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Ao bom mestre.
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A soberba vem antes da ruína
e a altivez do espírito precede a queda.
Provérbios 16:18Provérbios 16:18Provérbios 16:18Provérbios 16:18
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Sumário
Prólogo ........................................................................................................................................... 8
Capítulo 1 .................................................................................................................................... 13
Capítulo 2 .................................................................................................................................... 36
Capítulo 3 .................................................................................................................................... 44
Capítulo 4 .................................................................................................................................... 51
Capítulo 5 .................................................................................................................................... 53
Capítulo 6 .................................................................................................................................... 58
Capítulo 7 .................................................................................................................................... 65
Capítulo 8 .................................................................................................................................... 70
Capítulo 9 .................................................................................................................................... 75
Capítulo 10 .................................................................................................................................. 84
Capítulo 11 .................................................................................................................................. 96
Capítulo 12 .................................................................................................................................. 97
Capítulo 13 ................................................................................................................................ 105
Capítulo 14 ................................................................................................................................ 111
Capítulo 15 ................................................................................................................................ 119
Capítulo 16 ................................................................................................................................ 135
Capítulo 17 ................................................................................................................................ 141
Capítulo 18 ................................................................................................................................ 148
Capítulo 19 ................................................................................................................................ 153
Capítulo 20 ................................................................................................................................ 165
Capítulo 21 ................................................................................................................................ 172
Capítulo 22 ................................................................................................................................ 182
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Capítulo 23 ................................................................................................................................ 188
Capítulo 24 ................................................................................................................................ 195
Capítulo 25 ................................................................................................................................ 203
Capítulo 26 ................................................................................................................................ 211
Capítulo 27 ................................................................................................................................ 220
Capítulo 28 ................................................................................................................................ 229
Capítulo 29 ................................................................................................................................ 238
Capítulo 30 ................................................................................................................................ 245
Capítulo 31 ................................................................................................................................ 252
Capítulo 32 ................................................................................................................................ 258
Capítulo 33 ................................................................................................................................ 265
Capítulo 34 ................................................................................................................................ 276
Capítulo 35 ................................................................................................................................ 285
Capítulo 36 ................................................................................................................................ 294
Capítulo 37 ................................................................................................................................ 298
Capítulo 38 ................................................................................................................................ 305
Reflexão final .............................................................................................................................. 313
Paritura ...................................................................................................................................... 315
Agradecimentos .......................................................................................................................... 324
Agradecimentos Especiais ........................................................................................................... 325
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PPPPrólogorólogorólogorólogo
DDDDasasasas coisascoisascoisascoisas qqqqueueueue o primeiro homemo primeiro homemo primeiro homemo primeiro homem conhecia desde que recebeu o fôlego da vida, nada
era igual a isso. No meio da noite, ele se escondeu no alto de uma colina rochosa,
próximo da entrada de uma caverna estreita, para observar aquela chama de fogo que
pairava no ar. Distante e ao norte, a labareda fazia movimentos circulares em torno dos
limites de um bosque sombrio.
A primeira mulher também não tinha se habituado à chama, mas não possuía a
mesma curiosidade que seu marido. Não estava nem mesmo acostumada a usar nada
sobre o corpo, mas agora necessitava se cobrir com um traje de pele animal.
Talvez ela estivesse mais preocupada com as fortes dores nas entranhas, que
passou a sentir com frequência. Olhando para o alto e em direção contrária ao seu
companheiro, suas mãos alisavam o próprio ventre, que crescia um pouco mais a cada
dia, comprimindo-se dentro da roupa.
Antes disso, os dois haviam chorado muito. Agora, a confiança entre eles estava
abalada. Ele a culpava pela insensatez. Ela o responsabilizava pela falta de proteção. Erao início do que eles começariam a sofrer por causa de um ato de desobediência.
Naquele momento, o homem não estava interessado em sua parceira. Preferia
olhar para aquela vigilante chama. Estava magnetizado pelo interior dela. As labaredas
cobriam uma peça metálica comprida e estreita, que tinha o tamanho de seu braço.
Havia um gume preciso em cada lado da lâmina avermelhada pelo calor. Era mais leve
que o ar e de aparência devoradora.
O mentor do primeiro homem chegou a lhe ensinar sobre os princípios da forjametálica, mas ele não se aprofundou no assunto. Logo aprenderia como fazer os
objetos que os seres brilhantes usavam, mas um erro mudou o rumo da história.
Nunca mais sentiremos o sabor da vida.
O humano não se atreveria a se reaproximar do primeiro lar. Ele e sua
companheira não desobedeceriam outra ordem tão cedo. Mesmo que quisessem, ao
menor sinal de movimento próximo das flores murchas, a espada flamejante zuniria
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nos ares em proteção avassaladora. Ninguém poderia voltar àquele jardim. Nunca
mais.
Meditando sobre essas coisas com tristeza misturada à saudade, o homem
tentava entender sobre as causas que levaram seu mentor a colocar algo tão poderoso
para impedir o acesso à Árvore da Vida. Dias antes, uma dúvida poderia ser esclarecida
no entardecer de qualquer dia, mas esse tempo acabara. Naquele instante, algumas
respostas de seus questionamentos só chegariam para outras gerações. Tudo por causa
da desobediência.
A tentação foi doce no início e amarga no fim.
Aqueles primeiros humanos, porém, não sabiam que a assombrosa arma de
guerra não estava ali por causa deles. Tudo começou em um reino estabelecido muitoantes dos humanos andarem sobre o pó: o Reino dos Céus.
Para que um reino seja estabelecido é preciso um lugar. Neste lugar, deve haver
habitantes. Os habitantes que buscam alimento, proteção e abrigo escolhem o mais
forte para liderá-los e o fazem rei. Este rei deve proteger os moradores do reino e, paraisso, forma um exército. Os recursos para proteger o povo são mantidos mediante
impostos justos pagos pelo povo. Assim, o rei trabalha para suprir as necessidades de
seus habitantes e, com isso, promover a paz.
Mas, no Reino dos Céus, o primeiro estabelecido entre as galáxias, tudo
aconteceu em outra ordem. Primeiro havia o rei. Por ele foram criados o reino e seus
residentes. O povo não precisava de um exército porque não existia ameaça ou
qualquer necessidade. O Reino dos Céus era um lugar de paz, e seu rei era o amor.Tudo obra de um único ser. Seu nome é conhecido até hoje como Senhor, Rei,
Mentor, Eterno, Pai, Mestre, Criador ou apenas Deus. Desde quando habitava a
vastidão vazia, seu poder e conhecimento já eram absolutos. Deus podia enxergar o
passado, o presente e o futuro ao mesmo tempo.
Para Ele, caminhar de um universo a outro levava o mesmo tempo de atravessar
um rio. A distância entre os planetas de um sistema solar, assim como os elétrons de
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um mesmo átomo, era puramente relativa. Para Deus, casa e cosmos era uma mesma e
única coisa. Assim foi o início do Reino dos Céus...
...até que Deus almejou formar uma família para si.
O Criador elaborou o plano para formar uma imensa família de seres de luz.
Cada ser, uma obra de seu amor — um multiplicador da paz.
Dentre muitas categorias, assim foram formados os Arcanjos, Querubins,
Serafins, Dominadores, Potestades, Principados e os Anjos Simples e Menores. Com
vestes de luzes e asas que surgiam apenas quando precisavam, os anjos eram belos em
fisionomias e atitudes.
Os anjos do Senhor trabalhavam em áreas específicas, cada qual com o seu
talento. Não importava se era um Arcanjo, Querubim, Serafim, Potestade ou um AnjoSimples: a função e missão designadas eram medidas não por uma hierarquia celeste,
mas pela vontade do Rei manifesta em sabedoria e autoridade.
No começo, viviam em uma mesma superfície. Mas depois, Deus formou
alguns níveis de Céu conhecidos como as três dimensões em constante evolução. O
tempo transforma tudo — dizia.
As três superfícies concêntricas do Reino dos Céus foram classificadas pela
ordem de importância que Deus lhes deu. Entre os territórios, um único dia poderiater a contagem de milhares de anos de uma dimensão para outra. Essa diferença na
contagem do tempo e do espaço era para o entendimento de poucos.
Uma imensa esfera azul circulante em torno do sol amarelo, o Primeiro Céu era
o berço das mais recentes concepções. Vastidões de terra cercadas de águas salgadas,
que recebiam o suave desaguar do Rio de Vida.
Neste mundo habitava boa parte dos Anjos Simples, Principados, Potestades e
Dominadores. Alguns Serafins também escolhiam residir nesta terra sinuosa, juntos agigantescos répteis chamados de tanniyns. O ambiente era de natureza espetacular,
abrigando fauna e flora incomparáveis pela extensão cósmica.
Um inteligente querubim, que se destacava por seu talento musical, foi
especialmente ungido para cuidar deste território. Uma grande honra dada pelo
próprio Deus.
Acima desta região, para quem olhasse além do início da cachoeira vinda por
sobre as nuvens, estava posicionado o Segundo Céu. Seu relevo era formado por
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montanhas e vales com o Oceano Hakodesh em seu centro. O Rio de Vida desaguava
neste oceano cristalino, que de lá vertia para o Primeiro Céu. Nesta parte do Reino
foram erguidas cidades celestiais, com destaque para o conjunto de cidades que
formavam a grande Tziyon — um lugar de ensinamento e trabalho.
Nesta capital celeste viviam os serafins. Eram eles os responsáveis por
executarem a arquitetura do Segundo Céu como verdadeira poesia. As esculturas e
outras obras artísticas por eles elaboradas eram um primor à parte. Um detalhe
interessante é que os metais raros que os artistas usavam tinham uma conotação
própria neste território. O ouro era o símbolo de pureza e eternidade. Pedras preciosas,
por sua vez, eram associadas à perfeição.
Mas nenhum outro lugar era comparado ao Terceiro Céu. Este ambiente etéreorepousado nas extremidades do cosmos em expansão tem uma lenda particular. Alguns
contam que Deus gostava de ali surgir para conversar, sempre que alguém pedia. Certa
vez, os anjos desejaram se assentar com Deus para conversar, porém todos quiseram a
mesma coisa no mesmo instante. O resultado foi o espaço da existência completamente
ocupado por uma luz intransponível. Por pouco os anjos não pereceram por sentir a
presença do Criador multiplicada tantas vezes.
Depois desse episódio, os anjos pediram para vê-Lo em um lugar especial, umlugar onde os habitantes celestes poderiam ficar próximos de Deus, milhões ao mesmo
tempo. Assim surgiu o Terceiro Céu e o Salão do Trono.
Este salão era uma atraente mistura da vida natural e sintética dos outros
territórios. Lá dentro ficava a fonte do Rio de Vida. Mas o acesso ao Terceiro Céu não
era pelos ares, e sim por uma descomunal e elevada escadaria de pedra branca suspensa
nos ares.
Os anjos tinham que subir a pé, degrau por degrau, por um único acesso, aoSalão do Trono. Por conta de uma força gravitacional incomum, as asas dos luzentes
não serviam para voar quando passavam pela escadaria. Porém, aqueles que buscavam
contemplar a bondade de Deus não se importavam com a falta do voo enquanto
escalavam os milhares de níveis sobre o Oceano Hakodesh.
O acesso estava constantemente repleto de anjos subindo e descendo por seus
largos degraus, mas só os Arcanjos e outros poucos conseguiam chegar ao Terceiro Céu
com o bater das asas.
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No entanto, ao atravessar as grandes portas do Salão do Trono, todo o esforço
era recompensado. O que eles viam e sentiam era um mistério agradável de ser
desvendado. Este era o Reino dos Céus, uma criação após outra para a felicidade eterna
de uma família unida por um elo eterno, tal como seu Criador.
Eterno.
Os anjos sabiam que este fato era incontestável, apesar de pouco compreensível.
Entretanto, um ser celestial com capacidade intelectual superior à maioria, escolheu
colocar à prova esta verdade absoluta. As consequências dessa escolha deram motivos
para aquela espada de fogo guardar a entrada daquele jardim proibido.
O homem não ficaria tão preocupado com aquela ameaçadora lâmina suspensa
se soubesse que uma guerra começara por causa da simples notícia de sua criação. Uma
guerra que dura até os dias de hoje.
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CapítuloCapítuloCapítuloCapítulo 1111
O Reino trepidava O Reino trepidava O Reino trepidava O Reino trepidava num compasso intenso. As pernas de Banay tremiam sobre o chão
queimado de uma terra aniquilada. Munido com uma espada à altura do rosto em
posição de ataque, sentia-se pronto para atacar a ameaça.
As nuvens bronze-escuro impediam o sol de mostrar a face dos dois seres que se
opunham aos seus comandos. O vento morno secando o suor na face despertou o
jovem anjo pra gritar a advertência pela segunda vez.— Saiam daqui! Tenho ordem para não deixar que nenhum celeste permaneça
nesta dimensão e vou cumpri-la. Convertam-se ao novo reino ou serão destruídos. Não
vou repetir.
As duas figuras silenciosas de vestes brancas talares continuavam imóveis,
camufladas atrás do vapor da lava incandescente. Porém, foi possível ver que eles
estenderam as palmas das mãos como se chamassem aquele que os ameaçava.
Banay era um serafim de aparência nova e altiva, mas o escuro em volta daspálpebras o fazia acabado. Tinha o queixo um pouco recuado, cabelo castanho da cor
dos olhos, que contrastava com uma rasgada túnica azul claro suja de preto.
— Eu avisei! — lembrou o jovem.
A velocidade de seus passos fez com que as brasas no chão voltassem às chamas.
Um urro animal lhe conferiu a fúria necessária para golpeá-los em um único corte
diagonal, sem que olhasse para eles. Os dois seres iluminados caíram de joelhos e o
silêncio deles deu lugar aos gemidos. O serafim continuou de costas e cabisbaixo,
escondido na fumaça. A espada ainda estava na posição final do golpe quando
perguntou:
— Vocês têm algo a dizer antes de partirem em paz?
— O efeito... da justiça... é a paz... — respondeu uma voz antiga.
Um arrepio gélido se apossou de Banay dos pés à nuca. Não pode ser! Ele jogou
a lâmina sobre a escória e voltou-se acelerado para os anjos que ferira. Ao tomá-los nos
braços, amargou reconhecer seus amados professores serafins.
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Um era Likud, seu mestre em consolidações, que ainda movimentava o peito
magro para manter o último fôlego de vida sob a barba comprida. Ao seu lado estava o
calculista Chishuv, um calvo ancião de pele crespa e olhos acolhedores.
Chishuv foi quem lembrou seu aluno sobre o resultado equacional da justiça de
Deus. Banay repousou as cabeças deles em seu colo, tentando inutilmente estancar a
ferida que causara.
— Ah, meu Deus! Meu Deus! Por que vocês não se identificaram para mim?
Por quê?
Sorrindo com dificuldade, o sábio calculista tocou o rosto do jovem serafim e
secou suas lágrimas. O brilho dos anciãos se apagava à medida que o choro de Banay
aumentava.— Isso está errado... Está errado... — lamentava o assassino.
O exército do líder rebelde estava próximo de seu apogeu e Banay era só mais
um de seus soldados. O serafim percebeu que o golpe de sua espada, antes usada como
faca de construção, não mudara sua vida para melhor.
Seu ataque sobre os mestres o fez questionar suas últimas práticas no Primeiro
Céu. Ele presenciou o impacto do meteoro gigante que provocou incalculáveis
terremotos em escalas extremas, modificando as colunas geológicas de maneirainesperada. Desde então, os vapores de enxofre e poeira incandescente desprendida
após a colisão produziram uma nuvem de aniquilação sobre toda forma vivente. O
Primeiro Céu foi inteiramente destruído por esse cataclismo e Banay recebeu a missão
de mantê-lo vazio a qualquer preço.
Angustiado por uma trilha petrificada do que antes fora um bosque, o serafim
levava os corpos de seus professores nos ombros. Com um nó dolorido na garganta,
constatava atônito como o fogo transformara florestas inteiras em carvão. Sem os raiossolares, a densa nevoa de pó e tristeza impediu a vida de seguir seu curso. Os poucos
répteis que resistiram à lava lutavam bravamente pela sobrevivência. Mas, sem
alimento, sem água e oxigênio, eles agonizavam até a morte. O fim dos grandes
tanniyns estava selado.
— Meu Deus, do que eu estou fazendo parte? Esperava tanto que as mudanças
fossem para o bem, mas só vejo desgraça!
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O vale que antes abrigava o denso bosque em torno do magnífico Jardim de
Deus, agora lhe causava temor. O Rio de Vida de águas caudalosas estava inerte.
Parecia uma estrada de lama negra e movediça, quase estacionada. De suas margens
exalava um odor nauseante de carne podre.
A nascente da cascata do Rio de Vida, nas alturas, deu lugar a um caldo escuro,
que escorria de nuvens negras e marrons. A cachoeira celeste tornou-se uma densa
coluna pendurada nas alturas.
Julgando ter visto devastação suficiente no Primeiro Céu, o serafim fez surgir
suas asas com o triplo de seu tamanho, de ponta a ponta. Agitou as penas e subiu pelos
ares, atravessando bem acima das nuvens escuras, levando consigo seus antigos mestres.
Mas no Segundo Céu as coisas não estavam melhores do que lá embaixo. Ocenário da civilização celeste era de destruição, morte e ruína. Sob uma forte chuva, o
serafim chegou à cidade de Tziyon na metade do dia. A capital exibia com desonra as
cicatrizes da primeira guerra.
Ao pousar suas sandálias sobre o que sobrara das ruas da grande capital, Banay
repousou os corpos de Likud e Chishuv debaixo de um escombro seco para protegê-los
das águas. Se eu conseguir pelo menos uma folha da Árvore da Vida, eles ficarão bem.
Preciso encontrar alguma coisa. Talvez ainda tenha na praça.Banay queria encontrar cura na cidade para os anciãos, mas quando se ergueu
sobre uma alta montanha de tijolos para entender melhor onde estava, viu as ruas
cobertas por milhares de cadáveres de anjos. Os corpos inexpressivos eram lavados da
imundície de seus opressores. A morte cruel o cercava.
O ventre de Banay se revirou, fazendo-o vomitar. Ele queria sair dali, mas o
temporal o impedia de voar novamente e os acessos da cidade estavam obstruídos pelos
desmoronamentos.Forçado a percorrer as vielas até o centro da cidade, notou que as Árvores da
Vida no perímetro circular da Praça Echad haviam se tornado gravetos queimados e
pontudos. Do magnífico Palácio Central em frente à praça só restavam poucas colunas
e alguns sinais de uma civilização pacífica.
Caminhando desorientado pelo alagamento, Banay percebeu ao longe quatro
anjos da resistência celeste se arrastando pelo escoamento das águas lamacentas. Sem
coragem para ajudá-los, temendo ser uma emboscada, o serafim se escondeu atrás de
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escombros que estavam na esquina. Mas aqueles anjos não conseguiriam aplicar
qualquer golpe. Estavam com as pernas dilaceradas e os olhos cegados pelo fogo. Em
vão, tentavam levantar apoiados uns nos outros. Porém, um sobrevoo baixo de dois
rebeldes em turbilhão, vindos do norte, revolveu a lama das ruas. A força do vento
formou um chicote imundo sobre seus corpos.
Os soldados com asas calafetadas, adaptadas para a chuva, riram por terem
soterrado aqueles feridos no caminho. E ainda encontraram Banay, que rapidamente
disfarçou sua expressão para se assemelhar aos debochados.
— Vamos embora, serafim! Aqui não tem mais nada pra gente — convidou um
dos voadores.
Estavam atrasados para se juntar ao seu regimento e Banay sabia que ocomandante não estava severo com a demora da vitória. Estava violento.
Depois que os outros se distanciaram, os corpos dos feridos e mortos apenas se
molhavam. E ele sentia a chuva enquanto olhava as torres de habitação que ajudara a
construir. Havia marcas de algo — ou alguém — que atravessou suas paredes inúmeras
vezes. Vigas distorcidas indicavam o sentido da força destruidora.
Que foi isso?
O exército rebelde acabou com tudo que encontrou em seu caminho. Sobraramcampos e campos de uma metrópole celeste revirada pelo avesso.
Sem decidir se buscaria cura para seus mestres, se ajudaria os quatro anjos
feridos ou se acompanharia os demais rebeldes, o jovem estava literalmente em uma
encruzilhada sob chuva, trovões e tremor. Mas em uma das poucas paredes que restou
em pé ao sul da Avenida Echad, Banay leu uma frase deixada por um dos celestes. Era
uma mensagem grafada com uma espécie de alcatrão sobre um reboco marcado de
guerra.
Da felicidade ao sofrimento bastaDa felicidade ao sofrimento bastaDa felicidade ao sofrimento bastaDa felicidade ao sofrimento basta apenasapenasapenasapenas um passo;um passo;um passo;um passo;
do sofrimento para a felicidade pode ddo sofrimento para a felicidade pode ddo sofrimento para a felicidade pode ddo sofrimento para a felicidade pode duuuurarrarrarrar para semprepara semprepara semprepara sempre....
O serafim ficou ali, diante do grafite, observando a inscrição borrada se
juntando à enxurrada. Banay se juntaria à água ou ao piche? Mesmo confuso, ele sabia
que tinha que tomar a sua decisão e não poderia adiar.
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As torrentes de águas rebeldes levavam muitas coisas em seu curso, menos a
honra dos anjos que defenderam os ideais de seu Deus. Eles lutaram pelo que
acreditavam e isso ficaria registrado na história.
Apesar de rápida, a guerra no Segundo Céu foi a mais ferrenha que o exército
insurgente enfrentou. Em Tziyon, os generais se depararam com uma defesa altamente
organizada. Os arcanjos trabalharam bem e em pouco tempo. Seria difícil transpor a
resistência celeste se o grande líder rebelde não tivesse concebido a mais baixa ideia que
alguém poderia ter. Os seus soldados vibraram com a vitória, mas não entenderam o
que seu comandante havia feito para alcançá-la.Fora dos limites da cidade o tremor era maior, além da região montanhosa onde
a cidade de Tziyon estava edificada. A força do epicentro era sentida depois da descida
da serra, mais próximo da praia. A marcha dos milhões de guerreiros rebelados era a
razão do abalo sísmico no Reino dos Céus. “Marchem, não voem” — esta era a ordem.
No solo, o impacto das sandálias negras trançadas até os joelhos expressava o
ódio pelo atual governo. Esse sentimento machucava a existência por completo, mas
eles não se importavam. Em qualquer casta, a maldade se tornara o principal traço deidentificação dos soldados. Pareciam indivíduos originados da crueldade e não da luz.
A chuva foi se dissipando enquanto as tropas seguiam pela larga Estrada Hagah.
Era um caminho de terra batida com pó de pedra, que ligava o Oceano Hakodesh a
cidade de Tziyon, usado no passado para o transporte dos materiais de construção
usados para erguer a metrópole. Percorrer sua extensão pela planície cercada de
cipestres era um convite à meditação.
Dentre os milhares de batalhões que marchavam apressados ao ponto deencontro, um anjo dominador de olhos avermelhados e cavanhaque curto instigava seu
grupamento. Ele agia como se liderasse uma alcateia faminta.
— Só nos falta a conquista do último território. Qual de vocês está pronto para
tomar o Terceiro Céu?
A resposta daqueles anjos vinha em rugidos de guerra. Os rebelados se tornaram
egocêntricos insuportáveis até mesmo entre eles. Sentiam-se pequenos deuses sob um
peitoral de escamas metálicas pentagonais sobre uma túnica encardida acima dos
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joelhos. A espada embainhada à coxa esquerda tinha a lâmina desgastada, mas bruta o
suficiente para continuarem o avanço.
O capacete pontiagudo de cobre ainda brilhante protegia uma expressão que
não combinava com o rosto de um anjo. Nas costas entre asas altas, o escudo redondo
e a aljava munida de flechas envenenadas eram carregados com orgulho. Os rebeldes
não usavam arco.
Em seus corpos, a transgressão das leis naturais do amor era materializada num
caldo negro e viscoso no Reino dos Céus. Este sim era um armamento mortal. Quanto
mais os rebelados odiavam a Criação e seu Criador, mais esse líquido escuro e pegajoso
inundava os domínios do reino, e os artifícios forjados pelos serafins terminaram de
espalhar pelos ares aquilo que Deus menos suportava.
De fora da formação militar a caminho do mar, o jovem capitão de pele
avermelhada, de trança em forma de corda, seguia longe dos outros líderes. Carregando
o capacete como cesta no braço esquerdo, seguia pela beira da estrada. Escondia as asas
alaranjadas junto ao uniforme de guerra. Queria um pouco de discrição. A tentativa do capitão Mamom de seduzir Asmodeu só serviu para provocar a
ira de Leviatã. Não estava arrependido. Para ele, a loira Asmodeu valera o risco de
bater de frente com aquele oriental impulsivo.
O ambicioso serafim até apresentava um porte vigoroso pelo seu trabalho de
ourives, mas estava evitando brigas desde que lera uma frase em especial. Aquelas
palavras em alcatrão deixadas em um muro da capital o incomodaram profundamente:
“Da felicidade ao sofrimento basta apenas um passo...”Esfregando o anguloso queixo, deixou de lado a interpretação. Tolice , pensou.
Ágil, ocupou-se com a atividade que julgava a mais importante de todas: encontrar
lascas de ouro para si.
Com as explosões em Tziyon, deduziu onde alguns pedaços de ouro poderiam
ter caído pelos lados da Estrada Hagah. Seguindo distante dos olhos dos quatro
generais, Mamom tornava-se cada vez mais egoísta e avarento. Quanto mais passos eu
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der, mais próximo estarei da minha própria riqueza. Ei! O que é isso? Ah... mais uma
pepita para mim... Ótimo! Ninguém viu.
Mesmo com a vitória sobre Tziyon, nenhum rebelado ficou na cidade para
guardá-la. O comportamento deles era resultado de um conceito repetido de várias
formas pelo grande comandante rebelde: A FORÇA É O QUE IMPORTA. A
FRAQUEZA MERECE DESPREZO.
Alguns justificavam entre si que era desnecessário manterem a vigilância porque
seu líder garantira como certo o triunfo. Não havia mais com quem lutar no Primeiroou no Segundo Céu. O último desafio estava à frente, nas alturas.
Enquanto marchavam pela sinuosa estrada do leste, sem êxito as tropas
procuraram Deus a caminho do ponto de encontro. Se Ele não fora visto em nenhum
lugar do reino desde o início das batalhas, menos o seria ainda naquelas estradas
cercadas de mata fechada. De acordo com a estratégia do alto comando, após a
aniquilação dos anjos celestes no ataque a Tziyon, Deus estaria sem poder e acuado
atrás de seu trono no Terceiro Céu. Chorando, talvez.Mesmo depois da chuva se dissipar, ainda se ouviam estrondos elétricos nos ares
cinzentos. Até que, distante, o exército contemplou com alívio a linha oceânica surgir
no horizonte. Na metade do dia, o cheiro do mar revigorou as poucas forças que
restaram sobre os anjos. Faltava apenas um passo. Na verdade, muitos que
representavam a etapa final. Era dessa maneira que o comandante da rebelião fazia
associações em sua mente superdotada em pé sobre uma alta pedra cravada à beira da
praia. Altivo e feroz. Helel, o querubim Condutor da Luz.Para suas tropas em aproximação, a imagem que viam de Helel era do grande
conquistador do Reino dos Céus. Destemido. Único. O líder da rebelião construiu
uma imagem tão forte quanto sua armadura para o exército que constituíra.
Na sua perna direita à frente exibia sua caneleira protetora de ferro, cintilando
um pouco de luz vinda das alturas. Sua túnica estava um pouco queimada, mas não
muito. A peitoral de escamas de prata e abdominal de cobre inflavam com sua
respiração acelerada.
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Denunciando impaciência, chamava os soldados ao seu encontro com a própria
espada. Seu negro cabelo comprido como bandeira esvoaçava para trás das asas,
revelando os finos traços de quem ousou transgredir a paz em nome de um ideal.
Quando os generais chegaram ao seu encontro, esboçaram uma pequena folia.
Helel franziu os olhos verde-esmeralda e os repreendeu num tenor irritado.
— Não posso esperar por essa empolgação tola de vocês. Preparem-se. Vejam o
que nos aguarda — apontando bem cima das ondas.
Os anjos voltaram à formação e rápidos silenciaram o tilintar das espadas.
Mesmo após a vitória sobre Tziyon, eles ficaram assustados com a subida até o trono
com tantos trovões cortando nuvens carregadas.
Era bem conhecida a gigantesca escadaria de acesso ao Terceiro Céu atrás deHelel, que começava nas areias da praia e seguia pelos ares apoiada no nada em toda a
extensão. Hoje, porém, o motivo para subi-la não era contemplar a glória de Deus,
mas exterminá-la de uma vez por todas.
O único acesso até o Salão do Trono era essa elevada escadaria de pedra branca,
com a estremidade que sumia acima da névoa. Era preciso subir a pé os incontáveis
degraus numa altura vertiginosa. Abaixo, a vista era o oceano manchado com um tipo
de óleo negro.Eu queria mesmo era subir voando. Sorte dos malditos ungidos! , murmuravam
os soldados. Helel pensava assim também, mas seu objetivo era maior do que aquela
barreira de gravidade transitória.
O céu não escureceria por completo até chegarem ao topo, mas a ausência de
luz natural poderia prejudicar o ataque. Precisavam se apressar. O comandante da
rebelião não queria gastar sua energia iluminando o caminho porque tinha aplicado
grande parte no ataque fulminante em Tziyon. Poupar forças era necessário para oúltimo e mais importante combate. O controle da luz era sua principal arma
estratégica e não poderia falhar.
Os quatro generais interromperam a análise de Helel quando saíram do meio
dos guerreiros para encontrar com seu grande líder. Tinham aquele sorrisinho
cúmplice, que logo se esfriou com um olhar irritado que caiu sobre eles. Asmodeu
chegou a pensar que era por terem perdido seus capacetes em Tziyon, mas Helel só
pensava em assumir o governo o mais rápido que pudesse.
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Viraram-se ao cume dos degraus antes da partida. Na retaguarda, um terço dos
anjos do Reino dos Céus já se imaginava sentindo o sabor da vitória.
Atrás de Helel, começaram a subida.
Acelerados atrás do Anjo de Luz seguiam os quatro membros do Conselho
Superior de Guerra da Rebelião. Eram dois casais de generais: os serafins Asmodeu e
Leviatã e os querubins Astarote e Zibul.
O caldo escuro e pegajoso cobria suas vestes de guerra, mas as cabeças estavam
cobertas de lama. O odor de pestilência não impedia que os pares de serafins equerubins se entreolhassem com uma empolgação vibrante. Nas condições que
estavam era difícil distinguir quem era quem.
Onde estão os Arcanjos agora? , perguntavam em celebração sem se preocupar
com Helel, que corria pelos degraus na frente de todos. Os generais esperavam por suas
condecorações de bravura após vencerem a etapa final, conforme prometido. A marcha
que subia as escadarias era o sinal da violência iminente do exército. Eram velozes ao
extremo e o Reino dos Céus não parava de tremer por causa da força de seus pés.Os rebeldes não perceberam que dos olhos verdes do comandante à frente do
exército corriam lágrimas de ódio por tudo que ele tinha escutado de Ruash e de
Sohma. Tentando manter certo controle emocional, Helel transformou sua espada em
um machado sujo de cinzas para arrombar as grandes portas.
— Meu nome é Helel! E sempre serei o Anjo da Luz.
Desde que iniciara a revolta, afirmava sua própria identidade a fim de reprimir
seu lado imaturo, que vez ou outra aflorava. Não queria que seus seguidoresconhecessem sua fraqueza. Mas o querubim voltou a sorrir no canto da boca quando
escutou seus soldados gritarem ritmadas palavras de ofensa a Deus e de elogios a ele.
Era esse o motivo da sua busca: reconhecimento de glória e honra.
Eles já estavam próximos da entrada do centro do governo universal — o Salão
do Trono. Secretamente, Helel se perguntava como seria a sensação de dirigir o Reino
Celestial assentado naquele trono magnífico.
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Seus pensamentos foram interrompidos com zunidos velozes nos ares. Era um
ataque surpresa. Pararam. Rápidos, abaixaram. Eram quatro mil anjos em formação de
defesa, vindos do Terceiro Céu, ungidos para voar em qualquer lugar. Estavam
alinhados de tal forma que pareciam um único ser.
— Malditos! — gritou Helel.
O exército opositor não ousou levantar a cabeça perante o poder marcial dos
alados. A defesa ficou limitada quando as nuvens escuras bloquearam a luz dos céus
por completo, mas Helel não queria iluminar o caminho. Os soldados só puderam
levantar seus escudos e se juntarem em formação tartaruga. Assim ficaram por toda a
extensão da escadaria, pois era a única forma de proteção sensata. Até Zibul e Leviatã
se abaixaram.Helel estranhou a falta de valentia de seus generais naquele momento, mas não
estava com paciência para questionar. Só ele permaneceu em pé com as asas abertas e
rosto erguido, encarando mais aquele desafio.
— Eu não cheguei até aqui para ser derrubado tão facilmente. O Senhor sabe
que me preparei para este momento. Acha mesmo que vou desistir? — dizia aos ares
para Deus escutar.
Retesando seu corpo ao limite, o querubim gesticulou com o braço esquerdoum movimento de subida junto ao pavoroso grito de comando:
— Potestades! ATACAAAAR!!!
Outros dois zunidos, vindos da praia pelo Sul e pelo Norte: dois mil guerreiros
voadores rebelados, mil de cada lado, armados com espadas, lanças e flechas em
chamas.
Os Anjos Potestades lançavam as flechas como dardos, quatro ou cinco de uma
única vez; arremessos tão fortes que faziam tremer os ares a cada lançamento. Embaixodos escudos em casco era impossível não sentir o cheiro do medo de soldados que não
queriam ser atingidos.
Então, os voadores insurgentes de Helel espremeram a legião acima dos
capacetes pontudos da armada rasteira. Os sons das espadas golpeando umas nas outras
nos ares esconderam o barulho da subida do exército, ordenada pelo comandante da
Rebelião. Os clarões das armas iluminavam parcialmente o caminho.
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— Que lutem e se destruam. Os mais fortes continuarão vivos. Isto sim é
evolução — disse o querubim com os dentes travados de ira.
Os que ouviram isso se irritaram com Helel. “Desgraçado! Só estou nessa para
alcançar a minha progressão”, reclamavam. Mas não ousariam enfrentá-lo, estavam
perto demais da vitória.
Numerosos como insetos, os anjos rebeldes apenas decidiram obedecer a seus
novos líderes por crerem que obteriam alguma vantagem pessoal. Havia pouco tempo
eram eles os mesmos que voavam felizes nos céus, servindo uns aos outros em amor.
Foram puros. Agora, não passavam de mercenários.
O líder sabia que manter um estereótipo amedrontador sobre seu exército era
uma força silenciosa. Astarote, uma querubim como ele, criara esta imagem para seussoldados durante os dias de treinamento em Tzor. Ela contava que Helel fora
esculpido de um bloco de luz do maior sol do cosmos e por isso tinha tanta força
interior. E por isso os olhos verdes do comandante cortavam a pele de quem ele
mirasse com impaciência. Esses mitos o faziam ainda mais admirado.
Impulsionados pelo medo de caírem no oceano, os rebeldes continuaram a
correr em direção às portas do Salão do Trono. Lá era o alvo: o lugar onde Deus
estava. Subir os penúltimos degraus permitiu que Helel percebesse quem era a figuraque guardava as portas. Isso o fez desacelerar sua corrida. Na sequência, os demais
combatentes foram silenciando seus movimentos ao verem um gigante iluminado
surgir no alto. Malakyaveh estava na altura das grandes portas, descalço.
Entalhadas com riqueza de detalhes e presas sobre eixos nos dois lados do arcodourado, as portas de madeira que davam acesso ao Salão do Trono, além de imensas,
continham gravuras em alto-relevo de uma figura meticulosa. Um tronco de árvore
com galhos e raízes idênticas, numa imagem espelhada a partir do centro. Vista ao
inverso, a figura se apresentava a mesma. Os galhos alçavam o ar e as raízes se
ramificavam, afluentes como um rio. Era uma obra de carpintaria de grande valor
simbólico, exposta de frente para a escadaria no final de um saguão em meio círculo de
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pedras brancas polidas. Esse saguão era sustentado nos ares do Terceiro Céu, ligado
apenas ao último degrau da escadaria. Isso era um mistério à parte.
Da túnica do gigante que impedia o acesso ao Terceiro Céu emanava uma luz
branca, que fazia doer os olhos dos rebeldes. Helel encarou os olhos brilhantes dele,
cravejados num rosto emoldurado por cabelos compridos e barba castanha, que
cobiçou para sua própria aparência.
Para disfarçar esse sentimento inferior, aumentou seu próprio tamanho até se
equiparar à altura do guardião. Com ambas imagens refletidas no piso do saguão, olíder rebelde se curvou numa reverência debochada para Malakyaveh, o Anjo do
Senhor.
— Quer dizer que Deus realmente pensou que o grande Malakyaveh seria o
último recurso suficiente para me impedir? — Respirou fundo e advertiu em voz
mínima: — Venci Rashomer e sei que posso derrotar você também. Seja qual for seu
argumento, não tenho tempo para diplomacia.
— Nem você nem os que lhe seguem devem entrar aqui. Aceite o fato de que otodo plano de Deus é realizado. Os seres humanos serão criados e os anjos do Reino
dos Céus os servirão.
Armado com palavras, Malakyaveh fez o exército sumir atrás de Helel. O
aspecto de seriedade em seu rosto largo ficava mais intenso com a impostação
imperativa de sua voz. Ele não era um somente um anjo, mas o mensageiro e executor
dos planos de Deus pela eternidade. Sua autoridade fora estabelecida por Ele acima dos
demais anjos antes mesmo que fossem criados. Mas Helel não considerava mais o seupoder.
— Arrependa-se, querubim.
— Nunca! Esses humanos jamais serão criados. Eu não vou permitir que Deus
cometa este ato de desprezo contra os anjos. Nós é que iremos evoluir! — Ele
esmurrava com raiva o próprio peito. — Nós é que seremos servidos e não o contrário.
Malakyaveh olhou para baixo nas escadas e direcionou suas palavras para o
exército rebelde, abrindo os braços de mangas largas para onde estavam.
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— Vocês bem sabem que servir é maior honra do que ser servido. Por que então
escolheram percorrer o caminho do engano? — perguntou com bondade.
Antes que perdesse seu comando, a voz de Helel se alterou de forma bizarra e
carregada de escárnio.
— Enganados? Ora, não nos faça rir, Malakyaveh. Este exército escolheu ficar
ao meu lado. É disso que se trata esta revolução. Nós escolhemos tomar o poder para
nos tornarmos ainda mais poderosos do que somos. Seremos mais do que Deus jamais
nos permitiu ser. Isso é tudo o que nos interessa.
— A sua causa é se tornar maior que Deus e levar esses anjos a caírem no seu
fosso de vaidade.
Percebendo um burburinho no meio do exército, o querubim assumiu um tomde voz sofisticado para relatar os últimos acontecimentos, enquanto repousava o
machado na parte de trás de seu cinturão.
— Isso é o que vocês nos fizeram acreditar desde quando surgimos. Por isso
estamos aqui: para provar que Deus não é tão poderoso como vocês nos fizeram
acreditar. Senão, por que Miguel fugiu durante a Batalha de Tziyon?
Sem resposta do ser à sua frente, Helel continuou como narrador da própria
trajetória.— Os anjos que defenderam o atual reinado estão mortos por toda a extensão
do Segundo Céu. E ainda me lembro de Rashomer em Tzor, se acovardando quando
não conseguiu libertar Ruash de minhas mãos antes mesmo das batalhas começarem.
Malakyaveh manteve sua pausa silenciosa, mas seus olhos fulminavam cada
palavra que saía da boca do líder rebelde. Sem qualquer constrangimento, Helel
prosseguia.
— Seus anjos morreram em vão, sabe por quê? Eles estavam adestrados a agir damesma maneira desde que nasceram. Foi fácil demais enganá-los. Mas de agora em
diante essa estratégia não mais será adotada porque tudo vai mudar. Hoje é o dia em
que termina o reinado velho e começa o meu.
O porta-voz de Deus continuava imóvel em frente à entrada do Terceiro Céu.
Seus olhos brilhantes corriam os rostos de cada um dos anjos rebeldes e repousava
sobre alguns. Não encontrou ninguém que estivesse disposto ao arrependimento. Seu
coração se entristeceu, mas ele não demonstrou.
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Helel fechou as asas e ajeitou a couraça como se fosse um traje de festa.
Aquietou sua acidez, alterando o discurso para um tom mais suave.
— Eu pensei que você estivesse escondido com Deus em alguma parte da
existência, Malak. Mas, deixe-me fazer as contas. Os anjos que sobraram no reino estão
logo atrás de mim. A luz está sob meu poder. O corpo de Ruash está comigo e você,
aqui. Portanto, Deus está sozinho atrás destas portas...
Com o polegar e o indicador apoiando o queixo, o querubim tentou usar seu
dom de convencimento misturado a alguma malícia sutil.
— É uma pena que ainda permaneça desse lado. Sabe, sua voz é voz tão bela...
Tão forte... Sempre quis cantar junto com você no coral. Poderíamos fazer um dueto
belíssimo, não poderíamos? Tenho certeza de que Ruash concordaria com isso.— Não se atreva a falar em nome de Ruash. Você não sabe o que diz nem o que
deseja porque sua sabedoria se converteu em tolice. Você teve um planeta inteiro nas
mãos para cuidar, mas preferiu destruí-lo para saciar sua fome de poder. Os seus erros e
os erros dos que lhe seguem terão árduas consequências. Nenhum adversário de Deus
pode subir ao trono deste reino. Pela última vez você ouvirá: arrependa-se de suas
intenções. Este é o momento.
Com os olhos em chamas e a boca espirrando uma gosma cinzenta, o querubimesbravejou numa loucura crescente.
— Tem coragem de me desafiar, Malakyaveh? Depois de tudo o que fiz até
aqui, acha mesmo que eu e meu exército vamos recuar? Seus conselhos são inúteis! E
saiba que não sou seu adversário: sou sua única opção neste novo reino que se inicia
agora.
Pairou o silêncio entre os dois gigantes.
Com a respiração acelerada, Helel ajeitou os cabelos com a mão esquerdatremendo. Deu as costas ao Anjo do Senhor e caminhou em círculo. Helel reviu
mentalmente suas conquistas até então.
Obcecado, calculava as inúmeras formas como poderia lutar contra o guardião
iluminado. Os três nunca estiveram separados. Ninguém poderia prever quais poderes
Malakyaveh teria recebido de Deus para a guerra.
— Malakyaveh. Malak... Yaveh... O Anjo do Senhor. Olhe atrás de mim. Mas
olhe bem! A cada batalha que venci, mais os anjos passaram a confiar nessa nova era.
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Eu comecei sozinho e agora veja: chegamos às portas como os únicos seres viventes do
reino.
O ser abaixou a cabeça com pesar. Não encontrou um justo sequer entre os
rebeldes ao longo da escadaria.
— Olha, não fique assim. Eu posso lhe oferecer um lugar de governo em meu
reinado. Já imaginou tomando suas próprias decisões? Criando os seus próprios planos?
Pense como seria aplicar o poder ilimitado pela extensão de todos os universos que
formam o multiverso, sem precisar da aprovação dEle. E nem da minha, porque eu
confio no seu senso de comando. Aliás, sempre confiei. Posso dar essa liberdade a você,
bastando que se curve diante de mim e me reconheça como seu novo deus.
Então Malakyaveh levantou a cabeça e bradou como leão com a mão impostano peito de seu adversário.
— A humanidade existirá e eu sou o caminho para isso. Se vocês passarem desta
porta, não haverá clemência pelos séculos dos séculos.
— Tem razão. Não haverá clemência. — Helel ergueu o machado num piscar
de olhos e esbravejou: — para os FRACOS! — Com um golpe veloz, viu atravessar a
lâmina no braço de Malakyaveh e, num mesmo movimento, percebeu que a cabeça do
Anjo do Senhor fora rachada em duas partes. O machado ficou cravado na porta e aluz do corpo se apagou entre a metade e a viração do dia. Mal acreditando, o gigante
Helel ajoelhou-se devagar e tentou unir as partes do crânio com as mãos. Seus olhos e
boca ficaram abertos e inertes. Aquele a quem tanto odiara pela posição que tinha
diante de Deus estava morto. Está feito, Miguel, pensou.
O corpo do Anjo do Senhor começou a se dissolver em um avermelhado
viscoso, esvaziando a vestimenta branca sem brilho. O líquido escorreu pelas escadarias
do templo, abrindo caminho entre o exército. Ninguém tocava no fluído, com umamistura sentimental de respeito, ódio, pavor e tristeza. Antes de chegar à metade da
escadaria, o líquido evaporou-se, formando uma névoa rubra e esparsa que pairou
acima dos soldados.
Depois desses dias de estratégia de conquista, treinamento, batalhas... o receptor
da luz para a Criação fora vencido com um único golpe de machado? Os rebeldes se
surpreenderam com a destreza daquele que escolheram como seu próximo Rei.
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Os soldados revoltosos pensavam em conjunto sobre o que haviam acabado de
presenciar. Como que o Grande Malakyaveh, o líder guerreiro admirado por todo o
reino, pôde se entregar por amor a uma raça que nem será criada? Onde estava o poder
que disseram que o Anjo do Senhor tinha recebido? Tudo culpa desses humanos! Esses
fracos jamais existirão para serem servidos por nós.
Além do que já tinha absorvido, Helel tomou em suas mãos toda a luz
disponível na entrada do Terceiro Céu antes de entrar no Salão do Trono.
Depois dessas portas, Deus está prestes a ser vencido, pensava.Com a força do braço e ainda na forma gigante, o querubim arrancou o
machado da porta com as duas mãos. Deslizou os dedos sobre a marca que fez no
relevo da madeira. A árvore é a chave.
Tornando a si com um risinho convencido, olhou para baixo e fez um gesto
com a cabeça para que seus quatro generais assumissem tamanho igual ao seu.
Alinhados e agigantados, Asmodeu, Astarote, Zibul e Leviatã usaram tanta força com
Helel para arrombarem as portas que as veias sobressaltaram em suas frontes. Asmodeu teve a impressão de escutar uma voz conhecida, mas antes que ela se
manifestasse as portas se destrancaram numa explosão. A névoa formada pelo vapor do
sangue foi sugada para o interior do recinto de imediato, se espalhando de forma quase
invisível. A lama saiu dos corpos dos generais quando se transmutaram. Lá dentro, as
figuras deles se destacavam mesmo vestidos com armadura de combate.
Asmodeu estava com os cabelos loiros amarrados à nuca. Seus lábios desenhados
e levemente carnudos tinham um tom rosa delicado. A linda jovem parecia idealista esensível. Mas só parecia.
Os cabelos ruivos e cacheados de Astarote formavam uma juba armada e aberta.
Demonstrava uma maturidade ardilosa em traços angulados. Com uma beleza
arrebatadora, seus profundos olhos azuis eram tão intensos quanto os padrões que
estabelecia.
O general Leviatã, um serafim como Asmodeu, tinha a cabeça raspada, e os
olhos puxados e sujos de lama lhe imprimiam um aspecto de cólera. Seu coração,
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porém, estava tomado por uma paixão desenfreada. Sua motivação nessa guerra era
diferente dos demais, mas Helel não se importava com isso.
Zibul era um poderoso querubim que se portava como estrategista, apesar de ser
pouco ouvido por Helel. Ele recebera tal nome dias antes, assim como os outros três
comparsas. Sua montanha corpórea de massa desenvolvida ao extremo revestia uma
personalidade crítica e calculista. Tinha a fisionomia bronzeada, vincada e áspera
porque sempre fora sério, mas agora era mau.
Quando os quatro, juntos com Helel, adentraram mais no Salão do Trono, de
volta ao tamanho normal, encontraram um enorme... vazio. Um espaço continental
vítreo, frio e sombrio. Deus não estava à vista em nenhuma direção do ambiente.
Nada, aliás. O ambiente que antes era incessantemente movimentado por seresiluminados e cheios de glória, não passava de um extraordinário salão transparente e
sem luz.
Era uma dimensão intrigante. Não havia paredes nem teto, só a porta para um
fundo infinito de vastidão espacial. Caminhavam sobre uma superfície lisa no limite do
multiverso. O espaço era pouco iluminado pelas estrelas, sois e outras fontes distantes
de luz sideral. Curioso era um misterioso aroma de óleo de flores.
Parecia outro lugar. Onde estava o Trono de Deus com a fonte do Rio de Vida?Nem mesmo o mar de cristal, os cânticos ou as lâmpadas de fogo estavam ali.
— Mas, o que aconteceu por aqui? — Helel averiguava.
Perplexos, os líderes rebeldes caminharam um pouco mais pelo salão de fundo
infinito, seguidos por um exército desconfiado, que atravessava as portas aos poucos. O
barulho dos passos e o tilintar das armas de guerra do exército ecoavam pelo ar.
Ali era possível contemplar a vastidão do Reino abaixo, no Segundo e Primeiro
Céus. Vista através do piso, a imagem longínqua de uma Tziyon destruída despertoucomentários entre os soldados.
Um som metálico diferente soou abafado por causa do burburinho dos
indiscretos. Atento ao menor sinal de risco à sua volta, Leviatã alertou, quase afônico
pela rouquidão.
— Shhh... Vocês ouviram isso? Pode ser uma emboscada! Vocês ouviram que
não era para passarmos dessas portas. Estamos vulneráveis sem Ruash aqui como nosso
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refém. Eu disse que iríamos precisar dele como garantia. Estou pressentindo algo mau
se encaminhado.
Helel não lhe deu atenção. Estava confiante em sua estratégia e compenetrado
demais em sua busca. Se Deus havia fugido, ele não perderia tempo e iria atrás de sua
busca principal: o poder.
Os outros generais se achegaram a Leviatã para confabular sobre a situação
quando, de súbito, Helel voou até o fim do salão com muita velocidade, deixando os
milhares de soldados com os generais para trás. Bem depois que sumiu no horizonte,
berrou distante:
— Encontrei a rocha!
A lendária montanha rochosa que ficaria atrás do trono estava realmente no
Salão do Terceiro Céu. Imensa, em formato quase triangular, devia ser maior do que
qualquer outra no Primeiro ou no Segundo Céu.
Helel lembrou-se das histórias de seus conselheiros. Era sua oportunidade de
conferir se lenda e realidade tinham um ponto comum.— Se a montanha está aqui, será que no topo está o que penso que está?
Voou em direção ao cume da montanha cinzenta. Levaria pouco tempo para
chegar ao destino, mas sentia dores lancinantes ao forçar suas asas. Com dificuldade,
conseguiu pousar no meio da escarpa. Após analisar o caminho acima, escalou um
paredão sulcado com as mãos em garras. Quando sentiu segurança novamente,
completou o trajeto com um voo ligeiro. Ao pousar sobre o topo, a poeira levantada
com o bater das asas foi se dissipando até revelar o alvo de sua busca. O que tantolutara para encontrar finalmente estava diante dele: a lendária Árvore do
Conhecimento do Bem e do Mal.
Era um pouco menos frondosa do que havia imaginado, mas o tronco era largo
e bem antigo. Suas raízes estavam sinuosamente aprofundadas na rocha, mas entre as
folhagens centenas de frutos de cascas vermelhas e aveludadas, salpicadas de amarelo,
pareciam doces ao paladar. Não somente doces, mas poderosos. Para o querubim, a
fonte do poder de Deus estava concentrada naqueles frutos antigos.
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Faltando pouco para tocar a árvore, Helel sentiu o golpe do ar que se deslocou
ao bater das asas de Leviatã, Asmodeu, Astarote e Zibul, balançando as folhas dos
galhos e atrapalhando seus cabelos negros. O querubim saiu do transe em que estava
contra sua vontade e por isso gritou com fúria:
— Vocês não são aptos. Saiam daqui!
A habitual fala arrastada de Zibul de alguma forma se acelerou quando ele
encarou Helel, armando-se com uma espada guardada entre as asas.
— Certamente você não chegaria até aqui sem a nossa ajuda...
— O quê? Ousa me desafiar, sua mosca desajeitada? — O líder ergueu o
machado que matou Malakyaveh. — Dei a vocês o meu nome e a minha confiança,
mas isso não lhes dá o direito de cobiçar o meu espólio! Asmodeu tentou impedir as palavras de Zibul. Ela não queria que seu regente
musical a olhasse com aquela desconfiança junto aos outros, mas Leviatã segurou seu
pulso para que não se intrometesse.
Com pensamentos mais velozes que seus movimentos, Helel calculou a
intensidade de um golpe capaz de imobilizar o quarteto. Considerou também o tempo
que levaria para comer todos os frutos até que se recuperassem. Depois disso, não
precisaria mais de representantes para forjar uma onipresença.Com palavras cavernosas, Leviatã se colocou ao lado de Zibul para reivindicar o
despojo de guerra em prol do grupo.
— É nosso direito também, querubim. Você não é melhor do que nós.
— Para dizer a verdade, eu sou.
Uma esfera de luz forte surgiu das mãos de Helel. De uma só vez, com um
estouro, derrubou os quatro príncipes do alto da montanha de pedra. Eles caíram
desfalecidos na escuridão. Apesar de exausto, o golpe foi como soprar migalhas paraHelel, mas para os outros foi como sentir no peito o impacto de uma onda gigante.
Sem mais esperar, voou para a árvore como um pássaro faminto e partiu para devorar o
primeiro fruto no galho mais alto. Sentiu a pele arrepiar e as orelhas arderem quando o
caldo desceu pela garganta, mas só na terceira mordida sentiu no paladar um sabor
diferente. Uma mistura de polpa doce com um tom alcoólico e um amargor no final.
Mal engoliu o primeiro e Helel logo comeu três, seis frutos de uma única vez. Entre
uma mordida e outra, fazia grunhidos como dos tanniyns numa expressão enfurecida
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de quem não tinha tempo a perder. Estava muito satisfeito com o maior espólio de
guerra que poderia ter. O Querubim Ungido para cuidar da Primeira Dimensão tinha
convicção de que o conhecimento do bem e do mal lhe daria o poder criacional.
Gastou um bom tempo tragando a árvore. Ao final, não tinha espaço em seu interior
para comer mais. O caldo escorria pelo canto da boca porque as mandíbulas estavam
doloridas de tanto mastigar. A garganta arranhada era o limite do ventre. Gula. Não
queria vomitar, nem parar de comer. Era a fome de se tornar o que não era.
Cambaleante, Helel se deitou encostado ao tronco nu da antiga árvore. Fechou
os olhos, tentando sarar sua tontura. Precisava descobrir o que acabara de fazer.
Talvez... depois de cochilar um pouco... despertarei como Deus...
Transformado em um réptil comprido e escamoso, sem patas, Leviatã escalava a
montanha com rapidez depois que acordou do desmaio. Os outros o seguiram,
batendo as asas com relutância por causa das dores. Mesmo assim, o grupo ficou
arrependido por desafiar o único ser que tivera a ousadia de prender Ruash, aniquilar o
Primeiro e Segundo Céus com seus anjos defensores e, ainda por cima, assassinarMalakyaveh.
Quando chegarem ao topo do rochedo, mal puderam acreditar. A Árvore do
conhecimento do bem e do mal estava seca. Até as folhas tinham sido comidas. Os
galhos vazios e as raízes distorcidas lembravam aquela imagem gravada nas portas do
Terceiro Céu.
Helel foi encontrado nas trevas, deitado junto ao madeiro com os dedos
cruzados sobre o peito, dormindo. A couraça de escamas de prata e cobre searrebentara por causa do seu ventre inchado.
— Mas não sobrou nada? Não pode ser... — lamentou Leviatã.
— Olhem! Ele está acordando — disse Astarote.
Abrindo os olhos preguiçosamente, o Anjo de Luz despertou do profundo sono
na presença dos generais menos Leviatã, que procurava algum fruto perdido pelo chão.
Asmodeu aproveitou a distração de Leviatã para se aproximar de seu ídolo. Ela
percebeu que Helel pronunciaria suas primeiras palavras como Deus e era sua chance
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de assumir um lugar ao seu lado. A serafim mostrou o dedo nos lábios para Zibul e
Astarote em sinal de silêncio, com um olhar de sensualidade. Se Asmodeu queria
provocar a ira de Astarote, fez com perfeição. A ruiva ficou prestes a rugir como fera,
tamanho o ciúme que sentiu, mas disfarçou por causa de seu compromisso com Zibul.
Este sim era implacável com traições e não aceitava provocações sem vingança.
Helel, ainda com a cabeça apoiada no largo tronco da árvore, apontou o dedo
para o chão, riscando o pó da rocha com luminescência.
— Nesta nova era que se inicia agora, eu desperto como a brilhante Estrela da
Manhã. E neste lugar, com a madeira desta árvore seca, esculpirei meu trono acima de
onde foi o do meu predecessor. Nesta rocha escreverei um hino de adoração ao meu
poder. Eu juro aos anjos, pela minha força, que a anêmica humanidade não passou deuma ideia equivocada e jamais será formada. A minha evolução já aconteceu.
Zibul e Astarote temeram que Helel enfim estivesse com poderes iguais aos de
Deus. Leviatã desistiu de buscar os restos do fruto, mas ele seguiria o plano original
traçado com Zibul até o fim. Para não levantar suspeitas, se uniu à reverência.
Para sair do estado de torpor, Helel apertou os olhos com força e se levantou
com cuidado. Verificou o movimento de cada uma das mãos, o que despertou
preocupação nos generais. Mas seu sorriso malévolo lhes deu alguma segurança.— Agora que vocês aprenderam que não podem me deter, iremos em direção
ao último estágio. Com Ruash preso e Malakyaveh aniquilado, vou vencer Deus de
uma vez por todas. Mas, se não o encontrarmos, já o teremos vencido sem luta. Aí sim
terei alçado a verdadeira supremacia.
Todos gargalham em concordância e o discurso continuou.
— Hoje me tornei o grande EU SOU. Agora, cada uma das estrelas terá um
nome que me glorifique e os anjos se espantarão com um poder maior do que o dEle jamais foi.
Helel passou pelos seus comparsas e se posicionou na beira da montanha sobre
uma porção de rocha mais elevada. De lá, podia contemplar a imensidão escura do
Terceiro Céu com seu exército e, além dela, todos os territórios do Reino. Impetuoso,
levantou os punhos cerrados para o alto e abriu as enormes asas.
— Quem ousará não me servir? — bradou, cantando com voz de majestade.
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Os anjos alinhados em batalhões na base da montanha responderam em naipes
agudos com vozes dividas:
— Todos lhe servirão!
— Todos se curvarão!
Quem tomou a frente do exército na ausência dos grandes oficiais foi o capitão
Mamom. Ele mesmo puxava os gritos de júbilo dos rebelados. Obviamente, queria
chamar a atenção de Helel mais uma vez.
Essa atitude não provocaria tanto Leviatã se partisse de qualquer outro anjo
cobiçoso. Mas ver que Mamom assumira o comando de seu batalhão lhe provocou
tamanha ira que o anjo oriental começou a se transmutar na mais terrível fera que os
céus viram. Contudo, o toque aveludado de Asmodeu em seu ombro o acalmou comogelo em água fervente.
Foi nesse momento que um estouro iniciou uma trepidação na montanha.
Ouviu-se um craquelar que correu da base ao topo, causando uma expectativa de
medo. Quando Helel olhou para trás, ficou assustado ao ver o tronco seco da árvore
pela rocha, aumentando vigorosamente o tremor. Os generais se desequilibraram,
mesmo apoiando-se uns nos outros. O desespero deles foi quando o topo da montanha
se moveu com velocidade para baixo, precipitando Helel, Leviatã, Asmodeu, Astarote eZibul atrás da formação dos batalhões. Foram arremessados tão violentamente que não
conseguiram escapar em voo. De forma estranha, as rochas da elevação se curvaram
jogando os cinco para o centro do salão. Miguel voltou! , supôs Leviatã para si mesmo.
Soldados da retaguarda correram para socorrer seus líderes. Com olhos
arregalados pelo cataclismo inesperado, acharam que o salão poderia ter rachado no
impacto da queda dos corpos.
— Não se mexam ou vamos cair! — alertou um soldado.Quando Helel e seus generais eram amparados, suas expressões transformadas
pelo pavor instigaram os soldados para se virar para onde olhavam congelados. Era a
montanha rochosa que vinha na direção dos rebeldes, transformando-se numa figura
que eles conheciam muito bem. Os anjos ergueram as mãos na frente dos rostos, como
se a proteção fosse possível. O terror aumentou quando o som grave de um shofar,
seguido de um tom agudo longo ecoou em todas as direções pelo salão transparente. As
ondas sonoras refletidas causaram tamanho desconforto que os milhões de anjos não
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tiveram alternativa senão curvarem-se diante da rocha com as mãos nos ouvidos. O
líder dos rebelados, caído desajeitado no chão, no centro da formação, não acreditava
no que seus olhos viam.
— Impossível! — relutou Helel antes do impacto iminente da montanha
transmutada em sua direção.
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CCCCapítuloapítuloapítuloapítulo 2222
Alguns dias celestes antes da invasão do Terceiro Céu.
QuandoQuandoQuandoQuando a aa a rebelião não era rebelião não era rebelião não era rebelião não era nem uma partícula de poeira suspensa no ar, a paz era
respirada pela vastidão da existência. Paz, na essência da palavra. Uma época onde
Deus habitava em seu trono, desde sempre, posicionado no mais alto topo no centro
universal. Coisa nenhuma estava acima e tudo estava abaixo de seus pés. De olhos
fechados ou abertos, era impossível saber no que ele estava pensando. Contudo, nada
saía de seu controle. Através de sua capacidade de estar em vários lugares ao mesmo
tempo, Deus permanecia assentado em seu trono e também percorria livremente sua
criação. Na manhã em que as mudanças começariam, ele foi caminhar descalço pelos
campos gramados do Primeiro Céu, em sua forma habitual.
Deus vinha andando com uma expressão tranquila, vestido com uma túnica
branca. Como segunda túnica, um tecido cru preso ao ombro direito o cingia no lado
esquerdo do corpo. Interessante é que os anjos gostavam de se vestir parecidos com ele.Uns e outros tinham adereços distintos, mas a base era em geral a mesma.
O rosto largo era marcado pela expressão de seu sorriso. Trazia uma barba
grisalha sem bigode, como uma pequena juba penteada. Os cabelos, também grisalhos,
ondulavam até os ombros. Maduro e forte, Deus aparentava cerca de sessenta anos, se
fossem contados ali no Primeiro Céu.
Leves raios solares gradativamente revelavam a mais natural beleza que se podia
contemplar naquela dimensão. O calor despertava o perfume dos arbustos aromáticos edas flores silvestres. Afluentes de ribeiros serenos circundavam pomares sobre um
gramado extenso e ondulado. Ao longe, florestas cortadas por rios caudalosos eram um
espetáculo musical à parte. O relevo que permeava o horizonte mais parecia um pano
verde e marrom que o Criador estendera sobre o chão. Ele tornara a visão das nuvens
desenhadas uma mostra artística em exposição.
Um coral de pequenos pássaros exóticos, com bicos dotados de uma pequena
dentição, cantava com tamanha força que a música parecia vir de outro lugar. Notas
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agudas e harmoniosas, variando em sequencias curtas e longas, de sons capazes de
desenhar dentro dos ouvidos.
Deus já se tornava visível no horizonte, acompanhando o curso do Rio de Vida
pela margem direita. As crianças angelicais, que brincavam com os grandes tanniyns,
explodiram em gritos de alegria ao reconhecerem de longe o Pai da Criação.
Escandalosas e felizes, elas correram para abraçá-lo. Ao verem que ele se ajoelhara com
os braços abertos, correram mais forte ainda.
Os pequenos se transformaram em seu animal preferido para alcançá-lo mais
depressa. Mamíferos e répteis feitos para a velocidade. E quando conseguiram foi um
alvoroço de felicidade. Todos foram abraçados ao mesmo tempo por Deus.
— Bom-dia, meus pequeninos. Como vocês estão? A voz grave de Deus fazia vibrar o interior dos anjinhos pendurados em seus
braços. Seu amor era tão grande que Ele não permitiu que nenhum se sentisse
desprestigiado, distribuindo igualmente beijos carinhosos. E Deus seguiu pelo caminho
levando-as assim, carregadas nos ombros. Os finos lábios de Deus abriram um sorriso
travesso quando deu uma corridinha sobre uma elevação de terra, que desembocava em
uma cachoeira. Quem estivesse lá em baixo poderia sentir um frio na barriga vendo
Deus lançar dos braços aqueles pequenos pelo ar. Lá do alto, os gritos mudavam deintensidade na aceleração da queda. Na sequência, Deus mergulhou de ponta cabeça
atrás dos anjos. Num piscar de olhos, o Criador e os pequenos anjos se transformaram
em aves, iniciando um voo rasante sobre as águas e fazendo uma inclinação para cima.
Pronto: já estavam em formação conjunta, sobrevoando uma densa floresta além do
rio.
Com o vento fresco batendo nas penas claras, Deus se sentia muito feliz por
estar unido à sua família. Juntos, planaram sobre manadas de répteis gigantes e outrosanimais. A natureza estava sob suas asas.
Os arcanjos Gabriel e Miguel, distantes e discretos até aquele momento, se
juntaram à formação abrindo as asas de penas largas e assimétricas. Com volumosas
túnicas da cor do céu balançadas ao vento, os dois acompanhavam Deus desde quando
começara sua caminhada no alvorecer.
— Aproveitem o voo, rapazes.
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Um pouco acanhados, abriram mais as asas. Miguel, um jovem e loiro arcanjo
de barba por fazer, ficou tão à vontade com o convite de Deus que girou no ar com um
grito de felicidade.
— Uuhúúúú!
Voando ao seu lado, Gabriel era um cintilado arcanjo de pele negra. Seus
cabelos em cachos cilíndricos sobrepostos se agitavam como cordas pendidas do topo
da cabeça. Seus dentes largos e brancos revelavam um sorriso cheio de humor. Batendo
as asas com intensidade, brincou com seu irmão:
— Há! Há! Há! Exibido! Você está parecendo um sevivon, girando desse jeito.
Todos os anjos eram irmãos quando formados no mesmo instante e a partir da
mesma porção de luz. Isso gerava um elo inquebrável. A relação de amizade entreMiguel e Gabriel era tamanha que estavam juntos em todas as atividades.
Através do olhar da ave em que estava transmutado, Deus de longe observou
pontos de várias cores se movimentando numa clareira abaixo e à esquerda. Assim que
desceu em movimento espiral na mesma direção, a passarada acompanhada dos
arcanjos veio em seguida.
Ao pousar em sua forma física habitual, Deus encontrou uma mesa comprida
posta no meio do gramado pelos Anjos Simples. Esses eram adultos de várias etniasque escolheram o Primeiro Céu como habitação no Reino. Cerca de vinte anjos com
vestes talares e coloridas preparavam o alimento matinal com muita alegria. Sobre a
mesa de madeira escura e rústica, havia muitas opções de frutas, sucos e mel. Os jarros
e demais utensílios de argila queimada davam um toque ainda mais aconchegante. Os
dois bancos eram compridos, feitos para mais de dez pessoas se sentarem lado a lado.
Gabriel e Miguel se dispuseram a ajudar os Anjos Simples nas tarefas matinais.
Logo deram um jeito de ir buscar a água do rio nos vasos de barro, apoiados nocinturão de um tecido da cor de suas asas. Para ambos, não havia diferença de castas
entre os anjos e sim apenas funções diferentes em um mesmo reino. Todos eram
igualmente importantes e dignos de amor e respeito.
Depois de cumprimentar cada um dos presentes com a tranquilidade de
costume, Deus foi até um canto e se assentou no chão para recostar numa pedra larga
próximo ao Rio de Vida, pondo as mãos atrás da cabeça. Ele preferia admirar a
paisagem debaixo da copa da Árvore da Vida até que todos chegassem.
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A Árvore da Vida produzia um fruto macio e amarelado de doçura ímpar, com
doze colheitas anuais. Esse fruto era compartilhado com os anjos do Reino. Bastava
uma pequena porção, ingerida regularmente, para absorver a vida eterna. Suas folhas
serviam até para a cura de enfermidades, mas os anjos nunca ficaram doentes. Uma
única condição era preciso para ingerir o fruto, que era a mesma para entrar no Salão
do Trono: uma conduta limpa de qualquer transgressão ao amor genuíno.
A pequena comunidade de Anjos Simples tinha uma festividade sem igual.
Deus apreciava passar as manhãs recheadas de alegria naquela região, onde sempre
aconteciam comemorações adornadas de cânticos e danças. Era um lugar que
despertava o desejo de viver para sempre. Deus apreciava tanto a simplicidade daquele
lugar que até começou o cultivo um jardim por ali. O cultivo de plantas era uma
ocupação que agradava tanto o Criador que, por puro divertimento, ele enxertou o
Código do Céu em várias modalidades da vida vegetal.De todos os planetas, luas e estrelas que orbitam no cosmos, Deus confiou o
Primeiro Céu aos cuidados de um anjo de habilidades espetaculares. Ele sonhava que
aquela dimensão seria o berço de toda a novidade criativa do Reino. Por isso, ungiu
um querubim dotado de grande inteligência e com diversas habilidades artísticas e
musicais.
Mas o Anjo de Luz há tempos não aparecia ali. Dizia estar muito ocupado preparando
a apresentação de novas canções, que tinha se tornado sua prioridade. Talvez, porqueno Primeiro Céu poucos o veriam trabalhando, mas em Tziyon as regências do coral o
tornaram muito popular.
— Seria bom se ele cumprisse a missão que se aproxima — disse em voz baixa.
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— Alguém já viu Ruash e Malakyaveh hoje? — perguntou Deus para a família
que terminava de arrumar a mesa.
— Ruash está um pouco mais abaixo do rio com outros anjos e Malak já deve
estar a caminho, mas o senhor deve saber disso — respondeu um anjo com fisionomia
maternal, sorrindo enquanto partia pão com uma pequena faca de pedra.
Assentado sobre uma grande pedra branca, Ruash observava o nado dos peixes
contra a correnteza do rio, a caminho da desova. As águas frias e espumantes
contornavam os pés do ser feito da própria essência de Deus. Ele tinha a forma de um
saudável ancião, vestido com uma túnica idêntica a que Deus estava usando. Era
educado e muito polido. Suas ações exemplares descreviam seus intentos melhor do
que palavras. Os cabelos eram brancos e bem curtos e o rosto largo exibia bolsasdebaixo dos olhos sobre um belo sorriso de lábios finos. As espessas sobrancelhas
decoravam seus olhos de amor, cada ruga sua era um troféu. Parecia ter próximo de
cem anos. Ainda assim Ruash era forte, tal como Deus e Malakyaveh.
O ancião seguiu caminhando em direção à mesa apoiado num cajado da sua
altura, mas ele reparou que uma fruta da Árvore da Vida que caíra no chão havia
despertado a curiosidade de uma pequena menor. Ela olhou para o alto do tronco
áspero e viu um anjo escondido entre os galhos com uma túnica idêntica a que Deus eRuash estavam usando: um manto branco até os tornozelos de mangas compridas,
presa com uma cinta de tecido cru na cintura e nos ombros. Fácil de reconhecer.
Pedindo segredo com o dedo sobre a barba castanha, Malakyaveh segurava um
riso traquina para não ser descoberto, mas a árvore balançou com uma corrente de
vento tão inesperada que o derrubou do galho mais alto. Ele, porém, caiu em pé e de
prontidão.
— Já tinha visto você, seu arteiro — brincou Ruash.Com sua voz rouca e grave, o ancião Ruash deu um leve cascudo com a ponta
de seu cajado no alto da cabeça de Malak. Rindo bastante, arrumou as ondulações dos
cabelos nos ombros enquanto Deus o trazia para a mesa com as mãos em seus ombros.
Os três pareciam ser a mesma pessoa, mas em épocas diferentes na linha da
vida. É como se alguém pudesse viajar no tempo e encontrar num único lugar a si
mesmo com trinta e três, sessenta e seis e noventa e nove anos.
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Com as mãos repousadas sobre a cabeceira da mesa fibrosa, Deus observava
atentamente aquela pequena porção da família reunida, como se percebesse os
movimentos de forma lenta em seus mínimos detalhes.
Ruash ouvia outros dois anjos comentarem sobre os peixes que viram no rio.
Malakyaveh brincava de fazer cócegas na pequena que o vira escondido na árvore.
Gabriel e Miguel serviam os anjos na mesa, que ficavam agradecidos pela gentileza.
Todos saudáveis e felizes.
Antes de saborearem as frutas e o mel, os anjos presentes agradeceram ao
Senhor num cúmplice silêncio pela comida que criara. Ele devolveu um olhar tão
profundo que qualquer pessoa se perderia em seu brilho; ou melhor, se encontraria.
— Não foi nada, minha família! Estou feliz por gostarem de tudo.— Gostar é pouco. Eu amo é tudo isso sim! — confessou um desinibido
anjinho para gargalhada geral.
O cheiro das flores que Deus plantou em seu jardim se mesclava na brisa fresca
que vinha do rio. As abelhas trabalhavam para fazer o mel que o Criador tantoapreciava.
Enquanto caminhavam por uma trilha no gramado ao norte da Árvore da Vida,
Deus descansou os braços nos pescoços de Ruash e Malak. O segundo segurou na mão
direita de Deus encostada em seu braço.
— Vocês dois nem imaginam a ideia que tive. Vamos expandir o Reino e deixar
nossa família ainda maior — disse com empolgação latente.
— Vamos analisar — disse Ruash em tom de professor. — O vazio espacial foicheio de suas visões fantásticas, materializadas pela sua Palavra através de Malakyaveh.
A explosão criacional no centro do Reino dos Céus deu origem à existência em que
estamos, e que continua em expansão até agora...
Malakyaveh continuou a relembrar com bom humor.
— Bem, o Reino dos Céus está formado em três dimensões cíclicas, uma sobre
a outra: O Primeiro Céu onde estamos, o Segundo Céu circundando sobre nós e o
Terceiro Céu acima de tudo. Fauna e Flora estão completas e com ordem para
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autoevolução. Os anjos estão organizados nas mais diversas funções. Eu lhe pergunto:
O que falta ser criado, Adonai?
Deus então falou sobre seu novo plano com os dois governantes, mas o som de
sua voz não foi escutado pelos arcanjos Miguel e Gabriel. A dupla, discreta nesses
momentos, percebeu que devia ficar de fora da conversa. Os arcanjos afastaram-se em
silêncio. Os três governantes se assentaram num tronco uns quinze metros à frente. Ali
conversaram pelo resto da manhã.
Um jovem serafim com sardas e bochechas avermelhadas surgiu por detrás de
Miguel e Gabriel, mas ambos perceberam sua chegada minutos antes.
— Ei, do que eles estão falando, hein? — sussurrou, enxerido.
— Não sabemos. O assunto não nos diz respeito — cortou Miguel comseveridade. — Se Ele quiser nos revelar o assunto, nós saberemos.
— Caramba, Miguel! Só perguntei por perguntar... Olha, já está na quase na
hora deles irem ao Segundo Céu. Só vim até aqui avisar que os preparativos estão
prontos para a proclamação do Rei.
— Há! Há! Eles sabem disso, jovem. Fique tranquilo — assegurou Gabriel com
os cachos dos cabelos balançando com o movimento da cabeça.
Deus, Ruash e Malakyaveh estavam sorridentes. Parecia que o novo plano deDeus era muito bom. Juntos, levantaram-se do tronco e retornaram. Pareciam estar
encerrando a conversa. Só foi possível perceber que haviam terminado quando
passaram pelos anjos e o som de suas vozes voltou a ser percebido.
— É maravilhoso! Esta proclamação será histórica — disse Ruash.
— É verdade, o plano é perfeito. Depois que o processo for iniciado, o que
poderia dar errado? — comentou Malakyaveh.
Deus manteve silêncio com um sorriso contido. Girou o rosto para Gabriel,Miguel e o jovem serafim e com objetividade comunicou:
— Vamos subir agora. Os anjos daqui irão para Tziyon um pouco mais tarde.
Quanto a vocês, não permiti que soubessem do assunto agora porque é meu desejo que
todos conheçam juntos.
Os anjos abaixaram suas cabeças, envergonhados. Gabriel tomou a frente.
— Perdoe-nos, Senhor. Não queríamos parecer intrometidos.
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Deus repousou sua mão no alto de suas frontes com carinho paternal, um
depois do outro.
— A curiosidade é uma coisa boa, meus jovens. Eu os amo, assim como amo
aos demais. Quero compartilhar com vocês os meus sonhos para que me ajudem a
realizá-lo. Poderei contar com vocês?
Os seres alad