1. Antologia de Textos Filosficos aran Secretaria de Estado da
Educao do Paran Secre
2. Governo do Estado do Paran Roberto Requio Secretaria de
Estado da Educao Yvelise Freitas de Souza Arco-Verde Diretoria
Geral Ricardo Fernandes Bezerra Superintendncia da Educao Alayde
Maria Pinto Digiovanni Departamento de Educao Bsica Mary Lane
Hutner Organizao da Antologia Jairo Maral de Textos Filosficos
Catalogao na Fonte CEDITEC-SEED-PR SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAO
DO PARAN Departamento de Educao Bsica Avenida gua Verde, 2140
Telefone: (xx41) 3340-1500 CEP 80240-900 CURITIBA PARAN BRASIL
Maral, Jairo (org.) Antologia de Textos Filosficos / Jairo Maral,
organizador. Curitiba: SEED Pr., 2009. - 736 p. ISBN:
978-85-85380-89-2 1. Filosofia. 2. Histria da filosofia. 3. tica.
4. Esttica. 5. Filosofia da cincia. 6. Filosofia poltica. 7. Teoria
do Conhecimento. I. Paran. Secretaria de Estado da Educao.
Superintendncia da Educao. Departamento da Educao Bsica. II. Ttulo
CDD 100 CDU 1 ndices para catlogo sistemtico: 1.Filosofia Este um
livro pblico, razo pela qual permitida a sua reproduo total ou
parcial, desde que citada a fonte. proibida qualquer forma de
comercializao desse material. Impresso no Brasil Distribuio
gratuita
3. Coordenao Pedaggica do Departamento de Educao Bsica Equipe
de Filosofia do Departamento de Educao Bsica Reviso das Normas
Tcnicas Ilustraes e capa Projeto Grfico Editorao Eletrnica Jairo
Maral Marcelo Cabarro Maria Eneida Fantin Bernardo Kestring Eloi
Corra dos Santos Jairo Maral Juliano Orlandi Wilson Jos Vieira
Andra Roloff Gladys Mariotto Ceolin & Lima Servios Ltda Ceolin
& Lima Servios Ltda
4. Apresentao I Essa produo sintetiza uma postura de polticas
pblicas de educao em prol de uma escola de qualidade. Uma escola
que tem no conhecimento, a base da ao pedaggica; no trabalho
coletivo, a possibilidade de avanos cien- tficos, culturais,
tecnolgicos e artsticos; na reflexo crtica, o rompimento de
concepes pragmticas e utilitaristas do mundo contemporneo do
mercado; na valorizao dos profissionais da educao, a crena na
viabilidade de construo de um projeto de mundo, que alicera a
democracia entre os homens. Um trabalho filosfico, desta natureza,
pressupe que a formao de cida- dos constitui um desafio que se
projeta para alm da perspectiva da intitulao de direitos. Trata-se
de um processo formativo no qual, por meio dos saberes socializa-
dos, o cidado rene as condies necessrias para se tornar forte
individualmen- te, consciente da sua subjetividade e, ao mesmo
tempo, capaz de se compreender como parte integrante da sociedade,
com a virtude de pensar e agir politicamente e com autonomia. A
Secretaria de Estado de Educao do Paran, consciente desse desafio,
reconhece e assume sua responsabilidade nesse projeto de
democracia, orientando suas aes pelos princpios da educao como
direito de todos os cidados, da va- lorizao dos profissionais da
educao, da garantia de escola pblica, gratuita e de qualidade, do
atendimento diversidade cultural, da gesto democrtica, participa-
tiva e colegiada. No contexto das aes implementadas, o Estado do
Paran destaca-se, no cenrio nacional, atravs das polticas adotadas
para o restabelecimento da disci- plina de Filosofia, com nfase na
obrigatoriedade de sua oferta no ensino mdio, concursos pblicos
para professores habilitados, formao continuada para do- centes,
recursos didticos e pedaggicos, com aquisio de obras literrias
perti- nentes Filosofia, adquiridas para a biblioteca do professor
e com ampla divul- gao nos textos que compem o Livro Didtico
Pblico. O ensino da Filosofia se configura em fonte inspiradora de
uma nova maneira de se pensar. Desta forma, e com o desejo de que o
saber filosfico possa contribuir para o aprimoramento da
democracia, da educao e formao do ser humano, ns, plenos de
satisfao, apresentamos aos professores e estudantes essa Antologia
de Textos Filosficos. Yvelise Freitas de Souza Arco-Verde Secretria
de Estado da Educao do Paran
5. II O Departamento de Educao Bsica, visando atender os
anseios dos sujeitos do processo ensino-aprendizagem e melhorar as
condies de tra- balho no cotidiano escolar, em relao aos recursos
materiais pedaggicos e didticos, desenvolve suas polticas
educacionais por meio dos seguintes Programas: Formao Continuada
dos Profissionais, Melhoria dos Espaos Escolares e Pesquisa e
Produo. Dentre os materiais didticos pedaggicos j produzidos no
Programa Pesquisa e Produo, a Antologia de Textos Filosficos pode
ser considerada como uma das mais importantes, fruto de um trabalho
minucioso, complexo e, sobretudo, representativo da seriedade e
compromisso deste Departamento com a gesto da educao pblica. A
produo da Antologia contou com o apoio de profissionais com-
prometidos com a Escola Pblica que vislumbraram, desde o incio do
pro- jeto, a importncia dessa obra para os estudantes e professores
de Filosofia de nosso Ensino Mdio da rede pblica estadual. Entre
esses profissionais, ressalte-se o incentivo e apoio integral do
ento Secretrio Mauricio Requio de Mello e Silva e da atual
Secretria de Estado da Educao Yvelise Freitas de Souza Arco-Verde.
Agradecimentos a todos que acreditaram nessa ao e proporciona- ram
as condies necessrias para que o Departamento de Educao Bsica
pudesse organizar, produzir e disponibilizar, para todos os
estabelecimentos de ensino, esta significativa obra. Hoje, com
satisfao que apresento esta obra como mais uma ao concluda pelo
Departamento de Educao Bsica. A Antologia de Textos Fi- losficos,
articulada com as demais polticas educacionais desenvolvidas nos
Programas de Formao Continuada e Melhoria dos Espaos Escolares, re-
presenta mais um passo para a consolidao da Filosofia como
disciplina de tradio curricular da Educao Bsica no Estado do Paran.
Mary Lane Hutner Chefe do Departamento de Educao Bsica
6. III A razo de ser dessa Antologia de Textos Filosficos
proporcionar aos es- tudantes do ensino mdio o contato com os
textos dos filsofos, precisamente porque esse o lugar onde se
encontra a Filosofia. Mas qual seria a Filosofia a ser ensinada no
ensino mdio? Dizer que a Filosofia tem sua origem fortemente
marcada pela funda- o da plis e pela inveno da democracia, fazer
jus sua prpria histria, mas tambm fazer a escolha de um significado
que gera expectativas, abre caminhos e perspectivas. Assim
concebida, a Filosofia assume uma dimenso poltica, criativa,
proponente e realizadora, sem abrir mo da sua identidade enquanto
pensamento racional, sistemtico, analtico e crtico. Essa a concepo
que inspira as Diretrizes de Filosofia da Secretaria de Estado da
Educao do Paran. Diretrizes que apresentam a Filosofia na dimenso
prpria e complexa do pensamento e tambm na dimenso poltica de sua
insero nas sociedades humanas. O retorno da Filosofia ao ensino
mdio significa um importante reco- nhecimento dessa disciplina pela
sociedade, e isso se d pela tradio dos seus contedos e pelo seu
estilo de pensamento. O reconhecimento da sociedade e a prpria
histria da filosofia demandam, necessariamente, uma grande respon-
sabilidade daqueles que promovem o seu ensino. Por isso, a
Filosofia precisa de diretrizes, de material bibliogrfico especfico
e, no pode ser entregue nas mos de pessoas despreparadas, que se
valendo de um espontanesmo didti- co possam cair em equvocos que
comprometam o sentido da disciplina. As Diretrizes de Filosofia do
Paran estabelecem como contedos estru- turantes1 para o ensino de
Filosofia: Mito e Filosofia; Teoria do Conhecimento; tica;
Filosofia Poltica; Filosofia da Cincia e Esttica. Desses contedos
estruturantes derivam contedos bsicos2 , que constituem um corpus
mnimum a ser ensinado aos estudantes. Os textos dessa Antologia,
somados aos materiais j existentes, constituem um importante
suporte para o aprofundamento do ensino e refina- mento da
aprendizagem da Filosofia. 1 Disponvel em:
http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/diaadia/diadia/arquivos/
File/diretrizes_2009/out_2009/filosofia.pdf (p. 54-59) 2 Disponvel
em: http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/diaadia/diadia/arquivos/
File/diretrizes_2009/out_2009/filosofia.pdf. anexo: Contedos Bsicos
da Disciplina de Filosofia.
7. No mbito metodolgico, desejvel que as aulas de Filosofia
propor- cionem ao estudante a prtica da leitura e da anlise de
textos filosficos, da es- crita, da argumentao, do debate, da
problematizao da realidade e da criao de conceitos3 . A Antologia
composta de vinte e dois textos ou excertos de textos de filsofos
clssicos e um texto de filsofo brasileiro, escolhidos por sua
relevn- cia para os estudantes do nvel mdio. Os textos selecionados
so precedidos por introdues redigidas por professores universitrios
especialistas nos fil- sofos escolhidos. Essas introdues apresentam
trs componentes. O primeiro componente traz contedos de cunho
biogrfico, histrico e bibliogrfico dos filsofos. O segundo trata
das possibilidades de interpretao e problematiza- o dos textos, em
funo das exigncias e expectativas do ensino de Filosofia no nvel
mdio. O terceiro apresenta indicaes de leituras das principais
obras dos filsofos, traduzidas para a lngua portuguesa, bem como os
principais co- mentadores e eventuais sites qualificados. A
Antologia tambm disponibiliza aos leitores um ndice remissivo com
os principais conceitos, filsofos, termos e correntes filosficas.
Essa Antologia de Textos Filosficos integra um conjunto de aes do
De- partamento de Educao Bsica (DEB) da Secretaria de Estado da
Educao do Paran (SEED-PR), planejadas e desenvolvidas para o
retorno da disciplina de Filosofia. Dentre as diversas polticas
desenvolvidas e executadas destacam-se os concursos pblicos para
contratao de professores de Filosofia4 , a Diretriz Curricular para
o Ensino de Filosofia5 , a aquisio da Biblioteca do Professor6 3 A
criao de conceitos s possvel na Filosofia quando os problemas para
os quais eles so as respostas so considerados ruins ou mal
elaborados. (...) Essa ideia de cria- o de conceitos como resultado
da atividade filosfica no Ensino Mdio no deve ser confundida com a
perspectiva acadmica de alta especializao, ou seja, o que se pre-
tende o trabalho com o conceito na dimenso pedaggica. in;
Diretrizes Curriculares de Filosofia, p. 52. Disponvel em:
http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/diaadia/
diadia/arquivos/File/diretrizes_2009/out_2009/filosofia.pdf 4
Concursos realizados pela Secretaria de Estado da Educao do Paran
em 2004 e 2007. 5 Entre 2003 e 2008 a Secretaria de Estado da
Educao do Paran promoveu o processo de construo coletiva das
Diretrizes Curriculares da Educao Bsica, com ampla par- ticipao dos
professores da Rede Estadual de Ensino e a consultoria de
professores do Ensino Superior. As Diretrizes foram publicadas em
2009. A Diretriz de Filosofia est disponvel em:
http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/diaadia/diadia/arquivos/
File/diretrizes_2009/out_2009/filosofia.pdf 6 Em 2005, o
Departamento de Educao Bsica da Secretaria de Estado da Educao do
Paran, com o objetivo de ampliar os acervos j existentes nas
escolas do Estado e por meio de consulta aos professores, adquiriu
o acervo denominado Biblioteca do Professor I. A 2 etapa desse
processo, denominada Biblioteca do Professor II, est em fase
8. com ttulos especficos e atualizados de Filosofia, o Programa
de Formao Continuada dos Profissionais da Educao7 , do qual faz
parte o Projeto Fo- lhas8 , o Livro Didtico Pblico de Filosofia9 e
a Antologia de Textos Filosfi- cos, que alm dos objetivos
preconizados no projeto, concretizou uma articu- lao promissora
entre o ensino mdio e o ensino superior. O desejo que esse livro
desafie professores e estudantes ao filoso- far, s leituras e
releituras, ao saudvel confronto das posies e ideias, aos debates
racionais e bem fundamentados, afinal, um texto clssico somente
enquanto permanece vivo e instigante, enquanto nos convida
interlocuo e pode ser reinterpretado. Jairo Maral (organizador)
Bernardo Kestring Eloi Corra dos Santos Juliano Orlandi Wilson Jos
Vieira Equipe de Filosofia do Departamento de Educao Bsica de
concluso. Disponvel em:
http://www.diaadia.pr.gov.br/deb/modules/conteu-
do/conteudo.php?conteudo=79 7 O Programa de Formao Continuada da
Secretaria de Estado da Educao do Paran desenvolve o Projeto
Folhas, Grupos de Estudo, Simpsios, Semanas Pedaggicas, DEB
Itinerante, NRE Itinerante, Professor Itinerante, Sala de Apoio,
OAC. Ver: http://
www.diaadia.pr.gov.br/deb/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=79
8 O Projeto Folhas, que integra o Programa de Formao Continuada dos
Profissionais da Educao, prope uma metodologia especfica de produo
colaborativa de mate- rial didtico, caracterizada pela pesquisa
como princpio educativo. Para conhecer o projeto na ntegra
consulte:
http://www.diaadia.pr.gov.br/projetofolhas/modules/conteudo/conteudo.
php?conteudo=3 9 Os Livros Didticos Pblicos so produzidos por
professores da rede pblica do Esta- do do Paran com a metodologia
do Projeto Folhas e distribudos gratuitamente aos estudantes do
ensino mdio. Os livros tambm esto disponveis em meio eletrnico. O
Livro Didtico Pblico de Filosofia encontra-se disponvel em:
http://www.dia-
adiaeducacao.pr.gov.br/diaadia/diadia/arquivos/File/livro_e_diretrizes/livro/
filosofia/seed_filo_e_book.pdf
9. Prefcio Marilena Chaui I. conhecido o famoso adgio: a
filosofia uma cincia com a qual e sem a qual o mundo permanece tal
e qual. Ou seja, a filosofia perfeita- mente intil. Teria sido este
o motivo para sua excluso no Ensino Mdio? No foi o caso. A
filosofia foi excluda do currculo do Ensino Mdio no perodo da
ditadura, portanto, entre 1964 e 1980. De 1964 a 1968, no houve
grandes mudanas na grade curricular. As sucessivas reformas da
educao se ini- ciaram a partir de 1969, aps a promulgao do Ato
Institucional no.5 (em dezembro de 1968), que suspendeu direitos
civis e polticos dos cidados em nome da segurana nacional. O
primeiro momento da reforma do Ensi- no Mdio deu-se sob a vigncia
do AI-5 e da Lei de Segurana Nacional. Apesar do adgio sobre sua
aparente inutilidade, a filosofia foi ex- cluda da grade curricular
por ser considerada perigosa para segurana nacional, ou como se
dizia na poca, subversiva. Foi substituda por uma disciplina
denominada Educao Moral e Cvica, que supostamente deve- ria
doutrinar os jovens para a afirmao patritica e a recusa da subverso
da ordem vigente. Como se sabe, no incio, essa disciplina foi
lecionada por militares, o que a tornou suspeita aos olhos dos
demais professores e raramente foi levada a srio pelos alunos. O
sucesso da reforma estava noutro lugar. Com efeito, a reforma deu
nfase aos conhecimentos tcnico-cien- tficos e manifestou
desinteresse pelas humanidades, consideradas pouco significativas
para o chamado milagre brasileiro. Essa primeira reforma, que seria
sucedida por vrias outras, instituiu o modelo educacional que
vigorou pelos quase 50 anos seguintes: o Ensino Mdio passou a ser
visto de maneira puramente instrumental (e no mais como um perodo
forma- dor), isto , como etapa preparatria para a universidade e
esta, como ga-
10. Prefcio rantia de ascenso social para uma classe mdia que,
desprovida de poder econmico e poltico, dava sustentao ideolgica
ditadura e precisava ser recompensada. Para isso, teve incio o
ensino de massa, sob a alegao de democratizar a escola. O modelo
educacional submeteu o ensino s condies do merca- do, isto , tomou
a educao como mercadoria, seja ao estimular a privati- zao do
ensino e minimizar a presena do Estado do campo da educao, tornando
precria e insignificante a escola pblica e fomentando a exclu- so
social; seja ao adequar o ensino s exigncias do mercado de
trabalho, que passou a determinar a prpria grade curricular, de tal
maneira que cada reforma pode ser perfeitamente compreendida luz
das condies desse mercado em cada momento econmico e social do pas;
seja, enfim, ao conferir pouca importncia formao dos professores,
como atesta a introduo da chamada Licenciatura Curta, e ao no lhes
assegurar condi- es de trabalho dignas. Evidentemente, houve
resistncia e luta contra o modelo educacio- nal implantado pelas
sucessivas reformas. Desde os meados dos anos 1970, associaes
docentes e estudantis de todo o pas lutaram pela revaloriza- o das
humanidades no Ensino Mdio e, entre eles, estiveram os grupos que
se empenharam pelo retorno do ensino obrigatrio da filosofia.
Assim, a volta da filosofia ao Ensino Mdio tem, hoje, um signifi-
cado simblico de extrema relevncia ao assinalar a presena da idia
da educao como formao, isto , como interesse pelo trabalho do
pensa- mento e da sensibilidade, como desenvolvimento da reflexo
para compre- ender o presente e o passado, e como estmulo
curiosidade e admirao, que levam descoberta do novo. Por isso
mesmo, grande a responsabilidade dos professores uni- versitrios de
filosofia, pois lhes cabe a tarefa de preparar os docentes do
Ensino Mdio, por meio de formao filosfica slida, formao pedag- gica
segura e recursos bibliogrficos amplos e adequados. Alm de, jun-
tamente com eles, exigir condies de trabalho dignas (desde o
salrio, o nmero de horas de aula, o tamanho das classes at a
garantia de que,
11. sejam quais forem as condies scio-econmicas dos alunos, a
escola lhes assegure o acesso aos recursos educativos). II.
Retomemos o adgio que afirma a inutilidade da filosofia. Essa
imagem encontra-se presente entre os alunos do Ensino M- dio, que
ainda esto marcados pelo modelo instrumental do ensino e pela
figura dos exames vestibulares como fim ltimo da existncia escolar.
Para muitos deles, a filosofia um conjunto de termos abstratos,
genricos, na maioria das vezes incompreensveis, palavrrio que, no
final das contas, se refere a coisa nenhuma. Curiosamente, porm,
eles tambm costumam considerar a filosofia um conjunto de opinies e
valores pessoais, que orientam a conduta, o julgamento e o
pensamento de algum, variando de indivduo para indivduo cada um tem
a sua filosofia. Como quebrar essas imagens? Ou melhor, como fazer
com que os alunos percebam que essas imagens no so absurdas, mas
que seu sen- tido no exatamente aquele com que se acostumaram? Como
mostrar- lhes que a filosofia uma forma determinada de saber e no
um conjunto fragmentado de opinies, uma coleo de eu acho que? Como
faz-los compreender que esse saber reflexivo e crtico
(simultaneamente ruptu- ra com o senso-comum e compreenso do
sentido desse senso-comum)? Como lev-los a perceber que a filosofia
possui uma histria que lhe ima- nente, mas que tambm a transcende,
pois ela est na histria? Como faz- los ver que um filsofo interroga
as questes de seu tempo para apreender o sentido da experincia
vivida por ele e por seus contemporneos e que, assim procedendo,
nos ensina a interrogar nosso prprio presente? Certamente,
procedendo como o patrono da filosofia, Scrates, convidando-os a
interrogar o que so e de onde nascem suas crenas tci- tas e suas
opinies explcitas. Essa interrogao, sabemos, levou Scrates perante
a Assemblia de Atenas, que o condenou como perigoso para a
juventude. Essa interrogao levou excluso da filosofia no Ensino M-
dio, considerada subversiva pela Lei de Segurana Nacional. O
convite a Prefcio
12. indagar sobre a origem e o sentido de nossas idias,
sentimentos e aes , sem dvida, um bom comeo para a iniciao
filosofia. Que caminho melhor para isso do que familiarizar os
alunos com aquilo que o cerne e o corao da filosofia, o discurso
filosfico? Experincia da razo e da linguagem, a filosofia a
peculiar ativi- dade reflexiva em que, na procura do sentido do
mundo e dos humanos, o pensamento busca pensar-se a si mesmo, a
linguagem busca falar de si mesma e os valores (o bem, o
verdadeiro, o belo, o justo) buscam a origem e a finalidade da
prpria ao valorativa. Essa experincia, concretizada no e pelo
trabalho de cada filsofo, constitui o discurso filosfico. Por que a
filosofia um discurso dotado de caractersticas prprias, a iniciao a
ela encontra um caminho seguro no ensino da leitura dessa
modalidade de discurso, a fim de que os alunos aprendam a
descobrir, no movimento e na ordenao das idias de um texto, a lgica
que sustenta a palavra filosfica para que possam analis-la e
coment-la, primeiro, e interpret-la, depois. III. O que ler? Comeo
distraidamente a ler um livro. Contribuo com alguns pen- samentos,
julgo entender o que est escrito porque conheo a lngua e as coisas
indicadas pelas palavras, assim como sei identificar as experincias
ali relatadas. Escritor e leitor possuem o mesmo repertrio
disponvel de Prefcio
13. palavras, coisas, fatos, experincias, depositados pela
cultura instituda e sedimentados no mundo de ambos. De repente,
porm, algumas palavras me "pegam". Insensivelmen- te, o escritor as
desviou de seu sentido comum e costumeiro e elas me arrastam, como
num turbilho, para um sentido novo, que alcano ape- nas graas a
elas. O escritor me invade, passo a pensar de dentro dele e no
apenas com ele, ele se pensa em mim ao falar em mim com palavras
cujo sentido ele fez mudar. O livro que eu parecia dominar
soberanamente apossa-se de mim, interpela-me, arrasta-me para o que
eu no sabia, para o novo. O escritor no convida quem o l a
reencontrar o que j sabia, mas toca nas significaes existentes para
torn-las destoantes, estranhas, e para conquistar, por virtude
dessa estranheza, uma nova harmonia que se aposse do leitor. Ler,
escreve Merleau-Ponty, fazer a experincia da retomada do pensamento
de outrem atravs de sua palavra, uma reflexo em outrem, que
enriquece nossos prprios pensamentos. Por isso, prossegue Merleau-
Ponty, comeo a compreender uma filosofia deslizando para dentro
dela, na maneira de existir de seu pensamento, isto , em seu
discurso. Prefcio
14. Sumrio Apresentao
I......................................................................................................................
4 Apresentao
II.....................................................................................................................
5 Apresentao
III....................................................................................................................
8
Prefcio..................................................................................................................................
9 Agostinho de
Hipona.......................................................................................................
18 Agostinho: a razo em progresso permanente Cristiane Abbud Ayoub
- Moacyr
Novaes......................................................................
19 Confisses (excertos) Livro
XI.........................................................................................
26
Aristteles.........................................................................................................................
58 Aristteles e a superao do paradigma da Academia Jos Verssimo
Teixeira da Mata.............................................. 59
Poltica - excertos: (1252 a 1253 b; livro III: 1274 b 30 a - 1276
a) sobre o cidado e a
cidadania........................................................................................................................
70
Avicena..............................................................................................................................
80 Avicena, o grande mestre da filosofia rabe-muulmana Jamil I.
Iskandar...................................................................
81
Epstolas..............................................................................................................................
88
Berkeley...........................................................................................................................
100 George Berkeley e a Terra Incgnita da Filosofia: Percepo,
Linguagem, Iluso Everaldo Skrock
............................................ 101 Ensaio para uma
nova teoria da
viso...............................................................................
108 Teoria da viso defendida e
explicada...............................................................................
117
Bornheim.........................................................................................................................
122 Bornheim: Esttica e Crtica Roberto
Figurelli..............................................................
123 Gnese e metamorfose da
crtica.......................................................................................
130
Descartes.........................................................................................................................
142 Meditando com Descartes: da dvida ao fundamento Csar Augusto
Battisti.........................................................
143 Meditaes excertos das Meditaes 1, 2, 3, 4, 5 e
6........................................................................................
153
Espinosa..........................................................................................................................
190 Espinosa: Consideraes sobre o Tratado Breve Paulo Vieira Neto
............................. 191
15. Tratado breve (2
parte)....................................................................................................
206
Foucault...........................................................................................................................
218 Foucault: um pensador da nossa poca, para a nossa poca Ins
Lacerda Arajo......... 219 Poder e saber (entrevista a S.
Hasumi).............................................................................
230 O poder, um magnfico animal (entrevista a M.
Osrio)...................................................................................................
247
Gramsci...........................................................................................................................
258 Antonio Gramsci - Filosofia, Histria e Poltica Anita Helena
Schlesener................... 259 A
indiferena.....................................................................................................................
268 A
histria..........................................................................................................................
270 Cadveres e
idiotas............................................................................................................
272
Rabiscos.............................................................................................................................
274 O progresso no ndice de ruas da
cidade...........................................................................
276 Filantropia, boa vontade e
organizao.............................................................................
278 A sua
herana....................................................................................................................
281 Os jornais e os
operrios...................................................................................................
286 A luz que se
apagou..........................................................................................................
289 Crnicas de LOrdine Nuovo
IX....................................................................................
293 Crnicas de LOrdine Nuovo
XXX...............................................................................
296
Hegel.................................................................................................................................
298 Hegel e o carter tico-poltico da idia de liberdade Cesar
Augusto
Ramos..................................................................
299 Excertos e pargrafos
traduzidos......................................................................................
312
Hobbes.............................................................................................................................
338 Hobbes e o Estado Maria Isabel
Limongi.......................................................................
339 Leviat cap. XIII e
XVII...................................................................................................
346
Hume................................................................................................................................
368 Relao causal e a vontade como um evento natural em Hume Maria
Isabel
Limongi............................................................
369 Uma investigao sobre o entendimento humano (seo
8).......................................................................................
376
16. Sumrio
Kant..................................................................................................................................
398 Kant e a liberdade de pensar publicamente Vinicius de
Figueiredo.............................. 399 Resposta questo o que
esclarecimento?...................................................................
406
Maquiavel.......................................................................................................................
416 Liberdade e repblica no pensamento de Maquiavel Carlo Gabriel
Kszan Pancera......................................... 417
Discursos sobre a 1 dcada de Tito
Lvio.........................................................................
426 O
prncipe.........................................................................................................................
451
Marx.................................................................................................................................
460 Marx e a Filosofia como emancipao Jairo
Maral...................................................... 461
Sobre a Crtica da Filosofia do Direito de Hegel
Introduo......................................................................................
474
Merleau-Ponty...............................................................................................................
490 Merleau-Ponty: Entre o corpo e a alma Luiz Damon
Moutinho................................... 491 Conversas 1, 2 e
5.........................................................................................................
498
Nietzsche.........................................................................................................................
516 Entre a verdade e o impulso verdade: apresentao ao ensaio de
Nietzsche Sobre verdade e mentira o sentido extra-moral Antonio
Edmilson Paschoal............ 517 Sobre a verdade e a mentira no
sentido
extra-moral....................................................................................................
530
Plato..............................................................................................................................
542 Plato e os primrdios da Esttica Roberto
Figurelli..................................................... 543
Excerto do dilogo Hpias
Maior......................................................................................
548 Excerto de A repblica (livro
X).......................................................................................
552
Rousseau.........................................................................................................................
564 Rousseau contra o seu tempo Rodrigo
Brando.............................................................
565 Discurso sobre as cincias e as artes (excertos - 1 e 2
parte).......................................... 578 Discurso sobre
a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (excertos
Prefcio; Discurso; 1 parte e 2
parte................................. 582 Contrato Social
(excertos Livro I: captulos 1; 3; 4; 6; 7;
8)......................................... 600
17.
Sartre................................................................................................................................
608 A liberdade a moral da histria: Sartre, vida e obra Luiz Damon
Moutinho....................................................................
609 O existencialismo um
humanismo.................................................................................
616
Schiller.............................................................................................................................
640 O homem esttico na viso de Schiller Roberto
Figurelli.............................................. 641 Cartas
XII; XIV e
XV.......................................................................................................
648 Toms de
Aquino...........................................................................................................
658 Toms de Aquino e o pensamento poltico medieval Alfredo
Storck....................................................................................
659 A
realeza............................................................................................................................
666
Voltaire............................................................................................................................
692 Voltaire: filosofia, literatura e histria Rodrigo
Brando.............................................. 693 Mulheres,
sujeitai-vos aos vossos
maridos........................................................................
702
Providncia.......................................................................................................................
707 O sculo de Luiz
XIV........................................................................................................
709 Idias republicanas por um membro do
corpo...................................................................
711 ndice
remissivo................................................................................................................
716
18.
18AntologiadeTextosFilosficosSecretariadeEstadodaEducaodoParan
Agostinho: A razo em progresso permanente18
19. 1919 Agostinho nasceu no dia 13 de novembro de 354, em
Tagasta, na atual Arglia, norte da frica. Seu contato com a
filosofia comeou pela literatura e pela oratria. O interesse pela
literatura clssica latina foi decisivo para sua vida filosfica. O
estudo de Ccero e de Verglio propi- ciou um conhecimento elevado
tanto dos recursos da linguagem, como de conceitos e problemas
filosficos. At mesmo sua rejeio inicial pelo texto bblico deve-se
ao gosto desenvolvido nesse padro literrio: Agos- tinho
inicialmente julgava que o Velho e o Novo Testamentos no esta- vam
altura dos grandes autores, nem pela forma nem pelo contedo. Dotado
de boa formao literria, o jovem Agostinho inclinou-se tambm para o
maniquesmo. importante entender em que se base- ava seu interesse.
O maniquesmo procurava responder perguntas ca- pitais para a
filosofia, e prometia faze-lo com integral apoio na razo, isto ,
rejeitando todo argumento de autoridade. Alm dessa generosa
promessa de racionalidade, o dualismo maniqueu procurava explicar a
existncia do mal no mundo como consequncia de alguma coisa pr- pria
ao homem, e no a Deus, princpio do bem. Essas duas promessas
atraram Agostinho, que estudou com ateno as respostas maniquestas
AGOSTINHO: A RAZO EM PROGRESSO PERMANENTE
20.
20AntologiadeTextosFilosficosSecretariadeEstadodaEducaodoParan
Agostinho: A razo em progresso permanente20 a diversas questes, na
expectativa de encontrar explicaes racionais para tudo. Em linhas
gerais, o maniquesmo pretendia que nosso mundo se- ria resultado de
um embate entre dois princpios ou dois prncipes, se quisermos uma
linguagem alegrica. De um lado, o princpio do bem (ou Prncipe da
luz), e de outro o princpio do mal (ou Prncipe das trevas). Um dos
resultados desse combate seria justamente o homem: com uma parte
luminosa, a alma, e outra parte tenebrosa, o corpo. Assim, o mal
seria consequncia dessa nossa parte de origem e natureza malignas,
o corpo. Na sua teoria do conhecimento, o maniquesmo julgava que
para ser inteiramente racional, s poderia aceitar como verdadeiro
aquilo que estivesse imediatamente presente. Isto , s poderamos dar
assentimen- to quilo que nossos sentidos captam, aqui e agora, ou
quilo que intu- mos prontamente com o intelecto, como as verdades
da matemtica. Mas Agostinho decepcionou-se com o dualismo maniqueu.
As promessas no foram cumpridas. Seu contato com os grandes mestres
dessa corrente doutrinria no o satisfez intelectualmente. Quando
pde debater com eles, considerou que as explicaes no eram
suficientes. Devemos notar, porm, que Agostinho no abandonou
aquelas duas exigncias: explicao racional e responsabilidade humana
pelo mal. A soluo maniquesta no o contentava, mas os valores da
razo e da responsabilidade moral restavam intactos para ele. Mais
tarde, na vida madura, a filosofia agostiniana afirmar que a
racionalidade no exclui a autoridade, e que a responsabilidade
humana pode ser pensada em outros termos. A decepo com o maniquesmo
e a ambio de viver de seu ta- lento como orador o levam a Roma,
onde se torna professor. Sua vida profissional no bem sucedida
naquela que seria a Cidade Eterna, a capital do poderoso Imprio
Romano. Mas do ponto de vista intelectual, Agostinho distancia-se
do maniquesmo e tem importante contato com o ceticismo acadmico. Se
o dilogo Hortensius, hoje perdido, exerceu uma influncia j nos
primeiros anos, ainda na frica, outras obras de Ccero,
21. 2121 como De natura deorum ou Academica, o levam a
compreender melhor as dificuldades da razo humana para atingir a
verdade. Nem os sentidos nem o mero modelo matemtico seriam
suficientes para encontrar todas as respostas. Embora tambm no se
torne um ctico, Agostinho vai le- var consigo, para toda a vida, a
noo da falibilidade da razo humana, e da necessidade de uma procura
para alm do que est imediatamente presente. nesse contexto que o
contato com o platonismo mostra-se frut- fero. Depois de deixar
Roma, por ter obtido um elevado posto em Milo, na corte do
Imperador, Agostinho tem a oportunidade de contato com o
platonismo, em especial com o pensamento de Plotino. Embora tenha
mudado para a Milo em busca de sucesso profissional, as
consequncias desse novo passo foram inteiramente outras. A vida na
corte propiciar o encontro com Ambrsio, e a revoluo que da resulta
levar Agostinho a abandonar o cargo e os projetos de vida a ele
associados. Ambrsio era o bispo de Milo. Agostinho, em princpio, no
con- fiaria num bispo, seja porque exigia uma f que o maniquesmo
ensinara a desprezar, seja porque valorizava a Bblia, um livro
aparentemente mal escrito. Mas Ambrsio era um sofisticado estudioso
do platonismo, e in- terpretava a Bblia luz das Enadas de Plotino.
Com o platonismo, Agos- tinho foi encontrando outro modo de
resgatar a razo, e explicar o mal. A lio platnica que Agostinho
reteve pode ser assim resumida. Ao desconfiar do que se apresenta
aos sentidos e ao intelecto, no deve- mos desesperar do acesso
racional verdade. Devemos apostar que a verdade est mais alm, que a
verdade ser encontrada somente depois de um esforo racional que
nega as verdades aparentes, em proveito de uma verdade que
transcende a aparncia. O trabalho da filosofia um longo e penoso
estudo de depurao, para que nossa razo encontre as condies
adequadas de conhecimento da verdade. Ao mesmo tempo em que
valorizava a razo, com o imperativo de uma depurao crtica de suas
condies, o platonismo apresenta para Agostinho outra maneira de
entender o mal. Enquanto o maniquesmo considerava que o corpo era
naturalmente mau, Agostinho encontra no
22.
22AntologiadeTextosFilosficosSecretariadeEstadodaEducaodoParan
Agostinho: A razo em progresso permanente22 platonismo elementos
para uma explicao diversa. O mal deve ser in- vestigado na vontade
humana. A responsabilidade humana no est na sua natureza, no seu
corpo. Na verdade, Agostinho insistir que a causa do mal deve ser
procurada na alma, isto , no livre-arbtrio da vontade. Podemos
dizer que a partir desse momento sua vida foi uma permanente
investigao desse problema. At a idade mais avanada, j de volta
frica, j como bispo de Hipona, essas concepes de vontade e liberda-
de estaro em permanente elaborao. Milo j no mais retinha Agostinho.
Em licena do cargo, retira- se em Cassicaco, ainda no norte da
Itlia, com um grupo de familiares e amigos, onde conduz discusses
filosficas que se tornaram clebres. Essas conversas foram anotadas
e depois publicadas por ele na forma de dilogos, como o Contra
Acadmicos, a Ordem e a Vida feliz. De volta de Cassicaco, Agostinho
deixa definitivamente seu cargo na corte imperial, e volta para a
frica, com o projeto de fundar uma comunidade filosfi- ca, longe
das ambies do mundo. A vida na frica tampouco ser como o planejado.
Aps um curto perodo de elaborao e redao de textos iniciados em
Cassicaco e em Roma (no caminho de volta frica), logo Agostinho se
v ordenado sacerdote da igreja catlica e, no muito depois, Bispo da
importante ci- dade de Hipona. Embora dedicado tambm s funes
pastorais, Agos- tinho no abandonar a filosofia, e continuar
pensando, escrevendo e polemizando. Exatamente por ser Bispo de
Hipona caber a ele enfrentar polmicas com o donatismo e o
pelagianismo, e grandes desafios teri- cos, como a trindade divina,
justamente na obra A Trindade, e a interpre- tao da significao do
stio e do saque de Roma, por Alarico, em 24 de agosto de 410, na
clebre Cidade de Deus. Agostinho morreu em 28 de agosto de 430,
quando as consequn- cias materiais e militares da queda de Roma j
eram sentidas em toda a frica do Norte, e estavam s portas de
Hipona.
23. 2323 As confisses, e seu famoso livro xi Retornemos agora
aos primeiros anos de Agostinho como bispo, quando escreveu suas
Confisses, para com isso retomarmos a linha de amadurecimento de
sua filosofia. A interpretao do cristianismo como a verdadeira
filosofia exigia ainda a crtica do platonismo. Podemos dizer que
essa crtica concentra- se na questo das condies da reconciliao
entre o homem e Deus. Se for correto dizer que o platonismo
propunha um esforo ascendente, em que a inteligncia humana por suas
prprias foras alcanaria a contem- plao da verdade, Agostinho
entende que a filosofia deve ser atenta necessidade de uma mediao
estabelecida de cima para baixo. Isso quer dizer que a promoo das
condies para o contato entre o homem e a verdade suprema ser da
iniciativa divina, e no apenas do esforo humano (ainda assim,
indispensvel). As Confisses, escritas aproximadamente entre 397 e
401, so um monumento filosfico. Investigam a condio humana e, em
particular, a inteligncia e a vontade na busca de Deus. Em
especial, o Livro XI permi- te estudar de que modo Agostinho
manejou a matriz filosfica platnica, para explorar seus limites e
exibir a necessidade de ir alm dela. Considerado um estudo dos
conceitos de eternidade e tempo, o Livro XI das Confisses deve ser
lido como parte de um projeto geral. O leitor deve levar em conta o
fracasso enunciado ao final do Livro X, para entender o papel dos
livros XI-XIII, que totalizam a obra. Em resu- mo, podemos dizer
que o Livro X encerra as narrativas baseadas na vida de Agostinho.
Depois de apresentar sua primeira infncia no Livro I, as Confisses
acompanham a vida do narrador at o seu momento presen- te. Se nos
primeiros livros o autor, que tambm narrador, fala de um Agostinho
distante, primeiro criana, depois adolescente etc., seria de se
esperar que as narrativas finalmente encontrassem o presente do
narra- dor. E isso acontece e no acontece. claro que os Livros I-IX
versam sobre o passado de Agostinho, e o Livro X versa sobre seu
presente. No entanto, paradoxalmente, o Livro
24.
24AntologiadeTextosFilosficosSecretariadeEstadodaEducaodoParan
Agostinho: A razo em progresso permanente24 X exibe o desencontro
profundo de Agostinho consigo mesmo. Quando o leitor esperava
encontro, depara com abismo. O final do Livro X uma apresentao
meticulosa da distncia que um homem tem de si mesmo. Com isso,
esgota-se uma estratgia narrativa. Narrar a prpria vida no
propiciou uma reconciliao. O narrador foi descobrindo a distncia
que tinha no apenas de Deus, mas tambm de si mesmo. Ora, nesse
contex- to terico, o Livro XI tem a tarefa de examinar outra e mais
importante narrativa: a narrativa baseada na palavra divina, a
narrativa da criao, segundo o livro do Gnesis: No princpio Deus fez
o cu e a terra. Da se compreende que o Livro XI seja marcado pela
afirmao da iniciativa divina, e pelo imperativo de que mesmo assim
a razo humana se aplique. Seja como vontade, seja como inteligncia,
cabe razo o es- foro de secundar a ajuda divina. O leitor ter
proveito em estudar o Livro XI luz do platonismo, no contraste
entre o eterno e o temporal, como no uso das estratgias de depurao,
da abordagem negativa etc. Mas tambm dever ser atento reformulao da
soluo platnica pela necessidade de amoldamento humano mediao
promovida pelo Deus absoluto. A investigao da palavra divina, pela
palavra humana, ser uma procura de comunicao entre os dois plos.
Ser igualmente proveitoso estudar como o texto vai marcando o papel
da vontade, mediante metforas como o esprito que arde, ou o fogo do
amor, ao mesmo tempo em que a afirmao da von- tade depende da sua
assimilao ao amor divino: fao isto por amor ao teu amor (Confisses
XI, 1,1). Sugestes de Leitura: Principais obras de Agostinho
traduzidas para o portugus AGOSTINHO DE HIPONA. A Cidade de Deus:
contra os pagos (livros I-X). 3. ed. Traduo de Oscar Paes Leme.
Petrpolis: Vozes, 1991. v. 1. AGOSTINHO DE HIPONA. A Cidade de
Deus: contra os pagos (livros XI-XXII). 2. ed. Traduo de Oscar Paes
Leme. Petrpolis: Vozes, 1990. v. 2. AGOSTINHO DE HIPONA. A
Trindade. Traduo de frei Agustino Belmonte. So Paulo: Paulus,
1995.
25. 2525 AGOSTINHO DE HIPONA. Confisses. 6. ed. Traduo de Maria
Luiza Jardim Amarante. So Paulo: Paulus, 1995. AGOSTINHO DE HIPONA.
De Magistro. Traduo, introduo e comentrios de Bento Silva Santos.
Petrpolis: Vozes, 2009. Obras sobre Agostinho (em portugus) BROWN,
P. Santo Agostinho: uma biografia. Traduo de Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro: Record, 2005. GILSON, E. Introduo ao estudo de santo
Agostinho. So Paulo: Discurso, Paulus, 2006. NOVAES, M. A Razo em
exerccio: estudos sobre a filosofia de Agostinho. So Paulo:
Discurso, 2007. PALACIOS, P. M. (Org.). Tempo e Razo: 1600 anos das
Confisses. So Paulo: Loyola, 2002. POSSDIO. Vida de santo
Agostinho. Traduo das Monjas Beneditinas de Ca- xamb/MG. So Paulo:
Paulus, 1997. RAMOS, F. M. T. A Ideia de Estado na doutrina
tico-poltica de Santo Agostinho: um estudo do Epistolrio comparado
com o De Civitate Dei. So Paulo: Loyola, 1984.
26.
26AntologiadeTextosFilosficosSecretariadeEstadodaEducaodoParan26
Agostinho de Hipona Confisses, Livro XI CONFISSES, LIVRO XI1
Captulo 1, 1. Porventura2 , Senhor3 , sendo tua a eternidade4 ,
ignoras o que te 1 AUGUSTINUS S. AURELIUS. Confessionum Libri XIII
(Bibliotheca scriptorum Graeco- rum et Romanorum Teubneriana). Edio
de Martin Skutella (1934), corrigida por H. Juergens e W. Schaub.
Stuttgart: Teubner, 1981. 2 O tema do livro enunciado na primeira
frase: um estudo dos conceitos de eternidade e tempo. Trata-se de
interrogar os dois conceitos, segundo sua contraposio e segundo a
articulao possvel entre eles. Agostinho examina um tema fundamental
na histria da filosofia, levando em conta o que j fora feito por
grandes filsofos como Plato, Aristteles e Plotino. Alm disso,
aprofunda a investigao e transforma os termos do problema, luz de
novas exigncias. Mas o Livro XI das Confisses importante na histria
da filosofia tambm porque abriu linhas de investigao que perduram
at a filosofia contempornea, em particular com Husserl e Heidegger.
3 A forma de tratamento, Senhor, pode ser analisada sob dois pontos
de vista: seja como ndice da necessidade de subordinao, tese que
ser desenvolvida no conjunto das Confisses e, particularmente,
neste livro XI; seja como ndice de que a linguagem aqui ser menos
descritiva do que dialogal. O decorrer do livro vai mostrar que o
desafio de Agostinho encontrar palavras para dialogar com o verbo
divino, e no para descrever o verbo divino. A linguagem temporal
dever dirigir-se e amoldar-se ao Princpio eter- no, e no tentar
explic-lo. 4 O vnculo entre os dois termos, eternidade e tempo, um
problema por si mesmo. Com efeito, o exame dos dois conceitos deve
mostrar, primeiro, que eles so heterog- neos. A eternidade no ser a
infinidade dos tempos. Ao contrrio, o que eterno est fora do tempo,
atemporal. E o tempo no uma parcela da eternidade, ele condio de
multiplicidade e disperso, em contraste com a unidade do que
eterno. Por isso, a
27. 2727 digo, ou vs com o tempo o que se passa no tempo? Ento
por que dispo- nho para ti narraes de tantas coisas5 ? No , claro,
para que venhas a sab-las por mim, mas excito meu afeto em tua
direo e tambm os afe- tos daqueles que as leem, para que digamos
todos: Tu s grande, Senhor, e infinitamente louvvel i . J disse e
direi: fao isto por amor ao teu amor. Com efeito, tambm oramos, e
todavia a verdade diz: vosso pai sabe o que vos necessrio, antes de
pedirdes a ele ii . Por isso, te expomos nosso afeto ao confessar a
ti as nossas misrias e as tuas misericrdias por sobre nsiii , para
nos libertares totalmente, pois que tu o comeaste6 , para deixarmos
de ser miserveis em ns e nos tornarmos felizes em ti; pois que nos
cha- maste, para sermos pobres de esprito e mansos e chorosos e
aflitos e termos tanto fome como sede de justia e sermos
misericordiosos e puros de corao e pacficos4 . Foi assim que narrei
muitas coisas para ti, as que pude e as que quis, pois tu quiseste
primeiro, Senhor meu Deus, que eu te confessasse que s bom, que a
tua misericrdia para sempre 5 . 7 Captulo 2, 2. Quando conseguirei
com a lngua do lpis enunciar todas as tuas exortaes, e todos os
teus terrores, e consolaes e comandos, pelos quais me conduziste a
pregar tua palavra e a dispensar teu sacramento ao teu povo? E se
eu conseguir enunciar com ordem, sero caras a mim as gotas
dificuldade j comea com a ideia mesma de reunir conceitos dspares.
Como veremos, a dificuldade ter de ser examinada gradativamente. 5
Narrativa e oniscincia divina. O problema do vnculo ainda maior.
Ele concerne prpria pretenso contida nas narrativas das Confisses.
Como Deus eterno, isso deve excluir duas coisas: que Deus ignore
alguma coisa no caso, aquilo que Agostinho quer confessar e que
Deus conhea as coisas temporais medida que o tempo passa. Ento, por
que narrar para Deus, aquilo que ele j sabe? E por que narrar,
temporalmente, para uma inteligncia eterna, atemporal? 6 A afirmao
da iniciativa divina ser desenvolvida neste livro. Ao estudar a
eterni- dade e o tempo, Agostinho ter ocasio de exibir a dependncia
humana com respeito iniciativa e atividade de Deus. Mas tambm no
abrir mo do livre-arbtrio, do papel da vontade, de sorte que haver
sempre tenso entre a dependncia e a vontade humanas. 7 O problema
aprofunda-se. preciso ainda levar em conta que o homem, o filsofo
nar- rador, parte do problema. O filsofo no apenas descreve uma
questo, ele prprio parte dela, porque ele prprio est submetido ao
tempo. Seu pensamento e sua lin- guagem so temporais. Sua natureza
humana e sua misria como herdeiro do pecado fazem com que sua
prpria posio merea distanciamento crtico.
28.
28AntologiadeTextosFilosficosSecretariadeEstadodaEducaodoParan28
Agostinho de Hipona Confisses, Livro XI dos tempos. E h muito ardo
por meditar na tua lei e nela confessar-te minha cincia e minha
impercia, os elementos primordiais da tua ilu- minao e os restos
das minhas trevas, at que a fraqueza seja devorada pela fortaleza.
E no quero que se dispersem em outra coisa as horas que tenho
livres das necessidades de refazer o corpo e a intenso do esprito8
, e do servio que devemos aos homens e do que no devemos e mesmo
assim prestamos. Captulo 2, 3. Senhor meu Deus, d ateno minha orao
vi , e que tua misericrdia oua meu desejo, porque ele no arde
somente por mim, mas quer ser til caridade fraterna; e tu vs no meu
corao que assim . Que eu sa- crifique a ti a escravido do
pensamento e da minha lngua. Tu, d o que te oferecerei vii , pois
sou indigente e pobre viii , tu s rico para todos os que invocam a
ti ix , e isento de cuidados cuidas de ns9 . Circuncida meus lbios
de toda temeridade e de toda mentira interior e exterior. Sejam
castas delcias mi- nhas as tuas escrituras, e que eu no seja
enganado com elas nem engane sobre elas. Senhor, atende X e tem
misericrdia, Senhor XI meu Deus, luz dos cegos e vigor dos fracos,
assim como luz dos que veem e vigor dos for- tes, presta ateno e
ouve minha alma que clama das profundezas. Pois a no ser que teus
ouvidos estejam tambm nas profundezas, de onde iremos? De onde
clamaremos? Teu o dia e tua a noite XII : a um aceno teu os
momentos passam voando. Concede espao10 , ento, para nossas me- 8
Essa intenso do esprito uma expresso quase materialista, a ser
tomada criticamen- te. O esprito tem certo tnus, tenso interna, que
precisa ser bem entendido. Isso requer uma anlise introspectiva que
denuncie a confuso entre espao e tempo. A intenso e o mbito interno
da alma so incorporais e temporais, no espaciais. Para tanto, Agos-
tinho dever examinar a distenso do esprito, ela tambm temporal, e
mediante a sua crtica chegar importncia de o esprito estender-se
eternidade (39). Note-se que o Autor vai explorar, no mesmo campo
semntico, termos como ateno, atender (3) e atentar ( 34 e 37). 9 A
alteza divina no somente distncia. De algum modo, a ser investigado
ainda, ela tambm voltada para o que inferior, finito e miservel.
Com isso, as antteses entre o divino e o humano presentes em todo o
livro sero examinadas para alm de um quadro conceitual platnico. O
final do livro vir a explicitar a mediao descendente, isto , por
iniciativa divina. 10 O uso da palavra espao estratgico. A palavra
latina (spatium) ambivalente, porque tanto pode significar uma
distncia local como uma distncia temporal. Aqui
29. 2929 ditaes sobre os esconderijos da tua lei e no a feches
contra os que ba- tem porta, pois no foi em vo que, por tua
vontade, foram escritos os segredos opacos de tantas pginas. Ou ser
que aquelas selvas no tm seus cervos, que nelas se restabelecem e
se recuperam, nelas passeiam e pastam, deitam e ruminam? Senhor,
perfaz-me xiii e revela tais coisas a mim. Eis que tua voz minha
alegria, tua voz acima da afluncia das volpias. D o que amo, pois
amo. E tu deste isso. E no abandones os teus dons nem desprezes tua
erva sedenta. Quero confessar-te o que vier a encontrar em teus
livros e ouvir a voz do louvor xiv e te beber e considerar as
maravilhas da tua lei xv desde o princpio em que fizeste o cu e a
terra xvi , at o reino xvii perptuo contigo da tua cidade santa
xviii . 11 Captulo 2, 4. Senhor, tem misericrdia de mim e escuta
xix meu desejo12 . Pois penso que no desejo de terra, nem de ouro
nem prata nem pedras, ou de roupas luxuosas ou de honras e poderes
e volpias da carne, nem de coisas necessrias ao corpo e a esta
nossa vida de peregrinao, que sero Agostinho refere-se ao espao
temporal, ao tempo necessrio para meditar. Mas o de- correr do
livro cuidar de denunciar a confuso conceitual entre o espao local
e o espao temporal. Consultem-se especialmente os captulos 26 e 27
(33-36). 11 O projeto de Agostinho pode ser traduzido na superposio
de dois planos: a) do princpio ao reino perptuo indica o estudo do
conjunto das Escrituras, do Livro do Gnesis ao Livro do Apocalipse,
isto , a Bblia do comeo ao fim; b) e tambm a ateno a todo o
transcurso real da criao do mundo ao juzo final. Mas o leitor deve
levar em conta que os Livros XI-XIII das Confisses levam a cabo o
projeto, ao examinar o que seria a eptome do conjunto da Bblia,
isto , o trecho que vai de Gnesis 1, 1 a Gnesis 2, 2. 12 O leitor
encontrar referncias bblicas nas notas assinaladas com nmeros
romanos, apresentadas no fim do livro. Os ttulos do Antigo
Testamento esto em letras normais; grafamos em itlico os ttulos do
Novo Testamento. O uso abundante de tais referncias por Agostinho
importante por dois motivos. Primeiro, porque exprime a humildade
(exigncia que Agostinho tratar de exibir no conjunto das Confisses)
ao procurar apoio para as prprias palavras nas palavras sagradas.
Sendo assim, o reconhecimento da dificuldade do tema e dos embaraos
do verbo humano, ao procurar o verbo divino, coerente com o recurso
s Escrituras. Em segundo lugar, porque Agostinho tem o propsito
polmico de mostrar a conciliao entre a antiga lei judaica, expressa
no Ve- lho Testamento, e o Evangelho, presente no Novo Testamento.
Contra o maniquesmo, tratava-se de aproximar o Princpio do livro do
Gnesis ao Princpio que era Verbo, no Evangelho segundo Joo. Veja-se
a inverso realizada no final desta alnea 4: a autori- dade de
Cristo a Verdade - legitima as palavras de Moiss.
30.
30AntologiadeTextosFilosficosSecretariadeEstadodaEducaodoParan30
Agostinho de Hipona Confisses, Livro XI todas acrescentadas a ns
que procuramos o teu reino e a tua justia xx . V, meu Deus, de onde
vem meu desejo13 . Os injustos me narraram deleites, mas no segundo
a tua lei, Senhor xxi . Eis de onde vem meu desejo. V, Pai, olha e
v e aprova. E que agrade aos olhos xxii da tua misericrdia que eu
encontre graa diante de ti, para que os interiores de tuas palavras
se abram quando eu bater porta. Rogo pelo nosso Senhor Jesus
Cristo, teu filho, tua direita, filho do homem, que confirmaste
xxiii junto a ti, mediador entre ti e ns, por quem nos procuraste,
ns que no te procurvamos, mas procuraste para que te procurssemos,
procurssemos tua palavra, pela qual fizeste tudo, inclusive a mim,
procurssemos o teu nico filho, pela qual chamaste adoo o povo dos
crentes, inclusive a mim. Rogo a ti atravs dele, que senta tua
direita xxiv e te interpela para ns xxv , no qual esto escondidos
todos os tesouros da sabedoria e da cincia xxvi . So estes que eu
procuro nos teus livros. Moiss escreveu sobre ele: ele mesmo o
afirma, a Verdade o afirma.14 Captulo 3, 5. Que eu oua e entenda15
de que modo no princpio fizeste o cu e a terra xxvii . Moiss o
escreveu, escreveu e se foi, passou daqui contigo para junto a ti,
e agora no est diante de mim. Pois se estivesse, eu o pararia e o
interrogaria, e suplicaria por ti, para que desvendasse essas
coisas a mim, e abriria bem os ouvidos do meu corpo aos sons que
irrompessem 13 As antteses (eternidade e tempo, luz e trevas,
fraqueza infirmeza etc.) significam mais do que contrastes. Elas so
indcio da necessidade de uma transformao, de uma depurao, para que
a vontade humana corresponda adequadamente iniciativa divi- na. A
depurao ser necessria j para abordar o problema (cf. 11 -15, 36,
40). 14 Note-se a inverso operada pelo Autor. No texto bblico
evocado nesta frase, Jesus recorrera autoridade de Moiss,
reconhecida pelos judeus. Se crsseis em Moiss, havereis de crer em
mim, porque foi a meu respeito que ele escreveu. (Joo 5, 46). Ago-
ra, Agostinho faz uma inverso, ao tomar a palavra do evangelho como
autorizao do texto de Moiss, por Jesus , a Verdade. 15 O problema
geral traduzido num problema especfico, isto , como interpretar o
pri- meiro versculo da Bblia: No Princpio Deus fez o cu e a terra
(Gnesis 1, 1). Esta sentena resume a questo, porque o Princpio
eterno, mas foi nele que Deus fez o tempo e o que pertence ao
tempo. Alm disso, logo descobriremos que este princpio o Verbo, a
palavra divina (7-ss.), inicialmente expressa nas palavras
escritas, por Moiss, no livro do Gnesis, e por Joo no seu
evangelho; tais palavras, por sua vez, devem ser discutidas pela
linguagem humana e entendidas pelo verbo interior.
31. 3131 de sua boca. E se falasse hebraico, em vo atingiria
meus sentidos e, por isso, nada tocaria minha mente. Mas se falasse
latim, eu saberia o que ele diria. Porm, de onde eu saberia se
diria o que verdadeiro? Se soubesse tambm isso, acaso saberia por
ele? Com efeito, dentro de mim, dentro no domiclio do pensamento, a
verdade (nem hebraica nem grega nem latina nem brbara) diria sem os
rgos da boca e da lngua, sem o es- trpito de slabas, ele diz o
verdadeiro e eu de pronto, certo e confian- te, diria quele teu
homem: dizes o verdadeiro. Ento, embora eu no possa interrog-lo,
rogo a ti, Verdade, da qual est pleno aquele que dis- se coisas
verdadeiras, rogo a ti, meu Deus, perdoa meus pecados xxviii , e
assim como deste ao teu servo diz-las, d tambm a mim entend-las16 .
Captulo 4, 6. Eis que o cu e a terra existem e proclamam que foram
feitos, por- que mudam e variam. Ora, naquilo que no foi feito e
contudo existe, no existe algo que no existia antes o que seria
mudar e variar17 . Pro- clamam tambm que no fizeram a si mesmos:
Existimos porque fomos feitos; portanto, no existamos antes de
existir para que pudssemos ser feitos por ns. E a voz dos que dizem
a prpria evidncia disso. Por- tanto Tu, Senhor, fizeste-os. Tu que
s belo, pois eles so belos; tu s bom, pois eles so bons; tu
existes, pois eles existem18 . E eles no so belos, nem bons e nem
existem tal como tu, o criador deles, comparados a quem no so
belos, nem bons nem existem. Sabemos isso, graas te sejam dadas, e
nossa cincia, comparada tua cincia, ignorncia. 16 A estrutura geral
do Livro XI. Estas alneas iniciais ( 1-5) configuram uma introduo
do livro. O seu desenvolvimento ocorrer em duas partes. A primeira
parte ( 6-16) estudar o que a eternidade divina. A segunda parte (
17-38) interrogar o que o tempo. O desfecho ( 39-41) retomar o par
de eternidade e tempo. 17 Em face das dificuldades, Agostinho adota
uma estratgia tradicional: a primeira abordagem ser negativa, como
j atesta a sucesso de negaes dessa frase, bem como dessa e das
alneas seguintes ( 6-16). Se no sei o que a eternidade, posso ao
menos investigar o que ela no . No sei de que modo Deus criou o
mundo, mas posso dizer como no foi. Trata-se da estratgia negativa
ou apoftica, que marcar esta investiga- o, at a 16. Agostinho
examinar a eternidade excluindo coisas, numa sucesso de negaes. Mas
essa estratgia tem limites, que sero explorados a partir da 17. 18
Essa frase deve ser lida com cautela, a luz de um procedimento
ascendente, de apro- ximao de Deus mediante o estudo das suas
criaturas.
32.
32AntologiadeTextosFilosficosSecretariadeEstadodaEducaodoParan32
Agostinho de Hipona Confisses, Livro XI Captulo 5, 7. Mas de que
modo fizeste o cu e a terra e qual a mquina para tua tamanha
operao? Com efeito, no foi como um artfice humano que forma um
corpo de outro corpo, segundo o arbitramento da alma que pode impor
alguma forma, forma que v em si mesma por um olho inter- no. E de
onde teria esse poder, seno porque tu a fizeste? E a alma impe
forma a algo que j est disponvel e tem existncia, tal como a terra,
ou a pedra, ou a madeira, ou o ouro, ou qualquer gnero de coisas. E
de onde essas coisas existiriam, se tu no as tivesses constitudo?
Tu fizeste o cor- po para o arteso, fizeste o esprito que impera
sobre os membros, fizeste a matria, de onde ele faz algo, fizeste o
engenho pelo qual capta a arte e v dentro o que faz fora, fizeste
os sentidos do corpo, intrpretes pelos quais transfere o que faz do
esprito para a matria e retransmite ao esp- rito o que foi feito, a
fim de que este consulte dentro a verdade que nele preside, para
saber se foi bem feito. Todas estas coisas louvam-te como o criador
de todas. Mas de que modo tu as fazes? Deus, de que modo fizeste o
cu e a terra? Certamente, no fizeste o cu e a terra no cu nem na
terra; nem no ar ou nas guas, porque estes tambm pertencem ao cu e
terra. Nem fizeste o universo no universo, pois no existia onde
fosse feito, antes de ter sido feito para existir. E no tinhas algo
mo, de onde fizesses o cu e a terra: pois de onde tu obterias isso
que tu no fizeras e do qual farias algo? Com efeito, o que existe
seno porque tu existes? Portanto, disseste e foram feitos xxix , e
os fizeste na tua palavra. Captulo 6, 8. Mas de que modo
disseste?19 Porventura do modo como foi feita uma voz, que disse da
nuvem: Este meu Filho amado xxx ? Pois essa voz soou e passou,
comeou e terminou. As slabas soaram e passaram, a segunda 19 O
exame da linguagem tem um papel fundamental neste livro, como j
fora apontado nas primeiras alneas (narraes 1, lngua 2, entre
outros). O tema da contraposi- o e vnculo entre eternidade e tempo
ser comentado mediante a anlise tanto da pa- lavra divina, o verbo
(logos criador), como da palavra humana, a linguagem do tempo no
tempo. Agostinho, com sua confisso, procura corresponder s diversas
dimenses em que o verbo divino proporciona uma reaproximao entre a
eternidade e o tempo decado.
33. 3333 aps a primeira, a terceira aps a segunda, e assim por
diante em ordem at a ltima, depois das demais, e o silncio, depois
da ltima. Donde fica claro e evidente que um movimento da criatura
expressou essa voz, servo temporal de tua vontade eterna. E estas
tuas palavras, feitas com o tempo, o ouvido exterior anunciou-as
mente prudente, cujo ouvido interior est direcionado para tua
palavra eterna. Mas a mente prudente comparou essas palavras
temporalmente sonoras com tua palavra eterna em silncio, e disse:
outra coisa, de longe; de longe, outra coisa. Estas esto longe,
abaixo de mim, e sequer existem, pois fogem e passam; mas a palavra
do meu Deus permanece acima de mim no eterno xxxi . Portanto, se
disseste com palavras sonoras e passageiras que fossem feitos o cu
e a terra, e assim fizeste o cu e a terra, j existiria uma criatura
corporal antes do cu e da terra, por cujos movimentos temporais
aquela voz tem- poralmente transcorreria. Mas no existia nenhum
corpo antes do cu e da terra, ou, se existisse, o terias feito
certamente sem uma voz transit- ria, de onde farias a voz
transitria pela qual dirias que se fizessem o cu e a terra. Com
efeito, o que quer que fosse aquilo de onde tal voz fosse feita, se
no fosse feito a partir de ti, de todo no existiria. Logo, com que
palavra foi dito por ti que fosse feito o corpo de onde se fariam
essas palavras? Captulo 7, 9. Assim, chamas-nos para entender a
palavra, Deus junto a Deus xxxii , que sempiternamente dita, e por
ela sempiternamente so ditas todas as coisas. Pois no findou o que
era dito e disse outra coisa para que tudo pudesse ser dito, mas
disse tudo simultnea e sempiternamente; de ou- tra maneira, j
haveria tempo e mudana, e no a verdadeira eternidade nem a
verdadeira imortalidade. Sei disso, meu Deus, e dou graas xxxiii .
Sei, confesso-te, Senhor, e comigo sabe e te bendiz todo aquele que
no ingrato para com a verdade certa. Sabemos, Senhor, sabemos que
cada coisa morre e nasce na medida em que no o que era, e o que no
era. Portanto, na tua palavra nada passa nem sucede, porque verda-
deiramente imortal e eterna. E por isso, com palavra coeterna
contigo, simultnea e sempiternamente dizes tudo que dizes e feito
tudo aquilo
34.
34AntologiadeTextosFilosficosSecretariadeEstadodaEducaodoParan34
Agostinho de Hipona Confisses, Livro XI que dizes que se faa; e no
fazes seno dizendo; entretanto, no se fazem simultnea e eternamente
todas as coisas que fazes dizendo. Captulo 8, 10. Por que,
pergunto, Senhor meu Deus?20 De alguma maneira vejo, mas no sei
como enuncilo21 , seno que tudo que comea a existir e acaba de
existir, comea e acaba de existir quando conhecido na razo eterna
(onde nada comea nem acaba) que deve comear ou acabar. Esta tua
palavra, que tambm princpio, pois tambm fala conosco. As- sim, no
Evangelho ela disse pela carne, e isso soou de fora nos ouvidos dos
homens, a fim de que nela se acreditasse, e fosse procurada dentro
e encontrada na verdade eterna, onde o mestre bom e nico ensina
todos os discpulos22 . Ali ouo tua voz, Senhor, dizendo para mim,
porque fala para ns aquele que nos ensina, mas quem no nos ensina,
mesmo que fale, no fala conosco. Quem mais nos ensina seno a
verdade estvel? Pois tambm quando somos admoestados pela criatura
mutvel, somos conduzidos para a verdade estvel, onde
verdadeiramente aprendemos, quando permanecemos, e o ouvimos e
alegramo-nos de alegria devido voz do esposo xxxiv , regressando
para de onde somos. E por isto princpio, pois se no permanecer
quando errarmos, no existir ao que retornar- mos. Quando
regressamos de um erro, em todo caso conhecendo que regressamos.
Ora, para que conheamos, ele nos ensina, pois o princpio e fala
conosco. xxxv 20 Nesta alnea Agostinho indica mltiplos sentidos do
Princpio e do verbo divino. Deus cria pela palavra, guia pelas
palavras, salva pela palavra. Em contrapartida, o homem fala,
confessa, canta. 21 Dissociao entre saber e dizer, que Agostinho
saber explorar para investigar a in- terioridade. Na Trindade, isso
ser comentado como a distncia entre notitia e cogitatio, uma noo j
presente mas perturbada por um pensamento ainda a ser depurado. 22
O dilogo Sobre o mestre (de magistro) ser dedicado a investigar as
palavras e sua presumida capacidade de ensinar, a partir do tema do
mestre interior nico. A crti- ca da linguagem importante para que o
texto confessional no pretenda descrever a eternidade, mas sim
fazer com que os afetos da alma temporal se voltem para o verbo
eterno.
35. 3535 Captulo 9, 11. Neste princpio, Deus, fizeste o cu e a
terra xxxvi : na tua palavra, no teu Filho, na tua virtude, na tua
sabedoria, na tua verdade. De modo admir- vel diz e de modo
admirvel faz. Quem compreender? Quem explicar? O que isso que luze
intermitentemente para mim e percute meu corao sem ferimento?
Estremeo e inflamo-me: estremeo, devido a quanto sou dessemelhante;
inflamo-me, devido a quanto sou semelhante. a sabedo- ria, a prpria
sabedoria, que luze intermitentemente para mim ao dissipar a minha
nuvem, nuvem que me cobre novamente quando abandono a sabedoria
devido caligem e ao entulho das minhas penas. Pois, como meu vigor
se enfraquece na indigncia xxxvii , no suporto o meu bem, at que
tu, Senhor, que foste propcio em face de todas as minhas
iniquidades, sares tambm todas as minhas debilidades, porque
redimirs a minha vida da cor- rupo, e me coroars na miserao e na
misericrdia, e saciars meu desejo com bens, pois minha juventude
ser renovada como a da guia xxxviii . Pela espe- rana fomos salvos
e expectamos com pacincia xxxix as tuas promessas. Quem puder que
te oua conversando no interior. Eu confiantemente clamarei a partir
de teu orculo: Quo magnficas so tuas obras, Senhor, todas fizeste
na sabedoria! xl E ela o princpio e nesse princpio fizeste o cu e a
terra. Captulo 10, 12. No esto repletos de uma velhice sua os que
nos dizem: o que fazia Deus, antes que fizesse o cu e a terra?23
Pois se vagava dizem e nada operava, ento por que no sempre assim e
sucessivamente, do mesmo modo como outrora deixou de operarxli ?
Pois se surgiram em Deus um movimento novo e uma vontade nova de
fazer uma criatura que nunca fizera antes, de que modo j seria a
verdadeira eternidade onde nasce uma vontade que no existia? Porque
a vontade de Deus no criatura, mas anterior criatura, pois nada
teria sido criado se a vontade 23 Ao dar a palavra a interlocutores
reais ou fictcios, Agostinho consegue trazer tona dificuldades
conceituais envolvidas na interpretao do texto e no entendimento do
prin- cpio eterno. Fazer a crtica das ms perguntas parte importante
de um procedimen- to de depurao. A velhice a ser criticada a
dificuldade de subtrair-se s condies temporais, a dificuldade de
pensar a eternidade do princpio em termos atemporais.
36.
36AntologiadeTextosFilosficosSecretariadeEstadodaEducaodoParan36
Agostinho de Hipona Confisses, Livro XI do criador no precedesse.
Portanto, a vontade de Deus concerne sua prpria substncia. Se algo
que no existia antes brotou na substncia de Deus, esta substncia no
verdadeiramente dita eterna. Mas se era sem- piterna a vontade de
Deus de que existisse criatura, por que a criatura tambm no seria
sempiterna? Captulo 11, 13. Os que dizem essas coisas, ainda no te
entendem, sabedoria de Deusxlii , luz das mentes. Ainda no entendem
de que modo so feitas as coisas que por ti e em ti so feitas, e
tentam saber as coisas eternas, mas o corao deles ainda esvoaa nos
movimentos passados e futuros das coi- sas e ainda voxliii . Quem o
deter e o fixar, para que fique um pouco estvel, e arrebate um
pouco o esplendor da eternidade sempre estvel, e compare-o com as
coisas temporais, nunca estveis, e veja que incom- parvel, e veja
que tambm o tempo longo no pode ser longo, se no for feito de
mltiplas mrulas passantes, que no podem ser estendidas
simultaneamente, e veja que o que no eterno no passa, mas todo
presente, ao passo que nenhum tempo todo presente, e veja que todo
passado propelido desde o futuro, e todo futuro segue o passado e
todo passado e todo futuro so criados e decorrem daquele que sempre
pre- sente? Quem deter o corao do homem para que fique estvel e
veja de que modo a estvel eternidade, que no futura nem passada,
dita os tempos futuros e passados? Porventura minha mo pode fazer
issoxliv , ou a mo da minha boca faz algo to grande com locues?
Captulo 12, 14. Eis que respondo a quem diz: O que fazia Deus antes
de fazer o cu e a terra? Respondo no aquilo que algum teria
respondido, elu- dindo jocosamente a fora da questo: Preparava o
inferno para quem espiasse as coisas elevadas. Uma coisa ver, outra
rir. No respon- do assim. Eu responderia no sei aquilo que no sei,
de preferncia a algo que ridiculariza quem perguntou uma coisa
elevada e louva quem responde coisas falsas. Mas digo-te, nosso
Deus, criador de todas as cria-
37. 3737 turas: e se pelo nome de cu e terra for entendida toda
criatura, ousada- mente digo, antes de Deus ter feito o cu e a
terra, no fazia algo. Pois, se fazia algo, o que fazia seno uma
criatura? E quisera eu saber tudo que com utilidade desejo saber,
assim como sei que no se fazia nenhuma criatura, antes que se
fizesse alguma criatura. Captulo 13, 15. Mas se o senso voltil de
algum vagar por imagens de tempos retrgrados, e ficar admirado de
que tu Deus que tudo podes, que tudo crias e que tudo possuis,
artfice do cu e da terra tenhas deixado uma obraxlv tamanha por
inumerveis sculos, antes que a fizesses, que esse algum desperte e
preste ateno, pois fica admirado com falsida- des. Pois de onde
poderiam passar inmeros sculos, os quais tu prprio no terias feito,
uma vez que tu s autor e criador de todos os sculos? Ou que tempos
existiriam que no fossem criados por ti? Ou de que modo passariam
se nunca tivessem existido? Portanto, uma vez que s tu quem opera
todos os tempos, se existisse algum tempo antes que fizesses o cu e
a terra, por que dito que deixaste de operarxlvi ? Pois tu terias
feito o pr- prio tempo, e os tempos no poderiam passar antes que
tivesses feito os tempos. Ora, se antes do cu e da terra no existia
nenhum tempo, por que perguntar o que fazias ento? Pois no existia
ento, onde no existia tempo. Captulo 13, 16. E tu no precedes os
tempos pelo tempo: se no fosse assim, no precederias todos os
tempos. Mas tu precedes todos os tempos passados pela alteza da
eternidade sempre presente e superas todos os tempos futuros, pois
eles so futuros, e quando vierem, sero tempos passados; mas tu s
idntico a ti mesmo, e teus anos no se apagamxlvii . Os teus anos
nem vo nem vm; esses nossos vo e vm, para que todos venham. Os teus
anos permanecem todos simultaneamente, porque permanecem, e os que
vo no so excludos pelos que vm, pois no transitam; mas esses nossos
anos todos existiro quando todos no existirem. Os teus anos so
38.
38AntologiadeTextosFilosficosSecretariadeEstadodaEducaodoParan38
Agostinho de Hipona Confisses, Livro XI um nico diaxlviii , e o teu
dia no existe dia aps dia, mas hoje, pois o teu hoje no cede lugar
para o amanh; pois ele tampouco sucede o ontem. O teu hoje a
eternidade; por isso geraste coeterno aquele a quem disseste: Eu
hoje te gerei xlix . Tu fizeste todos os tempos e tu existes antes
de todos os tempos, e no foi em algum tempo que no existiu o
tempo.24 Captulo 14, 17. No foi, portanto, no tempo que no tinhas
feito coisa alguma, pois tu fizeste o prprio tempo. E tempos
nenhuns so coeternos a ti, pois tu permaneces, e eles se
permanecessem no seriam tempos. O que afinal o tempo? Quem o
explicaria fcil e brevemente? Quem o capta- ria, ao menos apenas no
pensamento, para proferir uma palavra sobre ele? Mas, ao falar, o
que mencionamos que seja mais familiar e conhe- cido do que o
tempo? E de algum modo entendemos quando falamos do tempo, e tambm
entendemos quando ouvimos outra pessoa falar dele. O que portanto o
tempo? Se ningum me pergunta, sei; se quiser explicar a quem
pergunta, no sei. Tambm digo confiantemente saber que, se nada
passasse, no existiria o tempo passado, e se nada adviesse, no
existiria o tempo futuro, e se nada existisse no existiria o tempo
presente. Portanto, esses dois tempos, passado e futuro, de que
modo existem, uma vez que o passado j no existe e o futuro ainda no
existe? E o presente, se sempre fosse presente, e no transitasse
para o passado, j no seria tempo, mas sim eternidade. Portanto se o
presente, para que seja tempo, precisa transitar para o passado, de
que modo dizemos que tambm o tempo existe, ele cuja causa de
existir que no existir? Ou seja, no dizemos que o tempo
verdadeiramente existe somente porque tende a no existir? 25 24
Esse captulo 13 parece levar ao paroxismo as estratgias negativas.
A eternidade do princpio s poderia ser entendida como o avesso do
tempo. preciso negar tudo o que diz respeito ao tempo, para dizer
algo menos imprprio com relao ao que eterno. Alm disso, todavia, as
negativas sugerem que o tempo sim conhecido afirmativa- mente. Se a
eternidade o negativo de tempo, e no consigo apreender a eternidade
positivamente, ento devo investigar o que o tempo. Porm, como se
ver, as dificul- dades no sero menores. 25 O problema vem formulado
com estreito vnculo com a linguagem. Agostinho in- vestiga a
linguagem temporal com ateno dupla. De uma parte, vai exibindo as
difi-
39. 3939 Captulo 15, 18. E mesmo assim dizemos tempo distante
(longus)26 e tempo pr- ximo (breuis), e no o dizemos a no ser sobre
o passado ou sobre o futuro. Dizemos um tempo distante passado, por
exemplo, cem anos atrs, e futuro similarmente distante daqui a cem
anos. E o passa- do prximo, como quando dizemos h dez dias, e um
futuro prximo daqui a dez dias. Mas como pode ser distante ou
prximo aquilo que no existe? Pois o passado j no existe e o futuro
ainda no existe. Ento no digamos distante, mas digamos do passado
foi distante, e do futuro ser distante. Meu Senhor, minha luzl ,
tambm aqui a tua ver- dade rir do homem? Pois o tempo passado que
foi distante, foi distante quando j tinha passado, ou at quando
ainda era presente? Poderia ser distante no momento em que existia
o que seria distante; mas ainda no havia passado. Donde tampouco
poderia ser distante aquilo que de todo no existia. Portanto, no
digamos o tempo passado foi distante pois nem encontraremos o que
ter sido distante no momento em que no existe, uma vez que passado
, mas digamos foi distante aquele tempo presente, porque enquanto
era presente, era distante (longus). Pois ain- da no tinha passado,
de forma que no existisse, e por isso existia o que podia ser
distante; contudo depois que passou, simultaneamente deixou tambm
de ser distante o que deixou de existir. Captulo 15, 19. Vejamos,
portanto, alma humana, se o tempo presente poderia ser longo
(longus). Pois a ti dado sentir as demoras e medir27 . O que me
res- culdades conceituais escondidas sob as palavras. Mas de outra
parte recorre fora da linguagem como testemunho de algum
entendimento a ser recuperado. Assim, o que dizemos no tempo, e
sobre o tempo, tanto objeto de investigao crtica, como ponto de
apoio para aprofundar a investigao (veja-se, por exemplo, a alnea
32). 26 A explorao da linguagem temporal envolve a polissemia de
termos como longus, que quer dizer tanto um tempo distante (daqui a
cem anos), como um tempo extenso (um sculo). O mesmo pode ser dito
de brevis. 27 A ambivalncia do termo longus permite introduzir uma
segunda questo. Alm do problema da existncia do tempo (no caso, os
tempos passados e futuros), preciso tam- bm esclarecer o que um
tempo longo quando presente. Um tempo presente pode ser longo,
extenso? Mais adiante Agostinho interrogar como medir a extenso do
tempo.
40.
40AntologiadeTextosFilosficosSecretariadeEstadodaEducaodoParan40
Agostinho de Hipona Confisses, Livro XI ponders? Que cem anos
presentes so um tempo longo? V primeiro, se cem anos podem ser
presentes. Pois caso se trate do primeiro destes anos, este
presente, mas noventa e nove so futuros, e por isso no existem. Mas
caso se trate do segundo ano, um j passado, outro presente e os
demais, futuros. Assim, para qualquer dos anos intermedirios
daquele sculo que declararmos presente, os anteriores a ele sero
anos passados, os posteriores a ele, futuros. Por conseguinte, cem
anos no podero ser presentes. V o que se passa se ao menos um nico
ano for presente. Pois caso se trate do primeiro ms desse ano, os
demais so futuros. Caso se trate do segundo, o primeiro j passou e
os restantes ainda no existem. Portanto, nem esse ano todo
presente, e se no todo presente, o ano no presente. Pois um ano tem
doze meses, um dos quais presente, mas os demais so passados ou
futuros. Todavia nem esse ms presente, mas um nico dia. Se o
primeiro, os demais so futuros; se o ltimo, os demais so passados;
se algum dia intermedirio, est entre passados e futuros. Captulo
15, 20. Eis que o tempo presente, que descobrimos ser o nico que
pode ser chamado de longo, j est contrado, quando muito, ao espao
de um nico dia. Mas examinemos tambm esse, pois nem um nico dia
todo presente. Pois ele desdobra-se ao todo em vinte e quatro horas
noturnas e diurnas, a primeira delas tem as demais como futuras, a
ltima as tem como passadas, e qualquer uma delas tem horas passadas
antes e futu- ras depois. E essa mesma hora consiste de partculas
fugidias: algo dela esvoaa, passado, e algo lhe resta, futuro. Se
se conceber um tempo que no possa ser dividido em nenhuma parte de
momento, por mnima que seja, somente a isso chamar-se- de presente;
o qual todavia transvoa to clere do futuro para o passado, que no
se estende em mrula algu- ma. Pois, caso se estendesse, seria
dividido em passado e futuro; mas o presente no tem nenhum espao.
Portanto, onde28 est o tempo que di- 28 A pergunta onde? indica a
investigao de uma nova ontologia. Como situar um ser que no ocupa
lugar no espao? A procura do ser do tempo (e das condies de medida
do tempo) vai exigir que o tempo tenha um lugar que no espacial.
Essa investigao levar a uma concepo de interioridade que tambm no
espacial.
41. 4141 zemos distante? No futuro? No dizemos distante porque
ainda no existe o que seria distante, mas dizemos ser distante.
Ento, quando ser? Pois se at aquele momento for futuro, no ser
distante, porque o que seria distante ainda no existiria. Mas se
for distante no momento em que, a partir do futuro que ainda no
existe, comear a existir e tornar-se presente, para que possa
existir o que seria distante (longus), pelas pala- vras acima o
tempo presente clama que no pode ser longo (longus). Captulo 16,
21. E mesmo assim, Senhor, sentimos os intervalos dos tempos e os
comparamos entre si e dizemos que uns so mais longos e outros mais
breves. Medimos tambm o quanto um tempo mais longo ou mais bre- ve
do que outro, e respondemos que um o dobro ou o triplo, e outro
simples ou to longo quanto este. Mas medimos os tempos enquanto
passam, uma vez que medimos ao sentir; mas os tempos passados, que
j no existem, ou os futuros, que ainda no existem, quem pode medir?
A no ser que algum ouse dizer que pode medir o que no existe.
Portan- to, quando o tempo passa, pode ser sentido e medido, mas
quando tiver passado, no pode porque no existe. Captulo 17, 22.
Pergunto, Pai, no afirmo. Meu Deus, preside-me e dirige-meli . Quem
me dir no existirem trs tempos, como aprendemos quando meninos e
ensinamos aos meninos, o passado, o presente e o futuro, mas
somente o presente, porque os outros dois no existem? Ou ser que
es- ses tambm existem, mas o presente procede de algo oculto,
quando se torna presente a partir do futuro, e se recolhe em algo
oculto, quando do presente se torna passado? Pois onde viram as
coisas futuras, aqueles que as cantaram, se ainda no existiam?
Porque o que no existe nem pode ser visto, e os que narram coisas
passadas, no narrariam coisas de certo modo verdadeiras, se no as
enxergassem no esprito: se nada fossem, de modo nenhum poderiam ser
enxergadas. Portanto, existem coisas futuras e coisas
passadas.
42.
42AntologiadeTextosFilosficosSecretariadeEstadodaEducaodoParan42
Agostinho de Hipona Confisses, Livro XI Captulo 18, 23. Permite,
Senhor, minha esperanalii , que eu pergunte mais; que mi- nha
intenso no seja conturbada. Pois se as coisas futuras e passadas
existem, quero saber onde esto. Se ainda no posso sab-lo, sei ao
me- nos que, onde quer que estejam, ali no so futuras nem passadas,
mas presentes. Pois se tambm ali forem futuras, ali ainda no esto,
e se ali forem passadas, ali j no esto. Portanto, onde quer que
estejam, o que quer que sejam, no so seno presentes. Embora coisas
verdadeiras se- jam passadas quando so narradas, a partir da memria
no so profe- ridas as coisas mesmas, que passaram, mas palavras
concebidas a partir das imagens daquelas que, ao passar, se fixaram
no esprito atravs dos sentidos, tal como pegadas. Pois minha
infncia, que j no existe, est no tempo passado, que j no existe;
porm a imagem dela, quando a recordo e narro, vejo no tempo
presente, porque est na minha memria at agora. Se tambm a causa das
predies de coisas futuras semelhan- te, de sorte que sejam
pressentidas imagens j disponveis de coisas que ainda no existem,
confesso, meu Deus, no sei. Sei, sim, que ns mui- tas vezes
premeditamos nossas aes futuras e que essa premeditao presente; mas
a ao que premeditamos ainda no existe pois futura; e quando
chegarmos a ela e comearmos a fazer o que premeditvamos, naquele
momento aquela ao existir, porque naquele momento ser no futura,
mas presente. Captulo 18, 24. Assim, seja como for o oculto
pressentimento dos futuros, somen- te se pode ver o que existe. O
que j existe, no futuro mas presente. Portanto, quando se diz que
se veem coisas futuras, so vistas no as pr- prias coisas, que ainda
no existem, isto , as que so futuras, mas talvez as suas causas ou
sinais, que j existem. Por isso, j esto concebidas no esprito dos
videntes no as coisas futuras, mas coisas presentes a partir das
quais so preditas coisas futuras. Tais concepes, por sua vez, j
existem, e quem prediz aquelas coisas futuras as enxerga presentes
em si mesmo. Que tamanha multiplicidade de coisas me sugira algum
exem-
43. 4343 plo. Avisto a aurora: prenuncio que o sol est para
nascer. O que avisto presente; o que prenuncio, futuro. No o sol
futuro, que j existe, mas o seu nascimento, que ainda no existe.
Todavia tambm no poderei predizer o prprio nascer do sol, se no
imagin-lo no esprito, tal como quando falo dele. Mas nem a aurora
que vejo no cu o nascer do sol, embora o preceda, nem a imaginao no
meu esprito. Essas duas so divisadas como coisas presentes, para
que aquele futuro seja dito anteci- padamente. Portanto, as coisas
futuras ainda no existem, e se ainda no existem, no existem, e se
no existem, no podem ser vistas de modo al- gum; mas podem ser
preditas a partir de coisas presentes que j existem e so vistas.
Captulo 19, 25. E assim, tu, regente de tua criatura, de que modo
ensinas coisas futuras s almas? Pois ensinaste aos teus profetas.
Que modo aquele pelo qual ensinas coisas futuras, tu para quem no h
futuro? Ou me- lhor, ensinas coisas presentes acerca de coisas
futuras? Porque o que no existe, tampouco pode ser ensinado. Esse
modo est demasiado longe de minha acuidade; est alm das minhas
foras; por mim mesmo no podereiliii atingi-lo, mas poderei por ti,
quando tu o concederes, doce luzliv de meus olhoslv ocultos.
Captulo 20, 26. Isto agora lmpido e claro: nem as coisas futuras
existem, nem as coisas passadas, nem dizemos apropriadamente
existem trs tempos: o passado, o presente e o futuro. Mas talvez
pudssemos dizer apropria- damente existem trs tempos: o presente
das coisas passadas, o presente das coisas presentes, o presente
das coisas futuras. Pois os trs esto de alguma maneira na alma e eu
no os vejo em outro lugar: o presente das coisas passadas a memria,
o presente das coisas presentes o olhar, o presente das coisas
futuras a expectativa. Se nos permitido dizer tais coisas, vejo trs
tempos e afirmo que os trs existem. Que se diga tambm, existem trs
tempos, o passado, o presente e o futuro, como
44.
44AntologiadeTextosFilosficosSecretariadeEstadodaEducaodoParan44
Agostinho de Hipona Confisses, Livro XI se diz por abuso de
costume. Diga-se. No me importo, nem resisto nem repreendo, desde
que todavia se entenda o que se diz, e tambm que nem o que futuro j
existe, e que tampouco o que passado existe. Pois poucas so as
coisas que falamos apropriadamente, muitas falamos no
apropriadamente, mas se reconhece o que queremos. Captulo 21, 27.
Eu disse h pouco, portanto, que medimos os tempos enquanto passam,
para que possamos dizer que este tempo o dobro daquele ou- tro, ou
que simples, ou que tanto quanto aquele outro, e o que mais
possamos enunciar sobre partes de tempos ao medir. Por isso, como
eu dizia, medimos os tempos enquanto passam, e se algum me disser,
de onde sabes?, responderei, sei porque medimos, e no podemos medir
coisas que no existem, e