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AMBIENTE RURAL E DIVERSIDADE CULTURAL

EM MINAS GERAIS

Vitor Vieira Vasconcelos

Doutorando em Geologia pela Universidade Federal de Ouro Preto

Consultor Legislativo de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Assembleia

Legislativa de Minas Gerais

Belo Horizonte, Minas Gerais, Julho de 2009

Quando compramos nossos alimentos no supermercado, assim como quando

vestimos nossas roupas no dia-a-dia, nem sempre costumamos refazer o caminho que

estes produtos percorreram para chegar até nós, e menos ainda sobre o lugar onde se dá

a produção inicial da matéria que o constitui. Se nos predispusermos a percorrer esses

elos, chegaremos, por fim, às várias regiões agropecuárias, onde agricultores e

pecuaristas se empenham para extrair da terra a base que sustenta toda a população

humana, ou seja, seus alimentos e toda uma sorte de matérias-primas.

Esse é o convite que esta nota faz ao leitor, empreendendo esta viagem pelo

território mineiro e descobrindo como se dá essa importante relação entre o homem e a

natureza, a que denominamos agropecuária. O que se pretende, como logo se verá, é

apresentar Minas Gerais como uma grande pintura, onde cada região possui seus

matizes e arranjos especiais, contribuindo para a riqueza do arranjo final. Mais do que

isso, vê-se não se tratar de uma obra pronta, mas sim do trabalho de um pintor deveras

inquieto, onde novos padrões e paisagens tomam, aos poucos, o lugar de antigas

disposições, em busca de atender aos ensejos de seu povo. Comecemos, pois, dos

grandes contrastes, para que se tenha idéia da diversidade que nos espera.

A título ilustrativo, imaginemos Tonho, habitante do Vale do Jequitinhonha, nos

ermos do Nordeste de Minas Gerais. Sob o sol forte, labuta na plantação de cana, à

baixada do ribeirão, intercalando a entoação de cantigas tradicionais e orações para São

Pedro, já pedindo pela água dos céus que inicia a escassear. Ao fim da tarde, recolhe um

gado que cria à solta nos chapadões e que, em breve, se tornará carne seca. Com a

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cachaça do alambique e a sobra da carne, já dá para trocar e vender algo nos vilarejos,

como o que há de se agüentar a estiagem que se anuncia. Ainda mais porque é a

alternativa derradeira, única esperança de sobrevivência, como sempre foi e, se Deus

permitir, haverá de ser.

Bem diferente é a situação de Márcio. Da janela do escritório em sua casa,

observa as extensas plantações de soja, que se perdem no horizonte, recebendo a

interminável chuva dos pivôs de irrigação. No computador à sua frente, múltiplas

janelas se sobrepõem, informando dados de cotações financeiras internacionais,

previsões climáticas e boletins especializados. Todavia, o momento de contemplação é

curto, pois o alarme do relógio relembra dos compromissos com outros produtores, que

se organizam para tentar novamente renegociar as dívidas com o governo. Por um breve

instante, enquanto disca um número no telefone, perpassa sua mente a recente notícia de

uma praga que se aproxima, e que vem lhe tirando o sono nos últimos dias.

Os dois personagens apresentados são exemplos emblemáticos de duas situações

bastante díspares, mas que coexistem em nosso território. A história de Tonho é vivida,

de modo semelhante, por pequenos produtores familiares tradicionais, mormente no

Nordeste de Minas Gerais, mas também dispersos por todo o restante do estado.

Utilizando-se de métodos arcaicos de produção e, também, de um conhecimento e

cultura passados de pais para filhos, esses núcleos familiares vivem, ainda, afastados

das inovações e benesses da sociedade moderna e formam verdadeiros bolsões de

pobreza. Marginalizadas historicamente, regiões como o Vale do Jequitinhonha

continuam fora do alcance de fluxos de modernização que se estenderam por outras

regiões do país. Embora tenham importância produtiva local, é um grande desafio

contornar o atraso produtivo dessas regiões, em relação às áreas mais desenvolvidas de

Minas Gerais.

Sem dúvida, trata-se de uma circunstância conjuntural bem diferente das áreas

de frente agrícola tecnológica do Triângulo e Noroeste de Minas Gerais, ilustradas com

a situação vivenciada pelo agricultor Márcio. Inseridos em um mercado competitivo de

commodities agrícolas, tais agricultores necessitam estar sempre munidos de

tecnologias de produção de ponta, de modo a manter a viabilidade econômica dentro das

cada vez mais estreitas margens de lucratividade. Tão estreitas que, conjugadas aos altos

riscos inerentes à atividade agropecuária, assim como aos investimentos vultosos em

maquinaria e insumos, só tornam esse negócio atrativo quando é exercido em grandes

escalas de extensão e com um aproveitamento máximo dos recursos naturais

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disponíveis. Essa forma de produção resultante tem levado a uma forte pressão sobre os

ecossistemas nativos que ainda restam nessas regiões, assim como em um aumento

abrupto no uso de recursos hídricos com fins de irrigação.

Mas a diversidade do quadro paisagístico da agropecuária mineira apresenta

muitas outras faces. A visão apresentada por este texto remanesceria incompleta caso

não abarcasse, por alto, que seja, as circunstâncias peculiares do Norte, Centro e Sul de

Minas Gerais. Transitando entre as tintas do moderno e do tradicional, do micro e do

grande, do familiar e do empresarial, cada um desses lugares mostrará novos retratos

tomados na ocupação agropecuária.

A região Norte de Minas Gerais se caracteriza por grandes propriedades dos

tradicionais “coronéis”, onde predomina há muitas décadas a pecuária extensiva. O

brilho e o status dos grandes fazendeiros, característica das antigas sociedades de matriz

rural, já reluz com bem menos esplendor, em uma sociedade e cultura cada vez mais

centralizadas nos pólos urbanos. Ademais, as limitações climáticas do Norte mineiro, na

transição para o semi-árido, se impuseram como barreira para a modernização nos

moldes da pecuária intensiva tecnológica moderna, permitindo apenas algumas

alterações, tais como a expansão das pastagens plantadas e a melhoria dos tratos

veterinários. Pontilhando dentro dessas extensas propriedades, também se encontram

posseiros e meeiros, que lá vivem há várias gerações, e que completam esse cenário, na

luta pelo reconhecimento de suas áreas, o que ocasiona conflitos com os grandes

proprietários.

Ao Sul de nosso estado, fatores naturais e históricos conformaram uma situação

antagônica à da região Norte. Em uma paisagem de clima ameno e regular, assentou-se

uma configuração fundiária marcada principalmente por pequenas propriedades. Sob a

influência modernizadora de São Paulo e do Sul do País, esses produtores conseguiram

acompanhar o desenvolvimento tecnológico e gerencial nos setores em que se

especializaram, com maior destaque para o café, a pecuária leiteira e as frutas de clima

temperado. Todavia, nos anos mais recentes, a competitividade do agro-negócio,

atrelada à já comentada retração da margem de lucro, têm dificultado a viabilidade do

negócio rural de pequena escala e, dessarte, levando a uma crescente concentração

fundiária e produtiva. São tendências que se fazem sentir tanto na agricultura quanto na

criação de animais, e que ameaçam uma re-comformação da estrutura produtiva rural.

Por fim, vejamos a situação do personagem José, horticultor típico da região

central de Minas. Nas proximidades da região metropolitana de Belo Horizonte, ele e

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sua família cultivam hortaliças e legumes em uma pequena propriedade que não é suas,

mas que há anos exploram, em troca de tomarem conta (como dizem) do terreno para o

proprietário. O trabalho é árduo, mas a garantia do mercado comprador e a facilidade da

proximidade dos centros urbanos oferecem muitas vantagens, comparado às áreas rurais

mais longínquas. O difícil é conseguir atender as vontades de seus filhos, que por meio

da televisão e dos amigos, passam a desejar cada vez mais as novidades e os confortos

que vêm das cidades, e que um agricultor possui dificuldades para acompanhar. Na

busca de satisfazer, na medida do possível, a demanda de sua família, José se vê

impulsionado a adotar práticas que vão além do que a lei permite, estendendo as faixas

de sua cultura até as margens dos rios, e utilizando de altas doses de agrotóxicos para

assegurar sua produção. “Também”, pensa, “se até hoje nunca veio ninguém aqui

fiscalizar, não é agora que vou me preocupar com isso”.

Eis alguns cenários do mundo agropecuário mineiro que, pelas limitações deste

texto, são apenas esboços emblemáticos da realidade rural a que se propôs demonstrar.

Haveria muito mais a se discorrer, desde os acampamentos e assentamentos de reforma

agrária, a silvicultura, os empregados temporários, os avicultores e suinocultores, dentre

vários grupos que compõem essa extensa paisagem produtiva. O mais importante, que

se procurou expor neste breve panorama, é a existência de variadas realidade

econômicas e culturais pelas quais passam os produtores rurais do Estado, o que

implicará diversas formas de se relacionar com o solo, com os demais recursos naturais

e, enfim, com a Natureza como um todo.

Estratégias que visem a um desenvolvimento sustentável na agropecuária devem

levar em conta essa diversidade do cenário rural mineiro. Pois, a cada região, se

afiguram oportunidades, dificuldades e mesmo limitações em virtude da situação dos

produtores rurais locais. O planejamento do progresso do Estado, competência do poder

público em articulação com a sociedade, deve procurar conciliar, de forma harmoniosa,

as demandas do consumo urbano, a melhoria de vida da população rural e a conservação

dos recursos naturais. Só assim poderemos transformar este quadro mineiro em uma

grandiosa obra de arte.