Monteiro arrepiou caminho. De insolente fez-se melífluo; não arriscava a que o
tomassem por ignorante. E entre conversa e desconversa concordaram em
encontrar-se depois para assentar o negócio.
- Aquilo a mim não me interessa. Casa, quanta caibas - disse ainda. As luzes
faziam-no mais lívido. Mas era um belo homem, no género dos antigos
vampiros do cinema, de olhar penetrante e implacável. Agora só nos folhetins
de ficção científica se via daquilo, e decerto correspondia a um arquétipo entre
o Mago Merlim e o Cavaleiro da Rosa-Cruz.
Era certo que Camilo Timóteo estava moribundo. A sua bronquite agravara-se
naquele frio cavername da Brusca. Já não se levantava da cama, e o filho mais
pequeno da Tília fazia-lhe companhia, metido num caixote, com uma rodilha
como baeta e uma batata crua para coçar os dentes. Era um menino afoito e
resistia de boa feição aos longos dias calorosos. Vinha do jardim um cheiro de
rosas de Alexandria, opíparos nardos de coração rústico. E o sol, pela vidraça
do quarto de banho, fazia um charco de oiro no chão de mosaico velho coberto
duma rede estalada e suja. Camilo tinha em cima da cama a Gazeta das
Aldeias; escrevia postais com pedidos de semente de rabanetes negros que
cultivava no jardim. A Tília trazia.lhe o leite com canela
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numa xícara esbeiçada. Aquele cheiro da canela lembrava-lhe a infância, as
primeiras febres, a varicela, o sarampo no quarto onde o isolavam. Os irmãos
corriam e gritavam no quintal; ouvi-los era semear de triaga e erva cicuta o
coração. A doença era menor mal do que aquela solitária quarentena, como se
estivesse sepultado, morto, no ventre palpitante da casa. A mãe, mulher severa
e bela, aparecia para puxar-lhe a roupa, tirar-lhe o livro que ele lia. Nunca se
habituara a ouvi-la ralhar; a cara dela quase não se alterava, mas as palavras
feriam como lume. Sempre o atingira com uma pena em que havia algo de
insólito para além da solicitude maternal; era como se ele não a decepcionasse
por ser tão marcado pela natureza. Camilo tinha o retrato da mãe na mais
escura sala da Brusca; e o dele diante, do outro lado. Mediava entre ambos um
poço de sombra, as pessoas receavam cruzar por ali a direito, de medo que
houvesse de facto um buraco aberto no chão. A Tília não se parecia com a mãe
dele; por isso sentia sempre por ela uma espécie de compaixão. Nunca podia
sentir outra coisa, e isso apertava o laço carnal entre ambos. Ultimamente,
quando o médico foi ver Camilo, compraram-se dois lençóis para a cama - que
já os não tinha. Deitava-se nas cortinas velhas sem que lhes fossem descosidos
os galões. Mas não se tratava exactamente de miséria. Uma certa intensidade
emocional descobria-se por baixo de todo o desleixo. No desprezo havia também
estilo, e o abandono ao azar estava longe de ser pobreza ou renúncia. A
província nunca subme-
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tera Camilo Timóteo; não quebrara a sua raça, e na revolução que provocava no
espírito havia algo de criador. Alguns jovens, como o próprio Adriano,
pensavam que ele empolgava as pessoas, mesmo as que não o conheciam.
Armavam-se brigas por uma simples troca de opiniões a respeito da casa da
Brusca. As senhoras, primas e cunhadas entre si, usavam dum diapasão mais
alto para falar de Camilo. Às vezes alguma delas, mais nova e mais irregular de
temperamento, retraía-se de repente e ficava calada. Sentia um enjoo atroz de
tudo, da vila com o seu paço com ameias, das casas donde espreitavam cabeças
despenteadas, dos estabelecimentos que expunham os tecidos em catarata
armados com alfinetes. As padarias de portais azuis chamavam-se A Cristal, A
Modelar, ou ainda A Parisiense. Isto, não se sabe porquê, dava uma tristeza
mofenta, como quando se lê um jornal velho trazido pelo vento. Um dia, essa
casada saía com ar apressado, ia até à extremidade da vila como se procurasse
a morada de alguém; e, com artes policiais, observava a Brusca, tão bela ainda
no seu atroz parecer, com os pés secos dos gerânios na varanda como ossos
descobertos em escavações. Quando voltava, a casada estava de mau humor.
Deitava-se na cama, calada e quase apreensiva, pensando nos vestidos que
tinha, num passeio a Vigo que fizera, num homem que a olhara de certa
maneira. Depois surpreendia as amigas com uma ideia fixa e destemperada :
mudava de casa. Era completamente impossível viver naquela; havia ratos,
ouvia-os no forro em corridas, o jardim tinha
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sardões. Ninguém acreditava. Mas na província, como em qualquer lugar, o que
interessa são os acordos dos pensamentos intraduzíveis.
Estava-se em Junho. Isabelinha deu um jantar quando o filho veio de Coimbra,
e tocou alguma coisa do seu reportório no piano. Adriano sempre ficava pouco
à vontade quando a mãe se exibia. Ela lia os versos só às irmãs, e mesmo assim
depois de muito rogada.
- O Adriano não aprecia - queixava-se de maneira entre irónica e conformada.
Apesar disso, continuava a dominá-lo. Quando a casa ficava em sossego, e só
se ouviam os pios das pequenas corujas nas austrálias, ela ia ao quarto do filho
e conversavam até noite alta. Isabelinha transfigurava-se. Não era mais a
mulher-zinha apagada e sentenciosa, mas uma criatura de espírito ardente e
que comunicava a paixão de revolver o mundo, mais do que o interesse de
solucionar problemas. Era um diálogo sem finalidade, alegre e devastador. Os
olhos azuis chispavam, a pele coloria-se de rosa-vivo. Às vezes Adriano tratava-
a por tu, mas nunca diante do pai. Claudino sentia-se lesado com aquela
intimidade que ele não podia partilhar.
- Isto acaba -disse-lhe Isabelinha um dia. - Ele casa-se, e depois acabou-se. s
Dizia isto com a leviandade cordial que encobre as verdadeiras tragédias.
Ninguém tinha entrado no sentimento dela. Era outra coisa que não se analisa
clinicamente, que não é nome grego ou Escola de Viena. Era aquilo que as
mulheres sentem no amor que escapa ao
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que é instaurado pela natureza. Era uma confiança genial no prazer que outro
ser comunica - isto sem significar um ardil num obscuro campo de persuasões.
Ela era e ele era. Felizes sem dia seguinte, inúteis para o mundo que lhes pedia
definições e movimento.
Nesse Verão, Adriano arranjou um quarto numa praia e foi para lá passar um
mês. Era um quarto de mansarda que cheirava a madeiras velhas, mas quando
Adriano vestia o seu fato de ténis, imaculado, sentia-se um jovem Proust em
Deauville. A casa era de resto grande, com guarda-loiças como santuários e um
quintal murado, no jeito dos pequenos conventos seculares. Pertencera a um
padre, homem robusto e pagão que se via em retratos algo sinistros pelas salas.
A criada herdara-lhe os bens, e, com uma sobrinha piedosa e diplomática, vivia
ali há muitos anos. Eram ambas personagens de Quevedo, uma velhíssima,
ladina e indiscreta de tanto ter durado; usava três toucas na cabeça, como Luís
XI. Quando Adriano saía, ela ia ler-lhe as cartas da mãe, ou divertia-se a
contar-lhe os lenços e as camisas. A sobrinha repreendia-a. Era uma mulher
delgada, com olhos descorados e mãos patrícias. Fazia rendas e era íntima de
freiras e abades. No tempo em que faziam os votos as novas religiosas, porque a
casa de noviciado era contígua, as salas da Serpinha enchiam-se. Vinham os
pais e parentes das postulantes, deitavam-se colchões no chão, dormia-se como
nos tempos dos romeiros ou das Cruzadas, em santa promiscuidade. A
Serpinha era fina e chalaceira, como boa aia de padre
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que ela fora. Tinha quase cem anos,, e ainda Adriano com os olhos e gabava-lhe
os cabelos loiro - Que há cada loiro que parece caca de pato!
- Cale-se, minha tia, isso não se diz...
A sobrinha da Serpinha sofria com a licença daquela linguagem. A velha
consultava Adriano a propósito do seu testamento, depois de saber que ele
estudava leis; e, entre as austeridades do diálogo que evocava a morte e a
melancolia das últimas vontades, a Serpinha metia o seu zumbido de Celestina,
queria saber se ele tinha amores, quem conhecia, se ia ao casino, se jogava, se
andava com bailarinas.
- As moças são todas umas porcas, eu vejo-as, daqui... - Mostrava a janela com
poiais azuis e donde ela espreitava as raparigas meio acobertadas na folha da
porta, namorando os seus primos e vizinhos, gal-farros de nariz chato e andar
gingado, o mais das vezes gente da pescaria. As casinhas de azulejos verdes
espelhavam; vinham de dentro baldadas de água de esfrega, e aparecia às
vezes, com ar de briga, uma mulher que deitava para a rua um olhar varredor e
ligeiro como o vento. A Serpinha vivia à parte desse mundo de bairro, cheio de
crianças gritadoras, bravas como lobatos. Ela tinha a sua propriedade fechada,
as suas relações, arrendava quartos a banhistas recomendados por padres;
como Adriano, limpo e sossegado como um gato em Agosto.
Adriano, nessa pequena performance de férias, fingia-se rico, não era acessível
às raparigas, mostrava-se
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saturado de diversões. Mas um dia conheceu uma mulherzinha com cara de
grão-de-bico, meio bonita, com fortuna, e que pertencia a essa classe feita do
costado dum egresso e outro de lavrador e que aflige a sociedade burguesa de
duas pragas - a da política e a da aristocracia indeferida. O pai de Rita Mafalda
era um advogado cuja manha principal fora a da prudência. Baseava-se esta
numa timidez dolorosa e precatada; parecia solene, quando era só acobardado,
mas a sua sensatez heróica causava a melhor das impressões. Como ganhava
muito dinheiro, apoquentava-o o dilema de se exibir sem ter de cair no ridículo.
Rita Mafalda levou tão a peito o zelo de se demitir de nova rica, que usava
meias que uma criada desprezaria, e orgulhava-se de não saber gastar. Adriano
achou-a tão oportuna que esteve em riscos de se apaixonar por ela. Quando foi
a casa, disse à mãe, de chofre:
- Não quero que volte a conversar comigo no meu quarto. Diga ao pai que isso
acabou.
Parecia um amante que rompe a ligação que tinha e para isso usa de quase
desacato. Isabelinha não se alterou; viu que o filho estava meio doido,
exasperado com a mesquinhez e a magreza de vida e com os medíocres pais que
tinha. Não se lhe arrancavam muitas palavras, demorou pouco em casa.
Isabelinha foi para a bouça de mimosas, e lá deu em chorar. Soltava do peito
uns ais tão piedosos e tristes que se envergonhou. "É um rapaz novo, o mundo
está a chamá-lo. Ele volta."
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Mas Adriano precipitou-se num noivado impetuoso, viu-se de repente festejado
e preso na rede duma cabala casamenteira. Embora amasse Rita Mafalda,
sentia às vezes que tudo aquilo era de certa maneira um logro. Tornou-se mais
arrogante, mal falava com os amigos, não dava atenção à Serpinha que, com a
sua bengala de ébano, o esperava logo no cimo da escada para o cheirar com
gozo matreiro.
- Onde andou ? Onde andou ? - E tinha no rostinho mirrado uma cupidez das
horas de amor que ele consumia, pródigo de venturas e desventuras.
Acabou o tempo de praia, Adriano ainda seguiu a noiva, adoptado mais do que
seduzido. Se a largueza de meios em que se faziam modestos o cativara, a
solidez da riqueza impressionou-o. Rita Mafalda vivia naquele cenário que era
próprio do teatro de Victorien Sardou e outros, um cenário para cinco actos,
com um piano aberto e um terraço sobre o jardim. A acção começa às cinco
horas da tarde, no Verão. É como se ouvíssemos o barulho dum fiacre que
chega. Rita Mafalda, com o seu narizinho bicudo e a sua pele fresca, tem o ar
robusto duma herdeira de dez mil contos. As milionárias têm cada vez mais o
aspecto blindado e capaz de derrubar montanhas. Ela tinha dezoito anos,
dispensava chauffeur e criada de quarto e, com o seu vestido de debutante,
parecia completamente vitoriana. O que fascinava Adriano era a sua idiota
gravidade e a rispidez de galinha afeita ao seu quinteiro. Ela aceitou-o
facilmente; tinha ideias próprias sobre um ma-
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rido, e Adriano parecia-lhe prestável e bem o contrário do chamado homem
interessante, que a humilhava. Quando voltou para Coimbra, Adriano ia
mudado. Aos pais, fez-lhes ainda uma visita a custo, ouviu Claudino com
bastante impaciência. As histórias dos seus leilões aborreceram-no. "Ainda se
ao menos comprasse alguma coisa de jeito", disse para ele mesmo. Isabelinha
andava acanhada, sentia-se desajeitada e que os vestidos lhe ficavam mal.
- O nosso filho é um traste - disse-lhe Claudino.
- Ele tem razão. Tudo isto é insignificante, não vale nada.-Ela esfregava o pulso
lentamente, como para restituir-lhe a lisura. Parecia ter envelhecido, os olhos
estavam baços.
- Mesmo assim, custou-me trabalho.
- Trabalho? Que trabalho? Dormires comigo no celeiro, naquela tarde de
domingo? - Ela fez-se de súbito uma víbora, a cabeça pequena e loira parecia
ondear no ar. Calou-se, mas não mudou o modo agressivo e cruel. Claudino
enroupou-se na colcha, e em breve dormia. Tinha um sono fácil, de homem
ligeiro de consciência e pouco temente aos azares.
O assunto da Brusca levou novo impulso. Sem a assiduidade de Claudino,
talvez Monteiro Branco não fosse tentado ao procedimento que teve. Mas aquele
homem adulador e tagarela e que não podia esconder a sua cobiça deu-lhe a
tentação do jogador que ele era. Claudino não estava profundamente
interessado na casa da Brusca; mas a mulher, de retraída que era, tornou-
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-se de repente obstinada. Ela via talvez naquela propriedade a recuperação do
filho. Seria magnífico, e ele poderia orgulhar-se. Não que o voltasse a admitir
outra vez no seu coração; alguma coisa cessara para Isabelinha. Era um
desgarramento na sua alma, que nunca mais haveria de recompor-se. Não
perdoava mais a Adriano aquela fuga violenta que ele tornara irreversível,
quase como um insulto. Para além dum gesto havia movimentos densos e
tremendos. Isabelinha compreendia. Mas uma candura morria nela; estancava-
se a sua poesia, a sua juventude. Daí em diante seria só uma mulher sensata
que envelhecia.
O senhor d'Além notou essa transformação. Foi agradecer umas perdizes que
Claudino lhe mandara - o senhor d'Além era um dos seus credores mais
pacientes-, e Isabelinha fez-lhe sala durante meia hora. Era um dia baço, com
chuvisco. Andava o gado nos lameiros, e pelas amplas janelas nuas via-se o
bosque das mimosas escurecido pela chuva.
- Estamos no Inverno -disse ela. Disse isto com tal abandono e tristeza que ele
a fixou de repente. O que viu foi uma mulherzinha pálida, cujos olhos azuis
transbordavam de lágrimas. Achou-a quase bela. A província ignora as suas
musas; durante quarenta anos, dando milho às pombas e mexendo a braseira,
pode estar uma Dido sem fogueira em que arder. O senhor d'Além sentiu-se
pouco à vontade... -Meu marido está a demorar-se - desculpou-se ela.
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Isto pareceu tranquilizá-lo, falaram da lavoura, das intrigas da terra. Porém,
quando saiu daquela casa, o senhor d'Além perguntava-se se não teria sido
melhor lançar-se numa história louca e reanimadora com Isabelinha. "Tenho
sessenta e cinco anos, sou um geronte e não um velho. Era casado, mas isso,
como ele dizia, era um estado patológico e não uma doença.
Com a chegada do Inverno, Camilo Timóteo morreu. Houve a quem esse facto,
nada inesperado, fez impressão. "Ele tinha mais dez anos do que eu", disse o
senhor d'Além. Mas como sabia que exagerava um pouco, ficou acabrunhado
durante toda a cerimónia do enterro. Via à sua volta o remanescente duma
geração, com as protuberâncias, os musgos, a liquidação dum organismo que
se desapropria do seu encargo de viver. Era na igreja de Montélios, na
penumbra verde de oiros barrocos. Dois anjos candelários, grandes como
homens, estavam aos lados do altar-mor; tinham um ar policial e todavia
gracioso, com aquelas cores arreboladas e o pé calçado de calígula. A urna
dominava a nave na alta eça forrada de veludo. Os filhos de Camilo tinham
olhos de choro. Eram órfãos de invejas nesse dia que ninguém profanava com
nenhum desprezo. E o Gonzaga, com a camisola verde dos domingos, guardava
a chave do caixão na mão rebentada de frieiras. Reconheciam-no herdeiro de
nome e bens; a violência feita ao costume, a terra a comia. A comunidade
aceitava a aberração, para não ter que se contagiar da cólera que tinha sido
aberta no seu flanco.
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E era belo de ver o acompanhamento fúnebre, mancha preta em campo de
granito; os estandartes, duma seda campanuda e rija, dormiam no ar molhado.
Assim foi enterrado Camilo Timóteo.
Quase não deixou vestígios na casa da Brusca. Nem tabaco em uso, nem
assinatura de jornal. Na sua cama, nessa mesma noite, deitou-se a Tília, com
um suspiro de boa paz. Em três semanas não soubera o que era dormir a noite
toda; uma faixa do telhado caiu para o lado do jardim, fez estrondo e ela não
acordou. Os rabanetes russos cresceram viçosos no seu talhão; apodreceram
na terra, que ninguém os arrancou, pois não lhes achavam proveito.
Dum dia para o outro a Tília desapareceu. Levou as crianças mais pequenas, e
as outras ficaram como património da vila inteira. Sabia-se que a Brusca tinha
dois pretendentes, as propostas tinham sido entregues no tribunal em carta
fechada. O senhor d'Além não podia competir com os milhões de Monteiro
Branco, e, dessa maneira, a Brusca, velha estrela na galáxia dos solares de
Montélios, foi-lhe adjudicada. Quando Clau-dino quis resgatá-la das mãos do
industrial, ele faltou à palavra.
- É um pardieiro, eu não me tinha enganado. Daqui até que tenha outra vez
figura de gente, não me doa a mim a cabeça. Vou restituí-la à antiga traça, e
faço-o porque sou bom filho desta terra.
Claudino pensou melhor, e achou de quem ele era filho. Ficou muito corrido,
não sabia como contar
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aquilo a Isabelinha. Mas ela tomou as coisas com fleuma.
- Deixa lá, também era um encargo muito grande. - Ficou a olhar os campos;
dos arames das ramadas pingavam gotas lentas como vidro quente. Ela trazia
outra vez os seus vestidinhos de andar por casa, de fazenda escura, rematados
na gola com um broche de ónix. O bom tempo acabara definitivamente; mas,
como consolação, em breve o bosque das mimosas estaria florido. Naquele
período em que a Brusca estivera franqueada ao público para venda, Isabelinha
quis lá entrar. O desastre em que encontrou a casa não a decepcionou. Antes
achou nele conforto e uma certa paz. "A infelicidade é grata ao coração humano
- pensou -, mas escondemos que ela não nos molesta." Viu na parede, que
estava em quase completa escuridão, o retrato duma mulher; acendeu um
fósforo para olhar melhor. Era uma formosa senhora com colarinho de varas;
do outro lado da sala havia uma criança de quatro anos; parecia ter sido
deixada de surpresa para que o fotógrafo a pudesse retratar sozinha. Ele tinha
colhido a expressão que anuncia o medo. Entre ambos os retratos abria-se o
poço de escuridão; cheirava a ratos, uma côdea de' pão estava no soalho.
Com o pretexto de que uma irmã esperava um filho e não era bem sucedida nos
partos, Isabelinha foi fazer-lhe companhia. Esteve lá dois ou três meses; voltou
mais gorda e nunca recuperou a cintura fina que tinha antes. Adriano casou-
se. Isabelinha não pôde assistir,
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com o ataque de anginas que sofreu exactamente nessa data. Mas escreveu-lhe
uma linda carta. "É sempre a mesma", cismou Adriano, com terno desdém. Mas
não era. A fina prosa desconversa as coisas dum coração perdido.
A casa da Brusca dizem que retomou as lindezas de outrora, do tempo em que
fora ninho de pegas reais e em que a sua alameda de nogueiras francesas se
estendia até aos limites de Montélios, contando para sudoeste. Porém o que
aconteceu foi que se enroupou de novo, sem perder o fatídico semblante, as
olheiras das janelas de cantarias plumentas inspiradas nos séquitos dos vice-
reis. O Monteiro pouco por lá pára. A província bole-lhe com os nervos; a praça,
chorona e poética, com o seu café novo e a pastelaria com bolos para todas as
ocasiões numa coroa de ovos-moles, causa-lhe um humor azarento. Ele gosta
do progresso, é um português enxertado em virtudes cosmopolitas, aborrecem-
lhe os lugares iludidos pela natureza a serem epígonos de alguma coisa. Diz-se,
apesar de tudo, que dotou a Brusca de grandes melhoramentos, e que talvez a
transplante um dia, pedra por pedra, para sítio mais grandioso, a Suíça ou
Braga, por exemplo. Mas diz-se muita coisa, e há sempre quem exagere.
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O CONVIDADO DEBAIXO DA MESA
Tinham chegado as férias, depois duma última estação de vento e de contactos
deprimentes e enfáticos com os conselheiros, os sacrificadores, os virtuosos
dessa pequena guerra impudica que é a amizade. Bráulio estava exasperado.
Assistira a trinta e quatro jantares sem deixar uma única vez de experimentar
uma espécie de desespero - mais violento ainda porque o sabia infundado - ao
prever o uso da colher, que umas vezes lhe colocavam ao lado direito, outras
vezes em frente. Comia contrariadamente quando tinha que manejar uma
conversa ao mesmo tempo que o talher; perdia completamente o paladar da
mostarda ou do vinho, se o tinha que misturar com Pablo Picasso, com
Montherlant ou com Camus. Às vezes uma mulher bonita, perfumada, com
longas unhas cor de champanhe, falava-lhe ternamente, sem deixar de fixar o
fio de chama das velas; apetecia-lhe apertá-la nos braços ou acariciar o seu
ombro pálido e cristalino. Isto causava-lhe um devaneio profundo, esquecia a
sua talhada de peru e os champignons abertos como rins doentes. Em vão o
criado girava subtilmente em volta da sua cadeira e os convivas esperavam
melancólicos a sobremesa; ele deli-
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rava em silêncio, corrompido para o convívio daquela sociedade correcta e
sensível, que esperava tudo menos que Bráulio se separasse dela, como uma
carne rígida, uma fonte viva de células, se desprende dum tumor. Durante os
trinta e quatro jantares que se prolongaram até Maio - os últimos já
penetrados dum anárquico movimento que convertia o prato de peixe a alguns
mariscos provocantes e fazia com que se servissem só duas espécies de vinho-,
Bráulio não pudera evitar a mesma cândida banalidade, o mesmo espinho de
secura que pervertia todos os seus prazeres mundanos. Era um homem de
negócios, um franco estudioso da finança, um finíssimo capataz de milionários.
Os seus olhos negros, o nariz adunco, o porte generoso e ao mesmo tempo
distraído, possuíam uma harmonia quase obscura; não era isento duma certa
graça, mas raramente a manifestava. Sua mulher, pequenina e bela, com um
rosto oval de judia e sobrancelhas que pareciam prateadas sob as luzes, fazia-
lhe frente na cabeceira da mesa, brincando com o seu cálice vermelho, com o
pequeno garfo de doce, viva, estridente, irresistível. Bráulio olhava-a às vezes
com espanto. Tinha-se deitado com ela durante vinte anos, tinham gerado dois
filhos, aplicara o seu dote na primeira aventura que lhe garantira a fortuna;
mas agora não podia deixar de olhar para ela com um sentimento de
extraordinária surpresa, não porque ela tivesse mudado, mas porque
reconhecia que a invejava. Não esperara nunca ter de partilhar uma rivalidade
com sua própria mulher, mas
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isso era o que de facto acontecia. Ele enriquecera, possuía vilas e jardins, os
filhos estudavam em colégios ingleses, fizera-se dono dos mares em pouco mais
de cinco anos; as suas conferências com o Almirantado britânico tornaram-no
célebre, era considerado como uma raposa astuta e implacável, de certo modo
invulnerável às mulheres, ao vinho e à arte. Era pontual, metódico, sóbrio, não
confiava em ninguém, vivia continuamente ocupado com a sua rede de
transportes, o seu petróleo, as suas entrevistas com homens públicos. Aparecia
em sociedade quase só para cumprimentar os convivas, e deixava-os entregues
à sua brilhante mulher, que se rodeava de artistas e começava a ser julgada um
bom crítico de pintura. Isto vexava-o. Durante dez anos manejara o seu mundo
familiar, instituíra recompensas e castigos, tivera na mão os seus destinos, a
sua vontade, e aplicara-os como um capital, solidamente; levara mesmo o rigtar
a perguntar, cada vez que decidia um problema, que pagava, que insuflava uma
vocação, que assinava um contrato, se não havia outra alternativa. Mas não
havia nunca outra. Mesmo no amor ele usava essa precisão a que se misturava
orgulho viril e um pouco de antecipado desapontamento. Escolhia uma linda
rapariga ao acaso, na rua, numa casa de chá, e comprava-a tacitamente, sem
rodeios, com uma proposta por escrito que podia considerar-se um prodígio de
exactidão e um modelo de sabedoria comercial. Durante quatro ou seis meses
recusava-se a ver a favorita, mantinha-a encerrada num estágio de elegância,
de requinte, de concen-
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tração dos próprios dons; ela aprendia a comer, a andar, a usar o luxo com
sentimento e sem histeria. Só depois desse curso elementar consentia em
recebê-la e em deixar-se ver com ela em toda a parte.
- Outra vez Ali-Babá com uma das suas peneiras do oiro! - diziam os
frequentadores dos clubes, sorrindo com um desprezo enigmático. Mas depois
já não pronunciavam palavra a respeito disso; viam-no entrar, sempre sério,
dando a impressão que se dirigia a uma entrevista de negócios, rápido,
cronométrico, delicado; ele próprio servia a rapariga, acendia o seu cigarro,
prendia um jasmim na sua capa. Uma vez, Maria Severa, uma pequena
vendedora de brinquedos que ele elevara em poucas semanas a grande dama,
não pudera suportar o choque daquele mundo novo e dourado, desatara a
chorar. Era tão linda, com as suas raposas brancas e os punhos crispados, que
mais de um duro coração chapeado de acções do Transval se enterneceu.
Bráulio mandou chamar no dia seguinte a instrutora do seu harém, e
repreendeu-a:
- Eu tinha-lhe dito que mademoiselle não estava ainda preparada!
- Estas naturezas poéticas ... - desculpou-se a mulher. - Soube só ontem que
ela lia versos.
- Versos ? Que imprudência ! Ensine-lhe a ser ociosa, mas não lhe perverta o
temperamento. Versos, não!
Mas estes incidentes não perturbavam Bráulio. Mostrava-se paciente e
reservado nas suas contrariedades, não permitia que as circunstâncias se lhe
impusessem
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demasiado. Ultimamente, porém, estava exasperado. Alguma coisa, no fundo da
sua consciência cínica e genuína, uma pequena fissura purulenta, se abrira. A
mulher causava-lhe um terrível espanto, com o seu prestígio, os seus amigos, o
seu público; ela vivia a convidar artistas, a ouvir os seus ditos insignificantes, a
empregar neles dinheiro e entusiasmo. De que se tratava? A arte era-lhe
indiferente, a música fatigava-o, os livros pareciam-lhe bastante o gesticular
dos surdos-mudos, implicavam decerto a falta dum sentido natural, a voz e o
ouvido. Era preciso descobrir.
Começou por evitar menos os convivas, por esperar deles uma revelação; mas
não adiantou muito com essa táctica - eram gente vaidosa e excitada, diziam
coisas complicadas e mostravam um acrobatismo de espírito que
verdadeiramente o divertia, mais do que o deixava maravilhado. Eram
novelistas e pintores, ou então simples comitiva das artes- o amigo, o crítico, o
frequentador de concertos e exposições, a amante ou o diletante. No meio dessa
turba conflituosa e leviana, só uma .coisa se lhe impunha : a espécie de
grandeza, de disponibilidade intocável a que sua mulher presidia. Ela ali
estava, na véspera da sua partida para férias de Verão, oferecendo as últimas
iguarias da temporada - o que era de facto aquilo que acabavam de servir-lhe,
uma ave de carne sangrenta e recheada de gelatina? Era uma mulher em que
se previa a obesidade túrgida, branca e brilhante como uma pérola; admiravam
o seu estilo, o seu gosto, o seu tacto quase sepulcral para apagar a me-
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mória de certas relações culpadas, de certas opiniões que, noutra pessoa,
redundariam em ridículo. À luz das velas vermelhas, a sua cabeça parecia
degolada e suspensa, pois o colo nu desaparecia, esfumava-se contra a seda do
cadeiral claro. Ninguém teria essa ideia de forrar as cadeiras de seda branca;
no alto do espaldar havia um monograma simples, de oiro, sobre uma flor-de-
lis. Não queria talvez significar nada, mas era impressionante. - Vou ficar só
durante muito tempo - disse Bráulio à sua vizinha de mesa, com o seu
sorrisinho fixo e desconcertante. Ela cerrou os olhos duma maneira cúmplice e
retalhou lentamente um pedaço de gelatina, como se pensasse moldar nesse
âmbar picante os seus próprios pensamentos. Ele disse: - Passarei muito mal,
tenho a certeza, mas é justo que cada um tenha a sua vida própria.
Era uma das suas mentiras predilectas, e a jovem vizinha apenas balbuciou
uma aprovação. Ninguém de facto lhe escapava nunca; gostava de manter a
família numa tensão prodigiosa, organizava-lhes as férias, as ocupações, a
liberdade fictícia, os prazeres envenenados; para que não dispusessem de
muitas horas descuidadas, segurava-os por meio duma chamada telefónica,
obrigava-os continuamente a esperar, surpreendia-os no banho e no amor,
pagava espiões e polícias com uma discrição que parecia apenas mais uma
formalidade e uma rotina. Nada do que sua filha Eriça planeava ele ignorava,
mesmo que fosse a compra dum novo impermeável; sádico na generosidade,
costumava dar presentes régios
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cuja contemplação exigia desfrutar; e quando Eriça trocou as suas esmeraldas
por outra jóia menos comprometedora, o pai enfurecera-se porque qualquer
transacção lhe parecia agoirenta se não era dirigida pela sua própria mão. Eriça
tinha dezanove anos, era atarracada, com o pescoço largo e os belos olhos
pretos dos Ebenezer, a gente espirituosa e sentimental do lado de sua mãe.
Gostavam todos de objectos preciosos, de sedas, de ambientes decorativos, do
esplendor teatral, sem deixarem porém de possuir uma certa timidez poética - o
que os impedia de pintar o exterior das suas feias mansões de família. "Os
Ebenezer voarão sem asas para o Paraíso, para não dar na vista", dizia-se.
Bráulio era simplesmente um homem profundo, ardente e incapaz de se
comover com quaisquer factos; possuía o que se chama a fatalidade da virtude,
mas esta não queria dizer senso moral. É diferente ser-se virtuoso e ser-se um
conhecedor, um experimentador da consciência. Na sua natureza severa,
terrível e difícil de manejar, defendida de toda a influência, não havia lugar
para o vício nem mesmo para a vulgaridade dos sentimentos - os melhores de
todos. Sofria pouco com o mal, gozava pouco com o bem; quase sem
imaginação com respeito ao valor dos seus semelhantes, ele agia como se o
mundo fosse coisa da sua responsabilidade apenas, e não consentia partilhar
nenhuma das suas ideias e o menor dos seus projectos. A malícia dos outros
era-lhe quase indiferente, pois justificava mais cordialmente as fraquezas, do
que admitia a superioridade de alguém. A mulher agora tornava-se-lhe um caso
suspeito,
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desde que o seu talento se consolidara e ela vivia mergulhada num mundo que,
se lhe não era hostil, o ignorava quase. Que gente era aquela? Que significavam
os seus modos dementes, os seus rostos sempre perturbados, de agonizantes?
As velas vermelhas consumiam-se com uma lentidão virtuosa. Bráulio demorou
ainda um momento a levantar-se, mesmo quando a mulher estava já de pé,
sorrindo e sem olhar ninguém, como um autómato roliço, de cristal e de
gelatina. Ela saiu, levando consigo todas as visitas, confundidas num último
murmúrio de saciedade.
O serão foi longo, falou-se de alguém muito célebre que era preciso
compreender bem. As mulheres comoviam-se por contágio e, de repente,
pareciam atingidas duma febre lírica, sorrindo trèmulamente, sofrendo
debilmente um espasmo de curiosidade e melancolia. Bráulio não podia
entender como elas gemiam de surpresa perante a imagem muito elaborada
duma maternidade primaveril, de ventres redondos onde um sangue novo
palpitasse, se elas próprias utilizavam precauções quase vingativas no amor, e
não viviam na intimidade dos filhos. "Estão doidos!", pensou, quando,
lamentosamente, um rapaz atlético começou a falar na morte. No entanto, se
eles representassem um valor? Mas como desvendar esse enigma, como saber,
como atingir? Voltou para a sala de jantar e sentou-se sozinho à mesa
desordenada e onde ardiam ainda as velas vermelhas. Se aquele mundo fosse
uma presa, tivesse um carácter, valesse uma quantia, ele o conquistaria. Tinha
que reflectir. "De qualquer
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maneira - disse -, eles não vivem senão de ocupar os outros..."
- É isso. Estão cobertos de ventosas e chupam o sangue até dum ferrolho velho-
suspirou uma vozinha. Bráulio não olhou em volta, não passou revista atrás
dos reposteiros listrados com as cores do Sacro Império; levantou uma ponta
da toalha e espreitou debaixo da mesa. Estava lá um rapaz sentado, numa
atitude entre negligente e constrangida, e não se mexeu quando Bráulio o
encarou desafectadamente.
- Não quer sair daí? - disse-lhe, gentilmente. Hesitou em mostrar-se afável com
um conviva bêbedo, e em aproveitar a sinceridade fortuita dum possível
informador das suas perplexidades. O outro saiu imediatamente; parecia
vexado, e Bráulio reconheceu, com certo espanto, que ele não estava
embriagado. - Há demasiada gente. Há sempre gente demais nestes jantares ...
- Não olhava para o rapaz, mas tinha já surpreendido o seu olhar grave, o
sorriso crispado, as mãos largas e fechadas com paixão. Era quase uma criança
ainda, ou alguma coisa de violento e pueril dava a impressão de que ele era
mais jovem do que de facto seria; mas a pele fina e amarelada começava a
cobrir-se duma película escamosa e seca. Ele não falava. Ouvia, com o pescoço
inclinado, os ruídos que vinham dos jardins, pelas janelas abertas. Era o
regougar alegre dos cães que se perseguiam sobre os relvados, depois de todo
um dia de cativeiro; o amachucar da grama dura, sob as patas, percebia-se
como um
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rangido de pano que se amarrota. O rapaz voltou-se para Bráulio.
- São buldogues franceses. Os podengos têm um respirar baboso e turvo,
enquanto que os cães de pastor correm com mais velocidade.
- São, de facto. - E Bráulio pensou : "Eis alguém bastante hábil e bem
nascido..." Mas não seria capaz de dizer isto em voz alta.-Como sabe essas
coisas?
- Ah, ah! Estive tantos anos no meio de gente velha e de animais! Ensinaram-
me a cuspir no focinho do meu cão, para que ele me reconhecesse sempre.
Nestas noites de Maio ele saltava as valas, corria por cima do trevo florido, e era
como se pisasse algodão. Ele corria com o ventre a rojar o chão se eu o
chamava, e deixava um rasto na erva. Arquimedes podia dizer qual o peso que
ele tinha, só de olhar aquele rasto na erva. Era um cão amarelo, sem raça
definida, traçado com lobeiro, e por isso era rápido e nervoso. Não tinha, como
os seus buldogues, a gana divertida e farta; corria porque o chamavam ou
porque defendia o seu campo, e nisso era orgulhoso e constante. Já cuspiu
alguma vez no focinho dos seus cães?
Bráulio confessou que não. Era um homem civilizado e cheio de bonomia um
tanto perversa para com os costumes e as credulidades primitivas. Nunca
vestira o sobretudo sozinho, nunca cruzara um terreno onde se abrem as
crateras das toupeiras, nunca vira de perto uma feira pobre, com as suas
tendas de ourives, de vendedores de samarras, de mulheres que enxotam as
mos-
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cas de cima do grosseiro biscoito de limão e azeite. Apesar de todo o seu génio
financeiro, de privar com lordes almirantes e príncipes da Bolsa, apesar de
conhecer as pérolas de cultura com um simples toque na sua superfície oleosa,
ele era muitíssimo ignorante e vazio de experiência humana. Conhecia os
homens duma maneira muito objectiva talvez, mas aproveitava deles só a
aparência ou a terrível combatividade dessa aparência. Os homens eram, no
entanto, como as cebolas, feitos de inúmeras folhas, de invólucros que os
rodeiam e preservam até ao nada, até ao ser de substância só moldável na
memória e no ritmo do seu próprio esgotamento. Bráulio olhava para o seu
convidado trazido de sob a mesa, trazido à luz das pacíficas velas vermelhas;
não se lembrava de o ter visto antes, mas isso não era coisa de estranhar, pois
assistia sempre àqueles jantares com bastante indiferença, sorrindo duma
forma fictícia e pouco animadora. Tratava-se dum rapaz que vestia um fato
azul-escuro, um pouco lustroso já nas mangas; na fazenda fina reflectiam-se as
luzes como sobre a braçadeira duma armadura.
- Eu estava sentado debaixo da mesa -disse o rapaz- porque não tinha outra
maneira de aproveitar a sua bonita casa. Quando entrei aqui, vi os vasos de
alabastro, e o cheiro da cera tocou-me o coração a ponto de me apetecer cantar
muito alto. O cheiro da cera e do incenso falsificado com alfazema era a coisa
mais agradável nas grandes cerimónias litúrgicas quando eu ia com minha avó
ver a ordenação dos jovens benediti-
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nos. Ela era uma benemérita, entrava nas sacristias com uma arrogância cheia
de fé - e como eu gostava de tudo aquilo ! Aqui há também a gravidade
desdenhosa, a prata, as flores, o tépido ar de Maio que se filtra pelos
reposteiros. Então tive que meter-me debaixo da mesa. - Você é tímido, não é? -
disse Bráulio, a rir-~se. - Imagino como se deve ter assustado com toda essa
gente. Têm talento, mas não são o tipo a que você parece habituado. - Ele
acendeu um charuto e despediu com a mão os criados que assomavam à porta
com as bandejas vazias, prontos a retirar a baixela. "É de facto uma noite de
Maio", pensou. Quando era criança, também entrava nas igrejas, menos
oficialmente do que o fazia agora, e distraía-se a desapertar os cordões de seda
que defendiam o acesso aos altares. Olhava para os vitrais, vinha-lhe uma
prostração, um desejo de dormir nos cantos onde se ouvia o sussurro
indiscreto dos confessionários. Às vezes um pardal extraviado cortava a nave
em voos desvairados. Curvavam mais a cabeça as mulheres que oravam,
resistindo àquela profanação encantadora da ave que procurava o ar livre.
Bráulio despertava, punha-se a fazer ranger a areia sob os pés, até que as
mulheres, enervadas, o encaravam. Era agradável, no meio do seu tédio, ver os
seus olhos repreensivos e a boca maldosa que continuava a recitar as orações.
Passavam os sacristães limpando com estearina o cotão aderido aos bancos, o
surro das mãos empastado. Sobre uma pia de mármore pingava lentamente a
água benta encanada. Era talvez em Maio, o
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vento sacudia as velhas palmeiras da cidade, os bustos de bronze reluziam já
com a sua seca patina de Verão.
- Quer um café? - perguntou, com uma surpreendente alegria. O rapaz riu-se.
- Eu não esperava nada que o senhor me fosse buscar debaixo da mesa. Em
geral preferem deixar-me lá, e saem da sala, desconcertados e com passo firme.
Então já sei que posso contar com duas ou três horas de liberdade; deito-me
nos belos tapetes como Gulliver sobre o arabesco da terra de Liliput, ou acabo
de comer tranquilamente a fruta e o doce. A amêndoa torrada exige a mais
profunda solidão para ser saboreada a valer, o pêssego não quer testemunhas
ao ser comido.
- Tem razão. Ah, nisso dou-lhe razão! - E Bráulio fez um gesto que desintegrou
a cinza do seu charuto e a fez cair no chão.-Acho que nunca pude gozar uma
refeição senão daquela vez em que bombardearam Colónia e eu estava no hotel
com uma garrafa de leite na mão e tinha no bolso uma pastilha de chocolate.
Só então percebi que o leite sabia vagamente a uma erva doce e que o chocolate
era feito com alfarroba. Mas eu teria comido a erva e devorado a alfarroba com
o mesmo entusiasmo solitário, com o mesmo sentimento da fome meticulosa.
Isso foi há muito tempo! Desde então, na verdade, não comi nunca mais.
- É pena -disse, gentilmente, o rapaz-, o senhor tem aspecto de quem sabe
resistir.
- Resistir a quê? Quem pode ser como você, assim impunemente, o convidado
em baixo da mesa? Não, não
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é fácil, não é possível. Minha mulher tem amigos despreocupados, ela própria
está cheia de frescura, não utiliza senão o corpo dos ombros para baixo.
Juntam-se no campo e preparam carne grelhada e bebem por velhas canecas
de estanho. Mas eu, eu tenho esse direito? Sou um homem marcado,
comprometido, exibido à confiança dos outros. Os meus contratos sustentam
as dívidas e os créditos das nações; o meu braço deve ser incansável, não posso
desistir entre o canto da cotovia e o da coruja cinzenta. Vinte telefones tocam
na minha mesa de trabalho, recuso jantar com os reis para receber um negro
ou um índio seminu. Pratico o remo num quarto, eu próprio faço o itinerário
das minhas aventuras, não sei o que é esperar uma mulher que nos esquece,
nem o que é evitar a má sorte, nem o que é ser vítima da fraude ou do amor.
Tudo é esplêndido e devorador na minha vida. Triunfo em todos os caminhos,
obtendo dividendos em todas as fontes. Minha mulher diz-me: "Não sabes nada
de arte, nisso tens de ceder o lugar a alguém..." Ela tem espírito e convida toda
a espécie de sibaritas e de mundanos, bailarinos e gente de teatro. Tenho-os
observado, sabe você? Pois, ainda que irresistíveis para os sentidos, eles não
têm "nascimento", são vulgares, impontuais na sua própria natureza. Descobri
isso. E percebi como é simples patrocinar as artes, organizar colecções, ganhar
ainda com a transacção do génio e a disponibilidade do coração humano. Um
dia hão-de abrir para mim as salas onde esperam um redentor as telas e os
objectos raros corrompidos pelo peso
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ja sua tremenda vulgarização, posso escolhê-los um por um, posso fechá-los
num museu onde não penetrem os olhos dos visitantes, onde fiquem selados,
sujeitos à minha defesa, vivos só no meu olhar perito. A arte terá uma segunda
criação minha, porque a seleccionarei a ponto de a converter num padrão
particular de troca, superior ao ouro porque nela se valoriza a raridade, ao
mesmo tempo que se inverte a sua prova num excitante tão subtil como o do
jogo.
- Estou a lembrar-me - disse o rapaz - daquele pintor que pintou a rainha
Estratónice como uma cortesã. Ele fez-se ao mar largo numa galera depois de
expor o quadro, a que chamou A Vontade, no cais onde a própria soberana
recrutava os amantes. Ela não destruiu a obra, e suportou o escândalo porque
o retrato era admirável; foi essa generosidade que a fez célebre. Mas o artista
estava longe de Éfeso, e a clemência de Estratónice não podia já tocar-lhe o
coração. A Vontade não alcançava mais do que seduzir um pobre pescador e
abraçar-se com ele, aos olhos dos calculadores da justiça.
Bráulio passeava na sala, tocando meticulosamente a orla do tapete com a
biqueira do sapato, cada vez que chegava à extremidade do seu percurso.
Talvez não prestasse muita atenção àquele jovem ou desejasse simplesmente
não o entediar com as suas réplicas. Baixava ligeiramente a cabeça como
quando pretendia ignorar uma impertinência e estava disposto a ceder por
habilidade e por respeito pela .candura. Não era um grosseiro
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especulador, mas sim um homem ardente e secreto, com todas as virtudes dos
que professam uma forte paixão. A dele era a do poder. Não pôde deixar de
crispar-se, como se aquele retrato baloiçando no limiar duma taberna do porto
de Meso representasse uma parenta da sua casa surpreendida numa
intimidade um pouco ingénua. Sua própria mulher, que levava os seus
favoritismos até à alcova algumas vezes, e que sofrera um desaire bastante
amargo com um músico de tournées, sentir-se-ia apunhalada se tivesse de ver
o seu retrato surpreendido em momentos tão inequívocos. "Felizmente ela só
priva com pintores abstractos", pensou Bráulio, com o seu espírito agudo que
lhe valera o nome de "sindicato do humor livre". Ele disse:
- Que reles homenzinho esse! Que lhe tinha feito a rainha?
- Pagou-lhe mal uma obra, creio, ou não lha pagou simplesmente.
- Que susceptibilidade! Não, nunca tratarei com artistas, prefiro administrar os
seus legados. No fim de contas, todos nós temos o nosso porto de Éfeso e não
podemos piratear atrás de todos os velhacos.
- Evidentemente. Gente deplorável, comete sempre os mesmos erros com um
entusiasmo bastante duvidoso. São vaidosos, intriguistas e sensuais, e vivem
da imaginação do seu próprio público. Como os pode suportar em sua casa?
Bráulio fez um gesto evasivo, e o rapaz riu-se discretamente. Ardiam as velas
vermelhas com uma sua-
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vidade apática, sem lágrimas; os cedros negros respiravam com os seus braços
erguidos na noite de Maio.
- Debaixo da mesa, debaixo da mesa ... Como se está bem ali! É como uma
tenda de cedro com cortinas de linho, é como uma galera ancorada, como um
convés nocturno aonde chegam as vozes imperceptíveis. Há uma tranquilidade
no escutar duma língua estrangeira, no perdido sentido duma palavra
desconhecida! Ouve-se mas não se prefere, não se revolve o peito, não nos
alistamos no meio da turba. Vozes estrangeiras e o convidado debaixo da mesa!
Meu caro senhor, estou contente com a sua riqueza, ela não é minha; dou
cabriolas por causa dos seus projectos, eles não me interessam; desejo-lhe
triunfo e inteligência, não tenho que me comover com eles nem que os invejar.
Debaixo da mesa é o meu barco, o meu rochedo rodeado de corais, o meu dorso
de baleia. Não quer passar comigo pelos Galápagos, naufragar na Síria, dar a
volta por Sunda?
- Espere ... lembro-me muito bem duma brincadeira como essa. Debaixo da
mesa eu remava, remava, sentado nas grandes vigas cruzadas que vergavam
com o meu peso. Fez-me lembrar de coisas agradáveis. Meu irmão José, mais
alto e mais forte do que eu ...
Então Bráulio pôs-se a falar animadamente, como nunca lhe acontecia. Sentia-
se feliz. Todos os seus convivas, complexos e abismados em terrores, todas as
mulheres complicadas e os adolescentes histéricos, todos os amigos com olhos
vítreos e os semidesesperados que conspiravam pelo regresso de Werther
julgando entre-
63
gar-se aos desdéns mais racionalistas- estavam muito longe, nas varandas
brancas, nas salas alcatifadas onde Valéry e Claudel eram arrastados como
despojos frios duma geração inculta e nervosa. Ninguém vivia do seu próprio
amor, mas do cadáver embalsamado do seu tempo, das ideias martirizadas até
ao lugar-comum, da. fictícia coragem duma novidade ou dum surto curioso e
despótico. Bráulio estava na sala de jantar, diante da mesa coberta de restos,
do enxovalhado silêncio dos guardanapos, da marca gordurosa e frisada dos
lábios que se premiram contra a borda dos copos. Falava dele próprio, do seu
ser profundo e renascido.
- Adeus, meu amigo! Volte, volte, você é um convidado extraordinário, ou eu
estou bem disposto esta noite! -disse. O rapaz prometeu voltar; mas a vida dele
mudou, teve que deixar a cidade, e não apareceu mais ali. Bráulio cresceu
sempre em prestígio, conheceu o segredo da pintura flamenga, acumulou um
tesoiro imenso de arte egípcia e grega. Sequestrava as obras-primas e só
dificilmente as facultava ao público durante algum tempo; vencera
definitivamente sua mulher, e era ele próprio quem convidava alguns
consagrados e trocava com eles rigorosos pareceres técnicos. Nunca mais
encontrou o conviva debaixo da mesa. Quando recebia o seu grande estado-
maior de financeiros, quando sentava ao seu lado alguma princesa de olhos de
sonâmbula, sentia de repente uma impressão próxima do medo, e procurava
com uma distracção sombria o lugar sempre alterado da sua colher de sopa.
Talvez não se
64
lembrasse mais do conviva debaixo da mesa, nem de Estratónice, que
personificou A Vontade num quadro tão belo quanto atrevido. Adeus, senhores,
acabou-se o conto. Nada mais empolgante que deixar o porto de Êfeso, ouvindo
o rumor de vozes que se não prendem nem ao coração nem à memória. Para o
ar azul sobem as rajadas de salpicos, as voragens deixam ver largas algas que
deslizam. Uma vez Bráulio tentou contar a sua história, bastante medíocre, de
resto, de quando remava, remava, sentado nas vigas cruzadas sob a mesa;
ninguém apreciou a sua narrativa, e um lorde James, cravando nele o seu
olhar de aço - são sempre de aço os olhares dos homens de princípios -, disse-
lhe cavernosamente:
- Não é um pouco indiscreta a sua viagem a remo quando se vendeu
combustível para toda uma armada?
Houve gargalhadas. Bráulio pensou que uma das coisas que comovem os
homens é a eloquência. O conviva debaixo da mesa, o barqueiro que ali respira
sob o tecto negro donde se desprende o cheiro da terebintina e da cera, ali terão
que permanecer, contornando Sunda, abordando os Galápagos, remando,
remando.
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AUTO DO REI HERODES
Às segundas-feiras toda a corte do Rei Herodes se estende pelas estradas com
seus trapos cheirosos a peixe, remendados de trapo castanho. São pobres,
duma fealdade eriçada, trastes que se dispensam nas casas das noras, onde
têm enxerga partilhada com as crianças; a velhice desmanhada e mesquinha
confunde-os com o alcatrão oleoso do caminho. Não comem, arrecadam restos
que, às vezes, por sua vez atiram fora, com o desprezo acanhado de quem
reage à fartura e tem humores de rico. O Rei Herodes, que teve prédio sobre o
rio Cávado e que aparece na noite dos Santos nas suas antigas vinhas, fazendo
tilintar um molho de chaves, pertenceu a essa gente de arribação, embora
jamais se desfizesse da casa quadrada, de caliça manchada pelos bolores
ribeiros; um bolor cinzento, alto como felpo e que parece crescer até os rostos
das pessoas se elas não se dessem ao cuidado de o descobrir ao vento norte
quando sopra trazendo no seu bojo peixe-agulha e camarão.
Grupos de rapazes percorriam dantes os campos chamando as almas na noite
de Finados; muitas vezes caíam dos taludes, escorregavam no limo das
margens,
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fracturavam pernas e braços. Diziam que o Rei Herodes os empurrava ou lhes
assentava na testa tremendíssimas pedradas. Quem se aventurava nessa noite
dos mortos em tais lugares, quem media às passadas tais cômoros abertos às
ventanias, ou deambulava pela beira do rio onde fundeavam os barcos retidos
pelas correntes de ferro - ou era pecador, ou era louco. Mas diz-se, como aos
Coríntios: "se enlouquecemos, é para Deus". Ai, o Rei Herodes tinha
verdadeiramente ficado louco. Agora não passava já nas aldeias com o seu
saquitel de pão, roubando o sabão das pias; não se sentava mais nos portais
estranhos, com essa imobilidade, já subterrânea, dos velhos. Abandonara a sua
condição, a sua raça, o seu salmo, e postava-se à entrada da eternidade, com
os seus arcazes guardados no fundo dos fornos de cal abandonados, ou debaixo
dos muros de xisto, tombados, vacilantes, vadios muros onde se perdiam
arganazes e leirões, num golpe de susto, fazendo tremer ligeiramente a linda
serradela.
O Rei Herodes era um velho gordo, de cara rapada e que inspirava
aborrecimento. Ninguém se importou com a sua morte; uma filha casada
herdou os campos e a casa, vendeu-os rapidamente e usou um luto breve, sem
cobrir jamais de pano preto os brincos de ouro. Só muito mais tarde os rapazes
que chamavam as almas na noite dos Santos começaram a falar do Rei Herodes
e a dizer que ele os empurrava do cimo do pequeno cais e que o molho de
chaves tinia sobre as suas cabeças.
O Rei Herodes fizera-se mendigo como outros se fazem
68
frades ou cultivam rosas. Casara-se duas vezes e repudiara ambas as
mulheres; elas eram, de resto, criaturas insignificantes e não sabiam fazer
outra coisa senão sentarem-se a suspirar, a comer e a imaginarem histórias
maliciosas. O Rei Herodes ia para os pinhais, abatia dez árvores com golpes
ferozes do seu machado, enfeixava as ramas e deitava-se a dormir nas covas
frescas, ainda trespassadas de raízes. Consultava bruxas e adivinhos porque se
sentia sempre enfraquecido, exausto e sem coragem; e eles diziam-lhe coisas
vagas, exasperavam o seu coração e não lhe davam remédio algum. Um dia - ai!
- o Rei Herodes matou um rapaz com uma pedrada. Sua segunda mulher
contara-lhe que ele a difamava, e acrescentou: "ele não diz mal de ti, mas faz
com que fiquemos alegres por não te poder estimar". Então o Rei Herodes
procurou o rapaz, desfechou-lhe um seixo na testa, e pagou testemunhas falsas
para que dissessem que ele tinha caído nos penedos do rio, e que assim
morrera. Lembravam agora esse acontecimento os moços que chamavam às
almas na noite de Defuntos; um homem gordo e pálido, com um feixe de chaves
na mão, empurrava-os do cimo das ribanceiras e dos muros, e retirava-se no
meio do guizalhar do ferro.
Ora, uma noite eu vi o Rei Herodes, velho histrião acabado em público, com os
pés como cepos enrolados em ataduras; não usava calçado a não ser aqueles
vincilhos feitos de palha, papel de sacos de adubo ou tiras de cobertor pelado
das casernas. Como andrajos, eram cheios de veracidade vagabunda, da
esquisita elegância
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do monturo. Porque há elegâncias na miséria, há autênticos Brummell do pátio
dos milagres e das covas dos lázaros; há biocos de lenços, rendas traçadas,
invenções de faixas que sustentam tocos mortos, que são prodígios da arte das
sombras. A doença, a tristeza e a velhice têm, fora da sua residência fixa no
Inferno, pequenos solares na existência humana que são finíssimas
reproduções do natural, que pertence às trevas. Vemos às vezes certas
donzelias negras, com madeixas pegadas como por uma cola feita de areia, sal e
algas moídas, que são quase deslumbrantes na sua hediondez. Não falemos de
restos vagabundos de parricidas ou dementes que trazem consigo um saquinho
imundo cheio de moedinhas pretas, e que puxam dele com a lentidão
titubeante dum banqueiro tornado mais respeitável pelo derrame cerebral. Não
estranhemos que grandes homens mergulhassem no delírio da miséria churda,
que alguns artistas célebres partilhassem das sombrias divisas de caminhantes
e ladrões - o espírito das coisas disponíveis não se compreende sem o estado
possesso de as negar.
O Rei Herodes estava sentado num banco de pedra demasiado alto para a sua
estatura e repousava os pés numa roldana de tirar água, uma enorme peça
cheia de ferrugem, com uma calha onde cabia a roda duma vagoneta.
- Não sou um homem mau - disse-me ele, com voz aflautada que me causou
sobressalto. - Mas não gosto de meias palavras. As criaturas de meias palavras,
70
meias artes, meios sonhos, fizeram a minha desgraça. Só aquele rapaz, aquele
rapazinho que eu matei, não imagina como era querido para mim, como
gostava dele! Esse sim, meu terrível filhinho... Acordava de manhã, e lá estava
ele a dizer a toda a gente os meus pecados, a contá-los um por um, a sacudir o
punho por cima- das telhas da minha casa. Eu ouvia-o com muita atenção e,
quando ele se esquecia de indicar um erro que eu cometera, enervava-me e
fazia de longe um sinal de aviso, como um mestre que ajuda um aluno no
exame. Ele era mau, isso ele era. Nunca vi tanta fúria, tanto apego a perseguir
alguém. Palavra que eu gostava dele, eu gostava dele assim furioso, doido,
vingativo, limpo de meias palavras. Quando o ouvia era como se a terra me
oferecesse afinal uma coisa sem mistura. Tudo o mais, conselhos reservados,
idas e vindas de magos timoratos que fogem, se dispersam e regressam por
caminhos trocados e que temem, temem! ... Quem sou eu para que me temam?
Ar frio, campa aberta, chão pisado. Ah, meu único amigo, meu acusador, meu
fiel, meu danado encanto mais profundo, era a ti que eu esperava, que eu bebia
no sol e no ar, no ar e no sol bebia.
- Diga-me, Rei Herodes, diga-me: porque consultava feiticeiros e mandava ler a
sina nos astros? E dava jantares com cem assados de carne de vaca e mandava
queimar pólvora no meio das fogueiras dos magustos e seduzia meninas de
onze anos? Era um grande pecador, Rei Herodes, parece-me.
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Ele balançou o enorme pé de trapos, e o luar claro de Dezembro caiu, como um
grande lago que se entorna, sobre o lugar terrífico, solitário, cheio de ruínas
sem passado algum. As chaves tilintavam a seu lado, como se sozinhas se
agitassem. Eu não as tinha visto ainda. - Porque enlouquecemos a não ser para
Deus ? Ah, que me importa! Eu era humilde, e por isso perguntava; perguntava
às mães que vão parir pela primeira vez, aos cegos que nunca enxergaram nada
no mundo, aos marinheiros desembarcados e que trazem ainda na cara o sal
crespo do mar. Perguntava. E diziam-me sempre: "Vai nascer um deus, um
menino... Vi uma estrela, a Lua fez-se rubra, um anjo com uma espada de fogo
passou de oriente para ocidente. Breve, rápido como um grito, acontecem
coisas surpreendentes". Mas o meu coração ficava sombrio, tudo eram meias
palavras, hesitações, temores e perversão da alma. Então tombei do alto como
um velho saco vazio, e minha filha cobriu o rosto para não ver a minha boca
cheia de formigas. Porque enlouquecemos a não ser para as coisas que não são
passadas aos homens por meio de lições, que não são velho rangido de ferro? -
Ah, Rei Herodes -disse eu; e espirrei, porque tinha frio. - Ouviu falar na
"divindade do devir" ? Enfim, se não é um homem mau, porque procedeu como
tal? Acha bonito matar um rapaz com uma pedrada só porque era seu inimigo?
Que vulgaridade, um inimigo! Boa noite. Hoje é Natal, é uma noite maravilhosa
para todos.
72
- Vão gelar as beiras do rio, onde alguns peixes têm o ninho. Lembro-me, sim...
devo fazer alguma coisa ... - Tacteou as chaves junto dele e tomou-as na mão
direita, apertando-as com muita força. Eram enormes chaves de calabouço e de
celeiro, dum rugoso ferro que o uso não conseguira amaciar. O Rei Herodes
escolheu uma e apontou-a diante dos meus olhos. - Vou abrir a arca onde
tenho ataduras para os meus pés, e passarei o tempo a mudá-las.
- Não tem oiro, armas raras e perfumes? - disse-lhe eu.
- Não. Só farrapos donde rasgo ligaduras para os meus pés. Gastam-se
depressa, são feitas de trapos velhos. -Ele olhou para mim, a voz dele fez-se
ainda mais estrídula e desigual. -Mas os adivinhos sabem coisas
extraordinárias, são gente marcada, desde que nasce, para adivinhar coisas.
Conheci alguns que faziam despontar uma flor num copo de água límpida,
outros que sacudiam as nuvens como um tapete roto e faziam cair delas gotas
de sangue. Eu vi, não era possível fraude nenhuma; de resto, sou um homem
lúcido. Fizeram-me levantar sozinho no ar e dar três voltas em redor duma sala
sem nunca pousar os pés no sobrado. E outro, sentado no chão, riscou na areia
com o dedo, e eu pus-me de repente a chorar e a tremer; não era palavra
alguma conhecida, e isso despertou em mim terrível paixão e ânimo imenso de
viver. Até uma pedra se moveria e vertia lágrimas se eu a olhasse nesse
momento. Sim, até uma pedra ou um fio de algodão, ou
73
uma pena solfa dos últimos ninhos e que adormece no ar. Sim, até uma
pedra... uma pedra qualquer, uma pedra.
Então o Rei Herodes levantou-se, e mal se tinha de pé na sua exígua estatura,
vacilante, maciço e triste como um pequeno paquiderme recém-nascido e órfão.
Caiu-me nos olhos aquele belo rio fremente, os pinhais duma solenidade algo
caseira, o horizonte de vilas marítimas, costeiros sítios tintos de nuvens
vermelhas. "Ah - disse eu-, então é verdade! É uma noite maravilhosa." E fiquei
ainda algum tempo, simplesmente a olhar.
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UMA PESCARIA
Não sei no que a Vieira se pode ter tornado, mas nesse tempo era ainda uma
aldeia de pescadores, com burros à solta sob as varandas de madeira e um
mercado insólito onde duas ou três pescadeiras velhas ponderavam as suas
vidas, vendendo, por desfastio, uma quarta de pilritos e de camarinhas. As
dunas eram altas, com baluartes de camarinheiras dum verde azedo e duro. O
estuário do Lis abria-se em faixas lavradas na praia. Um fumo rosa, de
evaporação, flutuava de manhã. Puxavam-se as redes com juntas de bois, e ao
mar faziam-se os barcos deslizando em pranchas de pinho. Tudo era quase
agressivo na doçura fria dos lugares e das gentes. Havia apenas uma pensão
pobre, com colchões de palha fermentada; a locandeira revistava as malas dos
hóspedes, com honesta curiosidade, e amuava, nos seus setenta anos de
menina, se, precavidos, as aferrolhavam. Achava-os desconfiados e, por
suposto, de más contas. Não sei se tinha razão.
Ninguém de juízo se alojava na aldeia. Um professor de línguas cafres, que
enroupava o carro como se o defendesse de catarros ou de olhares sem decoro,
instalara-se na vila. Da profissão que tinha, ensinando a
75
linguagem dos Balantas, insinuara-se-lhe um africanismo esteta, pois se
apresentava em estilo safari, com calções curtos e meias de linho. Creio que
usava capacete colonial e binóculo de campanha, mas não o afirmo. Era uma
dessas pessoas que, por terem um ofício raro, se fazem elas próprias
excêntricas e um pouco marciais. Todavia, a sensação de serem diferentes
torna-as comunicativas e prestáveis com a insignificância das demais espécies
humanas. Andava por toda a parte com extremo à-vontade, tratava por tu a
cozinheira e ia de vez em quando preparar um prato especial, com gindungo e
farinha de suruí. A mulher olhava para ele com complacência não isenta de
inquietação. Era um Tartarin do gentílico - e da sabia-o.
Mas nós, propriamente, estávamos na praia. Acordávamos, e o mar já nos
chamava do fundo da escada, com aquele respirar de quem tem enfisema. Os
cachopos comiam pêssegos verdes e peixe seco. Sobre grelhas de canas, via-se
o carapau a curtir ao sol. Ouvia-se de súbito um motor de lancha; os ricos
desciam o rio, com a sua equipagem de desporto, e vinham experimentar a
água do estuário. Regressavam logo, levando às vezes com eles um amigo
abrutado, de olhos garços e que sabia colocar as redes e navegar no rio.
As pescarias faziam-se em Setembro, em manhãs em geral brumosas e frescas.
O método era simples, limitava-se a uma estacada que retinha o peixe em
cardume suficiente para uma caldeirada. Mas às vezes era escasso ou tardio, e
traziam-no de S. Pedro de Muel e
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até de Buarcos; peixe de escama verde e ventre claro, ou o safio como um
tronco de afogado; o tamboril e o lavagante, tudo com um punhado de gengibre
e sopas de pão moreno. Às vezes chuviscava e o rio cobria-se duma pele
crivada, dum negro denso. Os hóspedes corriam pelas margens e, de longe,
aquilo parecia a cena de um desastre, como quando se vira um bote e não se
sabe se acudir ou chamar. Só o professor de línguas cafres não arredava pé, e
continuava a documentar-se, fazendo sugestões extremamente racionais. Ele
representava ali o progresso, contra as forças enigmáticas do costume; costume
que era já um rito, que atingia o significado duma leal pendência com o destino
e que merecia o respeito mais submisso. Não era por ignorância, com certeza,
que a saída para o mar se fazia em tão precárias condições, os barcos quase
carregados pelos homens, esperando o favor da onda. E uma longa manhã se
perdia naquele diálogo com a recusa do mar. Dez ou vinte vezes o barco era
devolvido à praia; os homens tentavam de novo, destemidos e inermes, com o
terror sagrado nos valentes corações. O professor achava que um pouco de
técnica como ajuda, uma engrenagem, um nada, podiam poupar aquele esforço
e conduzir a resultadossinais eficazes. Surdamente, um ácido sentimento se
levantou contra ele. Incauto, absorvido pela sua inteligência divulgadora, o
professor não se apercebia daquela ingrata consciência dos que chamava seus
discípulos. Remadores de grossos braços e veias pretas sob a pele, moços de
cabelos anelados pelo
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sal, as velhas de saiotes franjados na orla pelo uso, olhavam-no friamente. E
interrompiam o trabalho quando ele chegava, fosse o de remendar redes, fosse
o de pintar um olho de Argos na proa dum barco. Não eram doidos nem sábios;
não queriam corromper aquela estreita aliança com as coisas do seu mundo,
coisas a que deviam tudo o que eram, a raça de luto, o pão da liberdade.
Nessa manhã de pescaria, o professor apresentou-se protegido com um casaco
de pano especial, impenetrável à água e ao vento. O capuz caído para as costas
deixava ver que era revestido de material sintético, igualmente fino e
invulnerável. Nesse dia ele estava particularmente minucioso nos conselhos
que dava e acabrunhante nas opiniões que emitia. Achava os métodos de pesca
extraordinariamente primitivos. Quando toda a gente debandava, como
gaivotas, abrindo grandes asas sobre a cabeça, improvisadas com lenços e
toalhas, ele ficava, timonando um pequeno barco de borracha. A corrente
arrastava-o para a estacada, e, como o vento era forte, ele corria na água de
maneira impressionante. O peixe mergulhava para o fundo.
- Que quer ele? -perguntou um dos convidados, que tinha voltado para trás
para esperar uma desconhecida com a qual pensava travar conversa. Viu na
relva um livro, que era o diário de férias do professor, e abriu-o. "Os povos
falhados são os que sobrevivem", leu ele. E fechou o livro. Nessa altura, o
professor aproximava-se da linha de estacas, perante o silêncio dos
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pescadores que o olhavam da margem; o barco rasgou-se como se fosse feito de
papel, ao ser atirado pela corrente contra as puas de madeira.
- Santo nome ! - disse a desconhecida. Começou a soluçar, sem compreender
bem o que se passava. O convidado afastou-se dela, com uma espécie de
repugnância, pois a morte violenta não é boa condutora dos amantes. O
professor foi retirado das redes, juntamente com algum peixe miúdo e detritos.
- Este ano não prestou a pescaria -disseram os ricos. Em compensação, a
caldeirada, essa foi excelente. Tinha robalo e tinha pescada e algum pedaço de
lagosta semicrua, rangente, fina. Tomou-se café sob as ramadas, que
abrigavam do vento; e as crianças corriam como gatos debaixo das mesas,
entornando os restos de vinho. Não sei que deserto morno era o do caminho por
onde voltámos; mas pareceu-me a natureza aplacada, e um silêncio nobre e
glauco era o do mar. Do professor já não havia memória. As mulheres não
falaram dele no seu mesquinho mercado, na manhã seguinte; falaram de uma
pita morta por um carro, e dos fiados que assentavam no livro da loja. Loja
sobrenatural, com maços de velas tatuados pelas moscas, que comércio de
almas e de tempo se fazia lá! "Não, não vivo disto; morro disto", disse-nos uma
vez o dono, fatalista, meio letrado, amargo como salmoura. Tinha a paixão de
negociar com a ruína dos outros, como se negociasse com promessas.
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- Não podes pagar, juro-te que não me podes pagar nunca mais em dias da tua
vida.
- Então não levo, então não como.
- Isso podes levar, isso podes comer. Mas pagar, não penses que pagas, porque
não podes.
O contrato era assim. Loucos ou sábios, como o saberemos? Consolávamos o
inquieto coração pousando os olhos na linha imaginária do horizonte, e
vivíamos.
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O BODO
Se julgam que vou contar-lhes uma história de Natal, com pinheirinhos,
presépios e neve fingida, estão muito enganados. Não é isso. Nada de episódios
com um menino pobre ou o facínora que regressa ao bom caminho, ou o grande
artista tocado pela inspiração dos simples. É outra coisa muito diferente, e
aconteceu no Porto. Onde mais podia suceder este caso, grosseiro e apesar de
tudo límpido e cheio duma coragem misturada com o mais
delicado espírito, que não é o da moral pública muitas vezes, mas o da
verdade? Foi no Porto, e não são precisos aqui muitos personagens; dois
bastam, a não ser que alguém de vós queira também participar porque o
momento lhe pareça mais próprio do que qualquer outro durante todo o ano.
Podem hoje sentir mais amor os corações vazios? Podem hoje notar melhor a
sua ausência nos lugares sombrios aqueles que sempre deram uma larga volta
para os evitar? É possível, e eu não o quero negar. Vou só contar uma pequena
história e, apenas por hoje, em honra do Salvador do mundo, eu prometo-vos
que ela será breve e que terá só dois personagens.
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A manhã era de sol, e fria. Não sabem "como é este sol da beira-rio, pálido, e
que mergulha nas águas como alumínio, ficando elas iluminadas só na
superfície, e parece que anda a luz na flor das águas, pálida e desligada? As
árvores sacudiam a última folha, que caía nos trilhos e que caía no rio. Uma
mulher que trazia vestido um casacão amarelo, novo, com lapelas de alfaiate
muito batidas, apanhou do chão dois papéis e ficou a decifrar o que eles
diziam, com essa curiosidade mole que atenua um acto demasiado flagrante.
Olhou para a esquerda, depois para a direita, e, com um sorriso vexado, meteu
no bolso os papéis; eram senhas para a distribuição de géneros dum bodo de
Natal. Esta mulher não era pobre. Vivia duma reforma da Carris e fazia recados
levando o correio de Matosinhos para a Batalha, ofício que estava praticamente
desaparecido. Essas estafetas que transportavam as cartas numa saquinha de
pano, todas as manhãs, já se resumiam a um emprego de tolerância, e não
seriam substituídas por outras. Entretanto, elas eram os correios doutro
correio e viajavam duma ponta a outra da cidade, pairando com os guarda-
freios -esta era ela própria viúva dum condutor- e trocando os melhores
cumprimentos com funcionários e domésticas, essa população do ponto e
agentes da economia privada que se deslocavam, com as suas seiras e as suas
pastas, nos eléctricos que cheiravam a humidade.
Esta mulher tinha um amigo a quem chamava "ele", enquanto que, para se
referir ao marido defunto, sempre
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dizia "o meu". Quem a ouvia não punha jamais em dúvida a espécie de
sentimentos que se filtravam por aquelas duas palavras, e os olhos tomavam
um discreto véu, que não era benevolente nem tão-pouco acusador. Sabiam
que a vida de cada um é regida por uma tríplice cadeia - a da consciência, a do
público e a das relações humanas propriamente ditas. A esta ligavam muita
importância, e não havia briga, luto ou alegria em que não estivesse esse olhar
atento que reprimia tanto a piedade fácil como a injúria demasiado activa. A
recoveira de correio, criatura notável pelo seu carácter misto de sensibilidade e
senso prático, desarmava muitas vezes os seus inimigos com a evocação
daquele a quem chamava "o meu", e comovia o espírito fatalista dos seus juizes
quando se referia a "ele". Vivia assim, criando dois filhos com probidade e
reservando-se pequenos direitos que iam dar em cheio na tábua da lei, mas
que, no fundo, eram recursos que não se destinavam à história. Porque, de
resto, ninguém era mais prudente nem mais razoável; ela estava sempre pronta
a comentar com lógica impressionante os males do mundo e os seus autores.
Era intrometida e belicosa, cheia de razões quase boas e que causavam, no
meio dum ajuntamento, uma disposição pronta a manifestar-se a seu favor.
Era, enfim, a mulher da rua por excelência.
Nessa manhã em que vestira o seu belo casaco cor de pêlo de boi, ela
encontrara as senhas para uma consoada e decidiu aproveitar-se delas.
Dirigiu-se para o
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posto onde se distribuíam os víveres e instalou-se na bicha com a sua
disposição de princípio sempre austera, mas que não tardava a ser
comunicativa e galhofeira. Havia, entre gente remediada, alguns pobres,
transidos, com a pele amolecida sob a barba e um ar de cobiça humilde;
empurravam-se e armavam pequenos escândalos, pedindo auxílio com os
olhos, em volta, aqueles olhos onde não havia senão uma aguda súplica
egoísta, uma impotência que causava náusea ver. A recoveira aplacava-os,
mostrava-se um pouco ofendida com aquela bulha, e achava mesmo imprópria
de tal gente a esmola que iam recebendo. Mas não o dizia.
"Coitados! Hoje é o dia grande deles..." Sorria com beatitude, tendo o cuidado
de demonstrar que para ela havia com frequência dias de fartura e que não
estava ali por necessidade, mas quase por cortesia para com os benfeitores. No
fim de contas, quem gosta de dar precisa de estímulo dumas almas
reconhecidas mas não miseráveis a ponto de parecerem insensíveis. Receber
uma esmola é uma arte que poucos aperfeiçoam com a delicadeza, a graça, a
sublimidade, a confiança nobre e a languidez que é toda uma ética. A recoveira
sorria, e, para as outras mulheres que, com capinhas de lã e saias espipadas,
estavam como ela à espera do bodo, tinha uma suficiência cúmplice a que não
faltava dignidade.
Era um dia de sol, e frio. Havia um trânsito vivo e desordeiro, e essa colectiva
exuberância do pré recebido e da festa que se aproxima. Uma peixeira que
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passava, grande e máscula, com esse rosto vermelho dos que nas madrugadas
se agasalham com aguardente, e essas mãos hábeis e duras que espostejam e
que escor-cham, parou de repente e bradou muito alto:
- De casaco comprido ! Olhem quem vem receber a ceia, olhem para esta de
casaco comprido! Ladrona, que a mim não me davam um bago de arroz se eu o
pedisse! Vai para a tua casa comer com o fêmeo o que é dos pobres, ladrona ! ...
Abria as grandes mãos e apresentava-as nuas como prova da sua verdade; as
sobrancelhas esbranquiçadas brilhavam como faíscas que dos olhos se
soltassem. A recoveira ficou abalada, mas não por muito tempo; quis primeiro
desprezar aquele incidente, mas o sangue puxava-lhe para a batalha, e a outra
não a deixava de modo tão fácil ignorar a provocação. Pôs-se a gritar então com
tal vontade que imediatamente arranjou quem a entendesse e se colocasse do
seu lado.
- Cristo! -disse a peixeira.- Como elas defendem o osso ! Aviai-vos, mulheres,
vinde para cá ! Arranco-vos das goelas a campainha! De casaco comprido, não
viram?
- E que te importa, que te importa, que te importa? Não são os casacas que te
dão o lucro? Ganho o meu pão com limpeza e mereço mais do que recebo.
Apanho toda a chuva que o céu quer despejar, e, quando me queixo, dizem-me:
"O teu lugar há muito que devia ter acabado; é um emprego que não se admite
nos dias de hoje..." Mas nos dias de hoje come-se como nos
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outros... Ora, não me cegues a vista, não me faças falar! Aposto que tens mais
aguardente no bucho do que rabanadas eu hei-de ter esta noite.
- Ela que diz? Não teres uma cruz na porta quando a abrires ao meio-dia ! De
casaco comprido, não viram? Vinde para cá, para cá todos, que não valeis todos
juntos um coelho rendido ... - Dava palmadas nas ancas, e a sua voz rouca
enchia a rua. Juntava-se povo; um vendedor de castanhas, cujo fogão de lata
espalhava no ar rolos de fumo perfumado, apregoava tranquilamente e contava
na palma da mão os tostões recebidos. - Ladrona ! Que o azeite e as batatas te
dêem no coração! Vamos, que isto cheira ...
Tão rapidamente como viera, ela desapareceu com a sua pequena canastra com
peixe ensanguentado. Fez-se um certo frio, agora que a luta se apagara sem
ficar decidida, e a recoveira, com as senhas do bodo na mão, ofegante e
chorosa, dizia ainda:
- Se eu não fosse pobre não estava aqui... Pobres, pobres, são os ratos, eles
roubam porque não sabem pedir...
Alguém proferiu palavras que a tranquilizaram; estava agora mais humilde e
enxugava gordas lágrimas, suspirando com estremeções patéticos.
Aconselharam-na a beber água fria, ela disse que a água, de manhã, lhe fazia
mal, e pôs-se a contar as suas doenças ou as que conhecia nas suas vizinhas,
com uma espécie de deleite macabro e recusando-se a acreditar em remédios,
em médicos e em curas. -"O meu", que sofreu
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muito, andou pelas mãos de todos os doutores e ainda hoje era vivo se os não
ouvisse. - A sua conversa era jactanciosa e mesquinha; mas o que era
extraordinário era a mistificação que em toda ela se percebia; porque aqueles
conceitos eram aparência e, no fundo, havia um sentido de indiferença por tudo
quanto era dito, por isso é que ela atraía tanto. Um homem, que estava ao
volante do seu automóvel e que presenciara toda a escaramuça, disse para ele
próprio: "Talvez eu não tenha nada com isso, mas penso que ..." Ele não tinha
nada com isto, de facto; eram apenas dois os personagens que estavam
previstos nesta história, a não ser que ... sim, a não ser ... Mas não. O terceiro
personagem pode estragar tudo, mesmo que apareça em honra do Salvador do
mundo.
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OS AMANTES APROVADOS
É uma história simples. No ano de mil novecentos e trinta e tal, vivia na
vilazinha de ..., no litoral, uma viúva respeitável, gorda, de olhar brando e
bandós a picarem de cinzento. Tinha tido onze filhos, dos quais nove
sobreviviam, e toda a aventura da sua vida fora a de, como mulher dum
magistrado pobre, ter percorrido o país no decurso duma carreira anónima e
sem fé. Triste, talvez não. O marido fora um tipo folgazão, sociável em extremo
e que fizera grandes amigos, dos quais muitos também sobreviviam. A sua
morte, acontecida em pleno vigor físico e quando esperava a promoção a juiz de
segunda classe, provocara uma crispação de pânico nos nervos dos colegas e de
toda uma pandilha fervorosa dos vícios de província, que são a má-língua, a
política e o interesse - essas fístulas crónicas dos homens de quarenta. Os
órfãos, de princípio socorridos com uma generosidade exaltada demais para
permanecer fiel, foram aos poucos deixados sob a mão de Deus Padre, para que
se criassem. Sabia-se que a mãe era senhora séria e de bons princípios, e isto
sossegava - vamos saber porquê ! - as consciências. Tinha ela na terra uma
casa, pouco mais que um sobrado de
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pescadores, e para lá se arrumou com as crianças. Duas, protegidas por
padrinhos, teriam estudos pagos e donativos de vestuário; os outros cresceram
um pouco à sorte, no hábito dessa tragédia ensossa, pasmada, fria, da
burguesia pelintra. Podia-se dizer que existiram entre a escola e o emprego na
burocracia, sem conhecerem a cor do dinheiro. Entalados numa engrenagem de
dívidas, promessas, esmolas, de caridade sopesada até à última gota na
balança dos que em cada dádiva ou tutela parecem endossar a batata podre
dum conceito inútil, da moralidade mais rapada e sem brilho, adquiriram todos
uma sobreposição de personalidade que os fazia muito idênticos. Assim, todos
sabiam dissimular e nunca manifestavam a tempo qualquer sentimento;
reagiam por aprendizagem, não por instinto, e na sua alma tudo estava pregado
e postiço como a lua no teatro do próprio Shakespeare.
Com o tempo e a colocação do mais velho como prefeito dum colégio, mudaram-
se para uma sobreloja, deixando o bairro excêntrico em cujas valetas os detritos
de peixe atraíam grandes moscas verdes. Viviam pior que nunca, mas tinham
conseguido o que se chama "ganhar pé". Possuíam um relativo crédito e,
comprovada a sua penúria, os seus antecedentes duma honesta monotonia e o
facto abonatório de que tinham vivido bem, a sociedade apaziguara-se um tanto
e concedera-lhes certos direitos. Por exemplo, as raparigas traziam golas de
velha pele sarnenta, sem que o mundo se risse, porque, nelas, os atributos da
classe, o luxo, eram por
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assim dizer uma aquisição histórica. Admitiam-nas na intimidade superficial
das pessoas finas, homenageando-as com a confiança de lhes pedirem favores
como os de passarem bilhetes de rifa ou recortarem florinhas de papel para o
Dia do Capacete. Enfim, podia-se afirmar que tudo corria bem, se algo de muito
estranho e de imprevisto não abalasse a comovida paz dos benfeitores que são
a multidão em geral quando se sente despreocupada. Constou que a viúva
tinha um amante. Tínhamos dito que era ela mulher gorda, grisalha, de olhar
brando, mas não seria bem assim. Era de facto um tanto pesada, com um
andar cambaleante de quem sempre calçou chinelos de pasta ou de corda ou de
seleiro; não vestia mais do que batas de algodão preto e parecia bastante mal,
mesmo aos domingos, sobretudo aos domingos, quando, na missa das nove, se
ajoelhava na sua almofadinha de setineta vermelha, ao lado do "altar das
Dores". Tinha um rosto inexpressivo do muito que a fadiga se sobrepusera às
emoções, e não parecia gostar de rir nem de chorar, nem sequer de observar os
outros nessas ocupações. De resto, possuía ainda belos olhos, e a sua frieza de
maneiras dava-lhe uma graça um tanto hostil que infundia ternura, depois de
ter provocado receio. Era frequente vê-la atravessar a ruazinha de velho
macadame, para vir arrastar pelo braço um ou outro filho que se filiava na
trupe de garotio para, no átrio do cinema, esmolarem a quantia bastante à
entrada. Fugiam-lhe para, no poleiro da geral que era como uma assembleia de
jura-
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dos apinhados em degraus rente às coxias, uivarem ameaças contra "o cínico"
daqueles filmes do Tim Mac Coy de belos dentes que se rolava num fosso da
pradaria em chamas. Ai a linguagem desses ladrões de gado, desses sheriffs,
dessas "cavadoras de oiro" que sugeriam fome e água de lavar pratos! "Labora
num grande erro" - diziam, explicando a intriga e a traição, enquanto, com um
rumor de vento infiltrado por fendas de pedreiras, ardia um rastilho de
dinamite. Os rapazes precipitavam-se, no intervalo, até à rua, engalfinhavam-se
possessos de coragem, imitando tiros; e iam, na lojeca próxima, comprar um
pão encortiçado, de domingo, com talhadas de marmelada, ou cartuchos de
paciências ou pastilhas Naval que chupavam laboriosamente, mostrando-as na
língua uns aos outros, para suscitar invejas.
- Raça ! - exclamava a proprietária, que vinha, por condescendência, ajudar na
loja, porque a frequência era aos magotes, e ondas de garotos embatiam contra
os mostradores onde melavam os "caramilos" junto das onças de tabaco. Era
uma mulher oxigenada, vistosa, cheia de ambições mal encabadas no seu ofício
de mestra de meninos. Detestava as crianças, as suas roupetas com cheiro de
peixe e de surro, as suas chancas tachadas, as suas sacolas de serrapilheira
com flores pintadas e que a chuva esborratava; aplicava nelas o ódio pelo
mundo de chateza e de frio que conhecera desde a infância, quando, deportada
do seu nabal onde o pai sorvia cotos de cigarro sentado nos montículos de
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pilado, se fizera letrada. Casara ali na vila com um tipo mesquinho que usava
manguitos de cotim e pesava quilos de arroz com a proficiência dum Shylock. A
filha, bonita como ela, criara-a para outra classe, outro meio, outra vida.
Quantas lágrimas raivosas, esses vestidos de folhos, essas sombrinhas
japonesas! Quantos favores equívocos, nauseados, em que acumulava tédio e
impotência, para que ambas, na Assembleia, sorrissem um pouco duramente,
como quem pressente ter-se enganado na porta e no lugar, e espera a todo o
momento uma advertência, uma rectificação!
- Raça! -• dizia, quando estendia sobre o balcão, procurando não tocar as
mãozinhas onde o ranho seco escamava, os confeitos ou os pães varridos de
farinha, muito lambidos, cor de cinza. E, em particular, a sua aversão atingia
os filhos da viúva. Desprezava-os porque os achava pobres, raquíticos,
enfadonhos, sérios; porque tinham hábitos finos, viviam disciplinados como
formigas, usavam com naturalidade os seus trapos polidos com benzina, e
porque as crianças abastadas os tratavam com deferência. Alguma vez a sua
Loló, magra e frenética criatura de olhos verdes, brincara nos jardins dos
palacetes, usara as trotinetes dos pequenos burgueses, fora conduzida a casa
pelos seus criados? Loló percorria as ruas perseguida por uma turba de
catraios de fralda ao vento que se dispersavam quando ela parava para os
reconhecer - o que não acontecia nunca. Mesmo assim, denunciava-os a eito, a
mãe se incumbia de distribuir reguadas nos nós dos
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dedos, ferindo, esfolando, com um olhar mau, nublado, e que fazia gritar os
menos estóicos antes que se aproximasse deles. Ah, aquela viúva fora por
muito tempo um espinho enterrado no centro do peito, fora um pouco como
uma sombra projectada sobre um écran onde a paisagem corre! Admirava-lhe
as belas maneiras, o ar sóbrio, sem sorrisos, porém sem amargura; invejava-lhe
a tranquilidade com que parecia existir entre os filhos, que cresciam feiotes e
pelados como ratos dos bueiros. De súbito, apareciam todos grandes, as
raparigas com a sua beauté du diable, os seus vestidos inesperadamente à
moda, tentando destinos, vivendo; os rapazes tinham agora boas relações,
faziam carreira, modestamente, sem importunar, seguros. Também a sua Loló,
delgada e cheia de it, dançava um pouco o charleston e namorava um
miliciano. Mas as outras crianças, sempre as mesmas, com o seu cheiro de
marisco na pele, com os seus narizes lacrados de monco amarelo, com os seus
gritos à Tarzan, a sua bola de trapo, essas não cresciam. Continuava a sacudir-
lhes as orelhas com varadas, enquanto lhes encaixava as medidas de peso ou
de lenha. E um sol tão branco arredondando-se sobre o mar! E o trepidar dos
carros no Largo de S. Tiago, na Avenida, na Praça! Meu Deus, meu Deus! Havia
uma lampadazinha sobre a mesa onde corrigia exercícios, à noite, e a luz
amarela escorria nimbando a sua cabeça oxigenada. Os frequentadores do
cinema viam-na, e, na impressão imediata dos cartazes onde se contorciam
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mulheres como chamas, comentavam: "Parece uma vamp ... a Brigitte Helm ...
a Marlène ..." E ela sentia na pele, à flor da sua pele branca, empoada e
levemente flácida, que falavam dela, e como.
Foi ela a primeira a compreender e a revelar que a viúva tinha um amante. Era
um rapaz de vinte anos, muito estranho, magrinho, e que leccionava num
colégio; chamava-se David, tinha vindo das Ilhas, sem recursos, para estudar.
Era interno, portanto, e passara a pagar com explicações aos primeiros ciclos
as suas propinas. A viúva conhecia-o como colega dos filhos mais velhos, há
bastante tempo, vira-os nas mesmas manhãs de Verão saírem juntos para o
banho, com a toalha enrolada presa pelo cinto do maillot. Nos dias de
aniversário, David sempre mandava um postal ilustrado às meninas - sempre
garotas ricas entre flores, em áleas de jardins, e cores muito brilhantes. Ele era
tristonho, quase bronco quando desconfiava de alguém ou simplesmente não
conseguia adaptar-se; mas, familiarizando-se, rasgada a sua casca de timidez
feroz, de orgulho mais feroz ainda, era maravilhoso. Havia nele uma coragem de
sinceridade que nem era maculada pela consciência de virtude que a razão
nisso podia surpreender. Na sua aceitação de tudo o que acontece, de tudo o
que triunfa, de tudo o que perde, de tudo quanto é inútil ou sem estética, de
tudo quanto é belo para vexame da nossa própria alma, havia paz. Às vezes
sorria, quando todos se agrupavam fazendo traduções do latim, repuxando
uma beiça sinistra sobre o queixo.
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Sorria, com o livro aberto diante dele, como se seguisse uma imagem deveras
cheia de interesse e de humor.
- Em que pensa? - perguntava-lhe a viúva. Ela sorria também.
- É tão tolo viver exactamente assim - dizia David. - Dividimos o tempo e
emparedamo-nos dentro dele. Mas não há tempo, o tempo não existe, o tempo é
apenas memória. Olhe as violetas nessa jarra ... murcharam, mas não têm a
recordação da sua frescura, portanto existem num tempo único - compreende ?
- Compreendo. - E ela já não sorriu. O rosto cansado estremeceu, crispou-se, e
voltou a adquirir a sua fria brandura habitual. Sim, tinha compreendido.
Durante muitos dias esgotou-se em imobilizar-se dentro dela própria, em
rastejar em torno da sua alma, para que ela não pressentisse quanto a vigiava,
vendo se dormia ou velava; durante muitos meses viveu metodicamente entre a
sua pequena gente escura, questionadora, mesquinhamente ansiosa e que se
atraiçoava de quarto para quarto, de prato para prato. Julgava-se sossegada e
igual a outrora, surpreendia-se a rir jovialmente, porque tal libertação a
exaltava e lhe dava uma espécie de febril felicidade. Depois, recaía de súbito;
David obcecava-a até ao ódio, queria que ele partisse, inventava planos para o
afastar, para deixar de o receber, para não o ver mais; achava-o sem
importância, voltava a rir-se da sua cegueira, a acusar-se de insensatez, de
malignidade, de vileza. Rezava muito, mas, na sua prece, no mais ardente voto,
brotava-lhe do coração
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o nome dele, mergulhava numa prostração terna, exasperada e submissa por
fim. Adoecia e renascia da doença como a serpente que se desprende da própria
pele e se esgueira vigorosamente para fora do ninho bolorento. Assaltavam-na
escrúpulos que se traduziam em manifestações de sacrifício; o seu amor pelos
filhos parecia recrudescer, escravizava-se a eles, contente se dominava a
própria impaciência e o juízo desfavorável que o carácter deles, as suas pegas, a
sua nulidade, o seu egoísmo desamparado e impotente lhe provocavam.
Matava-se lidando inutilmente, infeliz quando percorria a casa e via que todas
as coisas estavam correctas nos seus lugares, que a poeira vogava no ar sem
poisar; tudo era tranquilo e mesmo, sob a mesa da sala, os gatos dormiam
indiferentes a travessuras no velho tapete inglês muito rapado nas bordas como
um caminho trilhado de roda dum capinzal. Sentava-se um momento, com as
mãos no regaço, como alguém que espera num banco de estação; a imobilidade
doía-lhe, agitava-a uma saudade de lágrimas que não podia chorar, e tudo o
que até ali vivera lhe parecia importuno na sua memória. Punha-se a pensar
então em David, o sangue pulsava-lhe devagarinho nas têmporas, ela sorria
como uma rapariga. Pensava nele, encontrando sofrimento e alívio porque ele
lhe aparecia de repente tão distante como alguém já morto, como alguém a
quem, à força de dedicar sentimentos e projectos, nos aproximou da indiferença
e da erosão da alma. A vida como que estancava, ficava-se distraída a olhar
pela janela o céu frio de
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Primavera que tão bem lhe sugeria toda a vila desenhada numa luz apática,
com sombras que cresciam rapidamente pelos muros, com campos e noras,
flores miniaturais balançando-se imperceptivelmente como cabecinhas senis; e
os areais onde se compunham redes, escurecidos aqui e além pelos detritos do
mar, com recortes de babugem que, devagar, se evaporava. O céu frio de
Primavera sobre a vila! Sobre as gavinhas tenras cheias ainda de penugem
cinzenta; sobre os talos novos de roseira que, partidos, vertiam seiva doce;
sobre os campos, sobre os campos ... Frios, dum verde inacabado, com terra
fria, fechada, hostil ainda, por debaixo. Esse arrepio agudíssimo do fim de tarde
de Primavera comunicava-se-lhe. E, trémula, retomando a custo o movimento,
a vontade, voltava a apropriar-se de si mesma.
Quando falaram as vozes, dizendo que David e ela eram amantes, isso apenas
se explicaria pelo pressentimento de catástrofe a que são sensíveis as
colectividades. Viam-se pouco, nunca se tocavam; mas havia decerto neles uma
exaltação de paixão que o próprio silêncio, a própria ausência e aparência de
serem estranhos, confidenciava. Os filhos passaram a abandonar mais a casa,
a tratá-la com uma cerimónia constrangida. Alguns choravam um pouco pela
nostalgia da simbólica mãe; de resto, fora sempre o símbolo de mãe que eles
tinham amado, e não a ela. Não a ela. Outros faziam-se mais viris com essa
realidade que no fundo da alma os vexava; e torturavam-na.
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- É verdade? É verdade? - diziam. - Sempre fomos bons filhos, a pobreza não
nos fez corar nunca, bruníamos as nossas roupas ao serão para te poupar
canseira, desprezámos as raparigas para não te abandonarmos. Destruíste
tudo isso. Já não podemos ter confiança, porque tu nos cuspiste na cara.
- Mãe, mãe! -diziam as moças, com trejeitos duma cólera ávida, repelente,
destruidora, a cólera sem finalidade das mulheres, que é apenas pretexto duma
afirmação, duma quase vingativa expansão do sexo. - É uma canalhice ! ...
E o próprio David, que sentenciava com uma voz em que se entrevia mais o
prazer da audácia que a intenção de a poupar a ela:
- Não há acções canalhas, mas almas canalhas. A mesma acção vivida por
almas diferentes não é a mesma acção.
Ela suspirava, levava a mão ao rosto como se fosse defender uma pancada. Não
compreendia; não compreendiam. E, quando David encostava a cabeça nos
seus joelhos, o silêncio denso os envolvia, o silêncio amassado com todo o
vociferar da rua onde brincavam crianças e se descompunham peixeiras, com
todos os soluços de agonia dos que morriam na solidão terrível daqueles a
quem o próprio pecado abandonou, ela encontrava felicidade. Um dia, constou
que se tinham matado. Ela aparecera com duas balas no peito, no soalho do
seu pequeno quarto onde se respirava essa miséria estéril dos que apenas
duram, apenas dormem, apenas sonham,
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apenas mentem. Castiçais de vidro, sobre a cómoda, diante de imagens baratas
de arraial de peregrinação, tinham velhos pingos de estearina cobertos de pó.
David respirava ainda.
O caso, muito abafado, passou depressa, pois o mundo gosta de resgatar a sua
responsabilidade com o esquecimento. Sim, com o esquecimento que antecede
sempre a redenção. Tudo passou depressa; portanto, poucos anos depois, a
vizinhança só banalmente se referia à viúva, aos filhos que tinham partido ou
porque casavam, ou porque os vitimara uma febre, um desastre, ou porque a
província os devorara como pequenos burocratas. Só quem fielmente se
lembrava de tudo era a loira mestra de meninos, que continuava a corrigir
problemas na sua mesa iluminada pelo candeeirinho que o tempo entortara e
cujo abat-jour ficara sujo e pingão como um saiote de bailarina de guignol. A
luz amarela fazia resplandecer os seus cabelos, e ainda os frequentadores do
cinema olhavam, com um interesse logo extinto, o recorte da sua cabeça na
vidraça. Mas já não faziam comentários.
- Raça ! - murmurava a mulher, riscando ferozmente de vermelho os cadernos
cheios de borrões cor de violeta e onde a tripa da tinta se desenhava. Loló
engordara e já não tinha olhos verdes, já não usava sombrinhas japonesas; já
não tinha pretendentes vestidos de flanela branca como Conrad Nagel, como o
Barrymore; casara com não sei quem, descia aos tropeções a sua escada
estreitinha, agarrando-se de lado
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ao corrimão, com uns velhos sapatos debruados de pelúcia e que ganhavam
pulgas -oh, esses sapatos de que criavam pulgas alimentavam a
comunicabilidade calaceira, morosa, feliz, com mais do que uma vizinha! -, ia
escolher papos-secos na padaria, fazendo-lhes estalar a crosta entre os dedos,
espremendo razões de protesto em todas as coisas que aconteciam. - Raça! -
dizia ela também. A mãe, ainda oxigenada, corajosa ainda porque se pintava
sobre as rugas, sobre as feições desfeitas, desprendera-se muito dela. Às vezes
pensava na viúva, em David, no seu amor que sentia vivo, penetrado no próprio
céu frio de Primavera, fluindo de todas as coisas, mesmo as mais ingratas e
inexpressivas coisas do mundo. Tinham-se amado - eles. Naquela casa de
sobreloja onde habitara a viúva, não podia ver ninguém correr um estore, abrir
uma janela, atirar fora os restos dum cinzento, sem que julgasse que tudo
estava a acontecer ainda. Que, no quarto, que recebia luz duma clarabóia do
corredor, dois seres tão verdadeiros como só podem ser os que compreendem
que a morte participa da vida e a completa, agonizavam, sem tragédia, sem
veemência, porque a tragédia, a veemência, não é dos que cumprem, mas dos
que apenas os imitam. Os cartazes expostos no passeio do cinema, as mulheres
serpentinas de olhar vidrado ou fulgurante, as paixões estereotipadas dum
mundo senil, esgotado, impaciente! E aquela criatura, sem juventude, que
vestia batas de chita, que era talvez um tanto estúpida e sem importância, mas
cuja
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fealdade, limitação, pobreza, mereciam uma aprovação através do amor! Assim
sentia a mestra de meninos que continuava a distribuir aos domingos
pacotinhos de pastilhas Naval, reclamando o dinheiro certo na palma da mão
para a dispensarem dos trocos. Os garotos apinhavam-se, repeliam-se,
esmagavam-se contra o balcão, ela dizia "raça!", entediada e, apesar de tudo,
lírica, porque não abdicava dos seus cabelos loiros, da sua solenidade, e
porque, enfim, em cada esteta falhado há um lírico que se procura.
Esta é a história simples dos que chamamos os amantes aprovados.
Esqueciamo-nos de dizer que David sobreviveu. Que lhe aconteceu depois, não
sabemos. Ou antes, na última, vez que fomos à cidade, encontrámos na rua um
homem que se lhe assemelhava muito; os cabelos eram mais raros e usava
óculos. De resto, caminhava muito depressa e não o pudemos observar muito.
Parecia um desses eruditos pobres que vivem num saguão, dormem sobre uma
arca e eles próprios cozinham um arroz esturrado numa máquina de petróleo.
Era bem ele, com o seu olhar retraído, fino, persistente, mas não podemos
jurar. O mundo está cheio de pessoas que se parecem e todas se continuam,
sim, todas se continuam. De qualquer modo, o David que nós conhecemos há
muito... Mas nada temos já a acrescentar a esta história.
102
A MÃE DE UM RIO
Antigamente, sim, antigamente, a Terra tinha a forma quadrada, e um rio de
fogo corria na superfície. Não havia aves nem plantas, as águas estavam nos
ares como nevoeiros cor de ferro, e os ventos não as tinham distribuído ainda
pelos quatro cantos agudos da Terra. Onde estava o peixe minúsculo de ventre
negro, ou as bonitas serpentes de escamas verdes? Não existia o trigo nem a
mão humana, nem mesmo o sono ou a dificuldade, que foi o segundo grito da
criação. Passamos hoje por um caminho que tem nele marcado outras pegadas,
e ocorrem-nos as histórias doutras idades. Por deserto que esteja o campo e frio
o sol, o tempo está presente e nos penetra de sabedoria e de fortaleza. A única
solidão é aquela que não tem passado.
Se hoje percorrermos um velho lugar inóspito, como a serra da Nave, mil
lembranças nos acodem, e cada pedra desconhecida, cada ramo de acónito e de
mal-vaísco nos apresenta uma parada de vidas, de funções, de razões e de
espiritualidade. Temos que morrer um dia, mas que deixemos no isolo húmido
a sombra da nossa obediência mortal. Mas comecemos a história da mãe de um
rio. Era ela uma mulher que dominava a
103
linguagem das gralhas e vivia numa pequena casa feita de barro, na serra da
Nave. Não tinha nada de extraordinário, essa mulher. Usava os longos cabelos
presos com uma fita de couro, e os seus belos pés pareciam nunca terem
pisado senão as ervas recentes da Primavera. Ela era a guarda de um rio que
brotava no fundo duma cova, e existia ali há mil anos, sempre acordada, e a ver
levantar o bando negro de gralhas cada vez que ela dizia algumas palavras. O
facto de ela viver mil anos não tinha também nada de extraordinário. O tempo,
para ela, não era consumido numa finalidade, ela não tinha filhos que
crescessem, nem campos que semear; não contava as voltas da Lua, nem
seguia com demasiada atenção a passagem das estações. Isto permitia-lhe viver
interminavelmente. Ela era a guarda do rio que manava do centro da Terra e se
estendia pelos imensos veios da serra da Nave, até às regiões mais afastadas. O
rio corria subterrâneo até muito longe, e, em Alveus, que depois se chamou
Alvite, e que era a aldeia próxima, as mulheres tinham que destapar cisternas
profundas para tirar delas a água. Era tão fria que parecia arder nas mãos
quando nela se mergulhavam. As raparigas tinham, por isso, todas elas, as
mãos queimadas e endurecidas e as unhas azuladas e duras.
Esse povo da aldeia fora primitivamente nómada, e viera, com as suas mantas
de lã tingida, assentar arraiais num lugar pedregoso da serra da Nave.
Construiu casas, as ruas estreitas e imundas multiplicaram-se, e o gado
andava solto, sem que ousasse sair jamais des-
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ses quelhos onde se ouvia, dia e noite, o tropear dos cascos. Ao crescer, a aldeia
fizera-se um verdadeiro labirinto. As pedras acastelavam-se, nasciam novos
caminhos, mas tudo era tão destinado a confluir para os anteriores atalhos,
que havia a impressão de que era um avanço inútil o que se fazia. A população
vivia ainda de apisoar a lã, de tecer mantas e cestas de silvas. O trato com a
gente das feiras dava-lhe um carácter frívolo e tagarela; saíam durante
semanas para vender o seu burel e as meias de lã húmida, que traziam em
molhadas sobre os burricos. Não se casavam nunca fora da aldeia, e a sua raça
permanecia inalterável; os olhos eram estreitos e negros, a pele duma cor de
avelã verde. Com a idade, as pessoas faziam-se sombrias e rezavam muito. Não
era raro ver, com o cotovelo sobre uma travesseira e a cabeça inclinada, alguém
que, durante um longo dia de Verão, não se mexia, enquanto que à sua volta
bulhavam os cães e as crianças. Era uma velha que rezava. Estava tão quieta,
que parecia ter morrido, e as vozes e o mugido do gado passavam sobre ela
como um rasto vão de coisas que aconteciam.
Todos sabiam da existência da mãe do rio. Atribuíam-lhe os males que afligiam
a aldeia, e temiam-na; outras vezes achavam a sua presença propícia, e a
primeira bola de pão, feita com o primeiro centeio, era-lhe oferecida, e
consideravam de mau presságio matar uma gralha. A mãe do rio não se
importava com nada disso. Tinha mais de mil anos de existência, e achava que
a sua memória se gastava, pois da já mal se lembrava da
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longa história humana, do nome das plantas, e dos ventos, e dos animais.
- Que lhes parece? -perguntava às suas gralhas, que voavam e pousavam
incessantemente nos brandos flancos da serra da Nave. - Já não sou capaz de
cantar como quando bebia sumo de medronho, e os meus pés já não sentem o
murmúrio da terra. O povo da aldeia esqueceu-se de mim, e eu não sei já
reconhecer as novas gerações de crianças. Todos são iguais, todos são iguais! ...
-• Todos, todos são iguais! - repetiam as gralhas. E descreviam no ar um círculo
negro e volúvel. A mãe do rio deixava tombar as mãos. As pontas dos seus
dedos eram de oiro.
Mas na aldeia havia uma rapariga que se chamava Fisa ou Fisalina, e que era
de temperamento arrebatado, propensa a sonhos e a tristezas inexplicáveis.
Impunha-se a si própria grandes castigos, embora fosse de coração simples e
não praticasse acções condenáveis. Mas a sua imaginação apoquentava-a,
pensava mal de todas as criaturas, desejava privar com seres de cujos lábios de
mármore saíssem palavras desconhecidas. Costumava olhar as paredes de
pedra desconjuntada da sua aldeia, com uma indignação exagerada, e o
sentimento da sua própria injustiça causava-lhe alívio. Porque era assim
Fisalina? Usava uma capa de burel, e, debaixo do seu capuz castanho,
ninguém podia perceber os terríveis sorrisos de amor que ela dirigia a todas as
coisas. Os irmãos não gostavam de brincar com ela. Acabavam
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por ficar absortos diante da inventiva daquela rapariga que os amedrontava e
que se fingia louca ou possessa para os obrigar a fugir ou a ceder-lhe a melhor
parte nos seus jogos. Ela afastava-se, e então era quando deveras a brincadeira
começava - Fisalina ouvia como se riam, e sentia uma grande amargura invadi-
la. Prometia a si própria fazer de muda durante três dias, ou trazer uma fita
demasiado apertada nos pulsos, até o sangue enegrecer debaixo da pele.
Quando cresceu, passou a acompanhar o pai às feiras e a vender braçadas de
peúgas brancas e mantas de lã. Como o pai se embriagava e lhe dava para
cantar hinos de missa, os rapazes juntavam-se em volta dele e davam-lhe
pequenas vergastadas com tranças de palha. Fisalina dissimulava a cólera,
porque não achava viável qualquer ataque; fechava os olhos docemente, com
modéstia infinita, e causava uma bela impressão aquela altivez humilhada ao
pé do bêbedo que balbuciava cantorias. Assim ela arranjou um namorado.
Encontrava-o de longe a longe, e as suas conversas eram sempre as mesmas.
- Quando voltas? - perguntava ela.
-Não sei, Fisalina. A tua aldeia fica longe. É um monte de pedra a tua aldeia, a
gente perde-se nessas ruas, e não sai delas nunca mais. Uma vez vi um bando
de gralhas, pássaros pretos e barulhentos, como são pretos e que barulho
fazem ! Outra vez vi um enterro, e os velhos levavam luzes na mão, ainda que
fosse dia claro. Todos são velhos na tua aldeia, Fisalina?
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- Quando voltas? -tornava ela. Sabia que nenhuma rapariga saíra ainda dali,
que nenhuma se casava fora. Agora ela desejava contrariar essa velha lei, e, em
rigor, a sua alma aspirava sempre a vencer e a transpor as leis que nunca
tinham sido sequer suspeitadas. Enquanto passava pelas ruas imundas onde
desabavam os pequenos muros de cascalho, ela pensava na maneira de se
exilar de tudo aquilo. A cólera e o amor faziam-lhe a respiração apressada, ela
não sabia se o amante era a razão da sua liberdade, ou se o elegera apenas
como um ardil frio que a levasse a agir. O pai chamou-a, e ela respondeu com
doçura. A madrasta estava a comer batatas cruas, e os seus dentes longos
pareciam dobrar-se no contacto da polpa rija e sumarenta.
- Fisalina, queres um bocado? Tirámo-las agora da terra e estão cheias de água
doce.
Fisalina baixou a cabeça sombriamente. Noutros tempos, quando a mãe do rio
aparecia ainda, com os seus pés brancos como leite e na mão um ramo de
mimosa florida, ninguém seria capaz de comer batatas cruas, húmidas de terra,
e de as oferecer como um manjar. Fisalina reparava que, à medida que a aldeia
crescia e se multiplicavam os seus labirintos, um certo instinto de defesa moral
se esvaía. Em noites de calma ouvia-se o foçar dos cães nos recantos, eles
desenterravam corpos há muito decompostos, e as crianças faziam brinquedos
com os descarnados ossos. Havia fome, mas ela não causava luta, pânico ou
pensamento algum.
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Distribuía-se a fome, distribuía-se mesmo o amor duma maneira acidental e
sem generosidade. A habilidade substituía o entusiasmo; os homens eram
vulgares e procuravam esquecer a sua própria história, como se se tratasse
dalguma coisa excessiva e involuntária. Apenas os enterros tinham um certo
cunho de verdade quando percorriam as ruas estreitas, ladeadas por casas
prestes a desabar, sem uma pinga de cal, sujos mausoléus de vivos. Fisa ou
Fisalina cogitava na maneira de se escapar dessa aldeia monstruosa. "Como
poderei sair daqui?" - pensava ela. Então procurou a mãe do rio. Chegada à
porta da sua cabana de barro, bateu três vezes e esperou que o bando de
gralhas voasse e voltasse a pousar. Depois entrou.
- Que vens fazer aqui? -disse-lhe a mãe do rio. O seu rosto era sem feições,
como o das estátuas enterradas durante muitíssimo tempo, e ela parecia
enorme, inchada e perversa na sua grandeza. Fisalina deitou-se com a cara
contra o pó, e ficou ali a tremer de medo. Nunca ninguém lhe tinha dito como
era a mãe do rio, nem com o que se parecia; encontrar alguma coisa de cuja
informação nada existia no seu espírito provocava-lhe horror, e esteve perto de
deitar a fugir. Mas conteve-se, porque o amor a atormentava, e não esperava
remédio fora dali.
- Tenho muito que te dizer, ó água profunda. Vivi vinte anos na minha aldeia, e
as ruas perseguiram-me e fecharam-se à minha frente; cresceram como trigo de
pedra, e eu não posso sair do meio delas. Os muros subi-
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ram, as pedras uniram-se cada vez mais. Posso eu respirar se não sair dos
meus próprios pulmões? Posso existir se não acabar a terra debaixo dos meus
pés? Ouve-me, ó ventre dum rio. Eu quero andar e não tenho movimento.
Amaldiçoa-me, mas deixa-me ser livre.
- O Sol é feito de fogo e de sal, de fogo e de sal é feito - suspirou a mulher. -
Mas aquele que é livre apagou o fogo e derreteu o sal; já não terá lugar na
matéria. Oh, como eu desejo esquecer-me! Que vens aqui buscar? Quem és? Há
muito tempo que não me encontro com as criaturas, eu quase nada sei a
respeito delas, elas nada têm que ver comigo. Os guardadores das verdades não
são eternos, eles precisam de ser substituídos.
- Está bem -disse Fisalina, mais afoita.- Eu nasci na aldeia aqui perto. Gosto
dum rapaz que tem bonitos dentes e que me faz estremecer quando me toca na
cintura. Mas não sei como fazer para me casar com ele. Isso nunca aconteceu
entre a minha gente. Nunca aconteceu, acredita.
Contou então a história do seu amor por um pequeno tocador de sinos, que era
de muito longe e com quem se encontrava nos campos de castanheiros.
Deitava-se no chão e ouvia o segredar das formigas que buliam entre as folhas
novas; era Verão ou Outono, a terra cheirava bem, o lodo dos charcos estalava
e neles dormitavam os sapos. Fisalina estendia o seu avental e escolhia pedras
brancas com que pensava defender os canteiros do seu jardim. Ela tinha um
jardim onde
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plantava gencianas e que o pedrisco derrubava todos os anos.
- Não faz mal, eu não gosto de flores por muito tempo -disse ela. Ficou de
repente fria e perdeu toda a vivacidade. Tocou a fímbria do vestido da mãe do
rio, e perguntou-lhe: - Porque estou sempre triste? Mesmo quando tenho carne
para comer, ou estou quieta e os pardais vêm debicar os meus pés aquecidos
pelo sol, eu não sinto senão desespero e uma ternura mortal por tudo quanto
existe. Isto será amor? Mas a presença do meu amante não me acalma, eu não
sei que fazer para me desviar desta sombra. Procurei-te para que me
ensinasses a encontrar a saída da minha aldeia e escapar-me dela com esse
tocador de sinos. Mas os meus lábios não querem dizer senão mentiras ...
Descobre o meu coração, ó água profunda; eu não o posso fazer.
A mãe do rio levantou-se, e a sua estatura despregou-se como uma bandeira.
Era tão alta e volumosa que parecia doente e fatigada por todos os movimentos.
Pegou na mão de Fisalina e conduziu-a através de compridas galerias azuis, de
rocha viva e que gotejava continuamente. Era um labirinto muito mais terrível
do que o que havia na aldeia, pois não se via o céu, e os passos deslizavam
sobre um chão de cinzas alvíssimas, Toda a luz provinha daquelas paredes
rugosas; a blusa de Fisalina em breve ficou rasgada, e ela sentiu na carne a
pegajosa humidade que escorria das pedras. A mãe do rio disse-lhe: "Olha para
baixo ..." - e ela viu a polpa dum lençol de água que palpitava no fundo duma
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cova imensa. Pôs-se a tremer, e os joelhos dobraram-se-lhe; o fecundo
suspirada água subiu até ao seu coração, e ela sentiu que os dedos da mão
direita eram tocados pelo rápido salto do rio que ali nascia. Uma alegria
extrema a invadiu, e o seu riso encheu as galerias de pedra, desdobrou-se,
trinou e multiplicou-se como guizos agitados consecutivamente. "Como sou
forte!" - pensou. "Posso amassar com lama uma bola do tamanho da Lua, e
atirá-la pelo espaço, com árvores e animais ! Dizia eu que um pequeno rapaz
espera por mim fora dos muros da minha aldeia, e que eu não me podia reunir
a ele. É só um pequeno rapaz tocador de sinos - e é pena! Se fosse um rei, se
fosse um capitão de armada, se fosse um soldado desses que ficam nas capelas
depois de morrer, com uma luz e uma coroa de ferro sobre o peito, então a
minha recusa era mais bela. Como sou forte e o amor me sugere destruição,
calamidade e princípio! Mas é verdade, ó mãe do rio, que tu me libertaste?"
Mas a mãe do rio já não estava ali. Apagara-se como um pedaço de vidro que
deixou de receber o sol, e Fisalina encontrou-se sozinha na cabana de barro
que, pela acção do calor entranhado durante o dia, crepitava de leve.
Só mais tarde notou que as pontas dos dedos da mão direita se tinham mudado
em oiro. Aquilo quase não a surpreendeu, mas procurou que ninguém visse tal
deformidade. Como era ainda no Inverno, não foi difícil ocultar as mãos e trazê-
las enroladas no grosso
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avental. Levava a comida à boca às furtadelas, e queixava-se de quando em
quando para fazer crer que se aleijara. A madrasta olhava-a de relance, com os
seus duros olhos de espia, e os próprios irmãos começaram a suspeitar alguma
coisa; seguiam fixamente os seus gestos, e, de repente, fingiam não a observar
mais. Punham-se a conversar entre eles ou armavam lutas barulhentas com
um quê de mecânico e fictício. Fisalina começou a andar apreensiva. Isolava-se
de todos e experimentava um sobressalto quando alguém a surpreendia nos
campos a riscar com uma palha o chão. Escondia-se entre o gado, e, com a sua
capa de burel, ela não se distinguia quase entre a manada negrisca de bezerras
que andavam à solta pela aldeia. A primeira vez que viu o noivo mostrou-se tão
estranha que ele se irritou e depois se enterneceu, julgando que era o medo de
o perder que assim a perturbava.
- Tudo se há-de arranjar, Fisalina. Há-de haver maneira de nos casarmos. Mas
não chores, não chores...
Mas sim, ela chorava. Com os seus dedos de oiro, que podia agora obter da
complacência e da confiança das criaturas? Quando descobrissem, que
aconteceria? Não podia esconder sempre a mão direita como um sinal infame, e
não podia suportar os olhos ávidos dos irmãos, que esperavam não sabiam que
revelação malsã. Tanto mais que Fisalina gostava dos seus dedos de oiro.
Gostava de os contemplar, de ver o seu brilho seco, de notar a perfeição e o
polido das unhas arre-
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dondadas. De manhã, levantava a travesseira, debaixo da qual mantivera a
mão protegida, estendia o olhar pela palma húmida -até aos dedos curvos e que
despediam uma luz maliciosa. Corava de surpresa, levava à boca a sua mão
direita e ficava a pensar em estranhas coisas que nunca lhe ocorriam dantes.
Já não tinha, como dantes, um impulso desordenado para fugir da aldeia, e
duas vezes faltou ao encontro com o amante. Ele arriscou-se a procurá-la em
pleno dia, e muito tempo vagueou ao acaso pelo labirinto das ruas, antes de ver
Fisalina, que estava na beira duma cisterna a contemplar a água profunda.
Quando deu com ela, pôs-se a queixar-se e a dirigir-lhe censuras.
- Como é isto, Fisa Fisalina? Não voltaste aos campos de castanheiros, a chuva
desfez as nossas pegadas, e os nossos suspiros alcançaram já a Lua, de tanto
que o vento os afastou. Porque não voltaste?
- Vai-te embora - disse a rapariga. E, no seu íntimo, ria-se, e parecia-lhe tudo
aquilo, queixumes e censuras, coisa fraca e sem resposta na sua alma.
Escondeu os dedos de oiro debaixo da capa, e repetiu: - Vai-te embora. - Como
ele a quisesse segurar e lhe tocasse, olhou-o com altivez, e ele emudeceu e
afastou-se.
Assim passou todo o Inverno. Depois toda a serra se animou de novo, as
gralhas ergueram-se em bandos sobre os campos frescos; preparava-se na
aldeia a procissão do Senhor Morto. O povo desfilava com os seus mantos de
burel, levando velas acesas, num grande
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silêncio; altas cruzes de pedra estavam ao longo do caminho, e eram como
corpos inteiriçados na clara noite de Primavera. Ouvia-se o gemido dos velhos
que se arrastavam e caíam de vez em quando; rezavam e suplicavam, os cantos
dos seus lábios brilhavam de pegajosa espuma, pareciam atacados duma
loucura mansa e que os humilhava. Todas as raparigas se vestiam de preto e
empunhavam uma vela cuja cera escorria sobre as mãos endurecidas. Fisalina
também lá estava. No meio da multidão, o rapaz seguia-a e pousava nela os
olhos acobardados. Era como uma criança, Fisalina, a dos cabelos pretos, e que
corria entre os castanheiros carregados de espinhos brilhantes! Ouvia- -se o
mugido surdo do gado esfaimado, que tinham encerrado cedo; a serra da Nave,
com o lombo azulado a tocar a curva dos céus, parecia ter-se aproximado e
estar tão perto que a mão estendida lhe podia prender as crinas de sarças.
Começaram a cair gotas de chuva, algumas velas apagaram-se. Então, uma
mulher que caminhava ao lado de Fisalina viu o gesto dela para defender a
chama da água que, espaçada, caía. E viu também os seus dedos de oiro. Pôs-
se a gritar. Ninguém sabia porque ela gritava, mas olharam para Fisalina, e
todo o povo lançou um murmúrio de cólera, atento a qualquer provocação. Ela
começou a andar depressa, alguns rapazes atiraram-lhe pequenas pedras; si,
depois subiram aos muros próximos para a ver correr,
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e tendo fechadas na mão outras pedras. Um ódio brutal e alegre estalou então,
todos se puseram a lançar exclamações, a saltar, a atropelar-se; apontavam
para a rapariga, que fugia, tomando o caminho da serra da Nave. Os mais ágeis
tentaram alcançá-la, outros ficaram de longe a vê-la desaparecer com a sua
capa voando pesadamente. Levantou-se no ar um grande bando de gralhas. Era
quase noite, e o povo aglomerava-se nos limites da aldeia, insaciado e pregando
na distância os olhos furiosos e que, pela primeira vez havia muitos anos,
pareciam vivos e animados de cordial crueldade.
Esta é a história da mãe de um rio, que tinha vivido mais de mil anos, a ponto
de os homens esquecerem a sua existência. Também os vigilantes do espírito
humano precisam de ser rendidos, e as águas da sabedoria devem ser
habitadas por novos mestres. Fisa-lina, incauta e predestinada, está agora
nessa deserta serra da Nave, com os seus dedos de oiro que para sempre a
farão inimiga mortal das criaturas. Que perdeu ela, ao deixar os labirintos da
sua aldeia, não pelo amor dum pequeno tocador de sinos, estrangeiro e fiel,
mas por traição da terrível mãe dum rio? Ah, se algum de vocês, um dia, passar
na serra da Nave e vir um bando negro de gralhas que levanta voo e desce de
repente como que atraído pela terra, lembre-se de Fisa-lina, que vive ao pé da
água profunda e que, durante
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mil anos, esperará a oportunidade de trocar com alguém o seu destino. O povo
de Al vi te, a antiga aldeia de Al-veus, lá está ainda. Ninguém conhece lá esta
história. As mulheres, porém, usam ainda no Inverno luvas que deixam a ponta
dos dedos a descoberto, dizem que para terem assim mais liberdade de
movimentos e poderem fiar a lã. Mas não será porque receiam todas elas os
dedos de oiro e desconfiem? Pobre, pobre Fisalina!
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CASA MORTA E PIA BAPTISMAL
Vocês sabem que eu tenho dívidas, como toda a gente. Acossada às vezes pela
pérfida persuasão de negociar com os bens terrenos, 'leva-me a fantasia aos
lugares do meu nascimento, onde tenho vinha e eira, casa morta e pia
baptismal. Umas coisas pretendo transaccionar em proveito de compromissos e
falências; outras parecem-me menos susceptíveis de calar nos interesses do
mundo, e reservo-as para meu uso, cuidado e futuro indiviso. É o caso do
mosteiro, na sua pedra maobethiana, com a torre de moiros vigias erguida
como velha coroa perfilada no chão, como se fosse o primeiro dente dos filhos
de Pirra.
A última vez que a vi, ao lado do cemitério onde cresceram campas, se abriram
os campos privados, se poliram mármores dum róseo obsceno e vulgar - o meu
cemitério de lousas partidas e nomes gravados a branco, com suas jarras que a
terra preta grudou entre as ervas, seus montinhos carcereiros de crianças
silenciosas e roxas, suas flores secas e que suspiravam ainda o apego à sebe de
dálias ou de sécias ! -, o mosteiro de Travanca pareceu-me um pouco minha
propriedade. Transponho a sua porta romana, e é como se entrasse deveras em
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casa minha, obscura, com o selado motivo da morte elevando-se ao longo do
belo transepto, tocando as rosáceas onde se aninham os pássaros,
transpirando dos muros onde jazem ossadas roídas pelo salitre. A sombra,
duma algidez de cripta, tem qualquer coisa de mèditativo e também de
segredante e maligno; eis porque nas naves pálidas das catedrais se
debruçavam, sob a mão paciente dos artífices da pedra, seres de fauce
medonha com seus rictos, suas membranas voantes, suas garras abertas e
rampantes; ou monos de olhinhos maliciosos espreitando as devotas que,
negras e graves, tinham no peito desejos pertinazes e nas duras mãos contas
cujo toque acalma os corações pesados. Porque se povoavam os mosteiros de
monstros, de leões, de grifos, de demónios esgoelados, de frutas redondas, de
pequenos símios provocantes? De cada canto dessa reserva da alma, aparecem,
mais do que as figuras compensadoras da redenção, os seus inimigos e os
desvairos do temor humano. Nunca estamos sós com os anjos e os deuses, sem
que a multidão assobiante da nossa realidade animal venha convocar-nos para
girar em torno de nós mesmos. E há algo de potente e sagrado nessa forma
grotesca do homem pecador, babando-se, contorcendo-se, caindo sobre as
mãos calosas, escoiceando o ar, empunhando tridentes e formando o salto
sobre os espaços. Também o mosteiro de Travanca, na sobriedade da sua traça
romana, traz até nós os caprichos fechados na razão e que só ao contacto duma
beleza temível se defrontam connosco. Ajoelho no chão, uma
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lamparina verga a sua chama num canto, ouve-se um vassourar nas sacristias,
cujos arcazes agavetados têm sobre a pintura verde-negra motivos de oiro,
anedotas de físicos e vice-reis. Há um vazio de boa ordem catequista; paira um
silêncio de abandono, mais do que de religiosidade, e, no meio da pedra rugosa,
aparece, comovente e quase inesperado e náufrago, o sacrário duma arca de
aliança ali deposta por fugitivos ou guerreiros embriagados. E então,
lentamente, depara-se-nos, com a sua cara larga, como que porosa por efeito
das marcas da varíola, o padre Cosme, o antigo, colérico e de fala livre, com a
sotaina curta deixando ver as botas de leigo, com saltos gastos de borracha.
Vejo-o ao pé do altar, feroz e ralhador, fulminando as velhas que escarram, os
garotos que brigam, os homens que, do outro lado do guarda-vento, combinam
negócios e falam de chuvas. Era um padre nostálgico no seu celibato, bom
visitante das cozinhas de lavoura, onde nos borralhos adormece a água, pronta
para o café e o caldo de franga. Trazia sempre biscoitos nas algibeiras, lama
seca na fímbria da sotaina, ditos galhofeiros para contar. Morreu inchado e
enorme, diziam que vira um gato que se lhe colou às pernas e o seguiu
espojando-se de vez em quando na sua sombra. Então adoeceu, e costumava
sentar-se no alto miradoiro do refeitório, nesse tempo vago de frades e de
enfermos, e o seu rosto parecia tomar o aspecto duma grande carranca de
pedra mal lavrada, os olhinhos pretos já baços e que reflectiam uma grande
desolação. A voz áspera emudeceu, tinha uma delica-
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deza de mordomo ao cobrir o cálice, já ninguém tremia quando ele se voltava
para abençoar e suspendia o gesto como se fosse ferir um infiel, rachar as
orelhas pardas dos maus ouvintes. E, no entanto, ficava cada vez mais
assustador, inchava sempre, imobilizava-se como uma gárgula, enegrecia como
os próprios capitéis do mosteiro. Alguma coisa dele tomava o carácter
dominante da sua paróquia, imprimia-se no ar da nave, ganhava a sombra dos
recantos onde, na água choca, apodreciam flores. Tudo o que ele atingia com o
vozeirão de pastor, tudo o que surpreendia nas frontes baixas, sob as roupas
negras e as mãos postas, condensava-se em matéria quase tocável, povoava o
mosteiro de asas, fauces, dentes e garras, plumas eriçadas, dedos curvos,
espinha arqueada ,e escamosos peitos. Na sua austeridade românica, o
mosteiro era, no entanto, recamado de diabos, de bestas acachapadas e
lânguidas, de aves de olhos escavados e poeirentos. E o seu silêncio exaltava
como um rebate, a sua escuridão comprimia a alma. Ah, mas de súbito ouvia-
se um soluço carsado - era talvez um homem que chorava, o chapéu seguro nos
dedos, nos quais, de muito gastas, as unhas parecem parar de crescer. A nave
toma um ar suspenso, como as salas de famílias extintas onde há objectos que
não se transportam dali e que gostamos de contemplar no seu lugar. Há na pia
baptismal um resíduo escuro de água que empoçou e foi absorvida. E queremos
entender essa origem humana, de criança cujo peito se descobre, transparente
sob os dedos que santificam a carne incolor; um murmúrio
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cobre toda a lembrança, um longo murmúrio de areia varrida, de passos, de
folhas voltadas.
O mosteiro de Travanca é a minha sala de receber; ali espero amigos que
trazem a aparência das viagens forçadas, que me dirão por fim palavras
despidas de intriga. Casais que se amaram por revelação das suas queixas,
jovens que morreram antes de esgotarem a perturbação e o temor, loucos que
corromperam a própria loucura, tristes que foram rivais dos vencidos, amantes
sem fomes que saciar, ricos sem oiros que perder, irmãos de vilanias caladas,
traidores de razões que o mundo esconjura ou prefere. Nas bancadas de pinho
eles se sentarão, interrogando ainda a minha exigência, cúmplices em perder o
meu nome na memória. Mas é inútil agora. Se sorriem, já não entendo os
sentimentos vibrantes desse sorriso. A minha sala está arrumada finalmente
dos ademanes e dos trastes utilizados para auxiliar o entendimento humano.
Não há livros que ler, arte que contemplar, apetites em que coincidir,
fraternidade por que optar; há só pedra rude, fisionomia do ar, rosto do que
passou, rosto experiente e recém-nascido. Sobre a pia baptismal há um frio
inabitado, e os homens olham-na como a um velho berço abandonado. As suas
iras acabaram, e, nas bancadas gastas por muitas genuflexões, eles encaram-
me com uma espécie de paz sem emoção, natureza adquirida e que não se pode
mudar mais.
Como uma casa arrumada e algo triste, o mosteiro é a minha sala de receber.
Entram os esquecidos camaradas de alguns agravos, outros que inventaram
confli-
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tos na sua melancolia, ou aqueles que me ouviram como mortos nos seus
estrados e cadeirais. Algo me ensinaram, pouco aprenderam de mim. Excepto
agora que o último encontro se cumpre na sombra desta casa romana, de
mastros de pedra donde nos observam caras de desejo, frontes de pecados,
braços de pensamentos que nunca se abriram. Aqui chega um amigo que
deveras trouxe pressa consigo, pois a gravata que usa não é a conveniente para
o seu fato inglês; por mim, desta vez, contrariou a estética e apresenta-se algo
timorato no seu desleixo. Outro esqueceu-se de prender o crachá, e o distintivo,
outro deixou o báculo, o relógio e a gramática à entrada. E aquele que vedes,
macerado de trezentos anos de luzes e cristais, trouxe-me um olhar sem
poemas e simplesmente desgraçado. O mosteiro enche-se de gente que
reconheço e que não se encontra nas suas próprias feições; enche-se de gente,
e um soluço sem eco no mundo é agora a linguagem desta casa. Uma longa fila
parte e ondula ao longo da nave obscura, sai pela porta lateral, circunda a torre
mourisca, encosta-se aos muros sobre os quais cruzes e grades sobem como
ramos. E tudo parece igual a factos já decorridos. Negócios, paixões, doenças -
tudo se combina com as mais puras advertências humanas. Alguém deixa uma
esmola numa caixa antes de sair do mosteiro, e aquele gesto, furtivo e
comprometido, representa uma trégua entre a sucessão do seu tempo e a
evidência do que o faz convidado deste mundo - um outro homem, os outros.
Eu vou também na turba da procissão, sinto a despedida
124
de alguém que eu acompanho e que eu sou. Dizem-me: "Pobre amigo, coitado!"
É de mim que falam, isso instaura no meu ser uma fragilidade nova, adormece-
me e cativa-me. Compram as minhas audácias ainda com um simulacro de
amor, encerram o meu grito com um cumprimento, um gesto, alguma coisa
ainda. E eu repito: "Coitado!" Vejo o terreiro fundo nesse vale de Travanca
embebido de nevoeiros; e alguns loucos, com o seu uniforme de asilo - agora o
mosteiro é um sanatório de doentes mentais-, vagueiam, ou antes, voltam do
trabalho na quinta, com a timidez e a curiosidade peculiar dos doidos. Não
compreendem porque tanta gente se move sem direcção ali, na manhã em que
o sol parece despir-se para banhar-se nos orvalhos, nas presas glaciais, nos
jorros que atravessam os campos de feijoais maduros. Só eles não pensam, não
dizem, não comunicam cuidado pelo que acontece. E afinal o que acontece?
Não posso mover as minhas mãos, e, no entanto, elas continuam, sem a sua
autoridade de movimento, a gesticular, a tomar atitudes de precaução, de
agressão e de culpa. Compreendo que estou morta, mas não o acredito.
Assim é a recepção no mosteiro, onde comparecem amigos que se agrupam em
nome de alguma coisa que é o prolongamento da fome e do tédio. O mosteiro
ficou vazio; e, no resíduo húmido da pia baptismal, há como que o espelhar
duma vida que mal partiu do seio dessa pedra sólida e muda.
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A MATANÇA
Não digo que sim, não digo que não; talvez, as coisas mudaram. Dantes,
entrava-se pela porta lenhosa, com velhos laivos de pintura, chapeada de zinco
até meio; na sua folha, em que se abriam rugas e floriam constelações em volta
dos nós de pinho, escrevia-se o número dos almudes de vinho medido ou
multiplicavam-se as superfícies de novos sobrados. Grande vida aquela [ Na
cozinha profunda, com as dobadoiras como moinhos imóveis nas prateleiras,
havia sempre um crepitar, um luzir, um ferver abafado ou o estancado borrifo
de água ao cair na cinza. Ana, com os seus tornozelos secos de inglesa, a blusa
tufada sobre o peito escorrido onde repousava o cordão de oiro, passava,
sempre um pouco curvada pelo hábito de vigiar a lareira e debruçar-se sobre os
potes de ferro apoiando o braço sobre o joelho. Ela levantava-se
ainda noite alta, descia o degrau que separava o seu quarto da cozinha,
apoiando-se meia de lado ao umbral, porque estava velha e perdera já a
destreza atlética que tão prodigiosamente herdara dum pai que, no seu
escritório de Gaia, colava rótulos nas garrafinhas de provas. Fora um grande,
um extraordinário bebedor. Ana tam-
127
bém lhe devia o seu gosto quase místico pela bebida, a embriaguez
concentrada, obtida na térrea escuridão das adegas, onde borbulham os
charcos de vinho pastoso sob as pipas. Tinha setenta anos ou mais, nunca se
lhe conheceram amores, folias, cuidados do coração ; vivera duramente, com
essa seriedade de bastarda, com uma paciência de mula a quem o fardo e o
trabalho parecem tranquilizar; era discreta e leal, não pensava em Deus, ainda
que o nomeasse algumas vezes com um respeito honesto, como a um amo velho
cujos caprichos já não incomodam nem assustam. Mas beber, isso era com ela.
Com o canjirão de barro na mão, ela descia a escadinha, que gemia toda,
bloqueada pelo seu peso ossudo; a primeira espuma violeta chegava-lhe às
narinas, e toda ela parecia encabritar-se, um ligeiro desmaio passava-lhe no
rosto amarelo. Não se ria, não cantava - era uma bebedeira muda, tenaz, um
conluio de expansões sem voz com os espíritos esfuziantes do vinho, com o
hálito do álcool em que se pressentia um terror de emparedadas alcovas, um
húmido e repelente calor de túnel vazio.
Ana acendia na cozinha uma fogueira altíssima, misturava cafés e lançava-lhes
na baba uma brasa para que o pó assentasse. Quem passava no caminho e via
nos vidros o grande clarão dourado julgava que a casa toda ardia. Encostando
a cara às barras de ferro que protegiam a vidraça, os moços de lavoura saindo
de madrugada para o mato viam Ana, como uma grande ave depenada, o lenço
escorregando-lhe da cabeça quase
128
calva, inclinada sobre o lar. Aconchegava os tições, armava fortificações de
achas, barricadas de carolos de milho que desprendiam um rolo de fumo antes-
de se calcinarem sem arder. Estava já bêbeda às quatro da manhã, a grande
Ana. Acarretava braçadas de gravetos, decapitava árvores inteiras, arrastava
como cadáveres, pelos pés, os troncos dos eucaliptos derrubados; era um
delapidar de lenhas, uma provocação ardorosa ao sinistro, um explodir de
centelhas, um risco de atear fogo às estrigas de linho ensarilhadas nas rocas
negras cujas canas abertas em balão o tempo polira e enegrecera, dando-lhes o
brilho do ébano. As sombras dançavam nas paredes, e as manchas
inqualificáveis dessas paredes pareciam animar-se, soltar braços e pernas,
agitar cabeleiras, abrir bocas hilariantes. Uma rajada silenciosa entrava pela
imensa chaminé, e as finas cascas das cebolas penduradas caíam e voavam
levemente, marchetando o ar do seu cristal seco.
Não digo que sim, não digo que não, talvez as coisas mudassem bastante.
Dantes entrava-se nessa soleira juntamente com o bando dos novos pintos, que
debicavam sem cessar o soalho onde havia sempre migalhas, agulhas secas de
pinheiro, o brando pó do farelo pegado às tábuas. No tempo da matança a casa
enchia-se dum estrugir de gorduras, dum rechinar de carnes, dum tremeiuzir
de facas que esquartejam; estrelas de sangue fresco caíam no chão da eira, o
cheiro de pêlo chamuscado e os archotes no ar branco da manhã traziam à
alma uma espécie de pasmo primitivo, uma cólera que
129
não se sabia como nascia e o que significava. Passava no corredor Maria
Delfina, com o lenço afogando a boca, arrepiada de asco; as suas belas mãos
com dois anéis de turmalinas e diamantes evitavam o contacto com os
alguidares donde transbordavam vísceras quentes e o rendado da píeura, fino
como um trabalho de agulha. Exangue e com o estômago contraído, Maria
Delfina ia deitar-se, o pulso um pouco agitado e já tomada pela febre; mas nem
no quarto, respirando a frescura da roupa, abafada pelos cobertores onde um
espinho de tojo assomava às vezes entre a lã, ela podia isolar-se daquela
atmosfera da matança; o fumegar do ventre aberto, a turgidez dum coração
picado pela ponta duma faca, a posta dum grande fígado onde rebentavam
bolha-zinhas brancas, perseguiam-na ainda. Pedia um chá, mas até a chávena
trazia impregnado o cheiro a fêvera talhada, e o doce batejar do sangue nas
vasilhas de barro aparecia-lhe nítido - recusava comer e beber, voltava-se para
a parede como os moribundos já demasiado ausentes da vida para protestar ou
desejar alguma coisa.
E, contudo, auspiciosos dias os da matança ! Vinham de longe os parentes, os
homens com os varapaus de marmeleiro dourado pelo tempo e pelo fumo, as
mulheres com as saias pretas em cuja fímbria secara a lama. Eram muitos,
com suíças e cabeleiras duma cor parda ou ardente, e possuíam todos aquele
sorriso áspero e fechado, como se permanentemente enfrentassem o vento, não
com desagrado, mas com uma espécie de
130 desdenhosa beatitude. Acampavam praticamente na cozinha, debicando
azeitonas, pão doce, figos, e adivinhava-se neles uma sobriedade que não era
desprezo da fartura, mas antes um fastio benevolente de quem nunca conheceu
privação nem fornes. Constituíam, assim de pele clara, independentes e
administradores magistrais das suas paixões, um verdadeiro clã, difícil de
penetrar e de subornar. Mesmo alguém como Maria Delfina, ligada a essa gente
pelo casamento e entregando-se como boa fé a toda a classe de subserviências
de coração, não podia jamais pertencer à família e nunca obtivera senão uma
estima tolerante da parte das suas jovens cunhadas; a própria sogra tratava-a
sempre como a uma visita acidental, punha-lhe na cama os melhores lençóis,
seguia-a com um olhar afável e preocupado cada vez que Delfina se deslocava
dum lugar para o outro da casa; e, se a adivinhava grávida, prestava-lhe os
cuidados mais comoventes, sem deixar de exprimir esse fiozinho de desdém
com que se brinda toda a inexperiência. Fora preciso muito tempo para Maria
Delfina compreender que um temperamento não obriga a laços profundos; e
essa tribo, com as suas sobrancelhas loiras e os seus pequenos olhos
vigiadores, com o seu ar onde pairava sempre uma ligeira e intrigante
expectativa, possuía um temperamento, mas não amava senão duma forma
episódica e imparcial aqueles que não nasciam nas suas fronteiras e no seu
sangue. Era inútil servi-los, endividar-se por eles, perder a alma em nome dos
seus vícios e dos seus dons; nunca o reco-
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nheciam, sacudiam da pele os favores e as simpatias, com essa grosseria que se
pressente nas autênticas solidões.
No tempo da matança, sem que fosse preciso distribuir convites, toda a família
se reunia na casa-mãe, com os seus pequenos rebentos que perseguiam às
varadas os patos até aos tanques e que disputavam velhos botões e piões e
fundas. As mulheres eram bem feitas, o ventre um tanto saliente pelo
estrangular da cintura, os pés bonitos e calçados com perfeição; vestiam-se
com uma elegância sensual, gostavam das cores belas, da seda e do oiro, mas,
ainda que atrevidas de palavras, pareciam ignorar os homens e esquivar-se,
com algo de intencional, à sua categoria de fêmeas. Através duma prudência
cheia de avisos e ausências, havia uma forma audaciosa, uma vontade
manifesta da escolha, um decidir sem nunca chegar a oferecer condições- e
Delfina achava tudo isso atroz, ainda que, de certo modo, apaixonante. Era sua
cunhada a Carriça quem lhe parecia mais extraordinária; porém, o que havia
nela de raro ou de inqualificável não era coisa que fosse aparente, pois tratava-
se de uma rapariga nem bonita nem feia e que era conhecida pelos ditos hábeis
e imprevistos. Numa família de nove irmãos, ela passara durante muito tempo
despercebida; distribuíam-lhe tarefas que cumpria com uma diligência que não
tinha nada de ardente, e, ainda que não fosse dada a comentários, a mãe
costumava irritar-se frequentemente com ela, porque, dizia, "Carriça não
cumpre uma
132
ordem sem a discutir primeiro; ninguém a ouve, mas ela discute tudo o que se
lhe manda". Era falso. Talvez houvesse, no entanto, uma certa eloquência no
seu modo de agir, e ela podia, no simples facto de mover um dedo, exprimir
cólera, despeito ou impaciência - e isto criara a fama do seu carácter malévolo
que, de resto, parecia o mais doce e conformado deste mundo. Na época das
matanças, quando Maria Delfina aparecia também, com as suas luvas cardadas
e a sua boina que lhe descobria as orelhas um pouco inchadas pelas frieiras,
encontrava sempre a jovem cunhada com o avental de linho manchado de
sangue e respirando toda ela um ardor extenuado; porque desde a madrugada,
já quando Ana acendia a sua grande fogueira trágica para fazer café, ela andava
a pé pela casa, depois de banhar o pescoço e os pés com aguardente, porque
temia muito a água, a sua temperatura traiçoeira, o seu fácil derramar, a sua
substância corrente, de preço sem peso e que exclui a meditação e o trato. O
gratuito incomodava e era banido da tribo - Delfina sabia isso. Era preciso que
alguma coisa, elemento vivo ou forma moral, fosse capaz de estabelecer
contrato humano, capaz de inspirar desejo, cobiça e amor, para ser admitido
como um valor digno de estímulo e de confiança. Assim como a água perdera
já, com o fogo, o seu direito a distinguir o clã que a possui e a administra,
assim o dinheiro, um dia, as terras circundadas por muros, o depósito
bancário, a herança cabal do oiro, talvez perdessem afinal o seu espírito; e o
homem come-
133
çaria então a nomear a sua autoridade através de novas rendas,
responsabilidades sugeridas por forças mais altas que as da simples mão
humana. Não digo que sim, não digo que não, mas talvez a riqueza de um
homem, um dia, seja contada, não pelo vinho que arrecada, não pelo chão que
semeia, não pelos dividendos que obtém, mas pelos crimes que carrega, as
inaptidões por que responde e, em suma, pelo número daqueles que justifica.
O dia da matança trazia a revelação de alguns caracteres mais difusos na
família; e, naquele acampamento em que a casa se transformava, com
permanentes vigias de volta do fogo e sentinelas desenhando-se nas varandas
para as quais se abriam as pequenas portas dos quartos de dormir, apareciam
de súbito perfis e gestos que até aí tinham permanecido derramados no todo
duma fisionomia, dum nome ou até dum grau de parentesco. Assim, uma vez,
Delfina viu alguém encostado sob o alpendre dessa varanda onde se alinhavam
as caixas da roupa de uso e que continham também desperdícios de algumas
heranças esquecidas, como retratos de pessoas que já poucos.eram capazes de
reconhecer e toalhas marcadas com misteriosas iniciais vermelhas. Era
Casimira, a cunhada mais velha, e ela chorava. Chorava duma maneira
infinitamente comovedora, bebendo as lágrimas que eram retidas pela
comissura dos lábios e apertando às vezes as pálpebras para as fazer
transbordar.
- Que lhe aconteceu ? Que faz aqui ? - disse Delfina, assustada.
134
- Oh, ninguém é feliz! - E Casimira voltou para ela a cabeça, sem mostrar-se
perturbada, deixando que a sua dor se esgotasse e sem querer para ela
consolação; o cheiro espesso da matança era atenuado pelo gelado ar, ouvia-se
o estalar do lume, as vozes múltiplas que se cruzavam, o brando choque dos
chifres do gado nos seus estábulos. E, de repente, aquela rapariga que chorava
o seu desgosto enigmático, na noite de Inverno cheia de sons profusos, na
actividade dessa hora indivisa, clara, desmesurada, pareceu uma coisa
magnífica, feliz e impossível de lamentar ou reprovar. Delfina afastou-se sem
quase acrescentar mais palavra; mas muitas vezes, quando se falava de
Casimira, cujo destino foi afortunado e decorreu sem incidentes desgraçados,
pensava na jovem que ela fora, nas suas lágrimas que tinham quase a nobreza
dum rito e que talvez significassem uma consciência do mal e do peso do
mundo, e que ela tinha, ainda que só nesse momento inexplicável, de
compreender e carregar.
Mas com a Carriça as coisas passavam-se de modo diferente. Por exemplo, ela
achava os homens uma espécie de que a sua própria natureza se emancipava;
e, embora lhes guardasse como que um reconhecimento profundo que provinha
talvez do pressentimento duma verdade antiga de que eles tinham sido
provavelmente os intérpretes, Carriça não os encarava senão, por assim dizer,
no intervalo da sua autêntica actividade. Encontrava neles não sabia bem que
extraordinária frivolidade, fosse nos seus sentimentos e batalhas, ou no
empreen-
135
dimento mais cabal duma ideia; mas isso, com certeza, provinha do facto de
toda a atmosfera da casa estar impregnada duma fictícia honra e da grandeza
vulgar administrada pelos homens, como seu próprio pai e irmãos, volúveis,
sensuais e incapazes de verificar a contradição deplorável em que agiam. Ela
preferia talvez alguém como Avelino, o criado, um rapaz que se criara por ali
desde os cinco anos e que parecia vítima dum ligeiro desequilíbrio, pois
ninguém explicava de outro modo O' facto de ele se ausentar de noite e ir
desafiar a tiro de revólver a porta do moinho, estalada de chuvas e de sóis.
Crivava-a de chumbo, cuspia-lhe se não acertava prontamente no alvo,
arremetia contra ela a soco e a pontapé, a ponto de ferir as mãos e fazer saltar
as negras unhas entranhadas de terra. Mas voltava tranquilizado e os seus
olhos azuis abriam-se numa interrogação meiga quando os amos lhe
distribuíam o trabalho e ia para as nitreiras, com um lenço amarrado na boca,
desentulhar excrementos. Era ele quem ajudava a matança, quem segurava as
grandes orelhas loiras sobre a carreta e apresentava a garganta da vítima, onde
se abria um golpe fino, como o que se faz numa folha de papel; o sangue
manava nas suas mãos, ele afrouxava um pouco o punho e sentia repercutir
nas suas próprias veias o estertor, o ganido queixoso onde espumava a rósea
golfada dos pulmões. Depois ateava o fogo nos archotes de giesta e de palha,
chegava-os ao corpo onde o sol rápido de Inverno punha um cintilar
escanhoado; um fedor pestoso espalhava-se, os cascos
136
desprendiam-se das unhas e as crianças iam recolhê-los, analisando o seu
fresco interior de concha onde um pequenino friso de sangue cristalizava.
Avelino auxiliava a suspender o animal, via, um pouco afastado e com olhar
levemente ufano, como o abriam de alto a baixo, e depois com um corte
transversal donde emergiam logo os intestinos, fumegantes, com a
transparência azulada e algo de impressionante, de desastroso, de infame,
nesse transbordar de vísceras ainda vivas. Avelino fazia penetrar no tórax uma
cunha de madeira, naquela cavidade vazia onde se desenhava ainda a
perspectiva do coração, grande como a mão dum homem e quase oval, com
uma rigidez que tinha algo de soberbo e de casto- - um coração não
corrompido, não geométrico, sem vulcânicos raios a coroá-lo, sem a elegância
fantasmal das copas dum baralho. Debaixo da grande massa de carne que
arrefecia, um alguidar de barro recebia o escoar das veias, o pingar prolongado
cada vez mais lento, e coalhado, e esquecido. Na dependência lajeada onde, nas
tardes húmidas de Verão, se desfolhava o milho, ficava aquele despojo enorme,
com o focinho ensanguentado barrado com farelo para empapar nele os
derradeiros líquidos. Da cerda negra das orelhas escorria ainda uma pérola
como que de suor quase humano.
De noite, quando a família, com as mulheres grávidas, as velhas de ventres
profundos como arcas e que os cintos faziam salientes, o que, de certo modo,
parecia causar-lhes vaidade, quando a família estava reunida na cozinha",
contemplando uma fartura de gorduras que
137
ferviam, de banhas que coalhavam, de riladas alvíssimas que se iam
deformando até ficar reduzidas a um tição verdinhento, Avelino carregava o seu
revólver ou a sua pequena escopeta de matar pardais, e saía. Andava pelos
caminhos, falava alto, injuriava as sombras e os vultos dos pinheiros;
apoderava-se dele uma febre muito estranha, e lembrava-se de episódios que
lhe davam exaltação e o enchiam de extraordinária felicidade. Lembrava-se da
morte de sua mãe, uma prostituta e com quem não se criara - e analisava, com
um sorriso assombrado, aquela mulher inchada, de mãos pousadas sobre o
seio que as pregas duma blusa de riscado como que devoravam. Era um
quartinho que servia para arrumar roupas e objectos inúteis, havia um
lavatório sem bacia num canto e o seu espelho manchado recolhia a luz do
candeeiro, como a água quando a lua sobre ela cai ou perpassa. A vida não se
interrompera naquelas barracas de tábuas, sob as árvores copadas da estrada;
bebia-se e a viola soava, uma velha viola de freixo que alguém fazia cantar.
Avelino reconhecia uma por uma as canções e batia com o pé no chão,
devagarinho ou rápido., para estimular de longe o compasso. "É a cana-verde -
pensava, numa explosão de riso íntimo e confortado. - Ó minha caninha verde,
verde cana de encanar... Como' isto é bonito, como me agrada! Também eu hei-
de comprar uma viola para sair de noite a ver as raparigas. Aninhas e Joana,
olhinhos cor de azeitona, coradas do rosto, torneadas da cintura, hei-de sair de
noite pelos caminhos e levar
138
comigo uma viola bem afinada! Verde cana de encanar ... Não hei-de casar
contigo nem te hei-de deixar casar..." Avelino adormecia e acordava,
encontrava-se com o cadáver da mãe, que ia ficando chupada, seca, como se
bastasse a própria luz abatida sobre a sua morte exposta, para a reduzir a
despojos sem nome, antiquíssimos e recusados. Rezava por ela uma Ave, mas
os gritos das mulheres nos seus cacifos e as risadas dos brigantes que as
visitavam, deixando na estrada as camionetas que tinham cartazes de belezas
nuas ou mesmo tarjas de luto sobre o motor, distraíam-no logo. Depois, a
Carriça fazia-lhe muitas perguntas.
- Não, não era triste - confessava Avelino; e o seu rosto claro e anguloso
reflectia concentração superior às suas forças. - Deram-me de comer e vinho
fino. Um copo muito pequeno, mas o vinho era bom.
- Bá ! Devia ser roubado ! - pressupunha a Carriça, com um desdém brutal.
- Não digo que sim, não digo que não.
- Não voltas lá, Avelino? - E ela ria-se, fitando-o como para extorquir-lhe
confissões, adivinhar aquele instinto que navegava no olhar azul, cândido e
enfático.
- Não digo que sim, não digo que não...
Nas noites que sucediam à matança, ele mostrava-se mais vadio, carregava a
sua pistola com balas que ele próprio fabricava, e ia dispará-la contra a porta
do moinho ou contra as árvores que bordejavam aqueles caminhos finos como
esteiras e endurecidos pelo gelo.
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Comentava em altas vozes a sua pontaria e tomava-se duma raiva desastrada,
de repente, por um nada - porque tropeçava numa pedra, porque um ramo lhe
roçara a cara, porque não encontrava, tacteando com os dedos, as marcas das
balas disparadas. Ficava louco, despedaçava os punhos e o casaco,
contemplando com ar alucinado as mãos cheias de farrapos; um fio de baba
escorria-lhe pelo canto da boca, que era bela, solene e sedutora. Ninguém
porém podia observar estas manifestações, e Avelino voltava para casa antes
que se apagassem as brasas do borralho e que Ana, a guardadora do fogo, se
levantasse da sua bebedeira da véspera para alinhar as cafeteiras de barro
sobre a pedra da lareira. A Carriça ouvia-o atirar um punhadinho de areia por
cima da porta do quinteiro, para que o moço seu companheiro de quarto lhe
fosse abrir, o que era dura pena, porque o frio anavalhava e tinha dente de lobo
nessas noites imensas, tão despidas e como que decorridas para além do sono
dos mortais.
- Mataste alguém ? Acertaste num lobisomem ? - perguntava a Carriça, rindo-
se, remexendo no bolso do avental um punhado de milho para as pombas que
vinham, rompendo nos ares pequenos voos transidos.
- Não digo que sim, não digo que não.
Mas certa ocasião, no tempo da matança -Delfina esperava nessa altura o seu
terceiro filho, e desmaiou muito simplesmente no meio da cozinha quando viu
vazar numa grande bexiga fresca o unto dourado onde rechinavam pedacinhos
de películas-, apareceu um
140
estranho em casa. Era um homem pequeno, de modos sentenciosos e que
parecia mudo; resistente a toda a espécie de observação, não movia uma só
pestana quando Casimira ou qualquer dos irmãos se punham a falar dele,
pesando-o gravemente com um olhar cúmplice e aterrador. "Tem as pernas
cambadas e respira mal pelo nariz" - dizia Casimira, implacável. E o pai, com as
suas suíças brancas como um colar suspenso em volta do rosto, acrescentava,
discreto, pícaro e cheio de animosidade: "Acho que para criado de frade não lhe
faltam maneiras".
Sucedia, porém, que aquele intruso era o homem escolhido pela Carriça e que
ela, se o não amava, lhe reconhecia predicados dignos de serem seleccionados
nos arquivos de família; ela não pensava num marido, nomeava à sua geração
um ascendente. A Carriça cumprira vinte e dois anos e subitamente deu
entrada no cenáculo familiar, passou a merecer ouvidos nas questões
melindrosas da honra e dos negócios e revelou-se extraordinariamente
competente na sua missão de administradora e de fazedora de heranças; a
própria mãe deixou-lhe campo livre e já não censurava de ânimo leve nenhuma
das suas acções; estava consumada a autoridade da Carriça, mulher profunda
e tenaz, andarilha como a morte para obter resultados que nunca chegava a
explicar totalmente e que ninguém sabia se eram ganho ou perda, mas que
acrescentavam sempre o seu prestígio.
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Nesse ano a matança calhou em Fevereiro, fazia um tempo lunar, inolvidável,
com noites silenciosas e delicadas, um tempo como não havia memória, em que
a neve mal chega a formar-se, a ganhar assento, a apontar agulhas nas árvores
porque obedece à cortesia de escutar de longe a Primavera. O noivo da Carriça
entrou pela porta dentro, apertou a mão de todos os circunstantes, tomou lugar
à mesa; era um homenzinho decidido, de longos bigodes e ar diabólico.
- Sente-se e coma - dizia Casimira. Mas ele já se sentara e já comia, cheio duma
obstinação fria, calado, com essa mudez a que falta pouco para ser indiscreta.
Avelino, na manhã da matança, comportou-se duma maneira muito irregular;
parecia transtornado e entornou no chão um alguidar de sangue - como os cães
se chegaram para o beber, em lambedelas ruidosas e glutonas, ele, com um
sacudir de pé, atirou-lhes os socos pesados de terra aderida. A Carriça
repreendeu-o, pôs-se a olhar para ela com modo fleumático e demorado. Ela
pensou : "Que diabo, qualquer dia despeço-o !" E Avelino virou
precipitadamente o rosto; tinha-a compreendido bem.
Andou o dia inteiro à solta, ninguém lhe deu ordens nem o chamou senão para
comer; Ana, derreada com o seu braçado de nabos que trazia do fundo do
campo, contou que vira Avelino deitado de costas numa vala, a cabeça pousada
sobre os veios rasgados pela chuva; tinha os olhos abertos e nem reparou nela,
ainda que Ana se lamentasse alto dos seus infortúnios, da sua
142
velhice, e arrancasse os nabos da terra com esforço exagerado. À noite, a
Carriça notou que ele ficou perto de casa, ocioso, sentando-se na borda dos
tanques e batendo mecanicamente com os calcanhares na pedra; cantarolava e
parecia despreocupado. Ela passou cerca, e disse-lhe:
- Que mosca te picou ? És doido ou fazes-te ?
- Não digo que sim, não digo que não ...
Ela sentiu a cólera abalá-la como uma descarga eléctrica, mas continuou o
caminho e não lhe falou mais; assustou-se de repente com tudo aquilo, e, sem
saber porquê, desejou a época da matança decorrida, a família dispersa e
aquele homenzinho, que comia e cumprimentava mudamente, devolvido talvez
às suas terras e fazendas, com os seus bigodes e a sua casmurra alma de
pretendente. Não gostava dele - e a Carriça começou a rir-se. Voltou para trás,
mas, com decepção sua, já não encontrou Avelino sentado à beira do tanque e
balançando as pernas, cheio de insolência e pacata e farsante simplicidade.
Depois não o viu também na mesa dos criados, a que presidia sempre o amo
velho ou um dos filhos; ouvia-se o forte entrechocar da loiça na banca de
ardósia onde Ana, na sua embriaguez silenciosa, se debruçava; e Casimira, com
o seu belo rosto impassível, a cabeça sempre coberta, trazia ela própria o vinho
cuja espuma violeta soprava antes de o deitar nos copos. Era a ceia da
despedida, debaixo dos bancos havia talhas de carne mergulhada naquela
misteriosa mistura de vinho verde, louro e alho que boiava mace-
143
rado; tomavam-se os últimos conselhos, as mulheres trocavam entre si os
últimos suspiros, porque tinham sempre queixas confidenciais a murmurar,
fechadas nos quartinhos e penteando as tranças à luz parda da alva. Unia-as
uma espécie de frustração comum, uma saudade juvenil de não sabiam que
aventuras nunca experimentadas - e isso fazia-lhes o sorriso fresco e os olhos
brilhantes, mesmo quando eram velhas e se despojavam do oiro com que
enfeitavam as netas já criadas. Depois da efusão da chegada, da farta excitação
da matança, sucediam-se aquelas reuniões cortadas por silêncios cheios de
acordo e que anunciavam a partida. A Carriça foi até ao caminho com o seu
pretendente e apertou-lhe esquivamente a mão.
- Volto no domingo - disse-lhe ele. Soprava o vento, e as pontas do lenço da
rapariga quase se desenlaçavam com a força da rajada; atava-as
constantemente, duma maneira frouxa, sem apertar jamais o nó, e aquele gesto
repetido dava-lhe um extremo encanto. Porém, no domingo que se seguiu, o
pretendente não apareceu - e nunca mais veio. Para a Carriça, que lhe dera já o
direito a um compromisso, tal comportamento pareceu inacreditável; como
sempre que não compreendia um facto, ela caiu num cismar irritado e fugia de
participar da vida de família, pois a perplexidade do espírito apresentava nela
todos os caracteres dum desgosto. E, de repente, provocou uma pequena crise,
ao acaso, como fazia sempre que queria descobrir uma pista; acusou a mãe de
saber os seus projectos e de os contrariar.
144
- Mas eu não sei nada. Ninguém sabe nada do que trazes na cabeça, nem por
onde a galinha põe o ovo! - gritou a velha, escandalizada. Avelino, que estava
ainda à mesa, vergou-se para diante e, ainda que tivesse sido dada ordem de
debandada, ele não se levantou, até que a Carriça lhe disse delicadamente:
"Tens uma cara!"
Passou a vigiá-lo, a analisar todas as suas expressões, a aparecer-lhe de
improviso por toda a parte, a cruzar depressa perto dele quando ele não a
esperava, ou a fingir que guardava uma ideia a seu respeito, uma ideia fugaz e
não menos ameaçadora por isso. Um domingo, com um raminho das primeiras
violetas brancas na mão, saiu para o lado do pombal e pôs-se a ver os cães que
corriam e bulhavam amassando a relva, à sua frente; eram dois cães de coelho,
de nariz pontudo, muito vorazes, e contavam-se deles façanhas burlescas e um
tanto fantásticas. Avelino estava sentado no chão, trincava hastes de erva que
ia arrancando, soprando nelas para experimentar se elas soavam como
cornetins; a Carriça esteve algum tempo ali a olhar, calada, depois voltou
costas e chamou os cães com voz ríspida e algo divertida. Era um domingo de
Inverno, já crepuscular às três horas da tarde, com essa tristeza que faz estalar
a alma e que não é senão o peso duma interrupção a que de todo se não
aspirou; parece que alguém se enterra, que passam nos caminhos pequenos
préstitos, com os meninos das confrarias sacudindo as suas opas vermelhas; e,
se um murmúrio se ouve, de amores
145
clandestinos, nos barrancos, não sorrimos, ainda que aquilo nos traga a
impertinência duma intimidade sob o olhar das rolas precavidas e cuja linda
plumagem pálida se oculta entre os amieiros. Avelino levantou-se dum pulo, e
parecia amarelo de susto.
- Se quer saber, fui eu que tive a culpa.
-Bem, bem; bem, bem - pôs-se a dizer a Carriça, indulgentemente. - Eu já o
sabia. Mas, conta-me ... Não estou aborrecida; perdoo-te tudo se me contares.
- Ele era pouca coisa para si - começou Avelino; e aprofundou então aquela
história do pretendente, narrou como o encontrara na noite da matança,
fumando um cigarrinho de mortalha de milho, a gola da samarra tapando-lhe
as orelhas, que as tinha grandes e aguçadas. - Não sei como aquilo foi, deu-me
uma fúria de riso e pus-me a falar com ele. Falei-lhe na matança; expliquei-lhe
como se arrasta um bicho sem o ferir, agarrando-lhe só as orelhas, onde,
apesar de tudo, as unhas deixam riscos de sangue, como feitos a lápis; como se
prende em cima dum banco de carpinteiro ou dum carro a que se tiraram os
fueiros, e como se lhe espeta a faca, uma ou duas vezes, até encontrar a veia do
coração, e como a faca traz na lâmina um unto fino como se tivesse sido
passada em manteiga. O homem começou a tossir, e eu apalpei os botões do
casaco dele para ver se estavam fechados. Então disse-lhe como se desmancha
um corpo, depois de o abrir, depois de o ter barbeado e raspado com pedras, e
a -queixada que se
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abre, e a língua manchada donde pinga no chão, sobre um montinho de serrim,
uma água cor-de-rosa. "Não tem muito frio?" - disse eu ao homem. Ele
afiançou-me que não. Comecei a falar-lhe ao ouvido e contei-lhe histórias da
matança, coisas que sucederam sempre e de que ninguém está livre que lhe
sucedam. Aquele animal que caía de noite no meio do sobrado e fazia tremer a
casa toda ao cair; por valente que fosse a trave em que se pendurava, por rijas
que fossem as cordas, ele caía sempre e ele aparecia esticado, com o focinho
esfolado e dente de riso. Acho que tinha sido comprado à família dum enforcado
... Não digo que sim nem digo que não. O homem, nessa altura, perguntou-me
se eu servia há muito. "Vinte anos. Eu tinha cinco quando para aqui vim." E
contei-lhe a primeira matança a que assisti e como me diziam, quando se
ouviam os guinchos e os roncos: "Não podes sentir pena, se não ele leva mais
tempo a morrer". O homem então concordou que há de facto coisas... "Devemos
acreditar nelas" - disse-me. E pareceu-me que batia dente com dente.
- Ora cala-te! - E a Carriça atirou ao chão o raminho das violetas brancas. -
Talvez não me estejas a dizer a verdade como ela é. Sempre foste amigo de
mentiras, mas deixá-lo, vou-te pedir um favor. - Que profunda alegria naquele
rosto anguloso e jovem, e como ele estava arrebatado pela surpresa e o
entusiasmo ! Rosnavam os cães debatendo-se era cima da erva, saltando depois
em ufanas corridas; e a água solta dos
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tanques transbordava nos regos, arrastava o ramo das violetas, penas de
pombas, insectos afogados - essa água turva de terra onde os maciços dos
agriões bebiam. - Todas as vezes -disse a rapariga, com doçura -, todas as vezes
que eu pensar num homem e o escolher, tu vais e contas-lhe a matança. O que
resistir, o que voltar, é o que se casa comigo. - Avelino olhou para ela
ousadamente, e ela falou ainda: - Seja como for, hei-de-me fartar de rir...
- Não digo que sim, não digo que não.
E os olhos loucos, dum azul desesperado, esses olhos cuja base das pestanas
era também azul e como pintada com tinta! Ele pôs-se a atirar pedras rasas à
água e elas voavam, cortando a superfície da corrente, manchando-a com uma
esteira fina, como se uma faca acariciasse a gorda massa da água.
Foi esta a razão por que a Carriça não se casou nunca. Todos os irmãos se
arrumaram, os pais morreram; a cunhada Delfina partiu para o estrangeiro
com as suas crianças, as suas luvas cardadas, o seu lencinho embebido em
água de limonete.
- Agora, quando nos veremos? - E chorou, com as mãos caídas no regaço,
pensando em coisas antigas, acontecidas contra a sua vontade e que lhe
causavam nostalgia quando já não as podia viver nem esquecer tão-pouco. A
Carriça riu-se dela porque se lembrava daqueles tempos da matança e de como
Delfina fugia, febril e indignada, atordoada com o cheiro da carne
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quente, das tripas lavadas no ribeiro, como metros de fitas brancas e
escorregadias. "Não há verdades, há casos!" - pensava. Ia para velha, e, sobre
ela, o encargo da casa, o negócio, o contrato, a fala produtiva com o vizinho, o
encontro frutuoso com o desconhecido, a bravura incógnita dum dia mais,
duma lua mais, somados ao grande ritmo do coração. E Avelino lá estava, com
os belos olhos já desbotados, mas guardando ainda aquela obediência que
desafogava de vez em quando indo crivar de balas a porta do moinho. Nunca
chegara a comprar uma viola e a visitar com ela os terreiros onde as raparigas
bordavam ou desfolhavam milho; mas, para ele, os tempos não mudavam, e,
um dia, quando viu entrar na quinta o primeiro tractor com o seu ronco
sufocado e possante e as rodas que espadanavam placas de terra, disse que ele
era uma soberba coisa para seduzir as moças e levar pelos caminhos, aos
domingos, numa lentidão ufana, fazendo acudir aos largos as belas e fazendo-
as corar de jovial surpresa.
- Ainda te atrevias, como no tempo da matança ?
- dizia-lhe a Carriça.- Ainda te atrevias, e era a coisa mais simples do mundo ...
- Não digo que sim, não digo que não.
Cada um pensava em coisas bem diferentes, mas - que importa?- a fidelidade
exprimia-se na voz e na palavra, nelas se recolhia afinal o milagre do tempo
comum, olhos que simultaneamente contemplam, peito que respira um mesmo
ar intacto e para sempre disponível.
Índice
A Brusca............ 7
O convidado debaixo da mesa....... 47
Auto do Rei Herodes......... 67
Uma pescaria........... 75
O bodo............ 81
Os amantes aprovados......... 89
A mãe de um rio.......... 103
Casa morta e pia baptismal........ 119
A matança............ 127
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