ANDRIA APARECIDA OLIVEIRA DE SOUZA
A insero de bebs na creche e
a separao como operador simblico
So Paulo
2014
2
ANDRIA APARECIDA OLIVEIRA DE SOUZA
A insero de bebs na creche e a separao como operador simblico
Dissertao apresentada Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo como parte dos requisitos para obteno do ttulo de Mestre em Educao. rea de concentrao: Psicologia e Educao.
Orientador: Prof. Dr. Leandro de Lajonquire
So Paulo
2014
3
Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogao na Publicao
Servio de Biblioteca e Documentao
Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo
37.046 Souza, Andria Aparecida Oliveira de
S729d A insero de bebs na creche e a separao como operador simblico / Andria Aparecida Oliveira de Souza; orientao Leandro de Lajonquire. So Paulo: s.n., 2014.
100 p.
Dissertao (Mestrado Programa de Ps-Graduao em Educao. rea de Concentrao: Psicologia e Educao) - Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo.
1. Psicanlise 2. Educao 3. Creche 4. Educador
5. Subjetivao
I. Lajonquire, Leandro de , orient.
4
SOUZA, ANDRIA APARECIDA OLIVEIRA DE
A insero de bebs na creche e a separao como operador simblico
Dissertao apresentada Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo como parte dos requisitos para obteno do ttulo de mestre em Educao.
Aprovada em _____de______________de________.
COMISSO EXAMINADORA:
Profa. Dra. Maria Cristina Kupfer Instituto de Psicologia /USP
Julgamento:______________________Assinatura:______________________
Profa. Dra. Leny Magalhes Mrech Faculdade de Educao/USP
Julgamento:______________________Assinatura:______________________
Prof. Dr. Leandro de Lajonquire (orientador) Faculdade de Educao/USP
Julgamento:______________________Assinatura:______________________
5
Para meus pais.
6
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Prof. Dr. Leandro de Lajonquire, pela confiana, pacincia e
generosidade.
Profa. Dra. Maria Cristina Kupfer e Profa. Dra. Leny Magalhes Mrech pelas
preciosas contribuies no Exame de Qualificao.
Ao Erwin, pelo companheirismo em todos os momentos.
E a todos que de alguma forma contriburam para a realizao deste trabalho.
7
RESUMO
SOUZA, Andria Aparecida Oliveira de. A insero de bebs na creche e a
separao como operador simblico. 2014. Dissertao de Mestrado.
Faculdade de Educao, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2014.
Este trabalho de pesquisa consiste num esforo terico com foco de
interesse na dinmica subjetiva vivenciada por bebs em processo de
estruturao psquica ao serem defrontados com a primeira experincia escolar,
tendo como referencial a conexo psicanlise e educao. O motivo que inspirou
a investigao foi a busca por um pouco de entendimento em relao aos
impasses vivenciados nessa passagem. O choro do beb e a dificuldade
experimentada pela me em confiar seu filho a algum desconhecido conferem
entrada da criana na creche um carter traumtico, pois representam uma
separao no discurso corriqueiramente utilizado. Para isso, encontrou-se suporte
nas noes de constituio psquica, de campo do Outro e nas operaes
lacanianas de alienao e separao que permitiram estabelecer um contraponto
entre estruturao subjetiva e noo de desenvolvimento infantil. A partir dessa
abordagem e da noo lacaniana de separao como uma operao fundante do
psiquismo, foi possvel propor uma leitura dos impasses que permeiam a insero
da criana no mundo pblico como mais uma vicissitude do vir a ser um sujeito.
Palavras-chave: creche, psicanlise, bebs, subjetividade, separao.
8
ABSTRACT
SOUZA, Andreia Aparecida Oliveira de. The insertion of babies in the daycare
and the separation as a symbolic operator. Master's Degree Dissertation.
Faculdade de Educao, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2014.
This research is a theoretical effort focused in the subjective dynamics
experienced by infants in psychic structuring process when faced with the first
school experience, taking as referential the psychoanalysis and education
connection. The reason that inspired the investigation was the search for some
understanding about the impasses experienced in this passage. The crying and
the difficulty experienced by the mother to trust her baby to someone unknown
give a traumatic nature to the entry of the child in the daycare, as it represents a
separation, in the routinely used speech. For this, we found support in the notions
of psychic constitution and field of the Other and in the Lacanian operations of
alienation and separation that allowed establishing a counterpoint between
subjective structuring and the concept of child development. Based on this
approach and the Lacanian notion of separation as a foundational operation of the
psyche, it was possible to propose a reading of the impasses that permeate the
inclusion of children in the public world as another vicissitude of becoming a
subject.
Keywords: daycare, psychoanalysis, babies, subjectivity, separation.
9
SUMRIO
RESUMO.................................................................................................................7
ABSTRACT.............................................................................................................8
1. INTRODUO..................................................................................................10
2. A CRECHE
2.1. O percurso histrico....................................................................................19
2.2. A insero de bebs na creche...................................................................26
3. A PSICANLISE E OS BEBS
3.1. A constituio subjetiva...............................................................................42
3.2. As funes materna e paterna....................................................................56
3.3 A construo do Outro para o beb ...........................................................60
4. A INSERO DE BEBS NA CRECHE E A PSICANLISE
4.1. A posio narcsica dos pais .....................................................................69
4.2. Os bebs e o choro....................................................................................73
4.3. O lugar do educador ..................................................................................78
4.4. A separao como operador simblico......................................................82
5. CONSIDERAES FINAIS............................................................................88
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................................................. 96
10
1. INTRODUO
11
Este trabalho consistiu num esforo terico, sem objetivos prticos, para
pensar o significado da insero de bebs na vida escolar, tendo alguns
pressupostos psicanalticos como referencial. Buscamos abordar esse momento,
que marca a separao em relao s figuras parentais e a chegada ao ambiente
pblico, a partir da dinmica subjetiva que liga os envolvidos: pais, criana e
professor/instituio, considerando o lugar subjetivo que cada parte ocupa e
consequentemente a forma como se posiciona nesse momento.
Para desenvolver esta reflexo, nos baseamos em levantamento
bibliogrfico sobre o assunto e em nossas experincias como docente com
crianas, que consequentemente nos proporcionou um pouco de conhecimento
em relao insero de bebs no ambiente da creche. Ressaltamos que nossa
experincia nos mobilizou para a investigao do tema e nos animou na escrita
deste trabalho, embora no tenham sido feitas observaes sistemticas por
tratar-se de um trabalho de natureza terica.
Assim, buscou-se compreender e refletir sobre o entendimento corrente
nas instituies a respeito da insero dos bebs no ambiente da creche. Esta
chegada vista como uma separao na relao com a me e que pode
acontecer de forma turbulenta e traumtica podendo apresentar como principais
consequncias imediatas o choro dos bebs e a insegurana dos pais.
Abordagem esta que resulta numa ideia de creche como um mal necessrio, que
viria abalar a relao harmoniosa entre me-beb.
A passagem do ambiente privado da famlia para o ambiente pblico da
creche comumente entendida como um momento delicado, traumtico at, de
12
separao entre o beb e o familiar de referncia, na maioria das vezes a me.
Esse entendimento pode se justificar em funo da histria da instituio, que
surgiu como uma alternativa aos cuidados maternos para atender famlias pobres,
cujas mes operrias necessitavam trabalhar. Como lugar de acolhimento para
crianas enjeitadas por terem sido geradas fora do ncleo familiar. Enfim, como
lugar que se frequenta por no se ter alternativas, que gera preocupao e
insegurana, mas que necessrio, como poderemos ver no captulo destinado
ao percurso histrico a creche.
Porm, as consideraes tomadas emprestadas da linha de pensamento
que articula psicanlise e educao, nos permitem propor um olhar em relao a
este momento inicial da vida escolar como mais uma vicissitude do vir a ser de
um sujeito, no caso a criana em plena constituio subjetiva.
Ento comeamos recuperando um pouco da histria da estrutura
institucional na qual, na maioria das vezes, a primeira experincia escolar ocorre:
a creche. Sabemos que ainda hoje no so todas as crianas que iniciam sua
caminhada escolar ainda bebs, ou seja, na creche. Mas nesta pesquisa,
optamos por pensar a respeito da primeira experincia escolar de bebs e,
portanto, o espao a respeito do qual buscamos saber mais foi a creche.
Em seguida, apresentamos consideraes a respeito da primeira
experincia escolar com o objetivo de ressaltar nossas intenes nesta pesquisa,
baseadas em recortes tericos, de autores que se dedicaram ao assunto como
Davini (1999), Cury (1999), Balaban (1988), Rapoport (2001) e Abumanssur
(1999) e que consideram a questo sobre o ponto de vista da psicologia do
13
desenvolvimento infantil, ou seja, o discurso corrente nas instituies. E autores
como Dolto (1999) e Carvalho (2001), que pensam a questo a partir do
referencial psicanaltico, ou seja, da constituio subjetiva e que o aporte terico
escolhido para esta pesquisa.
A abordagem que, predominantemente, orienta a insero dos bebs nas
instituies infantis, orientada pela psicologia do desenvolvimento ou psicologia
gentica, apresenta uma concepo de criana e de educao que norteia a
forma de entender esse momento e consequentemente inspira as aes que
devero ser empreendidas por parte dos profissionais. Para essa abordagem a
criana se desenvolve cognitiva, fsica e emocionalmente. Em linhas gerais,
noo de desenvolvimento remete a um processo contnuo, que dever atingir um
ponto ideal e que para isso depende organicamente de uma maturao gradativa
do organismo.1.
Em contraponto ideia de desenvolvimento infantil temos a noo de
estruturao subjetiva. Jerusalinsky (1989) afirma que se o desenvolvimento
depende da maturao, a constituio do sujeito em nada depende dela. O
processo maturativo no condiciona nem determina a constituio subjetiva. Esta
depende da simbolizao que se opera num corpo e no de sua maturao. Este
processo de simbolizao depende do Outro que, desejante da criana,
engendrou-a ou adotou-a para que ocupe um lugar na sua cadeia significante. 2.
1 No nossa inteno nos aprofundarmos nessa abordagem, apenas marcar a diferena em
relao noo de estruturao subjetiva, que nortear nosso estudo. 2 JERUSALINSKY, 1989, p. 43.
14
Assim, com base na noo de estruturao subjetiva, na sequencia
explorou-se as ferramentas conceituais que auxiliariam na reflexo sobre o que
est acontecendo, subjetivamente, na vida de um beb quando ele chega
creche. Como se constitui um sujeito? Sem a pretenso de esgotar o assunto,
mas ressaltando aspectos que consideramos fundamentais para viabilizar a
reflexo, recorreu-se s consideraes freudianas e lacanianas que permitem
pensar a constituio do psiquismo e buscou-se suporte em pesquisas e tericos
que articulam os campos psicanlise e educao e que se referem questo da
constituio subjetiva precoce como Kupfer (2009), Lajonquire (2010), Pesaro
(2010) e Crespim (2004/2007).
Nesse eixo, foram encontrados trabalhos abordando a relao me-beb, a
constituio psquica, a qualidade do atendimento nas instituies que recebem
as crianas pequenas, o lugar subjetivo do educador e o trabalho nas creches e
pr-escolas, inclusive, enquanto lugares onde possvel a identificao de
indcios de problemas de sade psquica, como o caso do autismo.
Uma importante pesquisa no campo da psicanlise que teve como objeto
de investigao os bebs enquanto sujeitos em constituio foi a orientada por
Maria Cristina Kupfer e que deu origem aos indicadores clnicos de risco para o
desenvolvimento infantil, os IRDIs, validando para uso peditrico esse
instrumento. Este estudo teve prosseguimento com Pesaro (2010), que ampliou
suas bases tericas em tese de doutorado: Alcances e limites terico-
metodolgicos da pesquisa multicntrica dos indicadores clnicos de risco para o
desenvolvimento infantil. Estudo este, que nos auxiliou no entendimento dos
principais momentos da constituio subjetiva.
15
Para entender as possibilidades de ampliao dos laos afetivos pelo beb,
ou seja, o estabelecimento do vnculo com o educador, fundamental para que a
criana permanea no ambiente escolar e possa se voltar s atividades e
descobertas que favoream a sua insero no mundo social, pblico, recorreu-se
s operaes de alienao e separao, ao estabelecimento e operao da
funo paterna e noo de campo do Outro para o beb.
No terceiro captulo buscamos pensar essa transio, seus envolvidos,
pais, criana e educador e o principal aspecto deste processo que a separao
entre me-beb, apoiados no entendimento do processo de constituio do
psiquismo obtido na incurso pelos pressupostos psicanalticos. Recorremos aos
escritos freudianos acerca do jogo que simboliza a presena-ausncia, o Fort-D,
para ilustrar e ressaltar a importncia da figura materna no processo de insero
da criana no mundo social, enquanto uma me suficientemente boa -
expresso de Winnicott (1958).
Utilizamos o conceito de narcisismo, com base no texto freudiano Sobre o
Narcisismo: uma introduo (1914), para pensar a posio dos pais ao deixar o
beb aos cuidados da creche e ressaltar a necessidade de serem ouvidos e
acolhidos neste momento.
Em Winnicott (1958), encontramos argumentos tericos para pensar a
respeito do choro dos bebs ao se depararem com pessoas estranhas na creche.
E para entender as possibilidades de ampliao dos laos afetivos pelo beb, ou
seja, o estabelecimento do vnculo com o educador, fundamental para que a
criana permanea no ambiente escolar e possa se voltar s atividades e
16
descobertas que favoream a sua insero no mundo social, recorremos s
funes materna e paterna como agentes das operaes de alienao e
separao e noo de campo do Outro para a Psicanlise.
Conclumos refletindo sobre quais seriam os elementos mnimos para que
a chegada dos bebs creche se configure como um elemento a mais na
constituio subjetiva. Quais seriam as condies favorveis para um beb
defrontar-se com a diferena representada pelo ambiente da creche? E baseada
na operao lacaniana de separao, enfatizamos a separao entre me-beb
como um elemento fundante do psiquismo.
E para ressaltar as possveis contribuies desta pesquisa para a
Pedagogia e o trabalho com os bebs no mbito da primeira experincia escolar,
expomos os objetivos que nos orientaram e que podem ser resumidos em:
identificar possveis contribuies, para a Pedagogia, ao elucidar, inspirados na
Psicanlise, a respeito do que est em jogo na primeira experincia escolar, ou
seja, o processamento da diferena para os bebs em processo de estruturao
psquica; ter conhecimento da importncia constitutiva do lao afetivo com os
cuidadores primordiais e as respectivas aes das funes materna e paterna;
compreender o choro da criana ao chegar creche como um indicativo da
qualidade desse lao; entender esse processo no como uma etapa traumtica
para a criana e a famlia, no sentido de um rompimento, de uma
desnaturalizao da relao me-beb, mas como uma experincia
psiquicamente constitutiva para a criana, que traz a possibilidade da ampliao
dos vnculos afetivos.
17
Ou seja, pretendemos contribuir com as reflexes no domnio da
Pedagogia, e da linha de reflexo no campo educacional orientada pela
Psicanlise, quanto singularidade desse momento que a chegada da criana
escola, por se tratar de um afastamento temporrio entre a me e o beb, uma
forma possvel de se por em jogo a alternncia presena-ausncia, um
movimento inerente e necessrio constituio subjetiva. Dessa forma a insero
dos bebs na creche pode ser considerada como um fator a mais nesta etapa.
18
2. A CRECHE
19
2.1. O percurso histrico
As creches, espaos para os cuidados com as crianas pequenas, tiveram
origem na Europa, no sculo XIX e de acordo com Crespin (2007), elas surgiram
para substituir as mes pobres das classes operrias. Inicialmente esses espaos
no obtiveram sucesso em seus intentos, a mortalidade infantil era muito alta.
Foram alvos de crticas por no conseguirem cuidar adequadamente da higiene e
da sade das crianas ali deixadas.
At o incio do sc. XX o atendimento de crianas em creches basicamente
inexistia no Brasil.
O que havia no sentido de cuidado da criana pequena
longe da me no meio rural era a absoro natural das inmeras
crianas rfs ou abandonadas, filhos bastardos originados em
geral da explorao sexual da mulher negra e ndia pelo senhor
branco, adotados por famlias de fazendeiros, ou o recolhimento
dos mesmos nas rodas de expostos existentes em algumas
cidades criadas desde o incio do sc. XVIII por entidades
religiosas que procuravam fazer com que elas fossem conduzidas
a um ofcio quando grandes, preparando-as, pois, como mo de
obra barata.3.
3 OLIVEIRA, 1988, p.45.
20
A primeira creche brasileira foi fundada em 1899 no Rio de Janeiro e de
acordo com Kuhlmann4, tratava-se de uma creche para os filhos dos operrios
criada pela Companhia de Fiao e Tecidos Corcovado.
A criao de instituies especializadas para oferecer cuidados s crianas
pequenas est intimamente ligada s modificaes do papel da mulher na
sociedade e as repercusses destas mudanas no mbito familiar.
No sc. XX, com a intensificao da atividade industrial e o aumento da
migrao campo-cidade com o consequente crescimento da urbanizao, um dos
debates, inclusive na esfera poltica no Brasil, foi sobre qual o atendimento mais
adequado a ser oferecido s crianas pequenas. Seriam os cuidados da me ou
seria vivel a criao de instituies especializadas como alternativa para a
educao familiar?
Como ocorre com todas as outras formas pelas quais uma dada
sociedade cria uma instituio para responder s suas
necessidades, a creche insere-se a cada momento, em um
contexto mais abrangente, onde concepes sobre criana,
mulher, famlia, educao infantil, trabalho em geral, trabalho
feminino, direitos sociais, obrigaes do Estado vo sendo
modificados.5.
Assim, as primeiras creches e escolas maternais foram criadas no Brasil,
concomitante ao perodo da 1. GGM na Europa, em cidades como So Paulo,
4 KUHLMANN, 1991, p.19.
5 OLIVEIRA, 1988, p. 44.
21
Rio de Janeiro, interior de Minas Gerais e do Norte. Sendo de propriedade das
empresas e utilizadas nos ajustes das relaes de trabalho.
As creches, assim como os asilos e internatos eram vistas como
instituies destinadas a cuidar dos problemas dos pobres. A insero da mulher
no trabalho industrial exigiu solues emergenciais para o cuidado dos filhos
pequenos. Segundo Oliveira (1988), quando ainda no contavam com a
possibilidade da creche, a questo se resolvia com outras mulheres cuidando dos
filhos das trabalhadoras em troca de dinheiro.
As poucas creches fora das indstrias, nas dcadas de 20,
30, 40 e 50, eram de responsabilidade de entidades filantrpicas
laicas e, principalmente, religiosas. Em sua maioria, estas
entidades foram, com o tempo, passando a receber ajuda
governamental para desenvolver seu trabalho, alm de donativos
das famlias mais ricas.6.
Com a origem da Consolidao das Leis do Trabalho CLT, em 1943,
surgiu no Brasil a licena maternidade. Inicialmente eram 84 dias de licena que a
mulher tinha direito para se dedicar ao filho recm-nascido e deveria ser paga
pelo empregador. Esta situao trazia considerveis restries s mulheres no
mercado de trabalho. E podemos aqui inferir que as crianas com 84 dias
deveriam ser deixadas aos cuidados de outras pessoas.
A partir de 1973, a licena maternidade passa a ser paga pela Previdncia
Social, mas isso no garantia a estabilidade das mulheres, alguns empregadores
6 OLIVEIRA, 1988, p. 47.
22
dispensavam as grvidas mesmo assim. Nesse perodo, movimentos sindicais
pedem a ampliao da licena e a estabilidade para as grvidas. Esses direitos
so efetivados na Constituio de 1988. A mulher passa a ter garantida a
estabilidade e a licena ampliada para 120 dias.
Quanto aos servios oferecidos nas creches, a principal preocupao era
com a alimentao, higiene e segurana fsica. No perodo entre as duas grandes
guerras, conhecido como higienista aconteceram transformaes no mercado de
trabalho, delimitando a jornada em 8 horas e tambm ocorreram progressos na
rea da sade, com melhorias nas condies de higiene e nutrio e a descoberta
das vacinas para controle das epidemias.
Conforme Crespim (2007), o perodo higienista se estende at o ps
Segunda Guerra Mundial e nesta poca so criados os dispensrios e as creches
se multiplicam com o objetivo de (...) assegurar a sobrevivncia e o
desenvolvimento fsico dos bebs a elas confiados. 7. Para esta autora, os
objetivos das creches no poderiam ser diferentes tendo em vista a forma como
eram vistos os bebs at o sculo XX: (...) o recm-nascido, desde o nascimento
e durante os primeiros meses de vida, no mais do que um ser vegetativo, sem
pensamento nem atividade em resumo, um simples tubo digestivo. 8.
Na Frana, num perodo que foi de 1945 at os anos de 1960, as creches
foram extenses dos hospitais, com funo essencialmente sanitria. Nelas as
regras de higiene e nutrio eram rgidas e os pais no podiam permanecer em
suas dependncias para evitar a proliferao de germes.
7 CRESPIM, 2007, p.2.
8 Idem.
23
A criana passa, nua, das mos de seus pais, de seu
universo familiar para o universo de guarda, por meio de um
guich, smbolo da impermeabilidade desses dois universos
situados lado a lado, porm sem se encontrar. To logo vestida
com as roupas da creche, a criana inicia um dia ritmado pelas
obrigaes coletivas e pelo treinamento de toillett, em que pouco
lugar reservado s atividades de estmulo e ao estabelecimento
de laos entre o adulto e a criana ou mesmo entre as crianas.
Os pais so cuidadosamente mantidos distncia da vida da
criana e do funcionamento da instituio.9.
Esta situao parece ter sido superada naquele pas com os avanos da
pediatria, que permitiu diminuir drasticamente a mortalidade infantil e com as
novas ideias da psicologia e da pedagogia que mudaram o modo de conceber a
criana.
No Brasil a Educao Infantil foi gradativamente conquistando espao e
reconhecimento como uma etapa importante e fundamental da Educao Bsica.
Atualmente, j no se define pelo cunho unicamente assistencial. Tornou-se uma
opo para as famlias, um dever do Estado e um direito da criana. Na LDB
(1996) passou a ser considerada a primeira etapa da educao bsica.
Porm, quando da sua criao, a creche era o lugar onde as mes
operrias deixavam seus filhos e onde os mesmos receberiam cuidados quanto
alimentao, higiene e integridade fsica. Nestes locais recebiam-se crianas de 0
a 3 anos de idade.
9 CRESPIM, 2007, p. 2.
24
No Brasil as instituies de Educao Infantil dividiam-se quanto ao
atendimento oferecido em creche, para os bebs e crianas at os trs anos de
idade e Jardim de Infncia para as crianas de 4 a 6 anos.
De acordo com Campos (1993), a nomenclatura Jardim de Infncia foi
utilizada no Brasil nas primeiras pr-escolas por influncia das experincias
educacionais europeias que tinham como orientao as concepes froebelianas,
e tinha um carter educativo. Era uma preparao para o ingresso no ensino
fundamental.
Pode-se considerar que, na faixa de 0 a 6 anos de idade,
consolidaram-se dois tipos de atendimento paralelos: o que se
convencionou chamar de creche, de cunho mais assistencial e de
cuidado, e a pr-escola, ligada ao sistema educacional e refletindo
suas prioridades de carter instrucional.10.
Segundo Kishimoto (1990) as creches brasileiras por sua vez, eram
filantrpicas ou situadas nos locais de trabalho. Tinham como principal objetivo
atender s necessidades das mes que trabalhavam e no tinham com quem
deixar os filhos.
A primeira vez que uma lei reconhece os direitos da criana pequena em
nosso pas, foi na Constituio de 1988. Segundo Campos, na dcada de 80, em
estudos publicados por estudiosos brasileiros envolvidos com pesquisas
relacionadas creche, foi possvel constatar progressos significativos (...) no que
10
CAMPOS, 1993, p.104
25
se refere ao debate ideolgico e poltico sobre o significado da educao da
criana pequena, seus direitos e o reconhecimento da responsabilidade do poder
pblico. 11.
De acordo com a autora, houve uma superao, pelo menos no plano do
debate, da concepo exclusivamente assistencialista, reconhecendo que o
atendimento criana pequena deveria ter um carter educacional. Este avano
levou a suposio de uma integrao entre creche e pr-escola, ambos com fins
educativos.
Apesar desses progressos, o trabalho na creche continuou sendo visto
como uma interveno mais voltada para o cuidado e a pr-escola para as
atividades educativas.
Porm, esse panorama vem mudando, nas Diretrizes Curriculares para a
Educao Infantil de 2010, consta, na proposta de elaborao de orientaes
para implementao das mesmas, um item destinado s especificidades da ao
pedaggica com bebs. O que supe uma integrao entre educao e
cuidados.
Assim, atualmente, dentre os principais motivos que levam a criana
pequena para a creche, esto as ltimas descobertas das pesquisas da psicologia
e da neurocincia a respeito do desenvolvimento infantil, afirmando que o beb
est aberto a aprendizagens nicas nos seus dois anos iniciais de vida. A
necessidade da me de que algum cuide de seu filho enquanto trabalha no
mais o nico motivo para uma criana frequentar a Educao Infantil. Hoje muitas
11
CAMPOS, 1993, p.15.
26
famlias procuram uma instituio de Educao Infantil por considerarem
importante a socializao no processo de desenvolvimento da criana.
Portanto, a creche tornou-se um local onde a criana deve encontrar
condies que favoream uma educao integral, a qual garantida aos menores
de seis anos nos documentos oficiais como RCNEIS e Diretrizes Curriculares.
E enquanto educadores, com um pouco de experincia na rotina da
Educao Infantil, especificamente com a creche, percebemos que um momento
crucial no cotidiano dessa instituio, o qual mobiliza as equipes educacionais na
escola de Educao Infantil, especialmente nos berrios, justamente a
chegada dos bebs. Este primeiro contato com o ambiente escolar, esta
etapa de passagem, que nas Diretrizes Curriculares nomeado como transio
casa/escola de Educao Infantil. Mas nem sempre foi assim.
2.2 A insero de bebs na creche
Atualmente, dentre os tericos que se debruam sobre o assunto da
adaptao de bebs ao ambiente da creche, existe uma unanimidade em
reconhecer que se trata de uma passagem delicada e que deve ser muito bem
planejada pelas instituies. Carvalho (2001) define o que seria a adaptao na
creche:
27
No trabalho em creches, entende-se por cuidados com a
adaptao, a tentativa de amenizar os impactos e as dificuldades
inerentes ao enfrentamento de situaes novas, como entrada de
criana, mudanas de grupo, substituio de educadores, sada
de criana para outra instituio, mudanas no funcionamento
cotidiano, etc. 12.
Lembrando que o nosso foco neste trabalho apenas um dos aspectos
citados pela autora: a entrada da criana na creche.
Com base em dados relativos historia desta instituio, podemos inferir
que a preocupao em amenizar os impactos e as dificuldades que se
apresentam na insero de crianas na creche relativamente recente.
Nos textos que se ocupam das origens e da histria da creche, tanto no
Brasil, quanto na Europa, fica ntido que a principal preocupao quanto ao
atendimento oferecido se voltava para a alimentao, higiene e cuidados com a
segurana fsica.
E isso se deve s origens dessa instituio, que quando do seu surgimento
era voltada a atender crianas de famlias pobres, tinha um carter filantrpico.
Atendia um pblico que no estava em condies de impor exigncias. E para os
parmetros da poca a criao da creche representava um avano,
principalmente quanto aos direitos trabalhistas das mulheres operrias.
12
CARVALHO, 2001, p. 58.
28
Descries da forma como o atendimento nas creches era dispensado aos
pequenos nos permitem pensar que no existiam cuidados quanto questo do
afastamento/separao da dupla me e beb.
Crespim (2007) nos relata que na Frana at a dcada. de 60, as crianas
eram passadas ao interior da creche pelos pais por um guich e despidas da
roupa que traziam de casa. Para, em seguida, serem vestidas com a roupa da
creche, para que no ocorressem contaminaes. Os pais eram mantidos do lado
de fora e sem nenhum contato com o ambiente no qual ficariam seus filhos. Ou
seja, no acontecia um momento de transio gradativo entre o ambiente privado
e o ambiente coletivo.
A questo do cuidado com a adaptao dos bebs ao ambiente da creche
e figura da educadora tornou-se assunto de pesquisas nas ltimas dcadas do
sculo XX, no contexto das transformaes sociais que tiveram reflexos no mbito
familiar, com as consequentes mudanas nas concepes de criana e famlia.
Desde a Idade Mdia, por volta do sc. XIII, at final do sc. XIX, os recm-
nascidos eram enviados ao campo para serem alimentados por nutrizes tambm
conhecidas como amas de leite. No existia a ideia de que o beb logo ao nascer
precisaria do contato com a me para sobreviver e se constituir psiquicamente.
Eventualmente, a nutriz era instalada na residncia, mas o
habitual era enviar o beb, que se tivesse sorte, sobreviveria aos
anos iniciais de vida, perodo marcado essencialmente pela total
dependncia de um outro cuidador. Ao passar pelo teste da
sobrevivncia que contm cenas impensveis atualmente, como
por exemplo, enrolar os bebs em faixas que lhe impediam por
completo os movimentos e pendur-los em pregos fixados na
29
parede para liberar a ama para outros afazeres, as crianas eram
integradas ao convvio social com os adultos, ou seja, aps o
desmame a criana que conseguisse retornar famlia era
tomada como ais um integrante, com o mesmo estatuto do
adulto.13.
Alis, nessa poca, de acordo com Philippe Aris (1975), provvel que
no houvesse lugar para a infncia no mundo. O autor chega a esta concluso ao
analisar a ausncia das representaes da infncia na arte medieval. As crianas
eram representadas como adultos em miniaturas.
De acordo com Baptista (2002), as mudanas em relao aos cuidados
dispensados infncia comeam a mudar com a descoberta da demografia, pois
com ela surge uma preocupao em relao mortalidade infantil na Europa.
Contabilizar os habitantes de um pas tornou-se uma prtica a partir dos meados
do sc. XVIII, como meio para dimensionar o potencial produtivo do Estado assim
como engrossar a fora militar. 14.
Nesse contexto, as autoridades percebem que a fase crtica da infncia, a
qual deveria ser dispensada uma ateno cuidadosa no se tratava do ps
desmame, mas a primeira etapa da vida. E ento se evoca a figura da me para
que cuide da educao dos bebs.
Para educar os bebs, evoca-se a figura da me, dando
incio, para os ricos, em uma mudana do estatuto da criana
13
BAPTISTA, 2002, p.16. 14
BAPTISTA, 2002, p.17.
30
pequena. Este novo lugar das crias humanas inaugurar um novo
conceito de relao entre pais e filhos.15.
No Brasil, ao que parece, a importncia da relao precoce entre beb e a
me tambm no fazia parte das preocupaes no atendimento oferecido aos
filhos das operrias das primeiras creches no pas. Quando da criao da licena
maternidade, o perodo que as mes dispunham para ficar com seus filhos era de
84 dias. O que permite inferir que ao trmino deste perodo, as crianas deveriam
ser deixadas nas creches para que a me retomasse seu posto no mercado de
trabalho.
Segundo Oliveira (1998), a forma de ver a creche comeou a mudar no
pas a partir da dcada de 60, com a valorizao da Educao Infantil em funo
da grande expanso de pr-escolas para atendimento s crianas de classe
mdia, (...) que se preocupavam com o desenvolvimento infantil como um todo,
com destaque criatividade e a sociabilidade.16.
Na dcada de 70, aumentam as creches e berrios
mantidos por entidades particulares para crianas da classe
mdia, em geral filhos de profissionais liberais, e que defendiam a
creche como instituio educativa voltada para os aspectos
cognitivos, emocionais e sociais da criana.17.
15
Idem. 16
OLIVEIRA, 1998, p. 49. 17
Idem.
31
E assim, comeam a surgir profissionais e especialistas interessados nas
condies de ingresso da criana pequena na creche e as possveis implicaes
para o desenvolvimento emocional do beb. Garantia de atendimento e
preocupaes com higiene, alimentao e segurana fsica j no so os nicos
tpicos que figuram como importantes para um atendimento satisfatrio s
crianas pequenas.
Nancy Balaban (1988) uma autora americana que se dedica ao assunto,
tratando em seu trabalho aspectos como a importncia do planejamento, as
variadas reaes das crianas, a dificuldade dos pais em deixar o filho com um
estranho, a angstia do professor ao manejar essa situao entre outros detalhes
do cotidiano escolar que devem ser considerados para que, segundo a autora, se
tenha um incio de vida escolar exitoso.
Juliana Davini (1999) em Enfrentando Conflitos de separao: a
adaptao na escola de Educao Infantil considera que a entrada na creche
representa a oficializao da separao entre a me e o beb. A criana ter
de elaborar a separao com a famlia, mais especificamente com a figura da
me e tambm aprender a conviver socialmente.
Aqui no Brasil, possvel perceber que as escolas tentam resolver o
impasse do primeiro contato da criana com o universo pblico planejando a
entrada da criana de forma gradual, poucas horas nos primeiros dias e
permitindo a presena dos pais por um tempo na escola, evitando assim uma
separao abrupta e proporcionando a criana uma segurana para o
32
estabelecimento dos novos vnculos com os amiguinhos e com a educadora, pois
esse perodo visto como:
(...) um perodo especial para o beb, quando ele estabelecer
um vnculo secundrio, ou seja, fora da famlia, e tambm estar
se adaptando a um novo espao e uma nova rotina junto com
outras crianas. Minha proposta, no sentido de amenizar o efeito
de tantas novidades na vida do beb, que se planeje o incio de
uma ou duas crianas por vez, de forma que o adulto possa dar
uma ateno especial a ele e sua me nos primeiros dias.
Proponho tambm que se aumente gradualmente o nmero de
horas que a criana fica na creche a cada dia, variando tambm
os perodos (manh e tarde), caso o turno das educadoras seja de
seis horas.18.
Essa autora tambm considera a importncia da adaptao da me:
Atravs da presena planejada da me nos primeiros dias do
beb na creche podemos minimizar essa ansiedade e facilitar sua
adaptao. O educador poder ganhar muito do tempo que
gastaria para conhecer a criana atravs das dicas que a me
fornecer sobre ela, ao mesmo tempo em que a me poder
conhecer melhor as pessoas com quem estar deixando seu filho,
o lugar e a rotina de atividades que lhe sero oferecidas.19.
18
ABUMANSSUR, 1999, P.16. 19
Idem.
33
Esse considerado um aspecto importante nos dias iniciais da criana na
escola: a compreenso e aceitao por parte dos pais de que tero de deixar seu
filho confiado outra pessoa. uma situao de mudanas tanto para a criana
quanto para os pais que deve ser vista com ateno pelas instituies de ensino
para que exista a possibilidade de uma vida escolar satisfatria:
Se a funo da escola de educao infantil , entre outras,
proporcionar esse espao de aprendizagem significativa,
subsidiada pelo trabalho de educadores atentos aos movimentos
desse processo, o primeiro passo trabalhar a separao entre
pais e filhos, que geralmente est acontecendo pela primeira vez.
o momento da entrada da criana no mundo social mais amplo
representado pela escola e cabe mesma conduzir, orientar esse
momento to importante: o de adaptao de pais e crianas
nova situao, lembrando que uma separao bem elaborada
constitui-se em uma marca que favorecer tantas outras que
fazem parte da vida.20.
Buscando elementos sobre o assunto no campo terico da psicanlise,
encontramos nos escritos de Franoise Dolto (1999) algumas consideraes
feitas a respeito da entrada da criana na escola. Segundo a autora, essa
separao deveria responder a certas condies. Como por exemplo, antes de
ser deixada na creche aos cuidados de estranhos, a criana deveria aprender a
conviver com outras crianas na presena dos pais, seja em local destinado a
essa transio, ou de outra forma.
(...) antes de confiar a criana a alguma instituio que toma
conta dela e onde os pais esto ausentes, absolutamente
necessrio que haja uma experincia intermediria, e se possvel
20
CURY, 1999, p.24.
34
em local intermedirio, onde a criana se habitue a viver com
outras crianas. Pois uma criana tem necessidade das outras
crianas para vacinar-se contra a agressividade da vida em
comunidade, e para estruturar-se. Mas tal experincia deve ser
feita na presena da me ou do pai, que fica no local, e que
tranquiliza a criana sobre sua identidade.21.
Dolto lembra que desde que sai da maternidade a criana j entra em
contato com a coletividade, mas isso deve ser feito com os pais. A autora cita a
Maison Verte como exemplo de lugar intermedirio no incio da vida social da
criana. Trata-se de um local, na Frana, onde as crianas, com pai ou com a
me, podem conviver com outras crianas antes da entrada na vida escolar. A
criana se depara com a realidade e aos poucos adquire segurana para poder
dizer aos pais que j consegue ficar sozinha.
Isso quer dizer que a criana ento est pronta para ir a uma
creche comum onde os pais no ficam. Assim, um local
intermedirio entre a famlia e a creche, onde ela enfrenta os
outros em presena da me, permite criana estruturar-se com o
contato de seus amiguinhos. Ela adquire tambm, o conhecimento
de sua identidade e a certeza de ser amada por aqueles de que
oriunda. 22.
Para a autora, no acontecer esse momento de transio perigoso para a
criana.
O perigo que a criana tenha uma dupla identidade. Na
creche, ela no passa de uma parte num vasto conjunto. E, em
casa, a criana que fica grudada na me ou no pai e incapaz
21
DOLTO, 2007, p.45. 22
Idem.
35
de autonomia. Isso quer dizer que ela no adquiriu sua identidade,
pois a criana que adquiriu sua identidade a mesma onde quer
que v. Essa identidade provm da certeza e da confiana que
tem de ser ela mesma, da conscincia que tem de seu sexo e de
sua idade e do lugar que tem o direito de ocupar no mundo.23.
A Maison Verte tambm tem o propsito de um trabalho de preveno de
perturbaes relacionais. Inclusive, so recebidas tambm mes grvidas. Trata-
se de uma experincia singular, desenvolvida em um contexto especfico, e que
ilustra a importncia do vnculo com as figuras primordiais como a base para os
novos investimentos.
em funo da importncia constitutiva do lao afetivo com a me, que
Dolto pontua a necessidade de um manejo cuidadoso dessa separao, uma vez
que a criana est se constituindo psiquicamente, e para separar-se da me com
tranquilidade precisa construir laos no ambiente da escola para sentir-se segura,
pois: (...) o que dramtico para uma criana, estar no meio de outras crianas
sem saber mais quem ela .24.
Carvalho (2001) em dissertao de mestrado a respeito da creche
fundamentada teoricamente nos pressupostos psicanalticos, na qual conclui ser
a creche um elemento a mais na constituio psquica, trs consideraes sobre
a entrada da criana pequena na instituio e o fato disso representar uma
separao da figura materna. Ela aborda a separao como um dos momentos
fundamentais do processo de estruturao subjetiva. Alis, abordagem que
23
DOLTO, 1999, p.46. 24
DOLTO, 1999, p.45
36
confirma a hiptese inicial de nossa pesquisa e que desenvolveremos com mais
detalhes nos prximos captulos.
Mas se em relao chegada dos bebs na creche os estudiosos esto de
acordo que se trata de uma transio delicada e que requer cuidados, no
acontece o mesmo quanto idade para tal chegada ser o mais satisfatria
possvel.
Andrea Rapoport (2001) 25 uma pesquisadora que se dedicou a esse
momento da vida escolar. Em suas pesquisas, explorou a questo das reaes e
mudanas comportamentais das crianas no perodo de adaptao, com a
inteno de entender as implicaes para o seu desenvolvimento.
E um dos aspectos que encontramos em seu trabalho quanto aos
variados comportamentos dos bebs de acordo com a idade. Rapoport constatou
em pesquisa feita com educadoras de creches que existem diferenas na forma
do beb reagir separao da me nos quatro e cinco meses e nos oito e nove
meses.
A autora encontra fundamentaes para tais constataes nos estudos de
Bowlby (1951) 26 a respeito da ansiedade de separao e na ideia de crise de
reaproximao, descrita por Mahler (1982) 27.
Para Bowlby (1951), no perodo de 6 a 12 meses, (...) a criana adquire
capacidade cognitiva de reter a figura da me na memria e assim passa a temer
25 RAPOPORT, 2001. 26
BOWLBY,1951, apud RAPOPORT, 2001. 27
MAHLER,1982, apud RAPOPORT, 2001.
37
situaes e pessoas estranhas, bem como a prpria separao da me. 28. O
que configuraria para este autor a ansiedade de separao. Por isso os bebs de
8 a 9 meses podem apresentar uma adaptao mais difcil ao chegar creche em
comparao aos de quatro e cinco meses.
No perodo de 16 a 22 meses as crianas estariam vivenciando a crise da
reaproximao, segundo Mahler (1982). Neste momento a criana j caminha e
procura afastar-se da me, o que de um lado lhe d prazer, mas de outro acarreta
ansiedade de separao, fazendo-a retornar me.29.
Assim pode-se inferir que para pensar a adaptao de bebs na concepo
dos autores citados, a idade da chegada creche faz toda a diferena: (...) a
investigao compreensiva da adaptao da criana creche requer que a idade
da criana seja sempre considerada. 30..
Mas nosso estudo no se ater s especificidades como a idade de
chegada creche para refletir sobre o momento da entrada. Nossa inteno
pensar a insero do beb na creche como um acontecimento psiquicamente
estruturante.
De acordo com a bibliografia consultada possvel perceber que a ideia de
separao, enquanto um momento traumtico e que gera sofrimento, entre me e
beb permeia as reflexes. O que faz com que se olhe a creche como uma
intrusa, um elemento estranho que viria perturbar a relao natural entre a me e
filho, um mal necessrio.
28
BOWLBY,1951, apud RAPOPORT, 2001. 29
MAHLER,1982, apud RAPOPORT, 2001. 30
ZAJDEMAN & MINNES, 1991, apud RAPOPORT, 2001, p. 77.
38
E isso tem origem nas origens da creche. J relatamos anteriormente que
tal instituio nasceu para suprir a ausncia forada da me, que necessitava
trabalhar. Ou ainda, para amparar os abandonados e enjeitados por serem frutos
de relacionamentos fora do ncleo familiar ou como forma do Estado compensar
a falta de condies mnimas de sobrevivncia das camadas mais pobres da
populao.
Acompanhando, em nosso relato histrico, a apresentao das
trs primeiras fases vividas pela creche filantrpica, higinico-
sanitarista, de assistncia social inferimos que o que
predominou, durante algumas dcadas, foi a imagem da criana
atrelada a essa instituio como sendo abandonada, descuidada,
debilitada, ameaada e desamparada. So atributos que supomos
estarem diretamente vinculados a preocupaes como proteo,
sobrevivncia e reduo de mortalidade. 31.
Nas ltimas dcadas, sabemos que ocorreram mudanas em relao a
concepo de criana e logo isso se refletiu, inclusive com medidas oficiais, na
forma de atendimento oferecido na creche. As preocupaes hoje so outras:
interao social, desenvolvimento cognitivo, construo da cidadania,
socializao. Mas o imaginrio social que considera a creche como um mal
necessrio, ou seja, est impregnado com as representaes discursivas que
acompanharam o surgimento desta instituio, parece emergir sempre que uma
criana chega creche pela primeira vez. A creche parece ter a funo de abalar,
separar uma relao harmoniosa, natural, que seria a da me com seu beb. Ou
ainda, substituir a me.
31
CARVALHO, 2001, p. 46.
39
Envolvida por esse imaginrio, a creche sustenta um lugar de quem est
separando uma relao tida como natural. V essa chegada da criana ao mundo
pblico como uma desnaturalizao da relao da criana com o ncleo familiar.
E considerando-se o agente desta desnaturalizao, passa a empreender uma
busca por artifcios para saturar/minimizar as manifestaes que so
consequncias deste mal necessrio: o choro e a insegurana dos pais.
Mas no seria a humanizao arbitrria em si mesma? Ser que o choro
da criana ao se deparar com o que lhe estranho e a insegurana dos pais,
pontos que tanto angustiam os educadores e mobilizam as instituies, esto
ligados origem da creche e ao discurso negativo atrelado a essa origem? Ou
seria a expresso de um mal-estar inerente ao enfrentamento do diferente pela
criana e ao fato dos pais darem-se conta de que no podem a tudo prover?
Diante dessas questes arriscamos mais uma: seria possvel pensar a
insero do beb no mundo pblico para alm dos critrios da pedagogia
apoiados nos recursos cognitivos de compreenso? o que pretendemos
entender com a ajuda das consideraes psicanalticas referentes constituio
subjetiva e a construo do Outro, problemtica na qual o beb est imerso ao
chegar creche.
40
3. A PSICANLISE E OS BEBS
41
3.1 A constituio subjetiva
Tendo como objetivo principal deste trabalho entender o significado para a
criana em fase de estruturao psquica do afastamento da figura materna a
partir de elementos tericos tomados emprestados da Psicanlise, fundamental
que se inicie pela constituio subjetiva.
A noo de sujeito psquico entendido como aquele que se constitui a partir
do encontro com outros que permitem a entrada desta criana no campo social,
anterior a sua prpria existncia - como a famlia e o desejo dos pais - e as
intercorrncias da trajetria de cada criana, pode (...) ser concebido como um
elemento organizador do desenvolvimento da criana em todas as suas vertentes,
fsica, psicomotora, cognitiva e psquica. 32.
Abordaremos a constituio subjetiva com base na teoria psicanaltica, sem
a inteno de esgotar o assunto, mas buscando construir um contexto terico
para o momento de transio vivenciado pelo beb na chegada creche.
O beb que vivencia sua primeira experincia escolar encontra-se em
pleno momento de construo da subjetividade. Para entender essa transio
vamos buscar elementos tericos na constituio psquica a partir das
concepes de Freud e Lacan e tendo como apoio, comentadores que se
ocuparam do assunto e em alguns casos articularam a teoria psicanaltica com o
campo da Educao.
32
JERUSALINSKY, et al, 2009.
42
Lacan em sua releitura de Freud, para pensar a constituio do sujeito,
partiu da noo de complexo e das vivncias sociais estabelecidas no mbito
familiar. Escreveu, a pedido de Henri Wallon, com o objetivo de incluir na
Encyclopdie Francaise dedicada vida mental, e publicado em 1938, um texto
sobre Os Complexos Familiares dividindo tais complexos em Complexo do
desmame, Complexo de intruso e Complexo de dipo.
Para Freud, o complexo essencialmente inconsciente e capaz de se
revelar nos atos falhos, nos sonhos e sintomas. Ele tido como um organizador
do psiquismo e ser a partir dessa noo articulada com as interaes familiares,
com a relao inicialmente dual com a figura materna, com a representao da
imago materna Estdio do Espelho- que Lacan ir desenvolver sua teoria a
cerca da constituio do sujeito.
Para vivenciar o complexo do desmame, o primeiro dos trs complexos de
que fala Lacan o beb necessita alcanar as condies psquicas necessrias, ou
seja, internalizar a imago materna se alienando ao cuidador primordial para
depois separar-se dele.
Para isso imprescindvel que antes esse beb tenha sido investido
libidinalmente por um adulto, o outro primordial, que normalmente a me, mas
que pode ser outro cuidador que se ocupe da criana. Este dever interpretar as
reaes motoras do beb como dotadas de sentido, supondo ali um sujeito. O
43
choro do beb ganhar um significado e o outro primordial responder a esse
choro com uma entonao de voz muito particular, o manhs.33.
Mas a entonao da voz apenas um dos aspectos considerados
fundamentais nesta relao do outro primordial com o beb. O sentido conferido
pelo outro primordial s reaes do recm-nascido faz com que as descargas
motoras , que Freud (1985) se referia, sejam escutadas como solicitaes de
cuidados. A me interpreta o choro de seu beb como sendo de fome, frio, dor.
Ao interagir com o beb em momentos de cuidados, nos quais manuseia o
corpo da criana e nomeia suas partes, o adulto cuidador favorece o surgimento
de um corpo, onde se v apenas um organismo e assim se d a organizao
pulsional no corpo do beb. A me ao erogenizar o corpo da criana, o organiza
psiquicamente.
Freud (1985) em Projeto para uma psicologia cientfica, tratou dessa
relao primordial entre a me e seu beb ao se referir primeira experincia de
satisfao. O beb humano ao nascer incapaz de eliminar a tenso fisiolgica
que se apresenta em seu organismo e para isso necessita da interveno
externa, de aes especficas, que devem partir de um adulto que esteja atento
criana.
E esse investimento, essa suposio que dota de sentido as reaes
motoras do beb acontece porque a criana j existia enquanto sujeito para a
me e os outros adultos ligados a ela. Existe uma pr-histria na vida de um
sujeito que antecede a sua existncia fsica. Assim, j existindo na linguagem,
33
KUPFER, et al, 2009.
44
sendo falado e nomeado por seus pais, o recm-nascido poder advir enquanto
sujeito desejante a partir da relao com o outro.
Ento os choros passam a ter significados, a me supe que podem ser de
dor, fome, sono e essa antecipao tem efeitos no beb, causam prazer em
funo do tom melodioso da voz, o que faz a criana buscar corresponder ao que
foi suposto. Assim, a me supe um sujeito aonde ele ainda vir a ser. O beb
responde a essa interpretao de suas reaes pela me, alienando-se a ela.
Essa antecipao causa grande prazer ao beb, j que ela vem
acompanhada de uma manifestao jubilatria da me so
palavras carregadas de uma musicalidade prazerosa, chamadas
de mamanhs (Ferreira, 1997; Laznik, 2000), o que far o beb
buscar corresponder ao que foi antecipado sobre ele. Ao realizar
essa tentativa, trar de volta o efeito de prazer vivido por ele
quando ocorreu a antecipao materna o esgar traduzido pela
me como um sorriso passar a ser de fato um sorriso. 34.
As reaes motoras involuntrias do beb recm-nascido, ao serem
reconhecidas pela me como um pedido, configuram-se em uma demanda:
(...) para a psicanlise, sempre uma demanda de amor desse
sujeito a todos com quem vier a relacionar-se. Essa demanda
estar na base de toda a atividade posterior de linguagem e de
relao com os outros.35.
34
KUPFER, et al, 2009, p.54. 35
KUPFER, et al, 2009, p.55.
45
Podemos nos remeter a esse momento de total identificao com o outro
primordial utilizando a formulao lacaniana de alienao. Lacan (1964), no
Seminrio 11, Os quatro conceitos fundamentais de psicanlise, apresenta os
conceitos de alienao e separao como operaes fundantes do psiquismo.
A alienao seria a primeira operao na qual se funda o sujeito. Para
Lacan a primeira alienao representa a entrada do homem na via da escravido.
A liberdade ou a vida! Se ele escolhe a liberdade, pronto, ele perde as duas
imediatamente se ele escolhe a vida, tem a vida amputada da liberdade.36
Lacan se refere ao fato de que, para ele, o homem est desde antes do
nascimento alienado na linguagem, um ser de linguagem. Somente poder
tornar-se um sujeito ao acessar o registro do simblico e isso se d por meio do
campo discursivo37 que se estabelece entre o recm-nascido e o outro primordial.
O sentido emerge no campo do Outro.38.
Ele sofre determinaes desse sistema simblico que a
linguagem, e ingressar nesta ordem simblica a partir da relao
com o Outro num primeiro momento, presentificado pela me
que vai falar com ele, oferecendo-lhe significantes que o
constituiro. 39.
Mas para que o acesso ao registro do simblico se efetive, se faz
necessrio a ocorrncia do segundo tempo, ou seja, a segunda operao que
funda o sujeito: a separao. Enquanto que o primeiro tempo est fundado na
36
LACAN, 1964, p. 201. 37
Expresso utilizada por CARVALHO, M. T. V., 2001, em substituio relao entre me-beb. 38
BRUDER & BRAUER, 2007, p.515. 39
BRUDER & BRAUER, 2007, p.516.
46
substrutura da reunio, o segundo est fundado na substrutura que chamamos
interseo ou produto 40.
A noo de interseo, que seria o ponto comum entre dois conjuntos, se
trata aqui do recobrimento de duas faltas. Uma a sua prpria falta e a outra a
falta que o sujeito encontra no Outro. Uma falta recobre a outra. Da, a dialtica
dos objetos do desejo, no que ela faz a juno do desejo do sujeito com o desejo
do Outro. 41.
Ao se separar da relao alienante com a figura materna, por exemplo, a
criana poder ento simbolizar esta figura, conservando representaes/marcas
psquicas desta relao em seu aparelho psquico, que seriam o produto desta
relao, e que permitem a ele advir como sujeito. Para Lacan (1964), a palavra
separao remeteria a um engendrar-se, o que para Bruder & Brauer (2007),
promoveria algum acesso liberdade, ainda que limitada.
Neste ponto o sujeito ento retornaria ao ponto inicial, que o da sua
prpria falta e que o levaria a alienar-se novamente. Assim, alienao e
separao no so fases estticas, elas se alternam e se complementam
enquanto operaes fundantes do psiquismo.
Retornando aos complexos lacanianos, temos o Complexo do desmame no
qual acontece a introduo da imago materna e a criana passa a reconhecer que
algum cuida dela. Lacan no refere esse complexo em funo da amamentao,
mas em relao ao outro cuidador, e a existncia desse outro. Inicialmente a
40
LACAN, 1964, p. 202. 41
LACAN, 1964, p. 203.
47
criana no tem noo do corpo prprio, e o complexo do desmame vai propiciar
o surgimento da imago corporal, uma imago que formada a partir do contato
com o outro primordial, que ao cuidar do beb faz com que este se perceba
enquanto um corpo com necessidades e desejos.
No complexo de intruso o sujeito passa a ter ideia do outro, dos
semelhantes. O sentimento que domina o do cime e nessa etapa forma-se a
imago do semelhante. O complexo de intruso coincide com o momento inicial do
estdio do espelho. intermedirio entre o complexo do desmame e o complexo
de dipo. Aqui ainda persiste a relao fusional com o outro no plano imaginrio.
Este complexo diz respeito ao fato de se (...) reconhecer em um grupo familiar,
em relao presena de irmos, no qual pode vir a assumir diferentes posies
ou lugares. 42.
Neste perodo considerado de transio o transitivismo - a criana alterna
as aes dela e do outro, ela faz e recebe a ao, por exemplo, ela bate no outro
e diz que o outro bateu nela. Existe uma falta de percepo de limites, o sujeito
se confunde com o outro. Nessa poca a criana quer o brinquedo que est com
o outro, no adianta oferecer-lhe outro igual.
Ento, a partir do estdio do espelho que a criana vai comear a
construir, pelo vis do olhar do outro, uma imagem de si. E passa a se reconhecer
de uma forma mais distanciada do outro.
Do ponto de vista lacaniano, o estdio do espelho seria um drama para a
criana no qual um impulso interno precipita-se de uma condio de insuficincia
42
BASTOS, 2003, p. 99.
48
para uma de antecipao. Insuficincia por remeter falta de representao do
prprio corpo pela criana e antecipao, pois a imagem que a criana v uma
imagem construda antecipadamente pelo olhar do outro.
Para Lacan (1998), no se trata do corpo real, mas da internalizao da
imagem do prprio corpo. E essa imagem vista por intermdio do olhar que o
outro primordial lhe oferta, pois o que a criana introjeta a imagem que a famlia
construiu dela. Assim, Lacan lembra que o que decisivo na apreenso pela
criana da imagem especular, o carter ilusrio, criado, ou contornado, pelo
desejo e ideais familiares.
Assim o estdio do espelho um momento no qual a criana passa a ter
noo do prprio corpo e de si, a partir de uma imagem falsa, construda pelo
outro e que volta para a criana como um reflexo no espelho.
Para Bastos (2003), o estdio do espelho pode ser resumido em trs
momentos distintos. Num primeiro momento existe um assujeitamento ao registro
imaginrio e acontece a conquista gradativa da imagem do prprio corpo a partir
de uma confuso entre si e o outro. Num segundo momento acontece a
discriminao da imagem, possvel diferenciar o outro real e sua imagem no
espelho. No terceiro momento, alm de diferenciar a imagem do corpo real, passa
a perceber que se trata da sua imagem, do seu corpo.
Porm, a separao inerente ao complexo do desmame no acontece de
forma abrupta, repentina. Para chegar-se a ela, o beb vivencia um processo de
elaborao da alternncia entre a presena e a ausncia da figura materna, que o
levar a desenvolver uma representao psquica da figura materna para suportar
49
os espaos de ausncia, simbolizando essa figura, conforme j foi comentado a
respeito da operao de separao.
A ausncia materna marcar toda ausncia humana como um
acontecimento existencial, digno de nota, obrigando a criana a
desenvolver um dispositivo subjetivo para a sua simbolizao.43.
Dessa forma a presena materna passar a no ser apenas fsica, mas
principalmente simblica.
Freud, em Alm do princpio do prazer (1920) relata a observao que fez
de um menininho brincando de jogar seus brinquedos para fora de seu campo de
viso. Enquanto atirava os brinquedos emitia um som de oooo demonstrando
interesse e satisfao. Para Freud esse som representava a palavra alem Fort.
Freud sups que o menino brincava de ir embora jogando seus brinquedos.
Mais tarde observou uma repetio do jogo que trazia uma parte indita e que
confirmou suas suposies: o menino utilizava um carretel com linha, o qual
arremessava por sobre a borda da cama encortinada, de forma que o mesmo
desaparecia. Esse ato era acompanhado do som oooo. Ento o menino puxava
o barbante fazendo o carretel reaparecer, e ento dizia demonstrando alegria:
d (Ali). Para Freud essa era a verso completa da brincadeira:
desaparecimento e retorno.
Este jogo representa uma forma encontrada pela criana de aceitar a
ausncia da me, podendo deixar o lugar passivo de ter sido deixado para agir
43
KUPFER, et al, 2009, p.55.
50
ativamente ao simboliz-la com o jogo de arremessar e puxar o carretel,
revelando prazer em fazer isso, o que para Freud representaria a criana
deixando a me ir embora e trazendo-a de volta de acordo com sua vontade. Para
Lacan (1938), o Fort-D significa a reproduo pela criana do processo do
desmame e representa o triunfo do sujeito sobre esse complexo, ao comandar
sua reproduo de forma ativa.
Podemos relacionar a falta vivenciada pelo beb com a ausncia da me
com a frustrao, um dos trs estatutos da falta a que Lacan se refere no
Seminrio IV, A relao de objeto. Neste texto o autor faz meno a formas de
substituio da falta do objeto, por meio dos trs diferentes estatutos da falta: a
privao, a frustrao e a castrao. Para Lacan, a frustrao se trata da
modalidade imaginria da falta, onde o objeto real e o agente, a me,
simblico.
O terceiro complexo lacaniano, o complexo de dipo, no diverge do que
encontramos em Freud, em A Dissoluo do Complexo de dipo (1924). a fase
em que a criana, at agora alienada numa relao dual e imaginria com a me,
percebe uma terceira pessoa, a figura do pai, como interditora da sua relao de
fuso com a me.
Nessa circunstncia a criana desenvolve sentimentos de frustrao para
com o progenitor do mesmo sexo, rivalizando com ele e a ele se identificando. O
progenitor do mesmo sexo o agente da interdio sexual, que impede a
satisfao incestuosa. Neste momento a criana toma partido da sua orientao
sexual e ascende ao registro simblico.
51
Para Freud (1924), a angstia de castrao a desencadeadora do
complexo edpico. Para ele a castrao vivenciada de formas distintas em
ambos os sexos, mas num primeiro momento tanto o menino quanto menina
acreditam na premissa universal do falo. Trata-se do perodo da primazia flica no
qual ambos os sexos acreditam que existe apenas um rgo genital, o masculino.
No menino ela comea a ser gestada inconscientemente quando esse tem
o seu rgo genital ameaado imaginariamente pelos pais ou por pessoas que
cuidam dele devido manipulao do rgo feita pela criana. A masturbao,
segundo Freud, constitui uma descarga genital da excitao sexual pertinente ao
complexo de dipo. Porm, essa angstia se manifestar apenas mais tarde,
como foi constatado na anlise do pequeno Hans, em que a ameaa verbal
proferida por sua me foi (...) precipitadamente banida dos seus pensamentos e
s conseguiu tornar seus efeitos aparentes num perodo posterior 44.
De acordo com Freud, o menino desconsidera tal ameaa, pois
desconhece a diferena anatmica dos sexos e no dispe de elementos para
acreditar que a advertncia possa representar algum perigo. A mesma ter efeitos
quando a criana no puder mais ignorar a diferena anatmica entre os sexos,
quando descobrir que a me, assim como as outras mulheres, no possuem um
pnis, desse modo a ameaa retornar associada a esta nova situao que far
eclodir a angstia de castrao com o medo de perder o rgo genital.
O menino acredita que todos possuem um rgo igual ao seu, mas em
determinado momento ir se deparar com a visualizao do rgo genital de sua
44
FREUD, 1996, p.99.
52
irm, ou mesmo de uma amiga de brincadeiras. A partir desse momento, meninos
e meninas comeam a trilhar caminhos diferentes. E isso se deve forma singular
de ambos se posicionarem perante a diferena anatmica dos sexos. Diante
dessa diferena que observa no genital da menina em relao ao seu prprio
rgo prefere acreditar que se refere apenas ao tamanho: um pnis pequeno
que crescer. O pequeno Hans ao observar sua irm ser banhada fez essa
observao.
E assim persiste o falo, como a premissa universal do pnis, mas neste
momento o menino passa a associar a atrofia do genital da menina quelas
antigas admoestaes verbais em relao ao seu comportamento para com o seu
pnis. Ento supe que a menina teve o seu rgo castrado por ter feito algo
desprezvel. O perigo at agora negligenciado passa a ser considerado: se
existem pessoas sem pnis porque o perderam e ele tambm poder perder o
seu. Nesta fase, a me e as mulheres, para ele, respeitveis ainda detm o falo.
Porm, suas investigaes no cessam e ao se ocupar da questo da
origem dos bebs, constatar que tambm a me no possui pnis e ento
eclodir a angstia de castrao: quando a criana retoma os problemas da
origem e nascimento dos bebs, e adivinha que apenas as mulheres podem dar-
lhes nascimento, somente ento tambm a me perde o seu pnis.45.
Inconscientemente o menino passa a temer pela integridade de seu rgo
genital, e esse temor agora ganha sentido, pois a constatao da falta na me
evoca a lembrana das ameaas verbais antes desconsideradas.
45
FREUD, 1909, p.183.
53
Nesse momento, o menino que sustenta uma atitude edipiana em relao
aos pais, deseja ocupar o lugar do pai junto me e supe vagamente que o
pnis deve ter lugar numa relao ertica satisfatria, suposies essas
sustentadas devido s sensaes que experimentou ao manipular seu rgo
genital, passa a reconhecer a impossibilidade de satisfazer seus desejos
incestuosos e tambm a ameaa de castrao:
Agora, porm, sua aceitao da possibilidade de castrao, seu
reconhecimento de que as mulheres eram castradas, punha fim
s suas maneiras possveis de obter satisfao do complexo de
dipo, de vez que ambas acarretam a perda de seu pnis - a
masculina como uma punio resultante e a feminina como
precondio. - Se a satisfao do amor no campo do Complexo
de dipo deve custar criana o pnis, est fadado a surgir um
conflito entre seu interesse narcsico nessa parte de seu corpo e a
catexia libidinal de seus objetos parentais. Nesse conflito, triunfa
normalmente, a primeira dessas foras: o ego da criana volta s
costas ao complexo de dipo. 46.
Ento, ao vivenciar o dilema entre a renncia me como objeto
sexualmente investido e a perda do seu rgo genital, o menino, apoiado em seu
narcisismo, aceita a interdio do incesto imposta pela lei paterna, visando salvar
o seu pnis. Resolve o complexo de dipo, que de acordo com Freud, numa
situao ideal abolido completamente, e deixa emergir assim a instncia
psquica Superego, entrando, aps esse estabelecimento, no perodo de latncia.
J a menina no sofre as ameaas castradoras por parte do pai, nela o
complexo de castrao prepara o nascimento do Complexo de dipo e no a sua
46
FREUD, 1976, p. 221.
54
resoluo. A menina se separa da me, no por sentir-se ameaada, mas por
experimentar sentimentos hostis em relao figura materna ao verificar que a
me castrada. Ento elege o pai como objeto de amor, entrando em seu
Complexo de dipo, que ter o curso de seu desenvolvimento posterior definido
pelo posicionamento que a menina vier a ter em relao falta do rgo
masculino.
Independente da diferena na forma de passar por esse complexo para
ambos os sexos, meninos e meninas devero se assujeitar inscrio da Lei
interditora do incesto, ao reconhecimento da funo simblica do Nome do pai,
que na organizao psquica vir substituir o significante do desejo da me.
Assim, o objeto fundamental do desejo recalcado, mas o seu significante
persistir no inconsciente e insistir em se representar na busca de objetos
substitutos. Dessa forma o sujeito acende ao universo simblico, separando-se da
me, da relao dual e imaginria, e passa a eleger outros objetos na busca da
satisfao do desejo.
Com o declnio do complexo edpico para o menino e com a entrada da
menina neste complexo, situaes que ocorrem em funo da instalao e
operao da funo paterna, pode-se supor uma consolidao dos eventos
fundamentais da constituio da subjetividade que acontecem durante a infncia.
Digo eventos fundamentais, pois o sujeito nunca deixa de constituir-se, de vir a
ser.
E assim temos os principais eventos da constituio da subjetividade.
Importante ressaltar que os acontecimentos aos quais nos referimos como a
55
suposio do sujeito e estabelecimento da demanda, alternncia presena-
ausncia e estabelecimento e operao da funo paterna47, que concorrem para
a estruturao do psiquismo, no ocorrem numa determinada sequncia, mas
organizam as aes da me em torno do beb as quais permitem que este se
torne um sujeito.
3.2. As funes materna e paterna
Uma mulher ao ter um filho supe que o mesmo venha suprir uma falta e
por isso o deseja. Mas ela deve em algum momento perceber que o beb no
obtura o desejo e que o desejo vai alm. Para que isso acontea, algum dever
marcar esse limite, permitindo a essa mulher buscar outros objetos e ao beb
constituir-se desejante, desalienando-se dessa relao dual e primordial,
buscando estabelecer novos laos.
Mas como ocorre esse movimento psquico que desaliena a criana da
relao com o outro primordial e permite o acesso ao universo simblico,
operando inclusive mudanas na forma de expressar-se verbalmente, marcando
com esse momento a aquisio da linguagem?
A operao de alienao figura materna fundante do psiquismo, como
j vimos anteriormente, porm, para que a funo materna possa se cumprir, ela
47
Termos utilizados na pesquisa IRDI (PESARO, 2010) para organizar didaticamente a constituio da subjetividade.
56
necessita da operao da funo inversa: a funo paterna. a funo paterna
que ser a operadora da separao - a segunda operao fundante
desalienando a criana fala do Outro e permitindo sua emergncia enquanto
sujeito.
a funo paterna que coloca em ao a operao edpica, instaurando
limites para a me em relao ao filho e mostrando ao filho a possibilidade de ir
alm, elegendo novos objetos de investimento.
Para que uma mulher, uma me, possa cumprir essa funo,
(...) necessrio que algum marque para ela que este
supostamente que o filho poderia preencher a s suposto
mesmo, j que, para que ele no se perca como sujeito, ela deve
suportar perd-lo, deix-lo crescer. 48.
Quem opera essa separao, o encarnante da funo paterna. Em linhas
gerais, essa funo sustentada pelo pai, o terceiro imediato na relao dual
me-beb. Mas para Crespin, existe um movimento dialtico na sustentao de
tais funes, uma me pode sustentar a funo paterna em determinadas
situaes assim como um pai poder estar no lugar da funo materna em
algumas circunstncias. Para ela, (...) o que chamamos de pai e me, ou melhor,
suas funes, so duas vertentes do lao primordial, duas modalidades diferentes
de entrar em contato como beb e seu Outro da relao. 49.
48
BERNARDINO, 2006, p. 32. 49
CRESPIN, 2004, p.28.
57
Para essa autora, esse lao primordial somente poder ser portador de
qualidades necessrias ao desenvolvimento do psiquismo do beb quando
comportar as duas vertentes, e que elas estejam numa articulao dialtica.
Para Crespin, o homem encarna mais facilmente a funo paterna, por que
de incio para ele o beb um outro, ele no gesta e nem amamenta e assim no
pensa o beb como parte dele mesmo. No existe entre eles essa relao
corporal que se d com a me em funo da gestao e depois da amamentao.
A funo paterna um operador psquico da separao. O
lao primordial, na sua vertente paterna, introduz um corte. Ele
corresponde capacidade separadora do pai e sua funo
reguladora da onipotncia primordial da me. 50.
Crespin (2004) relaciona essas funes, concebidas dessa forma
alternada, com as operaes fundamentais da alienao e separao fundadoras
do psiquismo de que fala Lacan. Seria da articulao dialtica de tais funes,
que para a autora so antagonistas e complementares, que resultariam as trocas
satisfatrias e constituintes para/e com o beb.
Enquanto alienao e separao so as operaes fundadoras do
psiquismo, os encarnantes das funes materna e paterna seriam seus agentes.
Assim, essas funes poderiam ser sustentadas tanto pelo homem quanto
pela mulher. A me poderia estar na posio de funo paterna e o pai na de
50
CRESPIN, 2004, p.29.
58
funo materna. Quando, por exemplo, uma me organiza respostas para o beb
a partir da projeo de desejos semelhantes aos seus, ela se posiciona na
vertente materna. J quando ela admite que a criana seja diferente dela e
respeita sua recusa em relao ao que ela lhe oferta, ela se posiciona na
vertente paterna.
A vertente paterna introduz um limite ao gozo materno,
articulado onipotncia primordial: graas a ele, o beb deixa seu
estatuto de ser uma parte da me, e no se faz mais to
previsvel, totalmente compreensvel, totalmente em seu poder. A
funo paterna introduz a dimenso da alteridade e garante assim
o espao para que o psiquismo da criana possa se desenvolver. 51.
A operao da funo paterna permite ao sujeito o acesso ao universo
simblico, condio para a evoluo psquica e promove o sujeito a sujeito
desejante.
Ao mesmo tempo, a entrada no registro simblico representa uma
alienao do desejo ao campo da linguagem, trazendo a questo da
impossibilidade da satisfao, instaurando a dimenso da falta e da diviso do
sujeito, enquanto assujeitado lgica inconsciente.
51
CRESPIN, 2004, p.31.
59
3.3 A construo do Outro para o beb
A noo de campo do Outro encontrada em Lacan no Seminrio 11 Os
quatro conceitos fundamentais de Psicanlise. O autor utiliza essa terminologia
para designar:
(...) um lugar simblico o significante, a lei, a linguagem, o
inconsciente, ou, ainda, Deus que determina o sujeito, ora de
maneira ultra-subjetiva em sua relao com o desejo. Pode ser
simplesmente escrito com maiscula, opondo-se ento a um outro
com letra minscula, definido como outro imaginrio ou lugar da
alteridade especular. Mas pode tambm receber a grafia grande
Outro ou grande A, opondo-se ento quer ao pequeno outro, quer
ao pequeno a, definido como objeto (pequeno)a. 52.
O campo do Outro, enquanto ordem simblica que determina o sujeito,
no se restringe ao casal parental e pr-existente ao nascimento. A ideia de
uma ordem pr-existente ao recm-nascido j estava nos escritos freudianos:
Essa questo j estava colocada em Freud tanto em Trs
ensaios sobre a teoria sexual, como em Psicologia das massas.
No primeiro texto, Freud j apontava para um plano anterior, que
precede ao da interao me-beb, correspondente pr-histria,
filognese, ao mito ou ao fantasma. No segundo texto, Freud
ressalta que h uma incorporao prvia do pai pelo beb anterior
relao fsica da me com o beb. 53.
52
ROUDINESCO, 1944, p. 558. 53
PESARO, 2010, p.28.
60
Na medida em que existia simbolicamente nos planos de seus pais, o beb
era enredado pelas marcas do campo do Outro no qual esses adultos estavam
mergulhados e que determinava o desejo dos mesmos.
Sendo o campo do Outro definido como um lugar simblico que ultrapassa
o casal parental, que o envolve de tal forma a ser transmitido pelo desejo do
mesmo ao recm-nascido, - e que esse lugar simblico engloba a lei, a
linguagem, o inconsciente, Deus, ou seja, trata-se da cultura de um povo -
podemos afirmar que a escola, a funo do educador, parte desse grande
Outro.
Embora esse grande Outro enrede a criana mesmo antes de sua
existncia biolgica, o contrrio no acontece da mesma forma: o recm-nascido
no se apropria imediatamente de todo esse universo simblico que o precede.
No nasce conhecendo as leis, os hbitos e costumes de sua cultura nem falando
a lngua de seu pas. O campo do Outro sujeita o recm-nascido/chegado por
meio do desejo dos pais, da linguagem e da cultura na qual nasceu, mas ele ter
que dele se apropriar para torn-lo seu.
Cabe aqui a conhecida frase de Goethe: Aquilo que herdaste de teus pais,
conquista-o para faz-lo teu. Freud (1912-1914) se utilizou dela para fazer-se
entender a respeito da herana de disposies psquicas como um meio de
transmisso de estados mentais de uma gerao outra. Mas como um beb
poder conquistar um lugar no campo do Outro?
A conquista de um lugar no campo do Outro para um recm-nascido se
confunde com a constituio de sua subjetividade. Falar de constituio subjetiva
61
falar de construo do Outro e vice-versa. Para tornar-se um sujeito, o beb ter
de alcanar o registro do simblico, l onde se encontra o grande Outro.
O primeiro momento da constituio subjetiva, representada na psicanlise
por uma relao alienante entre me-beb, tem incio no investimento libidinal do
outro54 primordial a me que permite criana organizar sua experincia de
vida. pela voz, pelo toque e pelo olhar da me, a qual v nas primeiras reaes
motoras do beb uma demanda por algo: necessita de alimento, de cuidados
higinicos ou mesmo de companhia, que se abre caminho para uma identificao
do recm-nascido com a figura materna.
A interpretao feita pela me, atravessada por seu desejo, pois muito
provavelmente esta mulher entender os pedidos de seu pequeno a partir dos
significantes inconscientes da poca quando tambm era um beb e por sua vez
foi cuidada por sua me, dota de sentido os sons e movimentos mecnicos vindos
do beb. A me, o pequeno outro, filtra de certa forma os significantes advindos
do grande Outro, no qual ela encontra-se mergulhada e alienada. O contedo que
chega ao beb vem interpretado pela problemtica psquica da me.
Na relao da criana com o pequeno outro representado pela figura da
me, primeiramente, o beb no se distingue como algum separado deste outro.
Est alienado s palavras da me e ainda no construiu a imagem do prprio
corpo. Esta questo se desenrola satisfatoriamente com a identificao do beb,
54
Grafado com o minsculo quando se referir relao do sujeito com outro semelhante. Utilizaremos Outro com O maisculo quando nos referirmos ao registro simblico, conforme a definio lacaniana.
62
no desenrolar do estdio do espelho, imagem refletida no olhar e nas palavras
da me.
Estdio do espelho foi a nomenclatura proposta por Lacan, subsidiada em
estudos anteriores realizados por Henri Wallon, para nomear o movimento
identificatrio do beb sua prpria imagem no contexto da relao imaginria
com a figura materna. Ao passar pelo estgio do espelho, a criana passa a
reconhecer-se como algum separado da imagem materna, comea a reconhecer
o outro como algo separado de si mesmo. Na linguagem lacaniana, a relao dual
do beb com o cuidador primordial uma relao no plano imaginrio55.
Assim a problemtica especular, no seu desenrolar, acaba tendo para a
criana um efeito de corte na alienao figura materna. A criana num primeiro
momento, no se experimenta como sendo esse beb para quem sua me sorri e
com quem conversa com tanta animao. No se reconhece na imagem do
espelho, acredita tratar-se de outra criana, um terceiro que est se intrometendo
na sua relao com sua me. Para resolver o problema, identifica-se imagem do
espelho, ou imagem que lhe devolvida pela me, com a inteno de recuperar
o seu lugar supostamente perdido para o beb do espelho.
A assuno jubilatria de sua imagem especular por esse ser
ainda mergulhado na impotncia motora e na dependncia da
amamentao que o filhote do homem nesse estgio de infans
parecer-nos-, pois, manifestar, numa situao exemplar, a matriz
simblica em que o [eu] se precipita numa forma primordial, antes
de se objetivar na dialtica da identificao com o outro e antes
55
Refere-se aos trs registros da teoria lacaniana; imaginrio, simblico e real.
63
que a linguagem lhe restitua, no universal, sua funo de sujeito. 56.
Aqui podemos dizer que o beb comea a tomar para si um lugar no
campo do Outro, na medida em que se identifica com essa imagem que sua me
aprecia - se aprecia por que diz respeito ao seu desejo, recortado no campo do
Outro ao qual ela est assujeitada - para poder recuperar o amor materno. Desse
modo realiza-se a identificao primordial na qual a imagem do corpo, sua
representao em uma totalidade, estruturante para a identidade do sujeito. 57.
O beb do espelho, recortado no desejo da me, determinado pelas
variveis que compe o grande Outro para ela, tem um efeito constituinte, mas
tambm interditor na relao imaginria me-beb e abre o domnio do simblico
para a criana. Constituinte, pois permite ao beb reconhecer-se e perceber o
outro. Interditor, pois ele percebe que o desejo da me pode se voltar a outras
direes e cabe a ele esforar-se para recuper-lo.
Esse momento em que se conclui o estdio do espelho inaugura,
pela identificao com a imago do semelhante e pelo drama do
cime primordial, (to bem ressaltado pela escola de Charlotte
Buhler nos fenmenos de transitivismo infantil), a dialtica que
desde ento liga o eu a situaes socialmente elaboradas 58.
56
LACAN, 1998, p.97. 57
BASTOS, 2003, p. 104. 58
LACAN, 1998, p.101.
64
Bernardino (2006) ao se referir famlia como transm
Top Related