O golpe de Estado judiciário
(O Supremo Tribunal Federal brasileiro após a Constituição de 1988)
Sérgio Sérvulo da Cunha
1. O controle difuso de constitucionalidade
Ao dispor sobre o poder judiciário, a Constituição norte-
americana criou uma “suprema Corte”, à qual conferiu competência para: a)
julgar originariamente ações em que seja parte qualquer Estado, embaixador,
cônsul e agente público, e b) julgar recursos contra decisões proferidas, por
tribunais federais ou estaduais, em qualquer tipo de causa, desde que
envolvendo questões federais, com as exceções apontadas em lei. 1 De modo
que, não se tratando de causas de sua competência exclusiva e originária, a
Suprema Corte funciona como terceira, e, em alguns casos, como quarta
instância.
Evitando que a Corte seja obrigada a cuidar de mais
processos do que possa, leis posteriores lhe permitiram julgar, dentre os casos
de sua competência, apenas aqueles que, em procedimento preliminar (em
geral, um “writ of certiorari”), se demonstrem suficientemente importantes.
1 A competência está assim discriminada no art. III, seção 2, da Constituição estadunidense: “.....all cases
affecting Ambassadors, other public Ministers and Consuls, and those in which a State shall be Party”. E:
“In all the other Cases before mentioned, the Supreme Court shall have appellate Jurisdiction, both as to
Law and Fact, with such Exceptions, and under such Regulations as the Congress shall make.” As exceções
e regulações efetuadas pelo Congresso, criando restrições à amplitude dessa competência, acham-se
compendiadas no United States Code, 28 §§ 1251-1257 e 18 § 3731.
Assim, adotaram os Estados Unidos um sistema difuso (ou
concreto) de controle de constitucionalidade (a que tem acesso qualquer
litigante), mas com uma barreira ou bloqueio que dificulta o acesso à Suprema
Corte, conforme o juízo discricionário desta. Logo, o controle de
constitucionalidade, por ela exercido, não se construiu como direito subjetivo
da parte, nem como direito da cidadania, mas como direito objetivo do Estado.
Ao contrário dos Estados Unidos, muitos países não
admitem o controle difuso, exercido por provocação de qualquer pessoa,
perante qualquer Juízo, na defesa de seu direito subjetivo. Conhecem apenas
um tipo de controle que, embora sendo concreto, é concentrado de preferência
em somente um tribunal; é o que acontece na Espanha com o recurso de
amparo (v. Constituição espanhola, arts. 161-I-b e 162-I-b) e na Alemanha
com a Verfassungsbeschwerde (v. lei fundamental da Alemanha, art. 93-1-41);
ou então um outro tipo de controle, que embora concentrado de preferência
em somente um tribunal, é abstrato (isto é, não versa sobre um fato, mas sobre
a constitucionalidade de uma lei em tese).
2. O controle abstrato de constitucionalidade
A origem do controle abstrato encontra-se na Constituição
austríaca de 1920 (em cuja elaboração o jurista Hans Kelsen teve função
predominante); seu art. 140 trazia uma importante inovação, instituindo um
modelo de corte que, adotado posteriormente por várias Constituições
europeias, passou a ser conhecido como “corte constitucional”: “1. O Alto-
Tribunal Constitucional aprecia a inconstitucionalidade das leis dos Estados-
membros a requerimento do governo federal, a inconstitucionalidade das leis
federais a requerimento do governo de qualquer Estado-membro e,
oficiosamente, quando se trate de lei que sirva de base à sua decisão [.....].”
No continente europeu a revolução burguesa, que trouxe a
Constituição, não trouxera consigo o controle de constitucionalidade, o qual,
nos Estados Unidos – não nos esqueçamos – foi invenção pretoriana. Não
seria correto atribuir essa omissão unicamente à influência da tradição
francesa, sabidamente refratária ao poder dos juízes. O modelo processual
autoritário, próprio à monarquia absoluta, desde muito obrigava os juízes, em
caso de dúvida sobre a inteligência da lei, a suspender o processo e consultar
um órgão superior. Em sistema processual como esse dificilmente se instalaria
o controle judicial de constitucionalidade, e muito menos o controle difuso de
constitucionalidade, em que o cidadão tem o direito de buscar, junto ao juiz do
seu domicílio (o juiz natural) a correção de atos inconstitucionais da
autoridade.
Após o Congresso de Viena (1815), em que se articulou a
reação monárquica, foram poucas as Constituições liberais que vingaram no
continente europeu. Na verdade, o que vigia sob essa denominação eram
pseudoconstituições, com as quais as dinastias europeias – após as concessões
necessárias para, tendo perdido os anéis, não perderem os dedos – mantinham
a supremacia do princípio monárquico. Eram pseudoconstituições porque não
se preocupavam basicamente com o controle dos atos do governo, senão com
a regulação dos poderes e suas relações. Merecem por isso o nome de
Constituições regimentais, verdadeiros regimentos que eram. 2
Nesse modelo se incluía a carta austríaca de 1867, que
criou um Tribunal do Império; segundo a lei de organização e funcionamento
desse Reichsgericht, editada em abril de 1869, competia-lhe julgar conflitos de
órgãos provinciais entre si e com as autoridades imperiais, assim como
recursos dos súditos por violações de seus direitos políticos garantidos
constitucionalmente, faltando-lhe porém competência para anular qualquer
disposição legal. 3 Essa era a situação vigente até o fim da primeira guerra em
1918 e a edição das leis constitucionais provisórias que antecederam a
Constituição de 1920. Lei editada em 25 de janeiro de 1919, sem mudar-lhe a
competência, deu ao Tribunal Imperial o nome de Corte Constitucional. 4
Antes de entrar em vigor a Constituição de 1920,
republicana e federativa, os tribunais austríacos só podiam controlar a
constitucionalidade das leis no tocante à sua adequada publicação, vale dizer,
tendo em vista sua existência (mas jamais sua validade em face do texto
constitucional). “Recebendo a herança da velha Áustria”, como sublinha,
2 Exemplo de Constituição regimental é a carta brasileira de 1824: a fim de não se submeter a uma
Constituição liberal assemelhada à de Cádis (1812) ou à Constituição portuguesa de 1822, D. Pedro I
dissolveu a Assembleia Constituinte e organizou um regime que preservava o princípio monárquico
(principalmente com a supremacia do poder moderador) e entregava ao legislativo a competência para
interpretar as leis.
3 Essa exposição sobre a carta austríaca de 1867 resume o que é exposto por Charles Eisenmann (La justice
constitutionnelle et la Haute Cour Constitutionelle d’Autriche, Paris, Librairie Générale de Droit & de
Jurisprudence, 1928). 4 Atendendo assim, parcialmente, ao pleito de G. Jellinek, que em 1885, no opúsculo intitulado “Uma alta
corte constitucional para a Áustria”, havia sugerido o alargamento dos poderes do Tribunal Imperial e sua
transformação em verdadeira corte constitucional (id., pp. 156 e 170).
Kelsen “encontrou-se com os dois tribunais (o Tribunal Administrativo e o
Tribunal Imperial) já prontos, e no empenho por conservar instituições
antigas e testadas” 5 manteve-os, embora entregando ao antigo Reichsgericht
(agora batizado como Verfassungsgerichtshof) o monopólio do controle de
constitucionalidade. O art. 89 da nova Constituição negou expressamente, aos
tribunais, o poder de “apreciar a validade das leis regularmente publicadas”,
e os arts. 137-145 desenharam a competência da Corte Constitucional.
Para justificar a criação de uma corte constitucional – único
órgão competente para nulificar atos inconstitucionais – Kelsen indicava a
jurisdição constitucional como “um elemento do sistema de medidas técnicas
que têm por fim garantir o exercício regular das funções estatais,”
ressaltando que “a função política da Constituição é estabelecer limites
jurídicos ao exercício do poder” e que “uma Constituição em que falte a
garantia de anulabilidade dos atos inconstitucionais não é plenamente
obrigatória, no sentido técnico”. 6
Deixava contudo de mencionar o controle difuso, como se
o sistema concentrado fosse o único cabível para o controle de
constitucionalidade. O que nos leva a pensar que a instituição do controle de
constitucionalidade, no autoritário contexto continental, só seria possível
dentro dessa tradição, como ressaltaria Loewenstein ao referir a extrema
dificuldade de rompê-la: “deve-se considerar que os costumes enraizados em
diferentes sistemas jurídicos e a tradição existente impedem que surja e se
implante o controle judicial”.
É essencial, portanto, para entender o sistema concentrado,
perceber que ele surge num contexto autoritário, como fica claro ao se ler
“Quem deve ser o guardião da Constituição?” 7 O que é bem diverso da
“judicial review”, nascida numa ambiência libertária e democrática. A solução
5 Hans Kelsen, Verfassungs-und Verwaltungsgerichtsbarkeit im Dienste des Bundestaates, nach der neuen
österreichischen Bundesverfassung vom I Oktober 1920, citado conforme a tradução de Alexandre Krug para
a edição brasileira: A jurisdição constitucional e administrativa a serviço do Estado federativo segundo a nova
Constituição federal austríaca de 1° de outubro de 1920, in Jurisdição constitucional (São Paulo, Martins
Fontes, 2003, p. 17). 6 Hans Kelsen. Wesen und Entwicklung der Staatsgerichtsbarkeit, citado conforme tradução do francês por
Maria Ermantina Galvão: A garantia jurisdicional da Constituição, ib., pp. 121s.). 7 Hans Kelsen, Wer soll der Hüter der Verfassung sein?, in Die Justiz, 1930-1931, Heft 11-12, vol. VI, pp.
576-628, cf. tradução de Alexandre Krug: Quem deve ser o guardião da Constituição, ib., p. 237.
de Kelsen, progressista dentro da tradição austríaca, evidencia-se involutiva
quando comparada àquela. 8
3. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro
Já o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade
espelhou-se de início, em parte, no sistema norte-americano. Digo “em parte”
em razão de duas diferenças: a) inexistia, no sistema brasileiro, a
discricionariedade de que sempre dispôs, a Suprema Corte norte-americana,
no conhecimento das causas que lhe são submetidas; b) o sistema norte-
americano pertence ao “ common law”, fundando-se portanto nos precedentes
judiciários.
Filiadas à tradição jurídica britânica, as cortes
estadunidenses, ainda que incidente no caso alguma disposição legal, julgam
com base nos precedentes judiciários. Daí que as partes buscam fundamentar
seus argumentos menos na lei do que nas decisões anteriores, proferidas em
casos assemelhados. Já nos sistemas jurídicos românicos, como o brasileiro, a
primeira – e a rigor, a única – fonte do Direito é a lei. Antes dela, como seu
fundamento, vêm apenas a necessidade e a razão. 9
O princípio da legalidade significa que ninguém é obrigado
a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (Constituição
brasileira de 1988, art. 5º-II). Sob o ponto de vista dogmático, é na lei que se
encontra o fundamento dos comportamentos juridicamente exigíveis.
“Lei”, nesse contexto, significa a disposição jurídica
primária, emanada do poder legislativo, de cuja incidência decorrem direitos e
obrigações; mas também pode significar todo o espectro das disposições
8 Anos mais tarde, quando já residia e lecionava nos Estados Unidos, é que o autor da teoria pura do Direito,
ao fazer um estudo comparado das Constituições austríaca e americana, apresentou ligeira apreciação sobre o
“judicial review”. (é negativa, aliás, a apreciação de Kelsen: “a desvantagem desta solução consiste no fato
de que os diferentes órgãos aplicadores da lei podem ter opiniões diferentes com respeito à
constitucionalidade de uma lei, e que portanto um órgão pode aplicar a lei por considerá-la constitucional,
enquanto outro rejeitará sua aplicação com base na sua alegada inconstitucionalidade. A ausência de uma
decisão uniforme sobre a questão da constitucionalidade de uma lei, ou seja, sobre a Constituição estar
sendo violada ou não, é uma grande ameaça à autoridade da própria Constituição.” (Hans Kelsen, A
comparative study of the Austrian and the American Constitution, cit. cf. ed. brasileira: O controle judicial da
constitucionalidade, ib., p. 303). 9 “A fonte de uma norma não é outra coisa que sua razão de validez específica” (Hans Kelsen, La idea del
derecho natural, México, Ed. Nacional, 1974, p. 19).
regulamentares, emanadas de órgãos seja do executivo – tais como decretos –
seja do judiciário, tais como os regimentos dos tribunais. Também não
significa pura e simplesmente o artigo de lei, ou a disposição legal: é a regra
jurídica de comportamento, que se busca no conjunto do ordenamento, mesmo
que aí ela não se encontre literalmente (alguns autores chamam-na de “norma
jurídica individual”).
Pontes de Miranda ensinava: o Direito é mais do que a lei.
Essa diferença é sublinhada na lei fundamental da Alemanha, cujo art. 20.3
afirma: “...os poderes executivo e judicial obedecem à lei e ao Direito”. De
modo que motivos administrativos – mesmo importantes como o elevado
volume de serviço de um tribunal – não podem ser invocados como “ratio
decidendi”.
O que faz, a jurisprudência, é glosar a lei. Nenhum acórdão
ou súmula pode ser invocado como exclusiva razão de decidir, sem que se
aluda criticamente à sua valia e adequação ao caso presente. Ofenderia à
Constituição – notadamente à garantia do seu art. 5º-II – a decisão que se
recusasse a examinar requerimento da parte, sob a alegação de que contraria
jurisprudência, ainda que sumulada. Impedir que se divirja da jurisprudência
significa passá-la à frente da lei, ou conceder-lhe a mesma hierarquia política
que se concede à lei. Jurisprudência é argumento de autoridade, e a virtude do
Direito consiste em haver posto, a razão, à frente da autoridade.
Esses princípios e regras, que sempre se encontraram à
base do sistema judiciário brasileiro, foram em grande parte erigidos como
garantias fundamentais.
A Constituição provisória da República (dec. n° 510, de
22.6.1890), em seu art. 90, incumbia aos juízes ou tribunais federais decidir
“as causas em que alguma das partes estribar a ação, ou a defesa, em
disposição da Constituição Federal”. O sistema se completava com as normas
que previam a possibilidade de se interpor recurso extraordinário, como se vê
no § 1° do art. 58: “Das sentenças da justiça dos Estados em última instância,
haverá recurso para o Supremo Tribunal Federal: a) quando se questionar
sobre a validade, ou a aplicabilidade de tratados e leis federais, e a decisão
do tribunal do Estado for contra ela; b) quando se contestar a validade de leis
ou atos dos governos dos Estados em face da Constituição ou das leis federais
e a decisão do Tribunal do Estado considerar válidos os atos, ou leis
impugnados”. 10
A Constituição de 1891, reconhecendo a ampla
competência dos juízes, estabelecia em seu art. 60 que a eles ou aos tribunais
federais cabia julgar: “a) as causas em que alguma das partes fundar a ação,
ou a defesa, em disposição da Constituição Federal; b) todas as causas
propostas contra o governo da União ou fazenda nacional, fundadas em
disposições da Constituição, leis e regulamentos do Poder Executivo, ou em
contratos celebrados com o mesmo governo” Seu art. 59 assegurava em tais
casos recurso ao STF: “Ao Supremo Tribunal Federal compete: .......... II –
julgar, em grau de recurso, as questões resolvidas pelos juízes e tribunais
federais, assim como as de que tratam o presente artigo, § 1°, e o art. 61; III-
rever os processos findos, nos termos do art. 81; e incluía um “§ 1° Das
sentenças das justiças dos Estados, em última instância, haverá recurso para
o Supremo Tribunal Federal: a) quando se questionar sobre a validade, ou a
aplicação de tratados e leis federais, e a decisão do tribunal do Estado for
contra ela; b) quando se contestar a validade de leis ou de atos dos governos
dos Estados em face da Constituição, ou das leis federais, e a decisão do
tribunal do Estado considerar válidos esses atos, ou essas leis impugnadas.”
Consagrava-se portanto, expressamente, a supremacia da
lei magna. E se permitia que o titular de um direito, por ela assegurado, o
pleiteasse perante o juiz do lugar. Essa a essência do chamado “controle
difuso” (ou incidental) de constitucionalidade. Eram seu objeto todos os atos
jurídicos que pudessem conter ofensa à Constituição, praticados seja por
particulares seja pelo governo, inclusive os atos legislativos; quanto a estes,
seu exame era feito incidentalmente (no curso de uma ação em que se
discutiam direitos subjetivos) e não em tese, como viria a acontecer,
posteriormente, no chamado “controle abstrato”.
Ao criar o controle de constitucionalidade, o constituinte
brasileiro de 1891 obviamente inspirou-se no sistema norte-americano, o
primeiro a criar uma Suprema Corte e a admitir esse controle. Mas não seria
correto dizer que, nessa parte, ele copiou a Constituição norte-americana.
Desde o início, foi “sui generis” o sistema brasileiro de controle de
constitucionalidade. Nele, qualquer cidadão podia arguir, no juízo do seu
domicílio, o descumprimento, a seu dano, de disposição constitucional; podia
10
Essa matéria foi disciplinada pelo decreto n° 848, de 11.10.1890 – que organizou a Justiça Federal – no
parágrafo único de seu art. 9°.
recorrer da sentença para um tribunal estadual ou federal; e, por fim, podia
recorrer da decisão definitiva para o Supremo Tribunal Federal (mediante
recurso extraordinário).
Esse sistema se chama “concreto” (porque o controle se faz
tendo-se em vista uma relação jurídica concreta), “incidental” (porque o
controle de constitucionalidade se faz incidentalmente, no curso de um
processo cuja finalidade principal é a efetivação de um direito subjetivo), ou
“difuso” (porque não está concentrado em apenas um órgão do judiciário,
distribuindo-se capilarmente por todos os juízos e tribunais).
As deficiências do sistema decorriam menos de sua fórmula
legal do que das carências sociais supressivas do acesso à justiça; e durante
muitos anos não havia queixas, na Suprema Corte, quanto à carga de trabalho
dos ministros, ou ao volume dos processos dependentes de sua decisão.
Com a Constituição de 1946 o sistema difuso de
constitucionalidade alcançou sua plenitude. Mantida a dualidade de jurisdição,
afirmava-se a competência do Supremo Tribunal Federal para processar e
julgar, em recurso extraordinário, “as causas decididas em única ou última
instância por outros tribunais ou juízes: a) quando a decisão for contrária a
dispositivo desta Constituição ou a letra de tratado ou lei federal; b) quando
se questionar sobre a validade de lei federal em face desta Constituição, e a
decisão recorrida negar aplicação à lei impugnada; c) quando se contestar a
validade de lei ou ato de governo local em face desta Constituição ou de lei
federal, e a decisão recorrida julgar válida a lei ou o ato; d) quando na
decisão recorrida a interpretação da lei federal invocada for diversa da que
lhe haja dado qualquer dos outros tribunais ou o próprio Supremo Tribunal
Federal”.
Além dos já apontados acima, vem-se mostrando
ultimamente, na Suprema Corte brasileira, outro sinal que a distancia da norte-
americana: a introdução do controle abstrato, cujas origens remontam ao ano
de 1954, na vigência da Constituição de 1946.
Em seu art. 7°, ela autorizava o governo federal, em alguns
casos, a intervir nos Estados-membros, mediante representação encaminhada
ao Supremo Tribunal Federal pelo procurador-geral da República (art. 8°,
parágrafo único). Tal representação ficou conhecida como “representação
interventiva”. 11
Na vigência da Constituição de 1946 discutia-se se a
“representação de inconstitucionalidade” era ou não verdadeira ação. Para a
resposta negativa concorriam ao menos duas razões: a primeira, tocante à
natureza de toda representação; 12
a segunda, relativa à natureza da função
jurisdicional. Os ministros Aliomar Baleeiro (RTJ 45/714), Moreira Alves
(RTJ 94/58 e 127/416) e Djaci Falcão (RTJ 94/59) viram a representação de
inconstitucionalidade como um meio excepcionalíssimo ou peculiaríssimo de
controle político, enquanto o ministro Amaral Santos, invocando as leis n°
2.271/1954 e 4.337/1964, enxergava aí verdadeira ação (RTJ 45/706).
Não é possível elidir as circunstâncias políticas que
cenarizavam esse debate: o Brasil estava em plena ditadura, e a oposição
consentida buscava, no judiciário, controlar os atos do governo contrários aos
direitos humanos, às liberdades públicas e à própria ordem excepcional.
Sucede que, enquanto a lei assegurava ao procurador-geral da República o
prazo de noventa dias para provocar o STF quando tivesse havido
“representação da parte interessada”, ele não se entendia obrigado a
encaminhar ou encampar tais representações, que podiam restar inertes em seu
arquivo. Em tal hipótese, a oposição pretendia que o procurador-geral fosse
obrigado a encaminhá-las ao STF, ou então que as representações dos
interessados fossem formuladas diretamente àquela Corte. Essa a origem da
ação direta de inconstitucionalidade, que a Constituição brasileira de 1988
viria a consagrar em seu art. 102-I-a.
11
A representação interventiva já era prevista no art. 34§ 2° da Constituição de 1934. A lei n° 2.271, de 22 de
julho de 1954 (que dispunha sobre a “arguição de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal
Federal”), estendeu, o âmbito dessa representação, a alguns temas considerados extremamente relevantes;
embora a lei n° 4.337, de 1° de junho de 1964, regulando o que designou como “declaração de
inconstitucionalidade”, a tenha reconduzido ao leito da representação interventiva, a EC n° 16, de 26 de
novembro de 1965, deu expressa competência, ao STF, para julgar “a representação contra
inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo
Procurador-Geral da República”.
12
Representação é manifestação com que se cobra da autoridade providência que já deveria ter adotado de
ofício; ou com a qual se dá ciência de um fato à autoridade, para que adote a providência cabível, de ofício. O
direito de representação inclui-se no direito de petição, mas nela só existe “provocatio ad agendum” e não
requerimento. Assim, a autoridade não pode negar-lhe conhecimento, dizendo que nela se omitiu menção à
providência a ser adotada.
Durante a fase final da ditadura, e no subsequente período
de transição democrática, a cidadania insurgia-se contra o monopólio do
procurador-geral da República, como único legitimado ativo à representação
de inconstitucionalidade. A ampliação dessa legitimação era tema recorrente
na imprensa e nos congressos de advogados. 13
Quando se instalou o
Congresso Constituinte de 1987-1988, em meio a um clamor nacional pela
extensão da legitimidade para a representação (ou ação) de
inconstitucionalidade, a exclusiva legitimação do procurador-geral era vista
como parte do “entulho autoritário”.
Por fim, ao discriminar a competência do Supremo Tribunal
Federal, a Constituição de 1988 instituiu a ação direta de inconstitucionalidade : 14
“Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade: I – o
Presidente da República; II – a Mesa do Senado Federal; III – a Mesa da
Câmara dos Deputados; IV – a Mesa de Assembleia Legislativa; V – o
Governador de Estado; VI – o Procurador-Geral da República; VII – o
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII – partido político
com representação no Congresso Nacional; IX – confederação sindical ou
entidade de classe de âmbito nacional”.15
Concentrou-se portanto, no Supremo Tribunal Federal, o
controle abstrato de constitucionalidade. Logo, o sistema brasileiro de controle
de constitucionalidade, que era concreto-difuso (manejado mediante recurso
da parte interessada) com a Constituição de 1988 passou a ser um sistema
misto, que ao lado do controle concreto-difuso admitia também o controle
abstrato-concentrado, incluído na competência originária da Suprema Corte.
13
Vejam-se por exemplo as teses apresentadas à 7a. Conferência Nacional da OAB, em 1978 (Victor Nunes
Leal), à 8a. Conferência, em 1980 (José Ignacio Botelho de Mesquita), à 9
a. Conferência, em 1982 (Luiz
Carlos Valle Nogueira) e ao Congresso Nacional de Advogados Pró-Constituinte, em 1983 (Miguel Reale Jr.).
Em 1986, em Belém, o tema reapresentou-se à XI Conferência Nacional da OAB, de cuja declaração final
constava este parágrafo: “É sugerida a criação de um Tribunal Constitucional composto por juízes eleitos
com mandato certo, aos quais competirá a missão de zelar pelo respeito à Constituição, quer através de
recursos extraordinários que versem matéria constitucional, quer através de ações diretas de
inconstitucionalidade, ou ainda de decisões que ponham cobro às denominadas inconstitucionalidades por
omissão”. 14
O Supremo Tribunal Federal, que abreviava como “ADIN” o nome da ação indireta de
inconstitucionalidade, passou a designá-la como “ADI” a partir da resolução n. 230/2002 (DJU, Seção I,
29.5.2002, p. 1). 15
A redação citada é a original, e não a que recebeu esse artigo após a EC n. 45, de 8.12.2004.
Acreditava-se anteriormente, de modo generalizado, que a
função do judiciário resumia-se a aplicar a lei ao caso concreto, para dirimir
um litígio. Não obstante, as ações declaratórias já sinalizavam ser possível
cindir a lide, requerendo-se, em processo autônomo, a emissão de uma
declaração que, de outra forma, viria embutida na sentença de efeito. Custou
apenas um passo perceber que a declaração de inconstitucionalidade
pronunciada incidentalmente poderia ser proferida em processo autônomo
(quando afigurou-se útil essa possibilidade criou-se o respectivo instrumento,
que a EC n° 16/1965 ampliou e chamou de “representação); e apenas outro
passo para construir-se a ação pública, tendo como objeto a declaração, em
tese, de inconstitucionalidade. O que fôra, a princípio, medida autoritária,
provocação espúria do governo para manipulação do judiciário, evoluiu com a
Constituição de 1988, quando se transformou em ação popular (embora de
legitimação restrita), amplificação do controle concreto de
constitucionalidade.
É importante relembrar também que o Congresso
Constituinte repeliu duas figuras anômalas sublinhadas em conjuntura
autoritária, a saber: a “avocatória” 16
e a “arguição de relevância”. Na
vigência da Ordenação de 1967-1969, esses institutos tinham sido
consagrados pela “emenda constitucional” n. 7, de 13 de abril de 1977,
promulgada pelo general Ernesto Geisel, e que ficara conhecida como
“pacote de abril”. 17
Assim, a partir da Constituição de 1988, o sistema
brasileiro de controle de constitucionalidade sofreu profunda alteração, que
significou importante aperfeiçoamento: construiu-se a partir daí um sistema
misto, que às vantagens do controle difuso somava as do controle abstrato.
Ao STF ficaram reservadas, entre outros processos de sua
competência, duas principais funções: i) “julgar, mediante recurso
extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a
16
Mediante a avocatória entregava-se ao Supremo Tribunal Federal a faculdade de atrair,para seu julgamento,
causas processadas perante quaisquer juízes e tribunais. De um só golpe, feria-se a independência da
magistratura, o princípio do juiz natural e a garantia dos jurisdicionados. O pacote de abril transformava o STF
em tribunal de exceção que, para prevenir “imediato perigo de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou
às finanças públicas”, poderia suspender os efeitos de qualquer decisão judicial proferida no país e avocar o
respectivo processo.
17
Em advertência pessoal amistosa, com a qual corrige texto anterior que escrevi, José Ignacio Botelho de
Mesquita não me deixa esquecer de que a arguição de relevância, antes de se mostrar no pacote de abril, já
estava prevista no regimento interno do STF.
decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a
inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de
governo local contestado em face desta Constituição” (art. 102-III); e,
também, ii) processar e julgar, originariamente, “a ação direta de
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual” (art. 102-I-
a).
Ninguém previu que, apegando-se à segunda função, o
STF, a partir daí, se empenhasse em suprimir a primeira.
4. O recurso extraordinário
No ordenamento jurídico brasileiro, o direito de recorrer se
exerce no âmbito de inafastáveis garantias constitucionais, como o direito de
petição, o direito de acesso à justiça, a ampla defesa e o devido processo legal.
Em seu art. 5º-XXXIV, a Constituição brasileira de 1988
assegura a todos “o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de
direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”. Em consonância com o
inciso XXXIV, e imediatamente em seguida, proclama o inciso XXXV que “a
lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a
direito”; melhor conhecida como “princípio da inafastabilidade do controle
jurisdicional”, “princípio da indeclinabilidade” ou da “inescusabilidade”, essa
regra também impede o juiz de descartar o pedido, deixando-o sem solução.
Seria inócuo o direito de acesso ao judiciário se a autoridade pudesse
simplesmente afastá-lo sem uma providência cabal.
Como já se viu, chamou-se de “extraordinário”, a
princípio, o recurso que poderia em alguns casos ser interposto, para o
Supremo Tribunal Federal, de decisões judiciais definitivas proferidas por
juízes e tribunais federais e pela justiça dos Estados. Esse, reconhecidamente,
é instituto de direito processual constitucional, com o domínio temático
próprio que lhe foi constitucionalmente reservado (RTJ 173/689). Ao julgá-lo,
o STF pode reformar a decisão recorrida, pondo outra em seu lugar. Trata-se,
por isso, de poderoso instrumento, que se inscreve no sistema de controle
difuso e incidental de constitucionalidade.
Sua existência foi assim explicada por Pontes de Miranda:
“A simples apelação, qualquer que seja o nome que se lhe dê, com o exame
do negócio „in facto‟ e „in iure‟, não poderia satisfazer as exigências da
política judiciária da unidade das decisões no tocante à inteligência das leis.
A gravidade do problema cresce de ponto quando, nos Estados federais, há a
dualidade de justiça – justiça local e justiça federal –, ainda que só de última
instância, pois que morreria a contenda nos tribunais locais de apelação ou
de agravo, com as possibilidades de diferente interpretação da Constituição
federal e das leis federais”. 18
Na Constituição de 1934, primeira a mencioná-lo com esse
nome, concebeu-se o recurso extraordinário como instrumento para o controle
das decisões dos tribunais estaduais em face das leis federais, dos tratados
internacionais e da Constituição da República. Por outro lado, na perspectiva
de quem recorre, essa seria a oportunidade de corrigir gritantes injustiças –
principalmente injustiças de fundo político – praticadas sobretudo pelos
judiciários estaduais.
O controle difuso – exercido mediante o recurso
extraordinário – sempre foi visto e apontado como característica marcante do
sistema brasileiro de controle de constitucionalidade. As estatísticas sobre a
natureza da matéria nele discutida e as pessoas nele implicadas mostra que, a
par do mandado de segurança, é o recurso extraordinário a arma utilizada, pela
cidadania, contra os abusos de autoridade, notadamente contra a assim
chamada “indústria da inconstitucionalidade”. Com função própria e
específica, ele não é substituído pela ação direta de inconstitucionalidade, cuja
legitimação, tal como construída pela Constituição de 1988, ficou reservada
em grande parte aos órgãos do próprio governo.
Com a Constituição de 1988 o recurso extraordinário
bipartiu-se; o que havia nele para controle da legalidade acabou transferido
para uma nova Corte, o Superior Tribunal de Justiça (mediante o assim
chamado “recurso especial”); na competência do STF mantiveram-se
principalmente as questões de inconstitucionalidade.
Concebeu-se portanto, para a prestação jurisdicional, um
sistema composto, salvo exceções, por três graus ou instâncias: as duas
primeiras com competência para apreciar tanto a matéria de fato quanto a
matéria de Direito, sendo a primeira monocrática e a segunda colegiada; além
18
Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1946 (Rio de
Janeiro, Henrique Cahen, 1947, vol. II, p. 226).
de uma terceira, também colegiada, com competência para apreciar
exclusivamente matéria de Direito, tendo-se entregado ao Superior Tribunal
de Justiça o controle da legalidade, e ao Supremo Tribunal Federal o controle
da constitucionalidade. Esse não é um modelo aleatório, mas o que se mostrou
mais ajustado às características políticas da nossa unitária federação.
Criado de início para a defesa da União, com o tempo o
recurso extraordinário assumiu o papel de principal meio de controle da
constitucionalidade e afirmação dos direitos da cidadania; essas finalidades
emprestavam-lhe duas perspectivas distintas que muitas vezes, por equívoco,
se consideravam opostas: a que tinha de um lado a Corte Suprema como
tutora do Direito objetivo e, mais especificamente, da Constituição; e a que
tinha de outro lado o recorrente, em defesa do seu direito subjetivo.
Importante meio de defesa da democracia e da cidadania
(tanto quanto o habeas corpus e o mandado de segurança), o recurso
extraordinário alcançou seu apogeu sob a Constituição de 1946. Entretanto, à
medida que se aperfeiçoava sua disciplina, o Supremo Tribunal Federal
restringia seu uso, mediante vários óbices processuais.
Essa é uma longa história, que tendo início possivelmente
em 2 de junho de 1958, com a lei n. 3.396, se inscreve no que se
convencionou designar como a “crise do Supremo Tribunal Federal”, nome
com o qual se passou a aludir ao grande número de processos submetidos ao
julgamento dessa Corte.19
6. A crise do Supremo Tribunal Federal
Enquanto de 1918 a 1934 haviam sido protocolados 1.607
recursos extraordinários, entre 1936 e 1937 esse número subiu para 18.827.
19
Essa designação provém de texto com esse título, de autoria do ministro Filadelfo Azevedo, publicado nos
Arquivos do Ministério da Justiça, vol. 2°, em agosto de 1943 (cf. Miguel Seabra Fagundes, A reforma do
Poder Judiciário e a reestruturação do Supremo Tribunal Federal, Revista Forense 215/5). Outras
informações sobre esse tema encontram-se em Sérgio Sérvulo da Cunha: a) O efeito vinculante e os poderes
do juiz, São Paulo, Saraiva, 1999; b) A arcaica súmula vinculante, in Sérgio Rabello Tamm Renault e
Pierpaolo Bottini, Reforma do Judiciário, São Paulo, Saraiva, 2005, pp. 29/52; ou na Revista Latino-
-Americana de Estudos Constitucionais, n. 5, janeiro/junho de 2005, pp. 475/499.
Foi para atender a essa crescente demanda que, já em 1931,
criaram-se duas turmas dentro do STF, o que se tornou definitivo com a
Constituição de 1934 (art. 73, § 2°). Estudo realizado em 1933 sugeriu: a)
elevar-se para 16 o número de juízes do STF; b) criarem-se “tribunais de
circuito” (tal como nos Estados Unidos) em Recife, Rio de Janeiro e São
Paulo; c) a restauração dos “assentos” vigentes no período colonial; d) a
criação de um “Tribunal de Reclamações”, como já fora proposto na
Constituinte de 1934. 20
Mesmo com a atribuição ao Tribunal Federal de Recursos,
em 1947, da competência para julgar recursos ordinários em causas de
interesse da União, continuava aumentando o volume de processos julgados
anualmente pelo Supremo Tribunal Federal. De fato, a configuração constitucional
do recurso extraordinário transformava o STF em terceira instância, para a
qual, em tese, poderia confluir o desate de grande parte dos litígios em curso
(isso se agravaria, após 1988, na medida em que a lei magna, de instrumento
organizativo do governo, transformou-se em síntese enciclopédica do
ordenamento jurídico).
Passou-se por isso desde cedo, por inspiração do STF, a
criar óbices legais à interposição de recursos extraordinários. Como, por
exemplo, o estabelecido pela já referida lei n. 3.396, de 2 de junho de 1958,
que disciplinou sua interposição no tribunal “a quo” e instituiu uma fase
prévia, em que o próprio tribunal recorrido decide sobre a admissibilidade do
recurso (isto é, sobre a presença das condições para sua interposição). A
maioria dos recursos extraordinários passou a ser bloqueada aí, mediante
despachos de rejeição padronizados, e o STF chega a reclamar severidade dos
tribunais inferiores no desempenho dessa função de bloqueio.
São também óbices eficientes, criados pela jurisprudência
do STF: a) o que exige, para admissão de recurso extraordinário, que a
alegada contrariedade à Constituição tenha sido frontal e direta; b) o que exige
prequestionamento da matéria recursal. 21
20
Várias dessas referências foram colhidas em Emília Viotti da Costa, O Supremo Tribunal Federal e a
construção da cidadania, São Paulo, Unesp, 2006.
21 Para admitir a exame um recurso extraordinário, o STF exige que a matéria, a cujo respeito se recorre, tenha
sido debatida e decidida pelo tribunal recorrido, “com emissão de juízo explícito sobre o tema” (v. RTJ
136/856, 158/262, 142/672, 146/324, 149/625, 154/674).
Em 12 de agosto de 1964, falando aos rotarianos mineiros, o
ministro Victor Nunes Leal queixava-se da pletora de processos no Supremo
Tribunal Federal (que em 1964 chegaria a 7.849): “podemos ter uma ideia do
aumento do serviço quando observamos que, em 1950, foram julgados 3.511
[processos]”. 22
Objetivando a criação de um sistema que considerou como
de “liberdade garantida”, e não de “liberdade tolerada”, esse ministro
estabeleceu a seguinte diretriz: “Antes de se pensar em reduzir a nossa
competência, devemos esgotar as possibilidades de organizar,
adequadamente, o nosso trabalho”. E, mencionando o poder que possui a
Suprema Corte norte-americana de só julgar os casos que entenda relevantes,
apresentava outra fórmula: “Não temos a prerrogativa de escolher os casos
de relevância jurídica, mas poderíamos alcançar, indiretamente, resultados
comparáveis. Bastaria simplificar o exame dos processos rotineiros não
mediante vaga alusão à nossa jurisprudência, mas com precisa indicação
dos precedentes em que a matéria foi mais amplamente apreciada [......]
Firmar a jurisprudência de um modo rígido não seria um bem, nem mesmo
seria viável. A vida não para, nem cessa a criação legislativa e doutrinária
do direito”.
Desde dezembro de 1963 o Supremo Tribunal Federal já
vinha elaborando súmulas de sua jurisprudência, simples enunciados
sintetizando decisões em casos assemelhados. 23
Num primeiro momento, após a Constituição de 1988, caiu
o número de processos distribuídos no Supremo Tribunal Federal (de 18.674
em 1988 para 6.622 em 1989). Isso, certamente, devido à indefinição das
novas regras e ao desvio de parte de sua competência para o Superior Tribunal
de Justiça. Mas voltou a subir: 16.777 (1990), 19.349 (1991), 27.656 (1992),
27.205 (1993), 25.813 (1994), 23.677 (1996) e 33.963 (1997), aproximando-
se, na sequência, à centena de milhar.
22
Victor Nunes Leal, Atualidade do Supremo Tribunal Federal (RDPC 5/71). 23
O ato normativo que as instituiu foi posteriormente incorporado ao regimento interno (arts. 102 e 103).
Lê-se na primeira dessas disposições: “A jurisprudência assentada pelo Tribunal será compendiada na
„Súmula do Supremo Tribunal Federal‟. § 1° A inclusão de enunciados na „Súmula‟, bem como a sua
alteração ou cancelamento, serão deliberados em Plenário, por maioria absoluta. § 2° Os verbetes
cancelados ou alterados guardarão a respectiva numeração com a nota correspondente, tomando novos
números os que forem modificados [.....]”.
Emergiram novamente, com isso, as propostas restritivas de
recursos, inclusas principalmente em duas figuras processuais: o efeito
vinculante e a “repercussão geral”.
7. O efeito vinculante. A súmula vinculante.
Nas dobras do controle abstrato de constitucionalidade,
pleiteado pela cidadania, ocultava-se o ovo da serpente: o efeito “erga omnes”
das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, com a consequente
sobrevalorização desses precedentes jurisdicionais.
Já a partir do “pacote de abril” baixado pelo general Geisel
(a assim chamada emenda constitucional n. 7), combinado com a emenda
regimental n. 7, de 28.8.1978, tinham recebido efeito vinculante as decisões
do Supremo Tribunal Federal, proferidas em processos de natureza não
contenciosa (sem partes, contraditório ou defesa), iniciados mediante
representação do procurador-geral da República. 24
Após a Constituição de 1988, a locução “efeito vinculante”
aparece pela primeira vez na EC n° 3/1993, que deu ao art. 102 da lei magna,
em seu § 2°, a seguinte redação: “As decisões definitivas de mérito, proferidas
pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações declaratórias de
constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, produzirão eficácia
contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder
Judiciário e ao Poder Executivo.” 25
Quando se buscam figuras semelhantes no Direito de
outros países, encontramos expressões como: “As decisões do Tribunal
Constitucional são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e
24
A emenda nº 7 ao RISTF (28.8.1978) dispunha: “A partir da publicação do acórdão, por suas conclusões e
ementa, no Diário da Justiça da União, a interpretação nele fixada terá efeito vinculante para todos os
efeitos”.
25
Em seguida à EC n° 3/1993, outras disposições legais trataram do efeito vinculante; vejam-se as leis 9.868,
de 10 de novembro de 1999 (dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e
da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal), em seu art. 28, parágrafo
único; 9.882, de 3 de dezembro de 1999 (dispõe sobre o processo e julgamento da arguição de
descumprimento de preceito fundamental), em seu art. 10, § 3°; e o art. 557 do Código de Processo Civil, com
a redação que lhe foi dada pela lei n° 9.756, de 17.12.1998.
prevalecem sobre as dos restantes tribunais e de quaisquer outras
autoridades” (lei portuguesa de organização, funcionamento e processo do
Tribunal Constitucional, art. 2°). 26
A locução contida na EC n° 3/1993
(eficácia com relação a todos e efeito vinculante) corresponde a expressões
encontradas no Direito alemão, como Gesetzeskraft (força de lei) e
Bindungswirkung (efeito vinculante).
Em seguida, a emenda constitucional n° 45, de dezembro
de 2004, deu ao art. 102 da Constituição, em seu § 2°, a seguinte redação: “As
decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas
ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de
constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante,
relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração
pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal”. 27
Há nesse texto, como se vê, uma distinção implícita entre
eficácia com relação a todos e “efeito vinculante”. Daí se tiram duas
conclusões: a) o entendimento do Supremo Tribunal Federal, concernente à
constitucionalidade em tese de uma disposição legal, tem a eficácia geral
própria da lei; b) idêntico entendimento deve ser adotado obrigatoriamente por
todos os órgãos do judiciário e da administração pública, nos atos de sua
competência.
Esse é caso único de decisão com duas cargas de eficácia
máxima: a constitutiva, produtiva de efeito material que alcança a todos, e a
mandamental, produtiva de efeito extraprocessual difuso, que é dirigida aos
órgãos do poder jurisdicional e da administração pública. Ambas dizem
respeito àquilo que os alemães chamam de “Leitsatzbindung”, e que podemos
designar como “núcleo vinculante” da decisão.
Contudo, antes mesmo da emenda constitucional nº 3/1993,
já a lei 8.038, de 28.5.1990 (a chamada lei dos recursos), entregara aos relatores,
26
Note-se que a Constituição portuguesa fala em “força obrigatória geral” da declaração de
inconstitucionalidade ou de ilegalidade (art. 281).
27 Isso corresponde à restauração dos antigos “assentos” do Direito colonial. Sobre os assentos e seu caráter regressivo, v.
Sérgio Sérvulo da Cunha: a) O efeito vinculante e os poderes do juiz, São Paulo, Saraiva, 1999; b) A arcaica
súmula vinculante, in Sérgio Rabello Tamm Renault e Pierpaolo Bottini, Reforma do Judiciário, São Paulo,
Saraiva, 2005, pp. 29/52, ou nesta Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, n. 5, janeiro/junho
de 2005, pp. 475/499.
em Juízo, a faculdade de negar seguimento a pedido ou recurso que fosse
contrário a súmula do respectivo tribunal. Em seguida a lei 9.756, de
17.12.1998, concedera ao relator, no âmbito do STJ, “se o acórdão recorrido
estiver em confronto com a súmula ou a jurisprudência dominante do Superior
Tribunal de Justiça, conhecer do agravo para dar provimento ao próprio
recurso especial”. Desde aí, portanto, e nesses casos, passava-se a atribuir valor
de lei não apenas às súmulas de jurisprudência – ainda que não designadas
expressamente como “vinculantes” – mas também à “jurisprudência dominante”.
Criaram-se em seguida inúmeras disposições legais que,
explícita ou implicitamente, em maior ou em menor grau, atribuem “efeito
vinculante” à jurisprudência não só do Supremo Tribunal Federal, mas
também de outros tribunais. Ou seja: na tradição do nosso Direito, que tinha
unicamente a lei como fonte primária dos direitos e das obrigações, nesses
casos passou-se a atribuir maior relevo ao precedente.
Veja-se, na cronologia da legislação há pouco referida, a
escalada dessa reforma que, descontextualizada dos pressupostos e garantias
existentes nos países de “common law”, alterou profundamente o sistema
jurídico brasileiro, concedendo ao Judiciário – e, dentro dele,
especificamente ao Supremo Tribunal – um arsenal de poderes e uma
influência política de que nunca antes desfrutara. A partir daí, e ainda que
não sejam designadas como “vinculantes”, o STF generalizou a concessão
de efeito vinculante a qualquer decisão sua, inclusive a decisões
administrativas de seu Plenário. 28
Produziu-se então essa situação chocante para a lógica
jurídica: a parte recorre com fundamento na lei, e o tribunal decide com
fundamento em sua jurisprudência, à qual atribui eficácia absoluta; a situação é
chocante porque, nos países de “common law”, a parte recorre com fundamento
nos precedentes, e o processo consiste, justamente, na tarefa de se identificar o
precedente aplicável ao caso concreto. Se nos modelos judiciários de ascendência
romana, como o nosso, é vedado postular contra a lei (salvo sua flagrante
injustiça), nos países de “common law” é vedado impugnar o precedente,
consistindo a tarefa do advogado em demonstrar qual o precedente mais
adequado à hipótese fática. Hoje, falecerá quem interpuser um recurso
extraordinário unicamente com base na Constituição e na lei.
28
Lê-se por exemplo em Notícias STF, 29.7.2011, que dispensa-se o julgamento de recurso por órgão
colegiado do STF quando, “como já ocorreu inúmeras vezes, o próprio Pleno do STF concede aos Ministros
Relatores competência para julgamento de casos similares mediante decisão monocrática”.
Respondendo aos apelos do Supremo Tribunal Federal –
que assoalhou a necessidade dessa providência como autêntica panaceia – a
emenda constitucional nº 45 instituiu a “súmula vinculante” ao mandar
inscrever na Constituição brasileira o art. 103-A: “O Supremo Tribunal
Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois
terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria
constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa
oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder
Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal,
estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na
forma estabelecida em lei. § 1° A súmula terá por objetivo a validade, a
interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja
controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração
pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de
processos sobre questão idêntica. § 2° Sem prejuízo do que vier a ser
estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá
ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de
inconstitucionalidade. § 3° Do ato administrativo ou decisão judicial que
contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá
reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente,
anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e
determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula,
conforme o caso.”
Com a “súmula vinculante” busca-se conferir, a decisões
adotadas em processos de controle concreto de constitucionalidade, o mesmo
efeito “erga omnes” que, mediante o § 2° do art. 102 da Constituição, se
obtém em processos de controle abstrato. O art. 103-A não fala em eficácia
com relação a todos, mas essa eficácia se produz na medida em que os órgãos
do judiciário e da administração pública se vêm obrigados, nos atos da sua
competência, a adotar o entendimento sumulado. Nesse efeito vinculante está
implícita, portanto, a eficácia com relação a todos.
Logo, a súmula vinculante é uma súmula de jurisprudência
à qual se conferiu efeito vinculante. O art. 103-A não cria “a súmula
vinculante”, mas um determinado tipo de súmula vinculante, cujos requisitos
são aí mencionados.
Em 19 de dezembro de 2006 foi editada a lei n. 11.417,
dispondo sobre súmula vinculante; a resolução STF nº 388, de 5.12.2008,
dispôs sobre o processamento de proposta de edição, revisão e cancelamento
de súmulas, e por fim, com a emenda regimental nº 46, de 6.7.2011,
completou-se o respectivo arcabouço normativo.
Com base nessas disposições, podemos apontar as seguintes
características da súmula vinculante: ela diz respeito ao enunciado, formalizado
mediante o voto de 2/3 dos ministros do Supremo Tribunal Federal, que a)
sumaria várias decisões, em matéria constitucional, relativas a hipóteses sobre as
quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a
administração pública, acarretando grave insegurança jurídica e relevante
multiplicação de processos; b) dispõe sobre a eficácia, validade ou interpretação
de determinada norma; c) e, mediante a edição da respectiva súmula, recebeu
efeito vinculante.
Daí decorre o seguinte: a) uma súmula nada acrescenta,
materialmente, àquilo que já havia sido antes decidido pelo Supremo; dela
nada pode constar que já não se encontrasse nas decisões sumariadas; b) não
se aplica a decisões tomadas em processos de controle abstrato (carece de
sentido editar uma súmula cujo enunciado já tinha efeito vinculante).
Note-se ainda que a súmula vinculante, nos termos do § 1°
do art. 103-A, deve versar sobre a “validade, a interpretação e a eficácia de
normas determinadas” a cujo respeito haja controvérsia atual entre órgãos
judiciários ou entre esses e a administração pública, acarretando grave
insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos. Tendo-se em vista
o disposto no “caput” desse artigo, essas “normas determinadas” são normas
constitucionais que tratam de matéria estritamente constitucional ou
imediatamente constitucional.
Ao ver de José Afonso da Silva, príncipe dos
constitucionalistas brasileiros, “as súmulas vinculantes tolhem uma correta
apreciação das alegações de lesão ou ameaça a direito que estão na base do
direito ao acesso à justiça. Os prejuízos à cidadania são maiores do que os
benefícios para a ordem judiciária.” 29
29
José Afonso da Silva, Poder constituinte e poder popular (São Paulo, Malheiros, 2000, p. 161).
Também é questionável sua eficácia prática, como assinala
o ministro Celso de Mello, “por uma razão muito simples: mesmo
prevalecendo o princípio da súmula vinculante, não há como inibir a
sustentação, em juízo, de teses diametralmente opostas. O juiz não poderá ser
obrigado a decidir conforme a súmula, sob pena de crime de
responsabilidade. É um perigoso dirigismo estatal, que frustra a função
transformadora e criadora da jurisprudência.” 30
Contudo, para o ministro Ricardo Lewandowski, “o
descumprimento de uma súmula vinculante de forma infundada e sem
justificação pode ensejar a responsabilização do magistrado, porque é um ato
de insubordinação” (Notícias do STF, 13.9.2011).
De minha parte, sustento que a súmula vinculante da EC n°
45 ofende direitos e garantias fundamentais consagrados no art. 5° (incisos II,
XXXV e LV) da Constituição brasileira de 1988; 31
agride princípios
extradogmáticos da hermenêutica; representa inadmissível retorno a práticas
autoritárias há muito superadas na história do Direito; usurpa competência das
instâncias ordinárias. Ao editar súmula vinculante o STF na verdade cria
norma que o Congresso, querendo, só poderá alterar mediante emenda
constitucional. 32
Hoje, no contexto normativo vigente, é difícil imaginar
qual a serventia da súmula vinculante, visto que o Supremo dispõe, com o
simples efeito vinculante e com o incidente de repercussão geral, de dois
instrumentos mais radicais e expeditos. Se a mera decisão, proferida por essa
Corte em processo de controle abstrato ou de controle difuso, já pode justificar
o trancamento de ação ou recurso contrário, para que elaborar-se uma súmula?
E se o Supremo, no incidente de repercussão geral, pode descartar qualquer
recurso extraordinário, para que a súmula? 33
Na verdade, a súmula vinculante
30
Citado por Lenio Luiz Streck, a partir de entrevista à Folha de São Paulo em 15.6.1997 (Jurisdição
constitucional e hermenêutica, Rio de Janeiro, 2a ed., 2004, p. 642).
31 “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (inciso II); “A
lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (inciso XXXV); “Aos
litigantes em processo judicial ou administrativo .....são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com
os meios e recursos a ela inerentes” (inciso LV).
32
v. Sérgio Sérvulo da Cunha, A arcaica súmula vinculante (RAEL 5/475). 33
Note-se que a súmula exige o voto de dois terços dos ministros (mesmo quorum para trancamento do
recurso extraordinário no incidente de repercussão geral), enquanto a mera decisão de inconstitucionalidade
exige apenas maioria absoluta.
passa a ser o nosso “senatus consultum”, expressão simbólica da máxima
autoridade da Suprema Corte.
Só com essas, e outras medidas verdadeiramente
draconianas e restritivas do acesso à justiça, notou-se um declínio significativo
no volume de serviço do Supremo Tribunal Federal.
Já no primeiro semestre de 2008 observou-se uma queda de
39%. Na sessão plenária de encerramento do semestre, o presidente Gilmar
Mendes proclamou: “Foram emitidas 65.564 decisões, tanto monocráticas
como colegiadas, e finalizados 44.611 processos”. Nesse período o Plenário
do STF julgou 450 processos em 17 sessões ordinárias e 24 extraordinárias.
No mesmo período entraram na Suprema Corte 53.011 processos, um número
10% inferior ao registrado no mesmo período de 2007. Desse número, 14.808
eram recursos extraordinários e 21.336 eram agravos de instrumento.34
Em
outubro de 2008 anunciava-se: “o filtro de recursos conseguiu reduzir em
40% o número de processos distribuídos. Em 2007 foram distribuídos 91.087
processos de janeiro a setembro. Este ano, no mesmo período, foram
distribuídos 54.088”. 35
Diante desses números, o observador superficial diria que
se encerrou, enfim, a crise do Supremo. Sob outra perspectiva, porém, ela
apenas mudou de figura. Se antes dizia respeito ao volume de processos
pendentes de julgamento, passou a consubstanciar um deficit da jurisdição
constitucional. Isto só foi possível na medida em que o STF, prevalecendo-se
de inconstitucionais emendas cuja edição inspirou, golpeou profundamente a
Constituição brasileira de 1988 e as garantias que consagra. Em defesa dessa
política, afirma-se: “a restrição do acesso aos tribunais superiores evitará o
colapso”. Ora, o acesso aos tribunais superiores é direito fundamental,
garantido pela Constituição. A restrição não evita o colapso: ela é o colapso. 36
34
Revista eletrônica Conjur, 1.7.2008.
35
id., 13.10.2008. 36
Está portanto necessariamente em outras providências, que não cerceiem a efetividade dos direitos, a
solução da crise do STF. Proibir é a primeira e mais simplória medida de que se socorre a burocracia.
8. A repercussão geral e seu manejo pelo STF
No art. 102 da Constituição brasileira, a emenda nº
45/2004 introduziu este § 3°: “No recurso extraordinário o recorrente
deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais
discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a
admissão do recurso, só podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços
de seus membros”. Isto significa que, nos termos da emenda que a instituiu,
bastam quatro votos para ser afastada a barreira da repercussão geral, o que
mostra sua excepcionalidade.
Na sequência vieram a lei n. 11.418/2006, alterando o
código de processo civil na parte em que trata do recurso extraordinário, e, no
STF, as emendas regimentais ns. 20/2006, 21/2007, 27/2008, 31/2008 e
42/2010. Diz a lei n. 11.418/2006 que o recurso extraordinário só será
admitido quando, nele, se discutirem “questões relevantes do ponto de vista
econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses
subjetivos da causa”.
Com isso estreita-se o recurso extraordinário, cujo fim é
reduzido à guarda do Direito objetivo; estreita-se também a Constituição, que
de analítica se transforma em sintética; entrega-se a cortes inferiores,
destituídas da mesma dimensão política e da mesma missão constitucional, a
palavra decisiva quanto a matérias constitucionais às quais não se reconheça
repercussão geral; apoia-se a indústria da inconstitucionalidade, praticada pela
clientela habitual do STF (o poder público); restringe-se a defesa das partes
em Juízo, ferindo-se a disposição constitucional que garante sua amplitude.
A “repercussão geral” exacerba a “arguição de relevância”,
criada durante a ditadura militar, e repelida pela Constituinte de 1987-1988: o
recorrente precisava demonstrar ao Supremo Tribunal Federal que era
relevante a matéria tratada no recurso extraordinário; o Tribunal então julgava
discricionariamente o que entendia como relevante, e descartava o que
entendia como não relevante. Observe-se: a arguição de relevância era
utilizada apenas em casos de controle de legalidade (até então incluída na
competência da Suprema Corte, e hoje incluída na competência do Superior
Tribunal de Justiça); mas a “repercussão geral” se aplica ao controle de
constitucionalidade, que é da competência do STF.
Ao receber essa faculdade excepcional (mercê da qual pode
recusar o exame de recursos extraordinários, não obstante fundados na
Constituição), o Supremo Tribunal Federal deveria estar atento ao “quorum”
de dois terços que, para aplacar receios e sossegar as consciências, aí se
estabeleceu como indispensável à recusa do recurso. Por força desse quorum a
competência para esse exame é do Plenário, não podendo a recusa provir de
Turma ou de ministro, isoladamente. O art. 543-A do código de processo civil,
em seu § 4º (com a redação dada pela lei 11.418/2006), protege essa reserva,
ao estabelecer que ficará dispensada a apreciação pelo Plenário se a Turma,
pelo voto de quatro dos seus membros, entender presente a repercussão geral.
O STF entretanto, seja em seu regimento interno, seja em
determinações administrativas, permite a recusa do recurso extraordinário
mediante simples decisão monocrática de relator ou do presidente da Corte,
quando não sua recusa mecânica por parte de sua Secretaria Judiciária; admite
a recusa por mera invocação de precedentes, ainda que não dotados de efeito
vinculante; delega a verificação dessa conformidade ao tribunal recorrido;
também confere efeito vinculante à decisão que negue a existência de
repercussão geral, autorizando “ipso facto” a rejeição liminar de todos os
recursos extraordinários que sustentem a mesma tese.
Principalmente a partir da presidência Ellen Gracie, o STF
passou a usar daquela faculdade com maior desenvoltura, restringindo cada
vez mais o acesso à sua jurisdição.37
No desempenho dessa política restritiva
de recursos, instalou-se no STF um filtro prévio estabelecido pela portaria
138/2009 e pelo art. 327 do RISTF; 38
a Presidência do STF delegou essa
tarefa à sua Secretaria Judiciária, cujo chefe ou a exerce pessoalmente ou a
37
Em dezembro de 2007 promoveu-se uma reunião entre representantes dos tribunais estaduais de justiça, dos
tribunais regionais federais e dos tribunais superiores, a fim de se uniformizarem essas diretrizes. Afirmou,
nessa ocasião, a presidente da Suprema Corte: “nós vamos fazer um salto qualitativo se utilizarmos os
instrumentos colocados à nossa disposição”; “hoje a repercussão geral é um requisito de admissibilidade e o
Tribunal será extremamente rigoroso na aferição desse instrumento preliminar formal”. Acrescentou que,
apesar de ser o STF o responsável por definir se há ou não a repercussão geral, cabe aos tribunais recorridos
analisar a respectiva preliminar (Conjur, 6.12.2007). 38 Em maio de 2006 já começara a funcionar na Presidência do STF o Grupo de Trabalho de Análise Prévia de
Agravos de Instrumento, formado por servidores e estagiários. Segundo informou a revista eletrônica
Consultor Jurídico (2.8.2006), entre 29 de maio e 31 de julho esse grupo analisou 11.834 agravos, provocando
o arquivamento de 2.420 (20,44% dos analisados), seja por falta de peças, seja por intempestividade. Em 9 de
junho de 2008, com a Res. nº 365, o presidente do STF delegou várias competências à Secretaria Judiciária,
entre elas a de “devolver as petições e protocolos remetidos ao STF por equívoco”; e, em 23.7.2009, com a
Portaria nº 138, entregou-se a essa mesma Secretaria a possibilidade de devolver os processos múltiplos (isto
é, com matéria considerada repetitiva) ainda não distribuídos e relativos a matérias submetidas a análise de
repercussão geral.
delega a seus auxiliares; não se conhecem os critérios com que se alimenta a
barreira eletrônica, mas é comum que, ao fulminar os recursos, ela efetue
verdadeiros juízos de mérito. 39
Nos termos do art. 327/RISTF, cabe agravo
interno da decisão presidencial que recusa o recurso extraordinário por
inexistência de repercussão geral, ou por deficiência da respectiva preliminar;
na prática, porém, os processos recusados pela barreira eletrônica são
devolvidos à origem sem que a parte seja intimada; na verdade, ela nem teria
como recorrer, visto que se elidiu a decisão formal – por parte da Corte – que
deveria estar à base dessa devolução (esse fato, aliás, foi invocado pela Corte
no julgamento do RE 612.229-RJ; aí se entendeu que, “por não se
caracterizar como decisão a determinação de retorno dos autos à origem”,
não enseja a interposição de agravo regimental).
Ao mesmo tempo, a Corte alterou radicalmente sua
jurisprudência quanto à admissibilidade de agravos e de reclamações (v. o
acórdão proferido no AI nº 760.358, e respectiva questão de ordem). Esse
acórdão entendeu incabível “agravo de instrumento da decisão do tribunal de
origem que, em cumprimento do disposto no § 3º do art. 543-B, do CPC,
aplica decisão de mérito do STF em questão de repercussão geral”, com o
que aquele tribunal não estaria exercendo competência do STF, mas atribuição
própria.
Tendo vedado, dessa forma, a interposição de agravo,
impediu também o STF que em tais casos se opusesse reclamação, 40
39
No dia 4.8.2011, ao detalhar os “procedimentos na Presidência do STF”, o site do Supremo Tribunal
Federal informava: “Através da Secretaria Judiciária do STF, identificam-se e devolvem-se à origem os
recursos extraordinários e respectivos agravos de instrumento múltiplos, interpostos de acórdãos posteriores
a 3 de maio de 2007 e correspondentes agravos, de assuntos levados à discussão sobre repercussão geral; os
encaminhados em desacordo com o disposto no § 1º do art. 543-B do Código de Processo Civil; bem como
aqueles em que os Ministros tenham determinado sobrestamento ou devolução, que, assim, sequer serão
distribuídos (Portaria 138/2009 da Presidência do STF”). 40
A Constituição de 1988, em seu art. 102-I, diz que cabe ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar,
originariamente [.....] “a reclamação para preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas
decisões”. Nada tem a ver, essa “reclamação”, com a reclamação administrativa por erro na ata de
julgamento, de que tratam os arts. 88 a 92 do RISTF. Não obstante sendo uma ação autônoma, ela significa,
no STF, algo análogo à “correição parcial”. Os objetivos da reclamação vêm indicados, indiretamente, no art.
161/RISTF, mais explícito do que o art. 17 da lei 8.038/1990. Segundo aquele, o STF, julgando procedente
uma reclamação, poderá: a) avocar o conhecimento do processo em que ocorre a usurpação da sua
competência; b) ordenar que lhe sejam remetidos os autos do recurso para ele interposto, ou c) cassar a
decisão exorbitante de julgado seu, ou determinar a medida conveniente à observância da sua jurisdição.
determinando que se devolva o processo ao tribunal recorrido, para que o
instrumento da inconformidade aí seja apreciado como agravo regimental. 41
No julgamento acima referido, assim se manifestou a
relatora: “....o presente caso é extremamente relevante tendo em vista a
quantidade de reclamações que tramitam nesta Corte em que se alega a
ocorrência de usurpação de competência em casos semelhantes. Já foram
proferidas diversas decisões que acatam essa tese, julgando procedentes os
pedidos formulados em reclamações aqui ajuizadas”. Mas, não obstante, em
tal caso não se deve utilizar o instituto da reclamação, “porque tal
procedimento acarretaria aumento na quantidade de processos distribuídos e
um desvirtuamento dos objetivos almejados com a criação da repercussão
geral”.
A perplexidade suscitada por essa nova orientação revela-
se no parecer AGU n. 73/2010, datado de 11.6.2010; contudo, essa orientação
vem sendo mantida, não obstante as incongruências de que padece e os
protestos que tem suscitado. Com esse comportamento, o STF: a) fecha os
olhos à possibilidade de erro, dos tribunais de origem, nas decisões em que
invocam seus precedentes; b) demite-se de sua competência, transformando
em absoluta uma delegação, concedida aos tribunais de origem, que seria
apenas relativa, caso o STF se reservasse a possibilidade de rever aquelas
decisões. 42
Estes são apenas alguns exemplos sobre a forma pela qual,
com apoio retórico no elevado volume de serviço do STF, nele se estabeleceu
uma política restritiva de recursos e do acesso à jurisdição constitucional.
9. A política judiciária do Supremo Tribunal Federal
O formalismo positivista oblitera as mentes, endurece os
corações. Veja-se, por exemplo, o que durante muitos anos (de 1958 a 2010) 41
O STJ – cujo regimento interno não prevê a possibilidade de interposição de agravo regimental em tais
casos – passou a admiti-lo mesmo sem provisão legal, curvando-se servilmente à determinação do STF. 42
Em 31 de agosto de 2011, o Tribunal de Justiça de São Paulo, por seu Órgão Especial, editou o assento
regimental nº 397, mediante o qual entrega, a uma “Câmara Especial de Presidentes” – “órgão jurisdicional
formado pelo Presidente do Tribunal, pelo Vice-Presidente e pelos presidentes das Seções – a atribuição de
“julgar os agravos regimentais, assim determinados pelo STF”, ou “assim determinados pelo STJ”,
interpostos contra decisões da Presidência do Tribunal, da Vice-Presidência e das Presidências das seções,
que não admitem ou declaram prejudicado o recurso extraordinário ou o recurso especial. Os julgamentos
dessa Câmara serão realizados de forma virtual, deles não cabendo recurso.
aconteceu com o agravo de instrumento, quando interposto contra o despacho
de inadmissibilidade do recurso extraordinário. 43
Ao determinar que os tribunais recorridos examinassem o
cabimento do recurso extraordinário, mediante um despacho que podia
inadmiti-lo, a lei 3.396, de 2 de junho de 1958, submeteu essa decisão a
agravo de instrumento. Assim, quem tinha seu recurso extraordinário
inadmitido e queria recorrer desse despacho, precisava providenciar a
formação de um instrumento em que se reproduziam as peças principais do
processo, e que seria encaminhado ao STF.
Ora, bastava que o advogado ou o cartório esquecesse de juntar, ao
instrumento, uma peça considerada essencial, para que o agravo não fosse
conhecido pelo STF. Interesses vitais, esperanças nutridas durante anos de
desgaste com as despesas e preocupações da demanda, a que se agarravam as
partes como taboas de salvação, eram, assim, sumariamente atirados ao lixo.
Inexistem estatísticas mostrando qual o percentual de casos em que,
inadmitido o recurso extraordinário, a parte agravava. O fato é que, mesmo
com a criação desse óbice, e por sua causa, o STF se via inundado por
milhares de agravos de instrumento. Adotada, aparentemente, com o objetivo
de simplificar, essa providência na verdade multiplicava o trabalho, dos
advogados, das cortes recorridas e do STF.
Por isso foi profunda – e extremamente positiva – a
alteração trazida, a essa disciplina, pela lei 12.322, de 9 de setembro de 2010,
segundo a qual o agravo é interposto nos próprios autos, de modo que,
dispensada a formação do instrumento, os autos originais é que são remetidos
ao Supremo Tribunal Federal.
Fica superada, com isso, toda a minudente e casuística
jurisprudência anterior, inclusive a acolhida em súmulas do STF, que tratava
da correta formação do instrumento. Esse fato é ilustrativo do tempo
43 Agravo é recurso geralmente cabível contra decisões judiciais menores (meros despachos, e não decisões
terminativas, como são as sentenças). Diz-se “agravo de instrumento” quando o agravo não é processado nos
próprios autos, mas em autos apartados; assim o processo principal continua tramitando normalmente, e para
o processamento e julgamento do recurso forma-se um instrumento à parte, com cópias de peças do processo
principal. Dispensa-se entretanto a formação do instrumento quando o agravo é “nos próprios autos”. Nesse
caso, ele fica “retido”, e só será examinado posteriormente, juntamente com o recurso que se interponha
contra a decisão terminativa.
consumido pelos tribunais em questiúnculas, enredados na teia de arabescos
que, tendo embora importância diminuta, conseguem obstar a efetividade
tanto do Direito material quanto dos direitos subjetivos. 44
Quando se pergunta de qual Constituição as cortes
supremas podem ser consideradas guardiãs, a resposta é imediata: desta
Constituição em que se baseia sua autoridade, com seus fundamentos, suas
finalidades e suas circunstâncias. Nenhuma Corte Suprema, portanto, pode
subverter a Constituição sem, com isso, agredir a fonte de sua própria
autoridade.
A súmula vinculante de jurisprudência, restringindo o
acesso ao recurso extraordinário, comprime o sistema brasileiro de controle de
constitucionalidade, levando-o na direção de um sistema abstrato-concentrado;
por sua vez, a arguição de repercussão geral o aproxima do sistema norte-
americano, na medida em que cria uma cláusula de bloqueio.
Sempre foi, o grande sonho do STF, transformar-se num
tribunal semelhante à Suprema Corte norte-americana, com grande poder
discricionário quanto à sua própria competência. 45
Durante a ditadura militar
foram dados alguns passos significativos nessa direção, principalmente
mediante a arguição de relevância e atribuição de força de lei a disposições do
regimento interno do STF. 46
Essa metamorfose, entretanto, ele só a consegue agora, em
plena vigência democrática. Documento disponibilizado por essa Corte, em
2008, assinala o seu projeto:
“Firmar seu papel como Corte Constitucional, e não como
instância recursal.
Ensejar que só analise questões relevantes para a ordem
constitucional, cuja solução extrapole o interesse subjetivo das partes.
44
“Mutatis mutandis”, é o que continua a ocorrer com as exigências de prequestionamento e de contrariedade
“direta e frontal” a dispositivo da Constituição. 45
Não se pode esquecer que, nos Estados Unidos, a competência da Suprema Corte não é discriminada na
Constituição, mas mediante lei editada pelo Congresso (a assim chamada “judiciary act”), o qual, dessa
forma, mantém sua ascendência política sobre aquela. 46
A Ordenação de 1969, em seu art. 119-§ 3º, outorgou força de lei ao regimento interno do STF.
Fazer com que decida uma única vez cada questão
constitucional, não se pronunciando em outros processos com idêntica
matéria”. 47
Essa a missão de que o STF se imagina incumbido: a de
areópago excelso, absorto pelos temas mais candentes da sociedade. Essa não
é, entretanto, a missão que lhe foi conferida, em Constituinte, pelo povo
soberano.
Estabelecida pelo STF tal política judiciária –
decididamente eversiva de sua missão constitucional – e com apoio retórico
em seu grande volume de serviço, esse passou a ser o fundamento de suas
decisões, e não mais a Constituição ou a lei. Tal como se vê no acórdão
relativo ao AI 760.358, em que se repeliu a reclamação “porque tal
procedimento acarretaria aumento na quantidade de processos distribuídos e
um desvirtuamento dos objetivos almejados com a criação da repercussão
geral”.
A importância dessa mudança, ocorrida no papel
institucional da Corte Suprema, transcende a lógica jurídica e o Direito
processual, e alterando radicalmente o equilíbrio dos poderes passa a reclamar
também a atenção dos cientistas políticos.
Devo primeiramente esboçar o contexto em que ela se
manifesta, no qual, pela primeira vez, a Constituição oferece condições de
independência ao judiciário e principalmente ao STF; vendo alargada sua
competência com a criação do controle concentrado de constitucionalidade,
essa Corte posteriormente recebeu, mercê da emenda constitucional 45/2004
(que instituiu a repercussão geral), um poder mais implosivo que o da própria
arguição de relevância.
A primeira e mais grave consequência da “repercussão
geral” é que a Constituição, de analítica, transformou-se em sintética. O fato
de se ter promulgado uma Constituição analítica em 1988 mostrou a
desconfiança – agora plenamente justificada – que tinha o Constituinte com
relação aos poderes constituídos. Parece bem evidente que o poder constituído
não tem a faculdade jurídica de alterar o sistema criado, pelo Constituinte,
47
cit. cf. Antônio Pereira Gaio Jr., A repercussão geral e a multiplicidade dos recursos repetitivos no STF e
STJ.
para controlar a constitucionalidade dos seus atos. Ao promover essas
mudanças, restritivas do acesso à justiça, o STF beneficia sua clientela
tradicional: os setores – dentre os quais o principal é o Estado – que sempre
alimentaram a indústria da inconstitucionalidade. 48
O comportamento da Suprema Corte revela o que podemos
designar como “lei da incontinência do arbítrio”. Assim como o sistema
normativo da ditadura – que se buscou legitimar com o “ato institucional” –
veio a recair no casuísmo, o STF, tendo abandonado a Constituição como
norte de sua atividade, já não encontra freio na lei e sequer no seu regimento
interno. O que ressalta hoje em seus anais é a tecnoburocracia dos números,
sobreposta aos direitos cidadãos. 49
48 90% dos processos do STF vêm do setor público (v. a pesquisa “O Supremo em números, realizada pela
Fundação Getúlio Vargas, Conjur, 23.3.2000). Conforme já confessado, em outra época, por importante
autoridade do governo, este preferia descumprir disposições legais que lhe traziam desvantagem, pois
acabaria no lucro (dado que apenas uma fração dos beneficiados reclamaria em Juízo).
49
Divergências manifestadas aqui e ali, por algum dos srs. ministros ou ex-ministros, quanto a essas medidas
draconianas, não têm a força de evitá-las. Na história dessa involução, há dois momentos que não podem ser
esquecidos, assinalados por dois acórdãos do STF: no primeiro deles (ADIN 594, RTJ 151/20), a propósito da
natureza da súmula, discutiu-se sobre o efeito vinculante das decisões judiciais, seja na forma de assentos,
prejulgados ou representações interpretativas, com relevo para os votos dos ministros Carlos Velloso e
Sepúlveda Pertence, que hoje não mais se encontram naquela Corte; no segundo (representação 705-AgRg;
RTJ 45/60-719), discutiu-se sobre o poder normativo do Regimento Interno da Corte,com relevo para os votos
dos ministros Evandro Lins e Gonçalves de Oliveira, ambos já falecidos.
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