Antologia de Contos
Catarinenses
Antologia de Contos produzidos pelos alunos da Disciplina Optativa Literatura em Santa
Catarina.
Bruna Heloísa da Silva
Sentada, observando o movimento lá fora, ela olhava pela janela do ônibus. Achou que
tinha visto alguém conhecido. Aquele a quem amava. Desceu correndo. Enganou-se. Tomou o
próximo ônibus e ficou com suas próprias memórias, sensações e desejos. Tudo lhe lembrava
outros tempos. Trabalhou com o pensamento longe. Sensações e sabores lhe acompanharam
durante aquele dia. Era um dia especial. Saiu correndo do trabalho. Queria tomar um banho e
esquecer-se de si mesma. Tomou mais alguns ônibus. Observou o vai e vem das pessoas. Seus
rostos sisudos, seus ombros caídos. A vida passava, e eles permaneciam infelizes. Pensou se
não era parte deste mundo de insatisfação e cansaço. Lembrou novamente do que era a sua
felicidade. Achou que tinha visto alguém conhecido. Desceu depressa do ônibus e não
acreditou no que viu.
A Hora Derradeira
Erika da S. Costa Agnellino
Depois de dez meses lutando contra uma doença em sua bexiga, D. Maria encontrava-
se no seu leito de morte, parcialmente inconsciente. Uma pessoa tão lúcida e aos oitenta e
quatro anos começava a se despedir de sua família, que mesmo com o anunciado dos médicos
aguardavam um milagre. E foi mais ou menos nessa ordem que chegaram para a despedida,
primeiro foram os filhos, uma filha e um filho, depois vieram os netos, quatro netas e um neto
e então seus bisnetos, cinco meninos e uma menina. Tiveram para vê-la no leito daquele
hospital pessoas que gostavam muito daquela senhora, que sempre levou uma vida com alto
astral e de bem com a vida, suas ex-noras, sua nora, seu genro também estiveram lá para as
últimas palavras.
Os médicos anunciaram que tudo era questão de horas, a qualquer momento D. Maria
poderia fazer a passagem, e agora? Quem, naquele momento, estaria ao lado dela? Filhos,
netas, noras se revezavam nos cuidados com a doce senhora, era grande o receio de que essa
hora fatídica não caísse na sua vez. Ver alguém partir não é desejo de ninguém, e com o perdão
da palavra, o povo está acostumado a ver um ser humano chegar, mas nunca partir, mesmo
que seja uma hora difícil pra quem se vai, mas é um tanto traumatizante para quem fica.
Eis que chegou a hora tão temida e D. Maria partiu na manhã de um lindo domingo
ensolarado, nem bem o sol tinha dado sua cara e sua nora a tudo assistiu, e no velório era
quem mais chorava. Só o que me faz pensar é que não era só pela senhora que se foi, mas pelo
trauma de ver alguém partir. A morte assusta mesmo quem fica ou quem assiste, porque
estamos acostumados a enfrentar a morte diariamente, mas não estamos preparados para
morrer e tão pouco ver a morte de perto. Foices ou carapuças? Nada disso, ela vem sem avisar
e leva mesmo sem dó ou piedade, apenas prepara o bote. Foi dessa forma que levou aquela
senhora, mãe, avó, bisavó e uma mulher extraordinária. Como cobra traiçoeira que chega sem
pedir licença e prepara o derradeiro suspiro na chegada hora da partida. Dessa não adianta
fugir, pois é a hora mais certa que chega para toda a gente.
A terceira margem da estrada
Gabriella Ligocki Pedro
Em um final de tarde de outubro, Joaquim viajava de volta para casa depois de dez dias
fora, fazendo entregas de material de construção pelo país afora. Assim como tantos outros
caminhoneiros, o cansaço e a saudade da família batiam forte. Nesse dia, ele estava ainda mais
ansioso por voltar, pois era aniversário de sua esposa e queria logo reencontrá-la e poder dar
um beijo e um abraço fortes, em uma data tão especial. Saudoso e escutando sua canção
preferida na rádio, Joaquim leva um grande susto e tem que freiar bruscamente o caminhão,
quase atropelando um ser na estrada, que pelo clima ruim do cair da noite não conseguia
identificar o que era. Parou o caminhão e viu se tratar de uma menina de uns oito anos de
idade toda queimada. Naquele instante, o caminhoneiro não sabia o que fazer se socorria a
menina ou se fugia, já que parecia ser uma criatura suspeita. Decidiu socorrer, afinal, era
apenas uma criança.
Joaquim desceu do caminhão e se dirigiu até a criança, mas surpreendentemente ela já
estava mais a frente lhe indicando um caminho. Quando chegou ao local sinalizado, o
caminhoneiro não acreditou no que viu, se ajoelhou e se debulhou em lágrimas. Um pouco
mais calmo, percebeu que a criança desaparecera e que ela só podia ter sido um anjo enviado
pelos céus, pois havia salvado a vida da pessoa que mais ama na vida. Sua esposa estava salva
de trágico acidente de carro, quando o veículo que estava dirigindo havia caído uma ribanceira.
Quando chegou ao local, sua esposa já estava sendo socorrida pelos bombeiros e já estava sem
perigo de morte. O que Joaquim pôde compreender é que aquele ser, materializado em forma
de uma criança, havia sido enviado para salvar sua amada e levá-lo ao local do acidente para
reencontrar o mais rapidamente sua esposa, como ansiava. Essa história é verídica? Talvez tão
verídica quanto a veridicidade de uma terceira margem da estrada...
A Bruxa do Sítio
Gilmarina Signorini Subutzki
Todos os finais de semana a história se repetia. Augusto saía para encontrar as meninas
da ilha e no outro dia, sua mãe lhe enchia de xingamentos – Não é certo ficar andando nessa
escuridão, pode lhe acontecer algum mal. Augusto não entendia como sua mãe sempre sabia
por onde ele andava e o que ele fazia, isso o incomodava, mas menos que o pássaro que lhe
seguia todas as noites, grunhindo e seguindo seus passos, parece até bruxa...
Seu Manuel lhe disse que para desmascarar a bruxa, tem que machucar e dar uma flor a
ela, enquanto está transformada, assim no outro dia, ela levará para a mãe da gente um
presente, e o machucado ainda vai estar lá, e só quando desmascarar ela na frente das pessoas,
deixa de ser bruxa.
Poucas casas cercam a rua do Sítio de Baixo no norte da ilha, a escuridão causava
arrepios, e sua companhia sombria ia grunhindo a cada ponto do caminho, Augusto deixou o
bicho chegar bem perto, e com a camisa que estava sobre seus ombros, lhe chicoteou. Uma
das assas do pássaro estranho, sangrou, no mesmo instante ele arrancou uma flor silvestre e
jogou sobre o bicho.
No outro dia, sua madrinha Alzira, veio trazer um peixe para sua mãe, e seu braço
estava com hematomas e cortes profundos, Augusto aos berros denunciou a madrinha,
chamando-a de bruxa. Seus passeios noturnos nunca mais foram revelados e passaram a ser
solitários.
Joriane S. Desessards
Jader e Luiza caminhavam de volta para casa. Ela era de família rica e tradicional e
trabalhava como secretária em um escritório local. O marido era de família simples e
batalhadora e trabalhava em uma indústria, como supervisor. Luiza caminhava ao mesmo
tempo que reclamava da bagunça e da estrutura da casa. Jader ouvia pacientemente, mas na
verdade pensava em outras coisas, como o encontro com os amigos ou a nova mesa de sinuca
que gostaria de comprar. Luiza gesticulava freneticamente ressaltando cada detalhe e fazendo
comparações com a casa das vizinhas. Enfim, chegaram em casa. Jader tentou reparar nos
detalhes que a mulher falava, mas não lembrou-se de nenhum com certeza. Na secretária
eletrônica um recado da mãe de Luiza: viria passar as férias com eles. Há anos que a mãe de
Luiza não os visitava. A chegada foi calorosa e as expectativas eram muito boas, afinal, seria
uma companhia para Luiza na rotina da casa. Os dias foram passando e Jader começou a ficar
mais sossegado, conseguia ler seu jornal em paz e refletia constantemente sobre seus planos.
Luiza foi ficando mais calada enquanto a mãe falava de tudo e de todos, ressaltando cada
detalhe da vida da filha com o marido e da casa dos dois. Luiza ouvia pacientemente, mas na
verdade pensava em outras coisas, como o dia em que sua mãe voltaria pra casa e ela poderia,
enfim, ficar em paz para desabafar com Jader.
Último suspiro Juliana Regina da Silva
Caiado de Castro chefiava o gabinete militar da Presidência da República. Ele chegara ao
ápice de sua vida profissional, orgulhava-se do passado de serventia à nação como general e
nos jantares promovidos aos colegas de profissão, falava de suas experiências na repressão a
Coluna Prestes e na ascensão com o governo de Getúlio Vargas.
O general organizava o salão principal do Catete para a reunião com o presidente
quando um tiro abafado ecoou nos corredores do Palácio. Caiado subiu desesperado a procura
de Vargas e o encontrou agonizante. O general ordenou a chegada de ajuda médica, mas já era
tarde. Getúlio deu seu último suspiro nos braços do chefe de gabinete e amigo.
Os anos que sucederam, a morte de Getúlio foi para Caiado um martírio. Ele perdera
todo o sucesso profissional que havia alcançado no governo Vargas. Como um general que
perde a guerra, Aguinaldo Caiado de Castro perdera o ânimo de viver e se entregou à
depressão até seu corpo sucumbir à inevitável morte. Caiado foi um personagem conhecido
apenas no governo Vargas e fora dele não suportaria viver.
Pulsação
Karine Schmidt Seu peito doía insistentemente, uma dor que nenhum remédio conseguia curar, uma angústia.
Assim, Diego prosseguia sua vida, trabalhando, estudando, sobrevivendo. À noite a dor ficava
mais intensa, quase insuportável. Foi então, que Diego resolveu dar um fim naquele
sofrimento, passou a mão no telefone e ligou para o Brasil, mais precisamente, para a cidade
de São Bernardo do Campo, em São Paulo. Uma voz feminina atendeu a ligação:
- Alô!
- Oi, preciso falar com a Dona Nair, por favor!
- Só um minuto.
- Alô!
Diego engasgou, sentiu muita vontade de chorar, mas ao mesmo tempo, veio um sentimento
de arrependimento, pois não deveria ser tão fraco, tinha que resistir àquela dor, ser forte. Mas
percebeu que não conseguiria mais aguentar mais tanto sofrimento e disse:
- Mãe, mãezinha, não aguento mais ficar longe de vocês, preciso voltar para o Brasil, estou
sofrendo muito aqui em Portugal. Pede para o pai me mandar algum dinheiro para que eu
possa voltar para casa?
A mãe simplesmente desligou o telefone. Diego entendeu o recado. Os representantes
masculinos da família Guedes nunca são “perdedores”, são advogados renomados, pessoas
nobres, fortes e jamais desistem de algo. Ele não poderia desistir. A mãe com certeza não
contou o acontecido ao pai, não quer decepcioná-lo. E Diego? Continua com dores crônicas de
uma doença chamada SAUDADE!
O GARÇOM
Lodir
Jorge sempre fora um homem trabalhador. Nos últimos tempos, além de “bicos” como
carpinteiro, eletricista, pedreiro e outros afazeres, vinha trabalhando regularmente como
garçom. Era num bar dançante situado embaixo da Ponte Hercílio Luz, que exercia sua
atividade. Nosso protagonista vivia no Bairro da Costeira do Pirajubaé, sul da ilha, onde tinha
uma pequena casa na qual morava com a esposa e seus dois filhos. Numa das noites de
trabalho, Jorge conheceu um casal muito simpático que estava no bar consumindo petiscos e
bebendo cerveja alegremente. Ao término do trabalho, Jorge saiu em companhia do casal que
conhecera, eram quatro horas da madrugada. Andaram em direção ao Terminal Rodoviário Rita
Maria. Quando chegaram ao Clube de Regatas Aldo Luz, onde durante o dia encontram-se
atletas e à noite encontram-se usuários de drogas, bandidos de toda a espécie e casais hetero e
homosexuais para fazer “programa”, decidiram dar uma “paradinha” e sentaram-se num
daqueles bancos próximos à praia. Nosso “herói” tira do bolso um maço de notas de dinheiro e
juntamente com as notas, um pacotinho contendo certa quantidade de maconha. Guarda o
dinheiro e enrola um “baseado”. Fumam, fumam e fumam.
No dia seguinte, nos principais jornais e pasquins da capital catarinense, a manchete era:
“Garçom morto à pauladas na baía-sul”.
Alternativas em um clic
Luiza Mazera
Assustada com tantas máquinas, robôs e controles ao seu redor, a menina Clarice abria e
fechava os olhos para tentar entender em que local estava. Seu corpo e sua fala eram frágeis
diante daqueles seres robustos, extremamente inteligentes e metódicos. Em todos os lugares
essas “coisas estranhas” estavam presentes, e o que faria Clarice ali?
Logo após um suspiro fundo e com palavras trêmulas, ela ousou sussurrar:
- Quero voltar para o meu mundo, preciso da minha “gente”!
Nesse momento então, um ser de lata e com sensibilidade maior do que a humana, aproxima-
se e oferece ajuda. Entrega um controle para a menina e diz:
- Seu destino está em suas mãos, basta um clic.
A Velha
Luiza Andrade Wiggers
A velha, com um berro surdo, acordou-se. Na mesinha de cabeceira havia um abajur
tosco, um rádio azul, desses antigos e uma pilha de cd's que comprara na véspera. Estava
fatigada. Sentiu que seus olhos estavam colados por uma secreção que lembrava a textura das
ramelas, mas que não eram propriamente ramelas. Lembrou das mãos, que estavam debaixo
do cobertor, para tentar descolar os olhos e conseguir enxergar o que suas mãos indicavam,
tateando. Quando abriu os olhos e mirou-os para o chão através das fendas de seu rosto,
percebeu que vários farelos de suspiro estavam espalhados pelo chão. Esforçou-se, esforçou-
se, mas não recordava de onde tinha vindo a idéia de comer suspiros na véspera. Não importa.
Apontou o polegar pra um farelo, grudou-o no dedo, levou-o à boca e saboreou. Gosto de terra
e depois suspiros. Cansou daquela merda nojenta que era sua vida e pôs um dos CD's pra tocar.
Bossa, jazz e uma mistura descontraída de harmonia com o indizível. É bom se dissolver... meus
netos não me procuram há séculos porque aquela puta desgraçada da mãe deles os obriga a
manterem-se afastados de mim. Eu devo cheirar a cigarro de domingo, só pode ser isso. Ela, no
fundo, não se importa com as ausências e distâncias; quer é saber de fumar seu cigarro, tirar
suas ramelas imaginárias, ouvir a aleatoriedade musical de seus discos e, ainda deitada, virar
para o lado e esquecer que ainda está viva.
Faetonte desde Criancinha
Lygia Barbachan de Albuquerque Schmitz
Quando eu era pequena, vi uma estrela caindo do céu:
- Papai, papai! Veja! Uma estrela está caindo do céu e muito rápido!
- Vamos! Faça um pedido!
- Quero uma bicicleta bem grande para pedalar até o céu! E...e... (baixei os olhos, receosa) Ela
se foi, papai...
- Mas você fez o pedido! O que foi? Não era o que você queria?
- Era... mas... mas... e se eu cair igual aquela estrela?
O papai me olhou, riu e disse:
- Amanhã iremos à praia!
- Mas, papai! E se eu cair igual aquela estrela? Ela parecia pegar fogo!!!
- Vamos... hora de dormir, amanhã acordaremos cedo para irmos à praia!
- Mas, papai!
- Vamos!
Papai escovou meus dentes, colocou meu pijama, rezamos a Papai do céu e ganhei um beijo na
testa de boa noite.
Pela manhã, fomos, como prometido, à praia. Papai me levou até a beirinha do mar e disse que
eu não saísse dali. Deu alguns passos, pareceu sentir algo com os pés, mergulhou e tirou lá do
fundo uma...
- Olha, minha filha!
- O que é isso, papai?
- É uma estrela! Viu? Ela caiu no mar e nem se machucou! Papai do céu que a mandou pra cá
para não queimar a Terra e para ela não se machucar
- Noooossa! Que legal, papai! Então, eu não vou pegar fogo e nem vou me machucar??
Ele riu, me abraçou e disse:
- Não, você vai até achar que está pegando fogo, quando você começar a pedalar, pedalar e
sentir o vento no rosto, nos cabelos. É só a felicidade!... E, se você se machucar... aí o papai dá
um beijinho e sara!
Meses se passaram e ganhei a tão sonhada bicicleta do papai Noel.
Tenho certeza que pedalei até o céu...
Leitura do conto Homens e Algas – Gama d’Eça
Manuela Quadra de Medeiros
Vídeo disponível em http://www.youtube.com/watch?v=F2w8ORtC4rk
Referências:
Othon Gama d’Eça – Homens e algas. Edição do Governo do Estado de Santa Catarina: 2. ed.
Florianópolis: 1978
Imagens de André Paiva. Disponíveis em http://www.andrepaiva.com.br
ARRAIÁ
Maria Pérola Cardoso Figueiredo
Era mês de junho. A escola e a comunidade, ambas de diminuta proporção, se
preparavam para a tão esperada festança junina. O acontecimento do ano; a ansiedade e a
felicidade eram de todas transbordantes.
Ao raiar o sol iniciou-se o frenesi, a função nos engenhos da redondeza da escola. Os
fornos de barro começaram a fumegação. Neles foram feitos o assamento dos bolos, roscas e
batatas doces; o cheiro se sentia de longe, longe; a boca salivava gulosamente. Na escola
cozinhava-se o pinhão, preparavam-se os cartuchos, pipoca, cachorro-quente dentre outros
quitutes que seriam oferecidos aos honoráveis participantes. Bandeirinhas tremulantes,
fogueiras sendo erguida.
Professora Perolina era encarregada de preparar a principal bebida da festa, o quentão.
Conhecedora de tão importante fórmula alquímica iniciou seu ritual de preparamento. Foi
neste momento que transpassada por uma alvidez mortal, um gelado suor lhe brotava sobre a
fronte, viu que lhe faltavam os ingredientes para temperar a tão importante bebida.
Velocíssimamente Perolina montou em sua antiquíssima magrela e de pronto pôs-se a caminho
da venda do seu Bento. Estava muito brusco, a estrada arenosa cheia de curvas qual uma cobra
a se arrastar. O medo... Uma volteada de quatro quilômetros. Voltou. Avistou uma luz tal qual
um farol a orientá-la; era a fogueira com suas labaredas crepitantes. Tudo quentinho.
Confraternização. Música. Muita alegria. E quentão.
Eles
Marina Siqueira Drey
Então se separaram; os dez anos se foram. Foram mentindo, foram brigando, foram se
odiando. Terminaram assim: Ele, trinta e seis, funcionário público, irônico. Ela, trinta e sete,
funcionária pública, sarcástica. Conheceram-se em uma festa, o casamento veio depois de dez
meses. Descobriram dez coisas em comum, dez músicas preferidas e dez cicatrizes feitas,
espontaneamente, juntas. Recebiam no dia dez. E, faltando dez dias para o final do mês,
acabava o dinheiro. Ele quis mudar... jogou na loteria, não ganhou; abriu um negócio, faliu;
comprou um carro novo, bateu; conseguiu emagrecer, ficou anêmico. Ela quis mudar...
preencheu um cupom de sorteio, ganhou; foi pegar o prêmio, perdeu o bilhete; virou sócia de
uma confecção, recebeu calote; aprendeu andar de moto, caiu; ficou coxa, engordou. Um dia
Ela acordou, arrumou a mala e viajou dez mil km pra longe dele. Ele ficou. Casou com uma
mulher mais velha, começou a correr e tocar teclado. Ontem, dia dez, quando foi pegar o filho
na esquina da dez de Novembro, encontrou com Ela, a dez metros de distância...
História escrita a mão Priscila Santos e Silva
Deu em mim de observar a minha mão. Enquanto escrevia, aqueles cinco dedos me
fizeram com que eu reparasse e escrevesse ao mesmo tempo neles e sobre eles. Minhas mãos
são pequenas e a caneta sobra para fora dela, porém, tenho uma pegada firme e prenso com
tensão a esferográfica. Mas os traços são leves e gosto de ver os 111 que rabisco pela folha que
agora recebe a autobiografia pela própria mão. As unhas roídas mostram sinais de nervosismo
por que venho passando, aquele romance vai atrasar e o editor não vai gostar nadinha disso.
Poder escrever assim agora, observando minha mão a escrever esse próprio ato. Para relaxar
pego um cigarro, o indicador e o dedo médio já amarelados pela nicotina. As pontas dos dedos
sujas pelo jornal de domingo que está ao meu lado; MADONNA ADOTA MAIS UMA CRIANÇA
AFRICANA. Reparo, seduzido, as costas de minha mão. Vejo os ossinhos em movimento rígido
para segurar a caneta, e enquanto miro viajando por ela uma mancha me para. Uma cicatriz
que ganhei quando criança, eu fugia de um cachorro; tropecei; caí. O pior é que o cachorro era
um poodle pequeninho, desses...: chatos! Lembrei da rua e dos amigos. Quero ver a palma da
mão, viro e a espalmo. Os ciganos devem ser felizes, podem ler a própria mão e saber do seu
próprio futuro. Dizem que essa é a linha da vida, essa que passa próxima ao polegar: NÃO VOU
LONGE! Mas não me importo, dou de ombros, pra mim essa vida já se foi. Agora, sou eu e
minha mão. Olho de novo as unhas; todas esfoladas e mal tratadas. Mas gosto assim! Tento
sentir seu peso, ela não é uma mão pesada, uma mão que segura enxada; ela é mão de
escritor, mão que trabalha sinergicamente com minha cabeça e por muitas vezes ganha e
escreve as histórias por si só. As suas histórias de mão.
O Causo
Rafael Reginato
Quando ele entrava todos davam um bom dia qualquer. Ele sentava na cadeira, no mesmo
lado da sala, e começava a assobiar o canto dos bem-te-vis que contava ter visto lá fora,
sempre se lembrava de lá fora. Eu sequer podia virar o pescoço para ver a rua, ela ficava às
minhas costas, e mesmo que quisesse reconhecê-la havia sempre aquela espécie de grande
persiana externa ao prédio, brânquia descarnada que envolvia todo ele e não deixava
passarinho nenhum entrar, às vezes aberta, outras fechada, permitindo somente ver uma rua
listrada, rua sim, rua não, espedaçada, obra da arquitetura moderna como alguns justificavam.
E eu pensava que arquitetura moderna é como o mundo moderno.
Depois ele se levantava, dava uma volta pela sala estendendo a mão de mesa em mesa
até tornar intermitente o ruído incessante dos teclados. Voltava para sua cadeira e recomeçava
o causo iniciado no dia anterior, às vezes repetia todo o começo, às vezes todo o causo.
Terminada a história, o gran finalle nada tinha a ver com a rua ou ali dentro, ele estrondava
uma gargalhada no eco dos armários, arquivos e pilhas de papéis. O riso incontido
seguidamente era acompanhado pelo entusiasmo de uma pancada que ele desferia contra a
tela de um computador próximo. O susto da pancada silenciava o trabalho dos teclados e então
eu percebia como o computador era útil para ele.
Às vezes, enquanto discorria seus causos, o chefe atravessava a sala, mas era como se
um teclado novo passasse a trabalhar ou como se um arquivo metálico fosse instalado diante
dele. Sentado na sua cadeira, ele seguia contando sua história sem dar-se ao trabalho de
inverter uma palavra para disfarçar o sentido da fala ou sequer inserir um advérbio maior para
alongar ao vazio a passagem do chefe. Ele não tinha chefe.
Com o tempo passei a lidar melhor com sua presença e as incursões que fazia até
minha mesa. Por garantia deixei que os processos se acumulassem numa grande pilha à minha
frente. Algumas vezes ele ainda venceu a resistência da muralha de celulose que nos separava
para, como mensageiro, me trazer um novo causo, uma foto de família ou o assobio de um
pássaro que eu nunca havia escutado, mas com o aumento do número de processos e a total
cercadura de minha mesa não foi difícil para ele perceber que aquela gaiola não abrigava
passarinhos.
Estivemos por tanto tempo acostumados à presença dele, aos seus apertos de mão,
seus causos e lembranças da rua que nem notamos, um mês após seu desaparecimento, que
sua cadeira ainda permanecia ali, no mesmo canto da sala. Só o computador que ficava
próximo daquele local tinha sido retirado para manutenção, único resquício dos anos de
causos. Contudo, nunca soube quem ele era, se aposentado ou vendedor de mel. Apenas
presumi a sua idade pela lentidão com que contava os seus causos, pela lembrança do canto
dos passarinhos e pelo estranho hábito de entrar em nossa sala como se entrasse numa
repartição.
A BONECA E O HOMEM PÁSSARO
Stèphanie Kreibich Pinheiro
Seria um romance? Velhos tempos revelam belas histórias. Este, que já levara onze anos
e o sopro de alguns dias foi surpreendente. A menina, como uma boneca. O menino, que
embora com mais idade, escondiam-se nas madeixas angelicais. No tempo das fantasias, os
sonhos eram divergentes. O platonicismo, para ela, fulgurava. Noites eram inflamadas por
gotejo de um dia poder sorrir sem medo para o ser amado. Enquanto, para ele, a admiração
era pelo universo menos peregrino e mais ousado. Noites eram inflamadas por gotejo de um
dia ser herói e conquistar a dama da vizinhança.
Tomaram rumos diferentes. Estados diferentes, cidades, bairros, círculo de amizades,
religião, estudos e trabalhos. É certo que em muitos momentos, enquanto um sorria, o outro
chorava. Enquanto um dançava até cair na pista, o outro lamentava ter que dormir cedo para o
dia seguinte. Enquanto um tomava Sol nas praias do Norte, o outro passava frio nas terras
gélidas do Sul.
Nos lábios, a cor nada discreta do batom. Nos olhos, a marca que os delineava. Na pele
morena, cheiro do campo, ondas, sincronia, amplitude, destreza e vida. Na face, o traço da
desajeitada menina que se tornara uma mulher, meio moleca (é certo), mas não menos
fascinante.
No porte, um cavalheiro. Na luz, seus olhos que ganhavam mais maturidade para onde
os conduzia. Na voz, a bravura. Nos braços, nas pernas, nas mãos, nas costas e nos ombros a
força da bela sinuosidade. Na face, o traço do menino-anjo que se tornara num homem-
pássaro.
Dias. Chuva. Sol. Vento. Muita ventania. Flores que brotaram. Noites caladas.
Calendários deixados. Experiências. Até o encontro. Naquela noite, ela o esperava. Ansiosa.
Mas, com pudores, ela não sabia o que encontraria tampouco o que sentiria. Um amigo era
certo que seria. Não estava só, a irmã e avó também o aguardavam.
Enfim, passos que vinham em sua direção. Os olhos arregalados apenas denunciavam a
alegria de vê-lo depois de tantos anos. Sem cerimônia. Conversaram sobre o passado. Coisas
em comum. Amigos em comum. Lembranças das quais nem todas compactuavam. Mas, riam.
Riam, pois recordar o passado tem certo feitiço. Foi rápido. Mas, suficiente. Um próximo
encontro foi marcado.
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