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CADERNOS IHU EM FORMAO
Cadernos IHU em formao uma publicao em formato digital que oferece edies
monotemticas, com debates de problemticas atuais atravs da colaborao de especialistas de
diversas reas. Este caderno busca reunir entrevistas e artigos produzidos na Revista IHU On-Line,
no Notcias do Dia do IHU, nos Cadernos IHU ideias, alm de colaboraes inditas.
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Cadernos IHU em formao
Alimento e Nutrio no contexto dos
Objetivos de Desenvolvimento do Milnio
CADERNOS IHU EM FORMAO
Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS Reitor
Marcelo Fernandes Aquino, SJ
Vice-reitor
Jos Ivo Follmann, SJ
Instituto Humanitas Unisinos IHU Diretor
Incio Neutzling, SJ
Gerente administrativo Jacinto Schneider
Cadernos IHU em formao
Ano 10 N 47 2014 ISSN 1807-7862
Editor
Prof. Dr. Incio Neutzling Unisinos
Conselho editorial
Profa. Dra. Cleusa Maria Andreatta Unisinos Prof. MS Gilberto Antnio Faggion Unisinos Prof. MS Lucas Henrique da Luz Unisinos
Profa. Dra. Marilene Maia Unisinos Dra. Susana Rocca Unisinos
Conselho cientfico Prof. Dr. Celso Cndido de Azambuja Unisinos Doutor em Psicologia
Prof. Dr. Gilberto Vasconcellos UFJF Doutor em Sociologia Profa. Dra. Maria Victoria Benevides USP Doutora em Cincias Sociais
Prof. Dr. Mrio Maestri UPF Doutor em Histria Prof. Dr. Marcial Murciano UAB Doutor em Comunicao Prof. Dr. Mrcio Pochmann Unicamp Doutor em Economia
Prof. Dr. Pedrinho Guareschi PUCRS Doutor em Psicologia Social e Comunicao
Responsvel tcnico Caio Fernando Flores Coelho
Reviso
Carla Bigliardi
Projeto grfico e editorao
Rafael Tarcsio Forneck
Bibliotecria responsvel: Carla Maria Goulart de Moraes CRB 10/1252
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Instituto Humanitas Unisinos Av. Unisinos, 950, 93022-000 So Leopoldo RS Brasil
Tel.: 51.35908223 Fax: 51.35908467
www.ihu.unisinos.br
Cadernos IHU em formao / Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Instituto Humanitas Unisinos. Ano 1, n. 1 (2005)- . So Leopoldo: Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2005- .
v. Irregular, 2005-2012 ;Semestral, 2013-.
Publicado tambm em forma impressa, 2005-2008.
Publicado exclusivamente on-line (desde 2009): . Descrio baseada em: Ano1, n. 1 (2005); ltima edio consultada: Ano 9, n. 45 (2013).
ISSN 1807-7862
1. Sociologia. 2. Religio. 3. tica. I. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Instituto Humanitas Unisinos. CDU 316
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Sumrio
Apresentao: Sobre o XV Simpsio Internacional IHU.............................................................................10
Vdeos das palestras........................................................................................................................................11
Cida & Ado: jogo sobre a importncia da alimentao e nutrio...............................................................12
Parte 1: Entrevistas realizadas para o XV Simpsio Internacional IHU
Eliminar a fome requer inteligncia e tica.
Entrevista especial com Jos Esquinas-Alczar.......................................................................................15 O mundo no um sistema de vasos comunicantes.
Entrevista especial com Walter Belik. ....................................................................................................21 Um sistema alimentar que produz famintos e obesos.
Entrevista especial com Esther Vivas.......................................................................................................26 A desnutrio invisibilizada.
Entrevista especial com Maria Emlia Lisboa Pacheco...........................................................................30 Superar a mercantilizao para garantir segurana alimentar adequada e saudvel.
Entrevista especial com Francisco Menezes............................................................................................35 O Brasil segundo a FAO Para alm dos objetivos do milnio.
Entrevista especial com Alan Bojanic......................................................................................................38
O ato de comer enquanto prtica poltica.
Entrevista especial com Renata Menasche..............................................................................................41 A lightizao da existncia humana.
Entrevista especial com Ligia Amparo da Silva Santos...........................................................................44 ''O carrinho de compras deve ser transformado em carro de combate''.
Entrevista especial com Jos Esquinas Alczar.......................................................................................47 A rdua tarefa de medir o desperdcio.
Entrevista especial com Walter Belik......................................................................................................50 ''Jogamos fora 30% dos alimentos que compramos, metade sem nem abrir o pacote''.
Entrevista especial com Jos Esquinas-Alczar.......................................................................................54 "O meu desperdcio a privao do consumo do outro".
Entrevista especial com Altivo de Almeida Cunha.................................................................................57 Por uma alimentao sustentvel e ecologicamente correta.
Entrevista especial com Paulo Waquil....................................................................................................62 A potente mensagem contra o desperdcio.
Entrevista especial com Alfons Lpez.....................................................................................................68
CADERNOS IHU EM FORMAO
Reduo do desperdcio trabalho para toda a sociedade.
Entrevista especial com Celso Luiz Moretti............................................................................................71 preciso elevar as motivaes polticas e econmicas.
Entrevista especial com Patrcia Barbieri.................................................................................................74 Dos ultraprocessados aos alimentos: resgatando a boa nutrio?
Entrevista especial com Signor Konrad.................................................................................................77 Acordo para reduo de sdio nos produtos industrializados no eficiente.
Entrevista especial com Ana Paula Bortoletto.........................................................................................81 Transgnicos e Agrotxicos. Tudo a ver?
Entrevista especial com Alan Tygel................................................................................................................84 Para alm dos dados. Observatrios de Segurana Alimentar no Brasil e em Cabo Verde.
Entrevista especial com Rumi Regina Kubo............................................................................................88
Acesso alimentao uma questo de direito humano, e no s de poltica pblica.
Entrevista especial com Paulo Leivas......................................................................................................91 Desnutrio: um problema de sade pblica.
Entrevista especial com Maria Luiza Garnelo Pereira............................................................................93 65% a 75% do volume global de alimentos que ns consumimos tm origem na agricultura familiar.
Entrevista especial com Newton Narciso Gomes Junior.........................................................................95 O meu desperdcio a privao do consumo do outro.
Entrevista especial com Altivo de Almeida Cunha...............................................................................101 A conta ambiental e econmica do desperdcio.
Entrevista especial com Paulo Waquil..................................................................................................106
" preciso outro modelo de desenvolvimento".
Entrevista especial com Maria Emlia Lisboa Pacheco.........................................................................112 Combate fome precisa de transformaes estruturais.
Entrevista especial com Francisco Menezes..........................................................................................116 11,5 milhes de brasileiros passam fome.
Entrevista especial com Francisco Menezes..........................................................................................118 Combate fome: o desafio de equacionar problemas estruturais.
Entrevista especial com Dom Mauro Morelli.......................................................................................120 Parte 2: Artigos e entrevistas relacionados ao tema do Simpsio
Realidade do Vale do Sinos: desafios para o alcance dos Objetivos do Desenvolvimento do Milnio ODMs.
Artigo especial de Marilene Maia, lvaro Klein Pereira da Silva, tila Alexius e Thas da Rosa Alves............123
O desperdcio nosso de cada dia.
Reportagem especial por Ricardo Machado, Luciano Gallas e Julian Kober......................................129 Alimentos 0 km, alm do marketing.
Artigo de Esther Vivas...........................................................................................................................133
7
O Grande Irmo no supermercado.
Artigo de Esther Vivas...........................................................................................................................134 Uma dieta globalizada.
Artigo de Esther Vivas...........................................................................................................................137 Sem direito a comer.
Artigo de Esther Vivas...........................................................................................................................138 Fome e direitos humanos.
Artigo de Jean Ziegler............................................................................................................................139 " preciso um Nuremberg dos especuladores".
Entrevista com Jean Ziegler...................................................................................................................142 Parte 3: Resumos de trabalhos apresentados
A contribuio das universidades na promoo do direito humano alimentao adequada.
Ivete Maria Kreutz .................................................................................................................................................145
Direito humano alimentao adequada, com segurana e soberania alimentar.
Ivete Maria Kreutz .................................................................................................................................................145
Segurana alimentar entre beneficirios do Programa Bolsa Famlia de Colombo PR. Flavia Monteiro, Daniela Ferron Carneiro, Suely Teresinha Schmidt..................................................................145
Projeto Convnio de Cooperao Tcnico Cultural entra a Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS. Adriana Lockmann, Carolina Prates, Denise Dadalt, Maria Brito, Denize Ziegler, Denise Zaffari....................................146
Sobrepeso e obesidade: dilemas do cotidiano brasileiro.
Irio Luiz Conti, Angelita Bazotti, Manuela Finokiet..............................................................................................146
Plantas alimentcias no-convencionais, patrimnio alimentar esquecido.
Ana Alice Silveira Correa, Suely Sani Pereira Quinzani Vincius Martini Capovilla............................................146
Alimentao das crianas de centros municipais de educao infantil na perspectiva dos Grupos Alimentares
Renata Cordeiro Fernandes, Cristie Regine Klotz Zuffo, Denise Yukari Inoue, Claudia Almeida.....................................147
Reflexiones sobre el derecho humano la alimentacin y las polticas pblicas en Costa Rica.
Luis Fernando Fernndez, Shirley Rodrguez Gonzlez, Patricia Sed Mass......................................................147
Estudo de uma experincia de poltica pblica integrada de segurana alimentar e nutricional sustentvel: educao,
sade e agricultura.
Mrcia Helena Batista Corra da Costa, Cecilia Ferreira de Aquino, Sandra Meire Guimares, Fernanda Maria
Francischetto Rocha, Tnia Cristina Garcia...........................................................................................................148
Aceitabilidade da alimentao escolar por adolescentes de escolas pblicas.
Iasminy Aparecida Bertolin, Emanuele de Araujo Valentim, Suely Teresinha Schmidt.....................................148
Observatorio socioambiental em segurana alimentar e nutricional: anlise dos indicadores de produo dos
indicadores de produo de alimentos em nvel municipal no Rio Grande do Sul.
Anglica Cristina da Siqueira, Daniela Garcez, Irio Conti, Tathiane Muriel Medeiros, Natany Schreiber, Rumi
Regina Kubo, Gabriela Coelho-de-Souza..............................................................................................................149
Segurana alimentar e nutricional no meio rural do municpio de Gravata: uma discusso sobre indicadores de
diagnsticos locais e de nvel municipal.
Tathiane Muriel Medeiros, Leonardo Xavier, Gabriela Coelho-de-Souza...........................................................149
Prticas alimentares de crianas menores de 2 anos e a influncia materna na formao dos hbitos alimentares.
Cristie Regine Klotz Zuffo, Cludia Choma Bettega Almeida..............................................................................150
CADERNOS IHU EM FORMAO
Feira Ecolgica de PF espao e oportunidade de educao nutricional. Cntia Gris, Valria Hartmann, Paula Santos, Ana Luisa Alves, Nair Luft, Lauro Foschiera.............................................150
Consumo alimentar de adolescentes em Colombo PR. Julliane Moreira Veloso Antoniacomi, Alexsandro Wosniak, Emanuele de Arajo Valentim, Suely Teresinha
Schmidt...................................................................................................................................................................150
Segurana alimentar e nutricional na Chapada dos Veadeiros: estudo de caso na regio rural e urbana do municpio
de Alto Paraso de Gois.
Lvia Penna Firme Rodrigues, Gabriela Bielefeld Nardoto, Raissa Carvalho, Agatha Maciel............................................151
Sustentabilidade e responsabilidade socioambiental: identificao de condutas, para a otimizao de processos em
unidades de alimentao e nutrio.
Luciana Dias de Oliveira, Claudia Rossi Stern, Martine Elisabeth Kienzle..........................................................151
Caracterizao de cantinas de escolas pblicas de Passo Fundo (RS): adequao legislao.
Kelen Heinrich Schmidt, Joana Isaura Mrz.........................................................................................................152
Misin Alimentacin: a construo de uma poltica pblica de soberania e segurana alimentar.
Aragon rico Dasso Jnior, Clucia Piccoli Faganello, Rodrigo Almeida Soares, Thas Recoba
Campodonico.........................................................................................................................................................152
Os agricultores familiares e a alimentao escolar.
Regina Aparecida Leite de Camargo, Joo Paulo Galvo Travassos Souza, Denise Boito Pereira da Silva, Jos
Giacomo Baccarin..................................................................................................................................................152
Programa de educao permanente para nutricionistas que atuam no Programa Nacional de Alimentao Escolar no
Rio Grande do Sul.
Ana Luiza Scarparo, Roberta Capalonga, Janana Guimares Venzke, Vanuska Lima da Silva e Luciana Dias de
Oliveira...................................................................................................................................................................152
Por uma perspectiva ecoteolgica: a discusso sobre soberania e segurana alimentar.
Willian Kaizer de Oliveira......................................................................................................................................153
PASEC promovendo sade na comunidade. Luiz Fiorentin; Camila Hofmann; Gabriela Kunz Silveira; Denise Maria Schnorr..............................................153
Avaliao de fibra alimentar em produtos alimentcios enviados para anlise no Instituto Adolfo Lutz So Paulo Brasil.
Maria Lima Garbelotti; Maria Auxiliadora de Brito Rodas; Jessica Veridiana Gonalves Santiago; Luciana de
Oliveira; Regina Sorrentino Minazzi-Rodrigues.....................................................................................................153
ObservaSinos e o monitoramento de polticas pblicas no Vale do Rio dos Sinos no contexto dos ODMs e do
alimento e nutrio.
Marilene Maia, lvaro Klein Pereira da Silva, tila Alexius, Thas da Rosa Alves..............................................154
Avaliao do Programa de Bancos de Alimento na tica da segurana alimentar e nutricional.
Luciene Burlandy Campos de Alcntara, Clarice Soares Carvalhosa, Mara de Oliveira Chaudon, Ana Luiza
Sant'Anna da Costa.................................................................................................................................................154
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Apresentao
Sobre o XV Simpsio Internacional IHU
As civilizaes e a rica diversidade cultural entre
os povos atestam a centralidade do alimento e da
nutrio para a realizao das pessoas, das famlias
e das naes. Alimento e nutrio so exigncias
inegociveis da nossa vida no planeta, portanto um
direito humano bsico e determinante para tudo
mais.
A garantia do alimento fundamenta a prpria
paz. Alimentar o corpo, a alma e o esprito, uma
questo de cidadania planetria e razo primeira
do progresso e do desenvolvimento.
Integrados na cadeia alimentar que constitui a
riqueza e a originalidade do planeta em que fomos
dados luz, cabe-nos zelar e cuidar das fontes da
vida e de sua sociobiodiversidade.
Para aprofundar essas questes, sobre a reali-
dade brasileira, o Instituto Humanitas Unisinos -
IHU e o Instituto Harpia Harpyia - INHAH
propuseram a realizao do XV Simpsio Interna-cional IHU Alimento e Nutrio no contexto dos Objetivos do Desenvolvimento do Milnio, de 05 a 08 de maio de 2014, com o objetivo principal de
debater e indicar perspectivas para o direito ao
alimento e nutrio nas dimenses sociais, eco-
nmicas, ambientais, culturais e polticas no
contexto brasileiro.
Cabe salientar que o Instituto Humanitas
Unisinos IHU tem como seu principal objetivo apontar novas questes e buscar respostas para os
grandes desafios de nossa poca, a partir da viso
do humanismo social cristo, participando, ativa e
ousadamente, do debate cultural em que se
configura a sociedade do futuro. Na continuidade,
o Instituto Harpia Harpyia comprometido com a
preservao da cadeia alimentar, tem na sua
centralidade o objetivo de fortalecer a democracia
atravs da promoo do bem comum e direito
humano bsico, de assegurar ao ser humano o
acesso ao alimento e nutrio para uma vida
saudvel, pelo desenvolvimento local, integrado e
sustentvel que defenda, preserve, recupere e
conserve o meio ambiente para a atual e futuras
geraes.
A partir de apresentaes de realidades
regionais do territrio brasileiro props-se
contextualizar os Objetivos do Milnio ODMs, que foram estabelecidos por lderes mundiais no
ano de 2000, buscando reduzir a pobreza extrema
e a fome, garantir o acesso aos cuidados de sade
universais e educao, igualdade de gnero, reduzir
a mortalidade materna e a infantil, garantir a
sustentabilidade ambiental, e estabelecer uma
parceria mundial para o desenvolvimento,
estabelecendo o cumprimento desses objetivos at
o final do ano de 2015.
Apresentamos nesta edio dos Cadernos IHU
em formao uma iniciativa que contou com a
participao e generosidade de vrios parceiros no
processo de montagem deste XV Simpsio Inter-nacional IHU Alimento e Nutrio no contexto dos Objetivos do Desenvolvimento do Milnio - ODMs para que nos proporcione avanos no di-logo para a superao da excluso social, da degra-
dao ambiental e dos males da fome em nosso
pas e no mundo.
Objetivo Geral do Simpsio
Debater e indicar perspectivas para o direito ao alimento e nutrio nas dimenses sociais, eco-
nmicas, ambientais, culturais e polticas no
contexto brasileiro.
Objetivos Especficos do Simpsio
Avaliar os cenrios da alimentao e da nutrio, na perspectiva da sociobiodiversidade e dos Obje-
tivos do Desenvolvimento do Milnio.
Analisar a poltica de segurana alimentar e nutricional sustentvel como eixo e diretriz deter-
minante no processo de planejamento e desen-
volvimento do pas, bem como suas relaes
internacionais.
Debater as polticas pblicas, o protagonismo da famlia, da sociedade e do Estado na promoo,
garantia e defesa do direito ao alimento e nutri-
o no mbito rural e urbano.
Reconhecer o direito ao alimento e nutrio como um direito humano determinante e impres-
cindvel para o desenvolvimento do ser humano
em todos os ciclos de vida, respeitando suas espe-
cificidades tnicoraciais. Discutir a produo, circulao e comer-cializao dos alimentos nos diferentes biomas e
agroecossistemas visando o acesso, a escolha e o
consumo de alimentos saudveis, adequados e
solidrios.
Identificar e analisar os processos de educao alimentar e nutricional em diferentes espaos,
culturas e mdias.
Apresentar e problematizar pesquisas, produo de conhecimentos e tecnologias em relao
alimentao e nutrio e sua aplicao numa
perspectiva tica, solidria e sustentvel.
CADERNOS IHU EM FORMAO
Dar visibilidade s experincias nas reas de ali-mentao e nutrio, promovendo o dilogo e
articulao entre os seus agentes.
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Links de Vdeos das palestras do
XV Simpsio Internacional IHU
Conferncia da Profa. Dra. Tnia Bacelar de Arajo no XV Simpsio Internacional IHU:
Desenvolvimento luz da sociobiodiversidade para superao da misria e dos males da fome
Conferncia de Dom Mauro Morelli no XV Simpsio Internacional IHU:
Atualidade do testemunho e da profecia de Josu de Castro
Conferncia de Profa. Dra. Noemia Perli Goldraich e
Prof. Dr. Valdely Ferreira Kinupp no XV Simpsio Internacional IHU:
Pesquisa e construo do conhecimento em relao alimentao e nutrio e sua aplicao numa
perspectiva tica, solidria e sustentvel
Conferncia de Prof. Dr. Walter Belik no XV Simpsio Internacional IHU:
Cenrio Nacional da alimentao e nutrio na perspectiva dos Objetivos de Desenvolvimento do Milnio ODMs
Painel de Dr. Paulo Leivas no XV Simpsio Internacional IHU:
Direito Humano ao alimento e nutrio: fundamento da democracia brasileira
Painel de Dr. Dr. Marcelo de Oliveira Milagres no XV Simpsio Internacional IHU:
Direito Humano ao alimento e nutrio: fundamento da democracia brasileira
Conferncia de Prof. Dr. Jos Esquinas-Alczar no XV Simpsio Internacional IHU Alimento e Nutrio no contexto dos Objetivos de Desenvolvimetno do Milnio
Mesa redonda com Prof. Dr. Jos Esquinas Alczar e
Bel. Maria Augusta Henriques no XV Simpsio Internacional IHU:
Sociobiodiversidade: A riqueza planetria para a Segurana alimentar e nutricional
Vdeo-resumo do IHU ideias com Profa. Dra. Signor Konrad em preparao ao Simpsio
Dos Ultra processados aos Alimentos: resgatando a boa Nutrio?
Entrevista com Dom Mauro Morelli durante o XV Simpsio Internacional IHU
Entrevista com Dom Mauro e Marilene Maia durante o XV Simpsio Internacional IHU
Aula inaugural com Profa. Dra. Gleny Terezinha Duro Guimares
dos Cursos de Nutrio e Servio Social da Unisinos 2014/1:
Segurana Alimentar, Polticas Sociais e Interdisciplinaridade
CADERNOS IHU EM FORMAO
Cida & Ado
Jogo sobre a importncia da alimentao e nutrio
(Para acessar, clique na imagem abaixo):
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Parte 1
Entrevistas realizadas para o
XV Simpsio Internacional IHU
CADERNOS IHU EM FORMAO
Eliminar a fome requer inteligncia e tica
Entrevista especial com Jos Esquinas-Alczar
"A crise alimentar provocou, em 2008, revoltas
em mais de 50 pases. Hoje, o aumento nos preos
dos alimentos est novamente contribuindo para a
instabilidade poltica no mundo", enfatiza Jos
Esquinas-Alczar.
Por: Luciano Gallas / Traduo: Andr Langer. A fome e a pobreza so o caldo de cultivo no
qual crescem problemas que tanto preocupam o
Ocidente, como a migrao ilegal e a violncia
internacional. Quando, em consequncia da fome
e da pobreza, o valor da vida humana em muitos
pases pobres quase desprezvel e quando o risco
de embarcar num barco menor que o de ficar em
casa, a deciso est tomada, destaca o professor Jos Esquinas-Alczar. A FAO anunciou, em 2007, que o aumento dos preos de alimentos
poderia levar a um aumento nos conflitos globais.
De fato, a crise alimentar provocou, somente em
2008, revoltas em mais de 50 pases e a
consequente queda de vrios governos. Hoje, o
aumento nos preos dos alimentos est novamente
contribuindo para a instabilidade poltica em
diferentes partes do mundo, complementa. O pesquisador lembra que mesmo o Frum
Econmico Mundial de Davos incluiu h alguns
anos a insegurana alimentar entre os riscos mais
graves humanidade, pois no afeta mais apenas
aqueles que sofrem diretamente com o flagelo da
fome. Por estarmos em um mundo interconectado
pela informao e pela tecnologia, em que o capital
e a diviso do trabalho se organizam em escala
global, no qual somos todos interdependentes um
dos outros e dependentes da natureza, a segurana
alimentar se torna um dos principais pilares da paz
e da segurana mundial. Nossos destinos esto unidos, e o destino comum: ou nos salvamos
todos ou podemos perecer juntos. O que no
passado no soubemos fazer ou queramos fazer
movidos pela caridade ou pela solidariedade, hoje
teremos que fazer, mesmo que seja por egosmo
inteligente, frisa ele na entrevista a seguir, concedida por e-mail IHU On-Line.
Jose Esquinas-Alczar doutor em Engenharia
Agrnoma pela Universidade Politcnica de
Madri, na Espanha, alm de mestre em
Horticultura e doutor em Gentica pela
Universidade da Califrnia, Estados Unidos.
Trabalhou na Organizao das Naes Unidas
para a Alimentao e a Agricultura - FAO por 30
anos, lidando com temas como recursos genticos,
biodiversidade agrcola, cooperao internacional,
tica na alimentao e agricultura. Atualmente
professor titular da Universidade Politcnica de
Madri e diretor da Ctedra de Estudos sobre a
Fome e a Pobreza - CEHAP da Universidade de
Crdoba, Espanha.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Por que ainda morrem 40 mil
pessoas por dia no mundo em consequncia da
fome? No produzimos uma quantidade suficiente
para alimentar a populao mundial ou a
distribuio de alimentos que feita de maneira
desequilibrada?
Jos Esquinas-Alczar - O que realmente
paradoxal e indignante que a fome no
consequncia, como acreditam muitos, da falta de
alimentos. Hoje, segundo dados da Organizao
das Naes Unidas para Alimentao e Agricultura
- FAO, h alimentos no mundo para alimentar
folgadamente a populao mundial. Os alimentos
esto no mercado internacional, mas no chegam
s mesas nem s bocas dos que tm fome. Em
outras palavras, o problema no a produo de
alimentos, mas o acesso aos mesmos. O problema
, essencialmente, de ndole poltica. Isto foi
reconhecido explicitamente h mais de 50 anos
por um grande presidente dos Estados Unidos. Em
1963, John F. Kennedy, em seu discurso no
primeiro Congresso Mundial de Alimentos, disse:
Em nossa gerao temos os meios e a capacidade de eliminar a fome da face da Terra.
Necessitamos, para tanto, apenas de vontade
poltica. Se h 50 anos j existiam os meios e a capacidade para acabar com a fome, imagine hoje!
No entanto, continua faltando vontade poltica para
isso.
Os dados falam:
15
No mesmo dia em que morrem de fome
40.000 pessoas, por exemplo, o mundo gasta
quatro bilhes de dlares em armamentos, ou seja,
100.000 dlares por morto, o que teria permitido
alimentar o morto, ao preo dos alimentos nos
pases em que morrem, durante mais de 100 anos.
Em 1953, outro grande presidente norte-
americano, Dwight D. Eisenhower, em seu
discurso Oportunidades para a paz, denunciava: Cada fuzil fabricado, cada barco de guerra construdo, cada bomba que se joga, significam, em
ltima instncia, um roubo daqueles que tm fome
e no tm comida. Observemos tambm como se encontraram
rapidamente fundos ingentes para que os bancos
pudessem fazer frente atual crise financeira. 2%
dos fundos empregados desde 2010 no mundo,
para salvar bancos, teriam bastado para resolver o
problema da fome no mundo.
O oramento ordinrio da FAO, a Organizao
das Naes Unidas cujo objetivo principal acabar
com a fome no mundo, para dois anos o
equivalente ao que dois pases desenvolvidos
gastam com comida para cachorros e gatos em
uma semana. O oramento ordinrio da FAO de
10 anos o equivalente ao que o mundo gasta em
armamentos em apenas um dia.
Observe a energia, deciso e eficcia com que a
humanidade e, sobretudo, os pases desenvolvidos
enfrentaram recentemente pandemias muito
menos mortais que a fome, mas contagiosas, como
a gripe aviria, a febre suna ou, mais
recentemente, a gripe A. No entanto, o nmero de
mortos pela gripe A, no mundo, durante estes anos
foi da ordem de 17.000 pessoas; menos da metade
dos que morrem em um s dia de fome.
Embora seja verdade que a fome no
contagiosa, ela sumamente perigosa. A fome
constitui uma bomba-relgio, que pode explodir a
qualquer momento e no podemos permitir-nos a
miopia poltica de ignorar isso.
IHU On-Line - Que estratgias de cooperao
e tica podem ser desenvolvidas para eliminar a
fome?
Jos Esquinas-Alczar - As estratgias aplicadas
no sculo passado baseadas nas receitas nicas, no
produtivismo, no mercado mundial e na padro-
nizao demonstraram sua falta de eficcia.
Permita-me desenvolver alguns pontos para um
novo enfoque, baseado na experincia e na tica:
1) No existem solues nicas, nem receitas
universais
A situao de cada pas, considerando sua
histria e cultura, suas condies edafoclimticas
[relacionadas ao clima, relevo, humidade do ar,
tipo de solo, vento e precipitao pluvial] e
socioeconmicas, a evoluo da sua populao, ou
seu grau e tipo de desenvolvimento, so diferentes
e, portanto, diferentes devem ser as solues para
os seus problemas agrcolas e alimentares.
Tentar impor um nico tipo de agricultura
irresponsvel e irrealista, e, alm disso, com
frequncia chegou a situaes de no
sustentabilidade ecolgica e degradao social. A
diversidade de sistemas agrcolas deve ser protegida
e incentivada como um valor positivo e um
importante amortecedor em pocas de mudanas.
2) Reconhecimento do valor dos diferentes
usos da agricultura
A agricultura no pode ser considerada como
mero exerccio econmico. A agricultura, alm de
produzir alimentos rao, fibras, biocom-bustveis, medicamentos e plantas ornamentais , tem outras funes essenciais: social, ambiental, de
estabilidade cultural, etc., de difcil contabilidade
econmica e que muitas vezes so consideradas
como externalidades do sistema. Esta uma das causas pelas quais os preos e os valores dos produtos agrcolas no necessariamente se
correspondem. Isso constitui tambm uma
importante dificuldade para avaliar a relao
custos/benefcios das atividades agrrias e da
eficcia comparativa entre os diferentes tipos de
agricultura. Faz-se necessrio, por isso, introduzir
em nosso sistema econmico os indicadores,
correes e elementos necessrios para poder
integrar nas anlises e avaliaes agrcolas todos os
custos e benefcios, incluindo, naturalmente, os
no monetrios.
3) Investimento em agricultura e cooperao
internacional
Segundo o Banco Mundial, o crescimento do
setor agrcola elimina ao menos duas vezes mais a
pobreza do que fazem idnticos nveis de cresci-
mento em qualquer outro setor econmico.
importante, portanto, investir em agricultura para
combater a fome e a marginalizao econmica.
No esqueamos que a agricultura segue sendo o
principal setor produtivo nos ltimos anos nos
pases mais pobres do mundo, o qual emprega
mais de 65% da sua populao economicamente
ativa e responsvel, em mdia, por mais de 25%
do Produto Interno Bruto - PIB.
No entanto, a participao da agricultura na
Assistncia Oficial ao Desenvolvimento - AOD
CADERNOS IHU EM FORMAO
reduziu-se de 29%, em 1980, para 3% em 2006, e
agora se situa em torno de 5%.
A histria tambm nos diz que pases como a
ndia ou o Vietn, que protegeram seu
desenvolvimento agrcola dos mercados interna-
cionais, conseguiram redues substanciais na
pobreza agrcola.
Investir para conseguir a independncia de
alimentos foi, justamente, o enfoque que, a partir
de 1945, ajudou a Europa do ps-guerra a
conseguir a soberania alimentar em menos de 20
anos. Cada pas deveria dotar-se dos meios para
alimentar a si mesmo. Isto significa que essencial
que a agricultura se converta em uma prioridade
internacional e os pases mais pobres sejam
ajudados a garantir a segurana e a independncia
de seu prprio abastecimento de alimentos.
A FAO considera que, com o objetivo de
alcanar o nvel de investimento em agricultura
necessrio para enfrentar a situao atual de fome
e m nutrio, necessrio que:
a) A parte da AOD destinada agricultura
chegue aos 44 bilhes de dlares por ano,
voltando, assim, ao nvel inicial que permitiu, na
dcada de 1970, evitar a fome na sia e na
Amrica Latina;
b) Os gastos oramentrios destinados
agricultura em pases de baixos ingressos e com
dficit de alimentos que, atualmente, represen-tam cerca de 5% deveriam ser aumentados para atingir um mnimo de 10%;
c) O investimento privado nacional e
estrangeiro, prximo, atualmente, dos 140 bilhes
de dlares anuais, deveria subir para 200 bilhes
de dlares ao ano.
Estes nmeros podem parecer altos, mas
recordemos que os pases da Organizao para a
Cooperao e Desenvolvimento Econmico -
OCDE proporcionam uma ajuda equivalente a
cerca de 365 bilhes de dlares anuais aos seus
agricultores.
4) Combater a especulao nos preos
agrcolas. Regulao do mercado de alimentos na
Bolsa de Valores
Uma srie de estudos atribui especulao at
30% do aumento dos preos dos cereais no
mercado internacional, em 2008. A especulao
exacerbada pelas medidas de liberalizao dos
mercados de futuros de produtos agrcolas em um
contexto de crise econmica e financeira permitiu
a transformao dos instrumentos de arbitragem
do risco em produtos financeiros especulativos que
substituem outros investimentos menos rentveis.
Este problema exige solues ticas e urgentes,
entre as quais deve-se considerar a possibilidade de
tirar os alimentos da Bolsa de Valores. Tambm
com o objetivo de reduzir a especulao,
importante evitar os monoplios e monitorar as
grandes cadeias de alimentao. Para reduzir a
volatilidade dos preos e enfrentar a especulao
nos mercados de futuros de produtos agrcolas,
pode contribuir a introduo de novas medidas de
transparncia e regulamentao que permitam aos
poderes pblicos influir nos preos dos alimentos
bsicos. Assim como aumentar o armazenamento
de produtos agrcolas e alimentares e sua liberao
na medida em que os preos disparem.
5) Biocombustveis
Atualmente, as subvenes e protees
alfandegrias a favor dos biocombustveis tm o
efeito de desviar cerca de 120 milhes de toneladas
de cereais do consumo humano para o setor dos
transportes. Para reduzir esse impacto,
importante e urgente regular e desacelerar, ao
menos temporariamente, a produo de bio-
combustveis, especialmente aqueles de primeira
gerao.
6) Reduzir a distncia das cadeias alimentares
com a finalidade de reduzir custos energticos e
econmicos
Para isso, pode contribuir a aproximao entre
os centros de produo e de consumo, promo-
vendo o aumento da produo local e o consumo
de produtos locais e estacionais.
IHU On-Line - Em entrevista ao jornalista
Gumersindo Lafuente, publicada pelo jornal El
Pas em junho de 2011, o senhor disse que a caridade deve ser substituda pelo egosmo
inteligente. De que forma esta declarao est relacionada com a preservao da Terra?
Jos Esquinas-Alczar - A fome e a pobreza so
o caldo de cultivo no qual crescem problemas que
tanto preocupam o Ocidente, como a migrao
ilegal e a violncia internacional. Quando, em
consequncia da fome e da pobreza, o valor da
vida humana em muitos pases pobres quase
desprezvel e quando o risco de embarcar num
barco menor que o de ficar em casa, a deciso
est tomada.
A FAO anunciou, em 2007, que o aumento dos
preos de alimentos poderia levar a um aumento
nos conflitos globais. De fato, a crise alimentar
provocou, somente em 2008, revoltas em mais de
50 pases e a consequente queda de vrios
governos. Hoje, o aumento nos preos dos
alimentos est novamente contribuindo para a
instabilidade poltica em diferentes partes do
mundo, incluindo o Meio Leste. Em 2009, o
relatrio do Frum Econmico Mundial de Davos
incluiu pela primeira vez a insegurana alimentar
como um risco importante para a humanidade.
17
Num mundo to inter-relacionado e
interdependente como o atual, a fome passou de
flagelo para os que a sofrem a um perigo para toda
a humanidade. Sem segurana alimentar no h,
nem poder haver nunca, paz, nem segurana
mundial.
Atualmente, no sculo XXI, erradicar a fome
em nossa pequena Aldeia Global no uma
opo, uma necessidade imperiosa, se queremos
ter um futuro. Estamos em uma pequena
astronave, a aeronave Terra. Estamos a,
literalmente, dando voltas, com recursos limitados
e perecveis; com uma interdependncia cada vez
maior. Se vier a acontecer que essa astronave ou
essa nave ou esse barco sofra um buraco, tanto faz
se o buraco se deu na ndia, na frica, no Brasil,
nos Estados Unidos ou na Espanha; todos
afundaremos. Nossos destinos esto unidos, o
destino comum: ou nos salvamos todos ou
podemos perecer juntos. O que no passado no
soubemos fazer ou queramos fazer movidos pela
caridade ou pela solidariedade, hoje teremos que
fazer, mesmo que seja por egosmo inteligente.
IHU On-Line - Como filho de agricultores, que
importncia o senhor concede s pequenas
propriedades camponesas na luta contra a fome?
Jos Esquinas-Alczar - No foi por acaso que
este ano de 2014 tenha sido declarado pela ONU
como o Ano Internacional da Agricultura Familiar.
A maior parte dos alimentos que consumimos no
mundo procede da agricultura familiar, que , em
geral, uma agricultura baseada em pequenas
propriedades.
Como dissemos anteriormente, existem hoje
alimentos mais que suficientes para alimentar a
humanidade; entretanto, os famintos no tm
acesso aos mesmos. Os alimentos esto disponveis
no mercado internacional, mas isso no
suficiente para que cheguem aos que passam fome,
especialmente em tempos de carestia alimentar e
grande volatilidade dos preos dos alimentos, j
que a fome e a pobreza andam muitas vezes de
mos dadas. A falta de acesso deve-se escassez de
alimentos produzidos em nvel local, por um lado,
e falta de recursos para comprar os alimentos
procedentes de onde h excedentes, por outro. Os
sistemas tradicionais de luta contra a fome, atravs
dos programas de distribuio de alimentos e
assistncia humanitria, proporcionam alimentos
ou fundos para obt-los no mercado internacional.
No entanto, a eficcia destas medidas tem sido
muito limitada por tratar-se de solues a curto
prazo.
Se levarmos em conta que a maior parte (70%)
da populao faminta vive em zonas rurais,
promover a produo in situ parece ser a soluo
mais eficiente e talvez a nica duradoura.
Requerem-se melhorias na produo em nvel
local para proporcionar um aumento das opes
para os agricultores de pequena escala e as
comunidades rurais, e para melhorar a qualidade,
assim como a quantidade, dos alimentos dispo-
nveis. Isso significa apoiar os pequenos agricul-
tores e suas comunidades no desenvolvimento e
melhoria dos seus prprios sistemas agrcolas.
Infelizmente, a assistncia tcnica ao pequeno agri-
cultor e a pesquisa internacional para melhorar a
produo nos sistemas agrcolas tradicionais de
baixos insumos, incluindo a melhoria gentica dos
cultivos marginais e variedades locais adaptados a
estes sistemas, foram muito escassas e, muitas
vezes, inexistentes.
Sistemas agrcolas tradicionais
A FAO, no seu relatrio Os caminhos para o xito (nov. 2009) , assinala que uma das melhores e mais rentveis vias para sair da pobreza e da
fome no meio rural apoiar os pequenos
camponeses. Cerca de 85% das propriedades agr-
colas no mundo tm menos de dois hectares, e os
pequenos agricultores e suas famlias representam
cerca de dois bilhes de pessoas, um tero da
populao mundial.
Alm disso, os pequenos agricultores so a base
da soberania alimentar e esta deve ser considerada
parte essencial da segurana alimentar. Para no
criar-se uma dependncia dos preos agrcolas
internacionais, no se pode fomentar siste-
maticamente o desmantelamento dos sistemas agr-
colas tradicionais. Com frequncia, preciso
apoiar seu desenvolvimento e uma evoluo
paulatina que permita aumentar sua produtividade
e sua capacidade de se adaptar s necessidades
cambiantes do meio e sociedade nas quais se
desenvolvero.
Na sequncia, damos um exemplo ilustrativo
das consequncias do desmantelamento dos
sistemas agrcolas tradicionais:
Em Benin, o desenvolvimento de grandes
cultivos de algodo para satisfazer a demanda do
Ocidente levou ao deslocamento de milhes de
pequenos agricultores produtores de alimentos,
que venderam suas terras para passar a ser
diaristas, muitos deles nas novas plantaes de
algodo. Isto, no entanto, no foi percebido como
um problema, j que as dirias recebidas lhes
permitiram comprar alimentos procedentes do
mercado internacional a bom preo e, por isso,
muitas vezes em maior quantidade que aqueles que
produziam antes em suas pequenas propriedades.
No entanto, o aumento dos preos internacionais
dos alimentos nos ltimos anos deixou-os numa
CADERNOS IHU EM FORMAO
situao de indigncia e fome sem precedentes.
Agora, j no podem voltar sua agricultura
tradicional, j que, com a venda das suas terras,
criaram uma situao de dependncia prati-
camente irreversvel.
Muitas vezes, os processos desencadeados com
a venda das terras e o desmantelamento dos siste-
mas agrcolas nacionais passam a ser irreversveis.
Ao perder a capacidade de produzir seus alimen-
tos, os pases podem hipotecar sua prpria sobe-
rania.
IHU On-Line - Em que etapa esto os debates
no Conselho de Direitos Humanos das Naes
Unidas acerca de uma possvel Declarao
Universal Sobre os Direitos dos Camponeses?
Jos Esquinas-Alczar - Em outubro de 2012, o
Conselho de Direitos Humanos da ONU decidiu
criar um grupo de trabalho intergovernamental de
composio aberta encarregado de negociar,
finalizar e apresentar ao Conselho de Direitos
Humanos um projeto de declarao das Naes
Unidas sobre os direitos dos camponeses e de
outras pessoas que trabalham nas zonas rurais.
O grupo de trabalho intergovernamental,
presidido pela embaixadora da Bolvia na ONU,
em Genebra, em sua primeira reunio, em julho
de 2013, considerou um primeiro rascunho da
declarao e fez comentrios sobre o mesmo.
Atualmente, o rascunho est sendo modificado em
consulta com os pases, com o objetivo de
apresentar um novo rascunho na segunda reunio
negociadora do grupo de trabalho, prevista para
novembro de 2014.
IHU On-Line - Qual o impacto do capital
internacional sobre a biodiversidade agrcola e os
recursos genticos? Por que os dois ltimos so
importantes?
Jos Esquinas-Alczar - O capital internacional
e as grandes companhias de produo de sementes
esto promovendo um tipo de agricultura industrial
baseada na uniformidade, onde um pequeno
grupo de variedades vegetais e raas animais
uniformes e homogneos esto substituindo em
todo o mundo uma enorme diversidade de
espcies alimentares. Alguns acordos
internacionais com o comrcio, certificao de
sementes e direitos de propriedade intelectual,
assim como a prpria legislao nacional de muitos
pases, esto contribuindo para este desatino.
A Diversidade Biolgica Agrcola (DBA) e mais
concretamente os Recursos Genticos para a
Agricultura e a Alimentao (RGAA), tambm
conhecidos com ouro verde, constituem a despensa da humanidade, a matria-prima sobre a
qual se baseia o desenvolvimento agrcola e a
produo de alimentos. Sem o uso da diversidade
gentica existente dentro de cada espcie animal
ou vegetal, no seria possvel o combate das pragas
e doenas das plantas cultivadas e dos animais de
granja, o aumento da sua produtividade, sua
adaptao a condies adversas do ambiente (por
exemplo, excessivo frio ou calor, seca ou
umidade), nem a melhoria das suas caractersticas
nutritivas, e se perderia a capacidade destas
espcies de se adaptar s mudanas climticas.
Quando se perde a DBA de uma espcie agrcola,
priva-se a espcie da sua capacidade de evoluo e
adaptao ao ambiente, e o ser humano do mate-
rial bsico onde selecionar o material desejado; as
consequncias podem ser catastrficas.
Um exemplo conhecido e sumamente
ilustrativo a fome que estremeceu a Europa na
metade do sculo XIX e que provocou a morte
por fome de milhes de pessoas. O que muitos
ignoram que a sua causa foi a destruio em
massa dos cultivos de batatas europeias, atacadas
por um fungo, o Phytophtorainfestans, para o qual
no se encontrava resistncia devido
uniformidade extrema das batatas cultivadas no
continente. O problema foi resolvido graas
resistncia doena encontrada no Peru, centro de
origem e diversidade da batata.
Outro exemplo mais recente o do ataque do
Helmintosporiusmaydes, que destruiu os milhos
comerciais uniformes do sul dos Estados Unidos
no comeo da dcada de 1970. O problema foi
resolvido graas aos genes de resistncia encon-
trados nas variedades heterogneas de milhos
africanos.
O nmero de casos, embora nem sempre to
trgicos, se multiplicaram durante os ltimos anos
em muitos cultivos, e a soluo passou quase
sempre pela identificao de resistncia s doenas
e s condies adversas entre as variedades
heterogneas tradicionais que seguem sendo
cultivados pelos pequenos agricultores, sobretudo
nos pases em desenvolvimento. Uma vez
identificada esta resistncia, os cientistas podem
incorpor-la s variedades comerciais atravs de
cruzamentos.
Recursos genticos
Ao longo do ltimo sculo, houve uma enorme
perda de diversidade gentica dentro das chamadas
principais espcies alimentcias. Centenas de milhares de variedades heterogneas de plantas
cultivadas ao longo de geraes foram substitudas
por um reduzido nmero de variedades comerciais
modernas e enormemente uniformes.
S nos Estados Unidos j desapareceram mais
de 90% das rvores frutferas e espcies hortcolas
que ainda se cultivavam no comeo do sculo XX,
e to somente algumas poucas so conservadas em
bancos de genes. No Mxico, s se conhecem,
atualmente, 20% das variedades documentadas em
19
1920. Na Repblica da Coreia, apenas 26% das
variedades locais cultivadas em hortas e pomares
familiares em 1985 continuavam sendo utilizadas
em 1993. Em geral, pode-se dizer que, em nvel
mundial, entre 80% e 95% das variedades
conhecidas para os cultivos mais importantes no
incio do sculo XX se perderam para sempre.
Alm disso, em nvel de espcie estamos
ignorando e desaproveitando a maior parte da
diversidade biolgica agrcola existente. Segundo a
FAO, estima-se que, ao longo da histria da
humanidade, foram utilizadas cerca de 10.000
espcies para a alimentao humana e a
agricultura. Atualmente, no mais de 120 espcies
cultivadas de plantas nos proporcionam 90% da
alimentao calrica humana, e to somente quatro
espcies vegetais (batata, arroz, milho e trigo) e trs
espcies animais (gado, suno e frango) nos
proporcionam mais da metade.
As sistemticas aes internacionais para frear a
perda de recursos genticos e assegurar a
cooperao internacional nesta matria comearam
na FAO nos anos 1970. Em 1983, a Conferncia
da FAO criou a Comisso Intergovernamental de
Recursos Genticos para a Agricultura e a
Alimentao - CRGAA. Atualmente, a comisso
conta com 170 pases membros e o frum
intergovernamental permanente para a discusso e
negociao das questes relacionadas aos RGAA.
Nesta comisso, foi negociado nos anos 1990 e
aprovado em 2001 o Tratado Internacional sobre
Recursos Genticos para a Agricultura e a
Alimentao, acordo que, at o momento, foi
ratificado pelos parlamentares de 136 pases.
IHU On-Line Nesta perspectiva, comente, por favor, o episdio no qual um campons lhe
cedeu um punhado de sementes de meles que,
mais tarde, descobriu-se eram resistentes ao fungo
que ameaava as demais espcies do fruto no
mundo. O que estes episdios nos ensinam?
Jos Esquinas-Alczar - A diversidade gentica
que permitiu salvar a batata na Europa no sculo
XIX e o milho nos Estados Unidos no sculo XX
no estava ali por acaso. Era o produto da seleo
realizada por milhares de geraes de pequenos
agricultores tradicionais; eles seguem sendo ainda
hoje, no mundo que muitas vezes os ignora e s
vezes os v como uma carga social devotada ao
passado, os autnticos guardies da maior parte da
diversidade biolgica agrcola com que ainda
podemos contar; aqueles que continuam
desenvolvendo, conservando e colocando dis-
posio de outros agricultores, dos aperfeioa-
dores profissionais e, inclusive, dos modernos
biotecnlogos, a matria-prima necessria para
enfrentar condies ambientais cambiantes e
necessidades humanas imprevisveis. So estes
simples camponeses os que seguem tendo as
chaves do futuro alimentar da humanidade.
Ilustrarei isso com o exemplo dos meles e
outros casos significativos:
Em julho de 1970, nas Hurdens, no corao da
Espanha rural, um agricultor ancio, que seguia
com seu asno, encontrou-se com um jovem
estudante que recolhia sementes de melo. O
velho agricultor perguntou ao jovem estudante o
que estava fazendo, e o rapaz lhe explicou que
queria coletar os meles autctones da Espanha
antes que desaparecessem. Vem ver meus meles disse o agricultor. Nunca ficam doentes. O estudante acompanhou o idoso at sua
propriedade. O velho agricultor deu-lhe algumas
sementes, que o jovem levou para fazer anlises em
laboratrio. As sementes continham um gene
resistente a um fungo do melo, que poste-
riormente foi transferido para outros meles, bene-
ficiando os agricultores de todo o mundo. Eu era
esse jovem estudante, mas no sei quem era o
ancio. como tantos milhes de homens e
mulheres. Ningum lhes agradece, mas eles so os
possuidores da sabedoria capaz de produzir e
conservar suas sementes e suas tradies para as
futuras geraes.
O tempo e a experincia me mostraram que
no se tratava de um caso isolado. Em 1983,
coletando quinoa, um dos cultivos mais impor-
tantes da agricultura tradicional andina, na Bolvia,
encontramos na granja de um agricultor, em uma
zona onde predomina a quinoa amarela, um tipo
de quinoa escura, cujas plantas tinham um aspecto
doentio e cuja produtividade parecia muito baixa.
Comentamos com este agricultor que estas plantas
estavam doentes e talvez por isso produzissem
pouco gro e de cor escura. Ele nos respondeu que
no, que esta variedade assim. Embora no tenhamos ficado muito convencidos, a cena se
repetiu nos campos de outros agricultores vizinhos.
O ltimo nos confirmou que esta variedade produzia muito pouco. E quando lhe pergun-tamos por que a cultivava mesmo assim, ele res-
pondeu que era muito boa para curar da
tuberculose. No demos muito crdito ao
comentrio, mas coletamos algumas amostras que
foram enviadas com as outras a alguns laboratrios
para anlise. Quando, alguns meses depois,
obtivemos os resultados das anlises, soubemos
que aquela quinoa negra, supostamente doente,
tinha um contedo em protenas e, sobretudo, em
aminocidos essenciais muito superiores s outras
quinoas cultivadas na zona.
CADERNOS IHU EM FORMAO
O nmero de exemplos infindvel. Uma
variedade local de trigo coletada na Turquia pelo
Dr. Harlan em 1948 no campo de um pequeno
agricultor, e ignorada depois durante muitos anos,
foi uma fonte de resistncia a fungos em todo o
mundo. Algumas variedades tradicionais de alfafa
encontradas no Ir permitiram introduzir
resistncia a nematides em muitas variedades
comerciais de outros pases. Uma variedade de
trigo encontrada em zonas remotas do Japo, em
1946, passou a ser a base da chamada revoluo verde em todo o mundo um quarto de sculo depois, graas aos seus genes de nanismo que
permitiram maiores doses de adubo nitrogenado.
Uma raa tradicional de sunos chinesa permitiu
aumentar a fertilidade de muitas raas europeias. A
resistncia malria nas vacas do sul dos Estados
Unidos procede de uma raa local do norte de
Roma.
O trabalho essencial dos agricultores
tradicionais no desenvolvimento, conservao e
disponibilidade da diversidade biolgica agrcola
foi formalmente reconhecido pelo Tratado
Internacional de Recursos Fitogenticos da FAO,
cujo artigo 9, Direitos do Agricultor, define os
agricultores como guardies dos recursos genticos
e lhes assinala direitos.
IHU On-Line Gostaria de acrescentar algo mais?
Jos Esquinas-Alczar - Sim, creio que a
questo da fome e da conservao dos recursos
naturais da Terra no pode ser tratada de maneira
isolada. preciso integrar a crise alimentar ao
contexto das demais facetas da crise global em que
nos encontramos imersos e cujo combate s
possvel associando-a ao desenvolvimento de um
mundo melhor, solidrio e sustentvel, onde o
objetivo no seja simplesmente o crescimento econmico, mas a felicidade, e onde o motor do processo no seja o consumo e a sobre-explorao dos recursos naturais, mas a relao harmnica entre e com todos os componentes do
ecossistema Terra. Um mundo no qual o
crescimento material no seja sinnimo de
desenvolvimento e onde a cincia, as tecnologias, o
mercado e, inclusive, a democracia, no sejam
deuses infalveis que devemos glorificar, mas
meros instrumentos que podem nos ajudar a
transformar a nossa casa, a Terra, em um Paraso.
21
O mundo no um sistema de vasos comunicantes
Entrevista especial com Walter Belik
Professor da Unicamp, Walter Belik, um dos
idealizadores do Fome Zero, explora as dimenses
ligadas ao conceito de segurana alimentar e o
modo como elas se atualizam em um mercado
internacionalmente conectado
Por: Andriolli Costa
Em 1946, o intelectual brasileiro Josu de
Castro, que h anos debruava-se sobre a questo
da fome e da nutrio, escreve um livro seminal
para a discusso do assunto: Geografia da Fome O Dilema Brasileiro (Rio de Janeiro: Civilizao
Brasileira, 2001). Na obra, articulando reflexes
tericas com dados empricos e observao in loco,
o autor articula em seu quadro geogrfico as reas
de fome e subnutrio endmicas no Brasil,
alinhavando tambm as causas de sua misria.
Para Walter Belik, um dos idealizadores do
Fome Zero e ex-integrante do Conselho de
Segurana Alimentar (Consea), a obra de Josu de
Castro ainda hoje permanece atual, tendo sido ele
um grande incentivador da ONU para a criao do
que seria a Organizao das Naes Unidas para
Alimentao e Agricultura - FAO. Josu de Castro tambm foi muito importante como idealizador de
alguns programas sociais que at hoje esto em
curso e que tentamos aperfeioar. Projetos como
os restaurantes populares e a alimentao escolar
foram todos iniciados por ele, destaca. No entanto, a obra de Castro era fruto de sua
poca, e cabe aos pesquisadores contemporneos
envolvidos com as questes de fome e nutrio
atualizarem o conceito em uma sociedade
globalizada, com mercados internacionalmente
integrados. Nesta atualizao, desponta a ideia de
segurana alimentar, que vai ultrapassar os dilemas
da fome e da pobreza.
Em entrevista concedida por telefone IHU
On-Line, Walter Belik explora conceitualmente as
caractersticas deste conceito, trabalhando suas
relaes com outros problemas alm da prpria
fome. Muitas pessoas associam a segurana alimentar com a fome e, portanto, com a
subnutrio. No entanto, a m nutrio e, com ela,
a obesidade, tambm so problemas de segurana
alimentar. toda uma linha de pesquisa que
precisa ser desenvolvida, esclarece. Mais do que isso, pensando nas articulaes em
nvel global, temos uma realidade em que a mdia
de produo mundial teoricamente seria suficiente
para alimentar a populao global sem problemas.
No entanto, como problematiza Belik, o mundo no um sistema de vasos comunicantes. Pelo contrrio, o excesso de alimentos mais propenso
a gerar desperdcio do que o escoamento para as
zonas mais crticas, dificultando o combate fome.
Belik ministra a palestra Cenrio Nacional da
alimentao e nutrio na perspectiva dos
Objetivos de Desenvolvimento do Milnio,
durante o XV Simpsio Internacional lHU -
Alimento e nutrio no contexto dos Objetivos de
Desenvolvimento do Milnio, no dia 07-05, s 9h.
Mais informaes, incluindo a programao
completa, pelo linkhttp://bit.ly/XVSIHU.
Walter Belik graduado e mestre em
Administrao pela Escola de Administrao de
Empresas de So Paulo, da Fundao Getulio
Vargas, com doutorado em Cincia Econmica
pela Unicamp. Possui ainda ps-doutorado na
University of London, na Inglaterra, e
no Department of Agricultural & Resource
Economics da Universidade da Califrnia,
Berkeley, nos Estados Unidos. Em 2000, recebeu
o ttulo de professor livre-docente pelo Instituto de
Economia da Unicamp, universidade onde est
vinculado desde 1985. De uma trajetria de
pesquisas relacionadas avaliao da poltica
agrcola e agroindustrial, concentrou as atenes
nos aspectos do processamento e da distribuio
de alimentos. Atua principalmente na discusso
CADERNOS IHU EM FORMAO
das alternativas de polticas de segurana alimentar,
analisando o papel do abastecimento alimentar e a
logstica da distribuio.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - De que forma a obra do
brasileiro Josu de Castro influencia o seu trabalho
de pesquisa?
Walter Belik - Josu de Castro o principal
nome neste campo. Ele foi precursor e teve essa
caracterstica tanto de trabalhar teoricamente as
questes da segurana alimentar como de atuar
diretamente em nvel de governo, influenciando as
polticas pblicas e a constituio de toda uma
frente que comeou a discutir a fome no mundo.
Ele pode ser considerado o pai da FAO, no
sentido de que l no incio, em 1947, influenciou
as Naes Unidas para que houvesse um
organismo internacional que desse conta dessas
questes.
interessante que os primeiros trabalhos de
Josu de Castro estivessem baseados em questes
empricas. Ele, como mdico, como pesquisador,
analisava as condies dos trabalhadores no Recife
e verificou que a incidncia de doenas e a baixa
produtividade estavam muito mais relacionadas
questo da alimentao do que a problemas de
doena. Esta uma lio importante para todos
ns, para que no percamos contato com a
realidade. A realidade o que nos inspira. Ns
temos que buscar as informaes, buscar os dados
e, a partir da, escrever e tentar interferir na
realidade.
Josu de Castro tambm foi muito importante
como idealizador de alguns programas sociais que
at hoje esto em curso e que tentamos
aperfeioar. Projetos como os restaurantes
populares e a alimentao escolar foram todos
iniciados por ele. Josu de Castro continua atual e
fonte de inspirao para todos que trabalham
com segurana alimentar.
IHU On-Line - Como conceitos como a
geografia e a geopoltica da fome se atualizam hoje
no Brasil? Algo mudou?
Walter Belik - Mudou sim. Josu de Castro
avaliava um ambiente da economia e do
capitalismo bem diferente do atual. Nesta poca, o
mercado era prioritariamente local, pois no
tnhamos um mercado internacional constitudo,
mas pontual, ligado a produtos, o que fazia com
que boa parte dos pases ainda trabalhasse com a
ideia de autossuficincia. Hoje, as coisas mudaram.
Ns temos um mercado global, com presena
muito forte das tradings e das multinacionais, que
fazem com que os alimentos circulem no mundo
todo. Os mercados e os prprios preos esto
internacionalmente integrados, o que fez com que
o conceito mudasse. A autossuficincia era uma
questo de segurana nacional mesmo, uma
questo militar, e que hoje passa a ser analisada em
nvel de blocos e relaes comerciais. Isso traz uma
srie de outros problemas: a dependncia, por
exemplo, e a impossibilidade de governana sobre
esses mercados. O governo passa a ser um
tomador de preos, passa a no ter poder sobre as
relaes que so colocadas. Ao mesmo tempo,
preciso lembrar que a produo agrcola apenas
uma face da agricultura. A agricultura um modo
de vida. Ela implica em uma relao cultural, uma
relao social, e destruir isso por uma demanda de
produtividade muito problemtico, porque se
destri um setor, uma esfera da economia muito
importante.
IHU On-Line - O que segurana alimentar?
Que outros fenmenos esto ligados a este termo
alm da prpria fome?
Walter Belik Segurana alimentar uma questo complexa. Tanto que se voc analisar os
escritos do Josu de Castro, ele no fala em
segurana alimentar, mas em fome. Talvez este
termo seja uma sofisticao do nosso tempo para
tratar um fenmeno que bastante cru, que a
fome. De qualquer forma, a segurana alimentar
engloba quatro dimenses importantes ligadas
questo da fome, e que devem ser analisadas.
Primeiramente a disponibilidade, ou seja, que
haja uma quantidade suficiente para que as pessoas
possam se alimentar; depois o acesso, pois no
basta ter a quantidade adequada de alimentos, mas
deve haver possibilidade das pessoas de acessar
este mercado tanto pensando na questo da renda quanto do acesso fsico ao mercado, que
muito importante. Josu de Castro trata bastante
do acesso fsico quando fala da fome africana, por
exemplo.
Teramos ainda uma terceira dimenso, que a
da inocuidade do alimento. No basta que haja
alimento disponvel ou que as pessoas tenham
acesso a ele, mas que este alimento seja apropriado
para o consumo humano. Que seja saudvel. A
quarta dimenso a da estabilidade, que uma
questo temporal. O alimento deve estar
disponvel ao longo do tempo. No se resolve o
problema da segurana alimentar com uma cesta
bsica, por exemplo. preciso que haja acesso
permanente a este alimento.
Essas quatro dimenses nos levam a uma srie
de outras aberturas para a questo da fome. Muitas
pessoas associam a segurana alimentar com a
fome e, portanto, com a subnutrio. No entanto, a
m nutrio e, com ela, a obesidade, tambm so
problemas de segurana alimentar. toda uma
linha de pesquisa que precisa ser desenvolvida.
23
IHU On-Line Se mais barato e mais rpido comer junk food, voc acaba fazendo essa opo e
ficando malnutrido por causa disso, certo?
Walter Belik Exatamente. Muitas vezes os critrios nutricionais so feitos em funo das
calorias, mas, se eu tenho uma caloria vazia, a
pessoa est bem alimentada apenas teoricamente.
Na verdade ela est malnutrida. Ainda falando na
questo do acesso, muitas vezes ele est ligado
pobreza e renda. Ento programas de combate
pobreza esto ligados diretamente ao consumo de
alimentos. No entanto, importante haver
programas voltados especificamente para a
alimentao, pois um aumento de renda que se
converte em qualquer tipo de alimento tambm
no interessa.
Quando voc abre o leque de fome para
segurana alimentar, voc tem uma interdis-
ciplinaridade muito grande que antes no havia.
Antigamente este era um problema dos
nutricionistas, dos mdicos, quando em verdade
uma questo muito maior com uma srie de temas
correlatos.
IHU On-Line Existe diferena entre segurana e soberania alimentar?
Walter Belik Esta outra discusso sobre o assunto. A definio oficial da segurana alimentar levaria em conta a ideia de soberania
alimentar. Na prtica voc tem duas definies.
Muita gente prefere trabalhar com a ideia de
soberania, que a capacidade de autossuficincia no s nos aspectos quantitativos, mas tambm
culturais e sociais. voc consumir produtos
relacionados sua cultura. promover a produo
sustentvel. Acredito, no entanto, que segurana
alimentar um conceito amplo o suficiente, e j
daria conta da soberania. Mesmo porque h uma
discusso sobre soberania relativa a qu? A um
pas? Uma regio? Uma comunidade? Como se
trata dessas questes? Imaginar que as
comunidades tm que ser autossuficientes dar
um passo atrs no progresso, pensando que estas
devem se isolar e produzir para elas mesmas.
Existe uma relao, existe a possibilidade de troca
que muito positiva. Voc no pode sobrepor uma cultura outra, como se fazia no passado. No
Brasil, por exemplo, para resolver o problema da
fome, impuseram um padro de consumo baseado
no trigo; esta cultura acabou se consolidando no
pas, mas era um cultivo imposto. Ou, ento,
resolver o problema da frica atravs de doaes
de carne. No por a. Olhar o lado social da
segurana alimentar tem tudo a ver com a
soberania.
IHU On-Line Existem estgios diferentes de insegurana alimentar?
Walter Belik Os dados de subnutrio so medidas diretas. Ento, no recai nenhuma dvida
sobre eles. Existe uma tabela antropomtrica e as
pessoas que tm ndice de Massa Corporal - IMC
inferior a 17 esto subnutridas. Mas existem
medidas indiretas, e hoje, cada vez mais, levam-se
em conta os dados subjetivos da segurana
alimentar. Afinal, uma pessoa pode estar com o
IMC dentro dos padres e ao mesmo tempo ter
uma percepo negativa em relao sua
segurana alimentar. Ento, os indicadores
antropomtricos de uma pessoa que se alimenta de
junk food podem estar dentro do parmetro, mas
ela no est em segurana. Do mesmo modo,
algum que pode estar desempregado talvez tenha
os ndices dentro do parmetro, mas no est em
uma situao estvel. uma percepo de
insegurana alimentar. Assim, duas pessoas na
mesma condio social podem ter perspectivas
diferentes sobre sua segurana.
O IBGE tem pesquisado esta situao. Existem
trs nveis de insegurana: grave, moderado e leve.
O grave caiu muito, e os outros dois um pouco
menos. De qualquer forma, o nmero em geral se
reduziu. Todos os questionamentos que ns temos
mostram que no existe uma correlao direta
entre pobreza e a percepo de insegurana
alimentar. Tem gente pobre que tem uma
percepo boa, e gente rica que pode ter uma
percepo ruim. Hoje difcil algum morrer de
fome no Brasil, afinal, se recebe bolsa famlia, tem
o banco de alimentos, seu filho recebe merenda na
escola...
IHU On-Line - Qual sua avaliao sobre as
polticas pblicas adotadas pelo Brasil nos ltimos
anos para ampliar o direito alimentao?
Walter Belik Ainda estamos tentando definir uma matriz de polticas que possa garantir o pleno
direito humano alimentao. Penso que no
existe uma poltica s que d conta disso. Pelas
estimativas do Ministrio, no Cadastro nico, ns
teramos em torno de 20 milhes de famlias em
situao de vulnerabilidade. O Bolsa Famlia
atende 14 milhes. Muitos acreditam que o Bolsa
Famlia uma resposta que o governo estaria
dando em contrapartida ao direito humano
alimentao. Penso que no, afinal, ele no diz
respeito a alimento, uma transferncia de renda.
preciso compor esta matriz e garantir totalmente
este direito.
O Brasil certamente avanou muito e se destaca
como case internacional em termos de poltica de
CADERNOS IHU EM FORMAO
combate fome. Ns conseguimos reduzir a
desnutrio crnica de uma forma espetacular,
assim como a insegurana alimentar, mas existem
outras coisas que seriam complementares.
IHU On-Line - O que falta ao pas para ir alm
das metas do objetivo do milnio e levar o acesso
alimentao para um maior nmero de pessoas?
Walter Belik Vamos comear pelo lado mais fcil. Ns avanamos bastante em termos de
polticas federativas, mas nada pelo lado judicirio.
Ns falamos em direito humano alimentao,
mas quem o juiz que julga estes casos? Existe
alguma vara que trabalha com esta questo? Est
no cdigo civil ou penal alguma regulamentao
com relao a isso? No. Este um problema
srio. No Brasil, muitas vezes, acredita-se que ao
fazer uma coisa todo o resto est resolvido, mas
no. Houve a emenda constitucional da PEC 47,
que inclui o alimento nos direitos sociais, mas o
sistema judicirio no est preparado para isso. Se
algum morrer de fome no Brasil, eu fao um
Boletim de Ocorrncia? Como isso? A
alimentao est no artigo 6 da Constituio, mas
no tem estatuto jurdico. Ela est em conjunto
com outros direitos sociais, como o Direito
Educao. Se eu tenho uma criana e a escola no
tem vaga, eu vou ao Ministrio Pblico, denuncio a
escola e abro um processo contra o prefeito. Com
alimentao eu no consigo fazer isso. Se algum
passa fome, qual o procedimento?
Do lado do executivo, temos vrios programas
que so responsabilidade de outros entes
federativos. A Unio tem feito muitos esforos
para implementar polticas de alimentao no
Brasil, mas os outros entes da Federao, no.
Haja vista o caso da merenda escolar. A merenda
um repasse que o governo federal faz s
prefeituras. Sobre esse repasse, cabe prefeitura
dobrar a quantia, mas elas no fazem isso e nem so punidas por no fazer.
A legislao avanada. A sociedade civil
trabalhou bem e, atravs das conferncias de
segurana alimentar, fez uma abordagem correta
que contemple as minorias, os diversos setores,
enfim. Com relao legislao est tudo bem. No
entanto, temos um judicirio que no se mexe. A
Controladoria Geral da Unio CGU controla as aes do governo federal, mas sobre estados e
municpios no h controle nenhum. Deveria
haver, afinal uma lei orgnica. Temos que sair do
nvel federal e atingir nveis de aplicao das
polticas.
A partir de 2006 foi implantado o Sistema
Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional Sisan, que seria anlogo ao que o SUS para a
sade. No entanto, em So Paulo, pelo menos, ele
no andou nada. uma responsabilidade
compartida entre os trs entes federados, mas
governos e municpios no esto cumprindo seu
papel. E isso seria muito importante. Minha
avaliao que ns andamos a passo de gigante,
mas ainda temos muito o que fazer.
IHU On-Line - Se a fome resultado da m
distribuio dos alimentos, e no de uma produo
insuficiente que atenda a demanda mundial, por
que ainda no conseguimos implementar medidas
eficazes que contemplem o direito alimentao e
nutrio?
Walter Belik Porque o mundo no um sistema de vasos comunicantes. Se est sobrando
alimento em uma parte do mundo, no
necessariamente este alimento vai chegar a quem
tem fome. Eu diria ainda que muito pelo
contrrio, normalmente esse alimento que est
sobrando jogado fora. Temos, afinal, estimativas
alarmantes em relao ao desperdcio. Esse
assunto muito importante, e foi analisado
tambm na poca da formao do Sistema
Mundial de Alimentos, que deu origem a FAO.
Havia uma proposta colocada por alguns pases
que previam a criao de uma espcie de banco
mundial de alimentos. Ento, assim como se tem o
FMI, que fiscaliza os fluxos e a sade financeira
dos pases, haveria uma espcie de organismo
multinacional que deveria cuidar desta
movimentao de estoques, cuidar de suprimentos,
permitir que os preos no variassem tanto... Ele
teria funo de interveno no mercado. O que
aconteceu foi que o Sistema acabou se
transformando na FAO, que muito importante,
mas que apenas normativa. A FAO orienta, faz
levantamentos de safra, promove informaes de
assistncia tcnica, difuso de tecnologia, etc., mas
no um mecanismo de interveno direta nos
mercados. Mais tarde, foi criado o PMA, o
Programa Mundial de Alimentos. No entanto, este
funcionou durante muitos anos como um brao
dos Estados Unidos e da Europa, que
descarregavam seus recipientes de alimentos de
forma a dar sustentao ao preo. Assim, ao invs
de soltarem os produtos no mercado, baixando o
preo, faziam doao para o PMA. Hoje essa
poltica mudou, ainda que os EUA sejam o
principal financiador do PMA que ainda est em busca de um papel. Talvez isso que voc
perguntou seja este papel: a organizao dos fluxos
para abastecimento em nvel mundial.
IHU On-Line - Que iniciativas de cooperao
internacional contribuem para a ampliao do
acesso alimentao?
Walter Belik Esse tambm um tema controverso. Em minha opinio, penso que a
Organizao Mundial do Comrcio OMC
25
poderia fazer este papel. E faz, de certa forma, este
papel. Barreiras comerciais s prejudicam os
pobres. Existe uma parte do movimento de
trabalhadores rurais que defende a necessidade de
barreiras como forma de proteger a sua produo.
Eu vejo outras formas de proteger sua produo,
pois as barreiras servem para que produtores
europeus, principalmente, garantam sua reserva de
mercado. Penso, ento, que isso deveria ser
aperfeioado. Movimentos de proibir a exportao
da carne ou do frango brasileiros so barreiras
extraeconmicas que se inventa para proteger
determinados mercados. E o pblico interno paga
mais caro por isso.
Eu no sou liberal ou neoliberal a ponto de
pensar que no deve ter barreira nenhuma. Tem
que ter, lgico, pois existem crises alimentares
em que voc deve estabelecer determinadas
protees. Por exemplo, quando houve, em 2008,
uma alta generalizada no preo dos alimentos,
muitos pases colocaram barreiras proibindo a
exportao dos seus alimentos, no sentido de que
o pblico interno ficaria desabastecido. Penso que
estas so solues positivas, como medidas
emergenciais a serem tomadas. Agora, o que
precisa ter um equilbrio. Se houvesse equilbrio,
muito provavelmente o alimento circularia de
forma mais livre no mundo. Seria possvel baixar
preos, ou permitir que organizaes de
produtores participassem dos mercados. Hoje
quem participa dos mercados so as tradings,
porque to complexo, que uma cooperativa no
Rio Grande do Sul no consegue fazer isso. So
mecanismos que permitem equilibrar um pouco o
jogo nesse campo.
CADERNOS IHU EM FORMAO
Um sistema alimentar que produz famintos e obesos
Entrevista especial com Esther Vivas
O problema da fome tem a ver com a falta de democracia. Temos alimentos suficientes no
mundo, mas no h acesso a eles para todas as
pessoas, pondera a ativista Esther Vivas. Por: Luciano Gallas / Traduo: Andr Langer
"O problema, hoje, quando falamos de
alimentao, no tem a ver somente com a fome,
mas tambm com a m nutrio. Porque vivemos
num mundo de famintos, mas tambm de obesos.
O sistema alimentar atual no satisfaz corretamente
as necessidades de comer das pessoas. um
sistema que produz simultaneamente pessoas que
passam fome e pessoas que so obesas, fruto
tambm de uma m alimentao. E este paradoxo
de viver num mundo de famintos e de obesos
mostra como o sistema alimentar atual no satisfaz
as necessidades alimentares das pessoas.
Fundamentalmente, o que o move a lgica do
capital, do dinheiro, do benefcio econmico",
afirma a ativista espanhola Esther Vivas.
Nesta entrevista, concedida por telefone IHU
On-Line, Esther Vivas enfatiza que o problema da
fome , fundamentalmente, poltico. Segundo ela,
apesar de produzirmos uma quantidade de
alimentos suficiente para alimentar uma populao
adicional de mais 5 bilhes de pessoas no mundo,
temos hoje um bilho de pessoas passando fome
entre os 7 bilhes de habitantes do planeta ou seja, um a cada sete habitantes passa fome. H um problema de democracia no sistema agrcola e
alimentar. A resposta pergunta de por que h
hoje fome num mundo de abundncia de
alimentos, a encontramos quando analisamos
quem determina as polticas agrcolas alimentares,
quem sai ganhando com este modelo. O atual
sistema agroalimentar est pensado basicamente
para que umas poucas empresas ganhem dinheiro,
mesmo que para isso muitas pessoas tenham que
passar fome, frisa. A ativista lembra que a chamada revoluo
verde resultou na privatizao da agricultura, j que
os insumos agrcolas (todos aqueles elementos,
entre bens e servios, necessrios para a produo
de alimentos) so controlados por poucas
empresas. Em consequncia, a capacidade de
decidir sobre o que e de que forma plantar, que
antes era exercida pelo agricultor, agora retida
pela indstria alimentar. Atualmente, no sabemos o que comemos, no sabemos o que est
por trs do que consumimos. Alimentamo-nos
com produtos quilomtricos, que vm do outro
lado do mundo. Perdemos a capacidade de decidir
sobre aquilo que levamos boca, adverte, ressaltando que essas polticas resultaram na perda
da diversidade agrcola e alimentar e em uma
sociedade que contrai doenas a partir daquilo que
ingere.
Esther Vivas ativista poltica e social,
posicionando-se a favor da soberania alimentar e
do consumo crtico. Participou dos movimentos
altermundialistas, em vrias edies do Frum
Social Mundial e nas campanhas contra as
mudanas climticas. autora de diversos livros,
entre os quais Resistencias globales. De Seattle a la
crisis de Wall Street (Madrid: Editorial Popular,
2009, com JM Antentas), Del campo al plato
(Barcelona: Icaria Editorial, 2009, com X.
Montagut), En pie contra la deuda externa
(Barcelona: El Viejo Topo, 2008) e Super-
mercados, no gracias (Barcelona: Icaria Editorial,
2007, com X. Montagut).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quando falamos de fome, a
que estamos nos referindo exatamente? Por que
ainda h fome no mundo?
Esther Vivas - Atualmente, vemos que o
problema da fome um problema poltico. Dados
do ex-relator especial das Naes Unidas sobre
temas da fome, Jean Ziegler , indicam que, no
mundo, produzem-se alimentos que poderiam dar
de comer a 12 bilhes de pessoas. Somos
atualmente 7 bilhes de pessoas no mundo.
Apesar desta abundncia em que vivemos, uma de
cada sete pessoas passa fome. O problema , em
consequncia, a existncia de fome num mundo de
abundncia. O problema da fome tem a ver com a
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falta de democracia. Temos alimentos suficientes
no mundo, mas no h acesso a eles para todas as
pessoas. H um problema de democracia no
sistema agrcola e alimentar. A resposta pergunta
de por que h hoje fome num mundo de
abundncia de alimentos a encontramos quando
analisamos quem determina as polticas agrcolas
alimentares, quem sai ganhando com este modelo.
O atual sistema agroalimentar est pensado
basicamente para que umas poucas empresas
ganhem dinheiro, mesmo que para isso muitas
pessoas tenham que passar fome.
IHU On-Line - A fome afeta todo o planeta ou
regies especficas?
Esther Vivas - A fome afeta hoje todo o
planeta. Ainda que, evidentemente, as situaes
mais severas da fome ocorram principalmente em
pases do Sul e em territrios como o chifre da
frica [nordeste africano] ou a Amrica Latina temos visto fomes peridicas no Haiti. Mas, alm
de ocorrer nos pases do Sul, a fome est presente
tambm em pases ocidentais. Atualmente, no
Estado espanhol, calcula-se que mais de um
milho de pessoas passem fome. Entretanto, o
problema, hoje, quando falamos de alimentao,
no tem a ver somente com a fome, mas tambm
com a m nutrio. Porque vivemos num mundo
de famintos, mas tambm de obesos. O sistema
alimentar atual no satisfaz corretamente as
necessidades de comer das pessoas. um sistema
que produz simultaneamente pessoas que passam
fome e pessoas que so obesas, fruto tambm de
uma m alimentao. E este paradoxo de viver
num mundo de famintos e de obesos mostra como
o sistema alimentar atual no satisfaz as
necessidades alimentares das pessoas.
Fundamentalmente, o que o move a lgica do
capital, do dinheiro, do benefcio econmico.
IHU On-Line - O sistema capitalista gera
riqueza a partir da desigualdade nas sociedades
humanas e do desequilbrio na relao entre o
homem e a natureza. A fome inerente ao
funcionamento do capitalismo?
Esther Vivas - Fizeram-nos crer que as pessoas
compartilham os valores inerentes ao sistema
capitalista. Quando nos falam da natureza, nos
dizem que na natureza o que impera a lei da
selva, a lei da competio. Na realidade, quando
olhamos a natureza, vemos que o que impera a
lei da cooperao. Querem nos fazer crer que a
pessoa e a natureza por si mesmas tm os valores
do capitalismo, os valores da competio, do
individualismo. Mas, na realidade, no assim.
Hoje, entre as diferentes crises mltiplas que
afetam o sistema atual, uma crise importante a
crise dos valores. Entendemos que preciso apelar
para outras relaes entre as pessoas, para outras
relaes com a natureza, para fazer frente s
relaes antagnicas impostas pelo sistema
capitalista, relaes antagnicas ao individualismo,
competio, busca do benefcio acima de tudo.
Temos que romper com esta lgica do capitalismo
que nos impem e apelar para outra lgica, a lgica
da cooperao, da solidariedade, dos bens
comuns. Est
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