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“Em algum lugar, um riacho rumorejava” – Vidas em tempos líquidos: uma análise dos
personagens de Fama, de Daniel Kehlmann e Mãos de Cavalo, de Daniel Galera
“Somewhere, a stream rumored” – Lives in Liquid Times: an analysis of the characters of
Fama, by Daniel Kehlmann and Mãos de Cavalo, by Daniel Galera
Carla Luciane Klos Schöninger1
Abstract: The text consists on an analysis of the context in which the characters of the literary works: Fama, by
the German writer Daniel Kehlmann (2011) and Mãos de Cavalo, by the Brazilian writer Daniel Galera (2006),
as well as an investigation about their individualisms. Both of them are contemporary works that have peculiar
structures, their chapters seem like fragmented parts, but they link themselves, composing the novels. The first is
a novel with a strong metaficctional component, formed by nine narratives in which the different characters
cross the linear boundaries and interfere in each another's actions. The second has a protagonist, but the textual
composition is presented in chapters interspersed between facts of his past- childhood, adolescence and
adulthood, the current times. The textual structures show the fluidity of the narratives and the agility with which
the actions take place. The texts deal with the current context, in which the behavior of the characters reflects on
the condition they live; who in the fluidity of their lives are carried by the stream. This scenario is treated by
sociologist Bauman (2001) and (2007) as a liquid context. The context in which the individual's actions flow
dynamically. The example of the one in the liquid state can be giving in the following way: the same fluid adapts
to the different flasks and containers, taking on new shapes, and this is how the individual in today's society
molds and demolds in a short space of time. Fluency requires these adaptations and changes. Other theorists
such as Giddens (2002) and Hall (2006) offer different readings regarding to this contemporary context, but both
emphasize the idea of need for adaptation, also Haesbaert (2014) and Simmel (2009) approach the city as a
space of multi-territorialization and insecurity. Therefore, through the characters: Ebling, Leo Richter, Ralf,
Mollwitz and Maria from the novel Fama and Hermano, from Mãos de Cavalo, exemplified the precision in
assuming different identities, the ephemerality of success, the benefits and harms of technologies and the fragility
of human relations.
Keyboards: Fama, Mãos de Cavalo, liquid lives.
Resumo: O texto consiste em uma análise do contexto em que vivem os personagens das obras literárias: Fama,
do escritor alemão Daniel Kehlmann (2011), e Mãos de Cavalo, do escritor brasileiro Daniel Galera (2006), bem
como uma investigação acerca das suas individualidades. Ambas são obras contemporâneas que apresentam
estruturas peculiares, com capítulos que parecem partes fragmentadas, mas que se interligam, compondo os
romances. A primeira obra é um romance com forte componente metaficcional, configurado por nove narrativas
em que os diferentes personagens perpassam as fronteiras lineares e interferem nas ações uns dos outros. A
segunda possui um protagonista, mas a composição textual é apresentada em capítulos intercalados entre fatos
do passado: infância, adolescência e vida adulta, momento presente da narrativa. As estruturas textuais
evidenciam a fluidez das narrativas e a agilidade com que as ações ocorrem. Os textos abordam o contexto
contemporâneo, em que as condutas dos personagens refletem a condição em que vivem; os quais, na fluidez de
suas vidas são levados pelas correntes. Esse cenário é tratado pelo sociólogo Bauman (2001) e (2007) como
contexto líquido. Contexto este, em que as ações do indivíduo fluem com dinamicidade. A exemplo do que está
em estado líquido, um mesmo fluido se adapta aos diferentes frascos e recipientes, assumindo novas formas, e é
desse modo que o indivíduo, na sociedade atual, molda-se e se desmolda em um curto espaço temporal. A fluidez
exige essas adaptações e mudanças. Outros teóricos, como Giddens (2002) e Hall (2006), oferecem diferentes
leituras no que se refere ao contexto contemporâneo, mas ambos marcam a ideia de necessidade de adaptação.
Haesbaert (2014) e Simmel (2009) também abordam a cidade como espaço de multiterritorialização e de
insegurança. Portanto, através dos personagens: Ebling, Leo RichteRalf, Mollwitz e Maria do romance Fama e
Hermano, de Mãos de Cavalo, exemplificou-se a precisão em assumir diferentes identidades, a efemeridade do
sucesso, os benefícios e malefícios das tecnologias e a fragilidade das relações humanas. Palavras-chave: Fama, Mãos de Cavalo, vidas líquidas.
1 Doutoranda em Letras: Estudos da Literatura-UFRGS, Mestre em Letras: Literatura pela URI.
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1 Introdução
Esta investigação parte da análise dos textos literários: Fama, de Daniel Kehlmann
(2011), e Mãos de Cavalo, de Daniel Galera (2006). O título deste: “Em algum lugar, um
riacho rumorejava” é extraído do romance Fama e remete metaforicamente à fluidez das vidas
dos personagens, que no dia a dia são levadas pelas correntes. O estudo abrange um conceito
condizente com o cenário contemporâneo, tratado por Bauman como contexto líquido.
Contexto este, em que as ações do indivíduo fluem com dinamicidade, percorrem, escoam,
drenam, filtram, respingam, formam ondas. A fluidez exige adaptações e mudanças em um
curto espaço temporal.
Isso aparece tanto por meio dos personagens Ebling, Leo Richter, Ralf, Maria e
Mollwitz – de Fama, de Daniel Kehlmann, quanto no protagonista Hermano – da obra Mãos
de Cavalo, de Daniel Galera. Na primeira obra, os diferentes personagens se deparam com
situações inusitadas, na correria do dia a dia sofrem as consequências de mal-entendidos,
erros de comunicação e problemas tecnológicos, mostrando a efemeridade da fama e do
sucesso. Já na segunda, na fronteira temporal de poucas horas, Hermano revive o passado em
sua memória e, dirigindo pela cidade de Porto Alegre, reflete sobre seu presente, sua vida
pessoal e profissional, percebendo que está se deixando levar pela correnteza, sem poder parar.
Ao deter uma “vida líquida”, aos personagens, há a impossibilidade de que os hábitos e as
rotinas sejam consolidados, o que influencia as questões ligadas à identidade, pois inúmeras
adaptações são impostas.
2 Fama e Mãos de Cavalo Fama (2011), de Daniel Kehlmann, é um livro que está estruturado de forma peculiar,
sendo composto por nove histórias que configuram o romance. Todas as narrativas correm por
seus canais, mas no fluir das águas, essas se bifurcam e se misturam. Apesar de não haver
marcas temporais na obra, há evidências de que os personagens vivem em uma época pós-
moderna, por mencionar instrumentos e ferramentas tecnológicas como: celulares, blogs,
computadores, internet, entre outros. Os espaços são dispersos, entre países da Europa, da
Ásia Central, da África e da América do Sul. Os títulos são: Vozes, Em perigo, Rosalie viaja
para morrer, A saída, Oriente, Resposta à abadessa, Uma contribuição ao debate, De como
menti e morri e Em perigo.
No segundo capítulo do texto literário, o personagem escritor Leo Richter trata de
uma composição romanesca, dizendo: “Um romance sem personagem principal! Entende? A
composição, as conexões, o arco narrativo, mas sem protagonista, sem um herói que apareça
em todas as situações” (KEHLMANN, 2011, p. 20). Evidencia-se, então, que há um
tratamento do personagem sobre a constituição da própria obra em estudo: Fama, momento
em que o escritor supostamente demonstra suas angústias, anseios, expectativas e ideias
diante da produção de um romance. O que demonstra um forte componente metaficcional.
Esse desabafo ocorre durante o voo do escritor para Berlim, lugar em que fará uma
palestra. Leo Richter era conhecido como
[...] o autor de narrativas intrincadas, cheias de reviravoltas e jogos espetaculares. De
um virtuosismo ligeiramente estéril. Não fazia muito tempo, ela (Elisabeth) lera suas
novelas sobre a médica Lara Gaspard, e naturalmente ela conhecia seu conto mais
famoso, sobre uma velha senhora em sua viagem até o centro de suicídio assistido
na Suíça. (KEHLMANN, 2011, p. 23)
Por outro lado, Mãos de cavalo, de Daniel Galera, retrata, em breves capítulos, fatos e
eventos vividos pelo protagonista Hermano em diferentes etapas de sua vida. Os capítulos
referentes à infância e à juventude são memórias e carregam nomes de lugares e
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acontecimentos daquele tempo. Já aqueles condizentes com a fase adulta são divididos por
horas do dia, transmitindo a ideia de dinamicidade.
A divisão dos capítulos se dá da seguinte forma e sequência: O ciclista urbano; 6h08;
O Bonobo; 6h13; O morro; 6h17; Downhill; 6h23; A festa de quinze de Isabela; 6h31; Naiara;
6h43; A clareira; 8h04 e O enterro. O espaço abordado em todos os episódios é a cidade de
Porto Alegre, entre os anos de 1990 e 2010, desde os seus dez anos até seus trinta anos.
3 “Em algum lugar, um riacho rumorejava”: Vidas líquidas em Fama e Mãos de Cavalo As narrativas analisadas neste estudo, Fama e Mãos de Cavalo, apesar de estarem
situadas em espaços distintos: países da Europa, da Ásia Central, da África e da América do
Sul, possuem enredos que se passam em uma mesma época, estando situadas em “tempos
líquidos”, ou seja, em tempos em que as formas se dissolvem, tornam-se instáveis, escorrem e
passam a ser moldadas e adaptadas. Pensa-se nos diferentes frascos e recipientes nos quais um
líquido pode se abrigar, seja raso, fundo, oval, quadrado, redondo, em jarro, em taça, em
copo... o líquido molda-se rapidamente, adaptando-se à forma que lhe é imposta. Assim, em
tempos líquidos, também as vidas inseridas nesses, tornam-se líquidas.
O título do artigo “Em algum lugar, um riacho rumorejava” é extraído do capítulo “Em
perigo”, do livro Fama. Refere-se ao momento em que Leo Richter e Elisabeth viajam para a
Alemanha e posteriormente para a África em busca dos amigos de Elisabeth que foram
sequestrados.
A chuva parou, minutos depois o sol abriu um rombo nas nuvens. A névoa foi se
tornando diáfana e de repente apareceram os degraus da gigantesca construção. O
vale sob eles parecia mergulhar nas profundezas, e ela teve a impressão de que a
crista sobre a qual estavam se elevava lentamente. Em algum lugar, um riacho
rumorejava. Ela se perguntou por que estava com vontade de chorar. (KEHLMANN,
2011, p. 39)
Os personagens dos dois romances vivem num contexto contemporâneo, para Giddens
(2002), modernidade tardia ou alta modernidade; para Bauman (2001), modernidade líquida.
Este estudo tem como enfoque a perspectiva de Bauman, optando pela utilização do termo
modernidade líquida.
É nesse sentido que o sociólogo Zygmunt Bauman trata da pós-modernidade,
caracterizando-a como um contexto “líquido”. Nesse conceito, apresenta que a adaptação
passa a ser fundamental para a sobrevivência do indivíduo. Bauman (2001), em Modernidade
Líquida, articula a seguinte ideia:
Os fluidos se movem facilmente. Eles “fluem”, escorrem”, “esvaem-se, “respingam”,
“transbordam”, “vazam”, “inundam”, “borrifam”, “pingam”; são “filtrados”,
“destilados”; diferentemente dos sólidos, não são facilmente contidos- contornam
certos obstáculos, dissolvem outros e invadem ou inundam o caminho. (BAUMAN,
2001, p. 8)
Ao se referir a vida líquida, Bauman trata do tipo de vida que se tende a levar nessa
sociedade “líquido-moderna”, tanto a vida quanto a sociedade não mantêm a forma e nem permanecem do mesmo modo por muito tempo. Para ele, a vida líquida
é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante. As preocupações
mais intensas e obstinadas que assombram esse tipo de vida são os temores de ser
pego tirando uma soneca, não conseguir acompanhar a rapidez dos eventos, ficar
para trás, deixar passar datas de vencimento, ficar sobrecarregado de bens agora
indesejáveis, perder o momento que pede mudança e mudar de rumo antes de tomar
um caminho de volta. A vida líquida é uma sucessão de reinícios”. (BAUMAN,
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2009, p. 8)
É perceptível, no transcorrer do enredo de ambos os romances, o quanto as exigências
do dia a dia resultam em adaptações do indivíduo para que ele possa desenvolver ações no
meio pessoal e profissional. É difícil apegar-se a uma “única identidade e manter juntos os
seus pedaços e partes enquanto se enfrentam forças erosivas e as pressões dilaceradoras”
(BAUMAN, 2009, p. 13). Ebling, do romance Fama, divide o tempo entre o espaço da casa e
de uma empresa de ferramentas tecnológicas, Leo Richter vive no ambiente acadêmico, entre
produções escritas, palestras, conferências, viagens.
Ralf Tanner dividia o tempo entre atuação em filmes, teatros, participação em festas,
encontros românticos, fotografias, encontros com celebridades. Maria Rubinstein escreve
romances policiais, é casada e viaja a fim de divulgar as obras e tornar-se mais conhecida, o
blogueiro Mollwitz trabalha em uma empresa de eletrônicos, faz postagens em blogs,
participa de uma conferência e faz palestras. Em Mãos de Cavalo, Hermano tem sua vida
privada, com esposa e filha, o amigo, as viagens, os fantasmas do passado que lhe atormentam,
a vida acadêmica e a atividade profissional de cirurgião plástico.
A análise em questão enfatiza a individualidade, que está centrada nos personagens:
Ebling, Leo Richter, Ralf, Mollwitz e Maria, do romance Fama, e Hermano, de Mãos de
Cavalo. O padrão de vida, as escolhas, as ações e o fluxo na descrição de pensamentos e
sentimentos exemplificam a condição dos personagens, indivíduos que, metaforicamente, em
sua forma líquida, adaptam-se às diferentes formas, enquanto sua vida flui. O indivíduo é
então responsável por seus méritos e fracassos, devendo enfrentar os riscos e as contradições.
De modo semelhante ao “derretimento de sólidos”, a que Bauman se refere (contexto
em que estruturas concretas e duradouras não mais existem), Giddens (2002) usa o termo
“desencaixe”, pois considera que no contexto atual há uma reorganização do espaço e do
tempo, esse dinamismo da modernidade desencadeia um desencaixe das instituições sociais.
Considera assim, que as relações sociais se descolam de lugares específicos e se recombinam,
globalizando traços institucionais preestabelecidos, o que transforma o conteúdo e a natureza
da vida social cotidiana.
O sociólogo pondera que a modernidade pode ser entendida como equivalente ao
“mundo industrializado”, desde que se reconheça que o industrialismo não é a única dimensão
institucional, pois outra dimensão é o capitalismo, o qual envolve mercados competitivos de
produtos e mercantilização da força de trabalho, há ainda, o uso da informação, que passa a
coordenar atividades sociais. O industrialismo, o capitalismo e o uso da informação têm
influenciado muito na reorganização das instituições sociais.
Giddens resume o aceleramento do mundo moderno, da vida social e individual nas
seguintes palavras: “‘o mundo moderno’ é um ‘mundo em disparada’: não só o ritmo da
mudança social é muito mais rápido que em qualquer sistema anterior; mas também a
amplitude e profundidade com que ela afeta práticas sociais e modos de comportamento
(GIDDENS, 2002, p. 22).
Ele destaca ainda, que a modernidade fragmenta e dissocia, sendo considerada marca
de emergência de uma nova fase social que iria além da própria modernidade – uma era pós-
moderna.
A alta modernidade é caracterizada pelo ceticismo generalizado juntamente à razão
providencial, em conjunto com o reconhecimento de que a ciência e a tecnologia
têm dois gumes, novos parâmetros de risco e perigo ao mesmo tempo em que
oferecem possibilidades benéficas para a humanidade. (GIDDENS, 2002, p. 32)
Os personagens passam pelo processo de derretimento, ou seja, passam a viver na
condição líquida. Os fluidos não se fixam nem se prendem ao tempo e espaço, bem como não
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se atêm a qualquer forma e estão constantemente prontos. Observa-se isso, ao analisar os
diferentes papéis que os personagens assumem na sociedade, as diferentes instituições sociais
das quais participam e as mudanças que ocorrem em sua condição e busca identitária.
Nas produções, percebe-se que os personagens rejeitam qualquer confinamento
territorial. Há deslocamento dos personagens por entre cidades, países, continentes e, mesmo,
em pequenos grupos sociais que vivem. Há uma constante mudança de espaços e de papéis
que assumem na sociedade. Isso não significa que queiram conquistar novos territórios, mas
que buscam destruir as muralhas que os prendem às necessidades materiais e culturais.
Em Mãos de cavalo, o protagonista Hermano formou-se em Medicina na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é casado com Adriana e tem uma filha de dois anos.
É um médico bem-sucedido. No entanto, percebe que sua vida pessoal e profissional tem se
tornado pacata. Todos os anos ele está em busca de aventura para dar mais emoção a sua vida.
Sua vida juntos parecia ter passado de maneira rápida e automática. Conviveram
muito pouco nos primeiros anos, ele absorvido por residências médicas e
especializações, uma delas em São Paulo, além de leituras científicas de um rigor
excruciante e longas corridas noturnas que eram uma forma de recarregar seu ânimo
e preservar a disciplina e uma visão límpida dos seus objetivos, ela se envolvendo
cada vez mais com artistas e “pessoas criativas”, como ela mesma tachava com
franco escárnio, participando da montagem de exposições de amigos pintores e
criando, aos poucos, suas próprias obras. (GALERA, 2006, p. 52-53)
As formas dos indivíduos nessa condição líquida estão na configuração entre as
identidades autoconstruídas, as quais são suficientemente sólidas para serem reconhecidas
como tais, mas também são flexíveis o suficiente para “não impedir a liberdade de
movimentos futuros em circunstâncias constantemente cambiantes e voláteis” (BAUMAN,
2001, p. 60).
Hermano sente o distanciamento da esposa e percebe como ela é levada pelas ações do
dia a dia e a compara à velocidade e à condução de um carro:
[...] tinha a impressão de que tudo que a esposa sentia e fazia nos últimos tempos era
resultado dos comandos de um sofisticadíssimo software de piloto automático. A
Adri estava vivendo como ele dirigia agora, em terceira e baixa rotação, a cerca de
quarenta quilômetros por hora, em quase inconsciência do que se passava ao seu
redor, como se os olhos e os membros que dirigiam o carro fossem comandados por
um centro de operações independente daquele responsável por seu fluxo incessante
de pensamentos. (GALERA, 2006, p. 72)
As cenas de Mãos de cavalo ocorrem nas ruas de Porto Alegre e descrevem os
passeios de bicicleta, brincadeiras infantis, amizades, desilusões amorosas, festas, dentre
outros fatos que retornam em lembranças. Na fase adulta, surgem os compromissos e as
atividades profissionais, neste momento o protagonista declara estar no piloto automático.
Seus planos para uma viagem à Bolívia em uma aventura rumo ao desconhecido e busca do
isolamento, fazem emergir sentimentos, emoções e memórias de um passado marcante. Assim,
fatos isolados e intercalados entre a infância, a adolescência e a fase adulta se completam e se
conectam com o passar do tempo, fazendo Hermano refletir sobre sua verdadeira identidade. Na batalha do dia a dia, em relação às identidades assumidas no curso da vida, é perceptível
uma “luta interminável entre o desejo de liberdade e a necessidade de segurança, assombrada
pelo medo da solidão e o pavor da incapacidade” (BAUMAN, 2009, p. 44).
O capítulo “O ciclista urbano” narra a infância de Hermano que anda com sua bicicleta
Caloi aro 20, de freio de pé (modelo típico dos anos 80 e 90). Aos dez anos, anda pelas ruas
de Porto Alegre, desce ladeiras, faz manobras, observa o Guaíba de longe, os passeios são
marcados por esfolões, suor e sangue. O lago Guaíba é mencionado por diversas vezes no
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decorrer do romance, como se as águas deste acompanhassem as diferentes etapas da vida de
Hermano, as transformações entre infância, adolescência e vida adulta.
Os diferentes capítulos mencionam episódios da infância e da adolescência de
Hermano, seus títulos referem-se a lugares, eventos e pessoas que fizeram parte desses
momentos. Em “O Bonobo”, há o episódio na Esplanada, a explicação sobre o apelido de
Hermano, de Mãos de Cavalo, devido ao cumprimento exagerado dos braços e às mãos
enormes. Hermano aos onze anos joga bola com os amigos e com Bonobo, um menino que
sempre se metia em confusão; “O morro” – Morro da Canastra, onde Hermano, adolescente,
acampa com o grupo de amigos; “Downhill” narra o período de férias de 1990 e 1991, quando
Hermano, aos 15 anos, desce a escadaria de bicicleta, machuca-se muito com a queda e ganha
o respeito de Bonobo.
Em “A festa de quinze de Isabela”, Bonobo e Hermano vão juntos à festa no
Restaurante Recanto Espanhol, no bairro vizinho da Esplanada. Uruguaio agarra Isabel, que
tenta livrar-se, mas não consegue, uma briga inicia e Bonobo dá muitos socos em Uruguaio, a
amizade entre Hermano e Bonobo se fortalecia.
“Naiara” está sozinha em casa, Hermano procura por Bonobo, irmão de Naiara,
mesmo o amigo não estando, Hermano entra. Há aproximação entre Naiara e Hermano, que se
beijam, tocam-se, acariciam-se e ela lhe dá uma mordida forte no peito. “A clareira” marca
um momento em que Hermano e os amigos se reúnem à noite, bebem vinho, fazem uma
fogueira e conversam sobre assuntos diversos. O vinho acabou e Bonobo e Hermano foram
comprar mais. Repentinamente, Uruguaio e outros meninos perseguem os dois que saem
correndo, viram então os buracos deixados pela Prefeitura na calçada, sinalizando que
estavam próximos da trilha que conduzia à clareira. Bonobo caiu em um dos buracos,
Hermano nada fez a não ser se esconder e ver Uruguaio e seu grupo bater e chutar a cabeça de
Bonobo.
Hermano entrou no mato, caiu numa vala do terreno e se escondeu atrás de folhas e
galhos. Podia enxergar pouco do que acontecia na rua, mas estava ouvindo
perfeitamente bem. Ninguém gritava, ninguém falava. Houve apenas o ruído dos
tênis golpeando continuamente o que só podia ser o Bonobo durante um período que
pareceu duas horas. Mas uma hora acabou e a frequência cardíaca de Hermano
continuava alucinada. Eles pararam de chutar e começaram a falar [...] Tinham
deixado ele de lado. Ouviu o som dos passos, que foram diminuindo até desaparecer.
Permaneceu agachado atrás dos galhos por alguns minutos, esperando que Bonobo
emitisse algum som. Nada. (GALERA, 2006, p. 171)
Hermano se sente cúmplice e covarde, preferindo manter isso em segredo. Bateu-se,
deu em si mesmo socos e jogou-se no chão sujando a roupa, usou a imaginação para que as
outras pessoas pensassem que ele também tinha sido machucado na briga.
“O enterro” é o capítulo final, que narra o enterro de Bonobo, causa da morte:
traumatismo craniano, essa teria sido a primeira morte trágica na Esplanada. “Hermano estava
consciente desse processo enquanto soluços espocavam à visão do caixão, que vinha sendo
carregado para a pequena sala onde teria início o velório. Estavam todos ali, naquela manhã
gelada de domingo” (GALERA, 2006, p. 181). Naquele dia, queria apenas ficar sozinho com
seus pensamentos, queria voltar sozinho. “Durante o trajeto, foi retocando e simplificando seus planos. Agora sabia exatamente o que fazer. Não seria necessário fingir nunca mais”
(GALERA, 2006, p. 188).
Como mencionado anteriormente, os capítulos correspondentes à fase adulta de
Hermano intitulam-se com horas do dia, iniciando às 6h 8 min e terminando às 8h 4 min. Em
intervalos entre 5 minutos a 1 h e 20 minutos. Totalizando um espaço temporal de 2h 4 min.
“6h08” evidencia um salto na fronteira temporal, momento em que Hermano, já
adulto, está dirigindo pelas avenidas de Porto Alegre, enquanto se desloca pela cidade com
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seu carro, reflete sobre sua vida, sobre a relação com a esposa e a filha, com o amigo Renan,
lembra-se dos lugares que exploraram, planeja a viagem ao Cerro Bonete, no Nordeste da
Argentina.
“6h13”, Hermano ainda dirigindo por Porto Alegre, pensa em Adri, na filha Nara, no
casamento e o desgaste na relação; Em “6h17” dirige e deixa os pensamentos fluírem, lembra
então que Adri quase morrera há dois anos e meio quando deu à luz Nara, das emoções de
ouvir o coração do bebê bater e do amor que sentia pela filha; Às “6h23”, em sua Mitsubishi
Pajero pensa na escolha do nome da filha, no Cerro Bonete como lugar exatamente oposto de
onde está agora. Às “6h31” retorna aos bairros em que vivera e brincara durante a infância e a
adolescência, agora morava em um apartamento com Adri em Petrópolis. Depara-se com a
casa em que vivera com os pais até os 25 anos, agora era um cirurgião plástico com
especialização em estética. Em “6h43” vê um garoto de cerca de quinze anos sendo espancado
por outros, seu rosto está coberto de sangue, Hermano desce da Pajero com um piolet-
escopeta de cano cerrado e espanta os meninos, salvando o garoto e levando-o ao hospital.
“Não esquenta, eu sou médico”. Nunca em sua vida aquelas palavras tinham soado
tão artificiais saindo de sua boca. Eu sou médico. É um médico, é claro, lembra de
cada etapa de seu interminável processo de formação e especialização, mas é como
se cada doa daquele esforço tivesse sido registrado com um risco de giz na parede de
uma cela. É médico, mas desde que despertou hoje de manhã não se sente mais
médico. (GALERA, 2006, p. 153)
Há a adaptação a diferentes situações: Hermano como médico, como especialista,
como amigo, como herói. Às “8h04” sua Pajero
flutua pelo asfalto, como se conduzido por um leito de rio calmo e veloz [...] A velha
escadaria que desciam de bicicleta continua ali [...] À esquerda está o Morro da
Polícia, preservado e inabitado graças a seu acesso restrito. À direita vê o Guaíba e a
praia de Ipanema ainda imersa em serenidade, em estado de meditação [...] Às oito
horas da manhã, contudo, ainda impera um relativo silêncio que espelha o silêncio
da madrugada longínqua em que ele e o Bonobo sentaram para conversar naquele
exato local, voltando a pé de uma festa. Tanto tempo depois, ainda era possível
recordar do sentimento de querer ser como Bonobo, impotente, duro, espontâneo e
respeitado não obstante sua feiura, desajuste, tosquice e brutalidade. Conviver com
ele era flertar com um mundo radicalmente oposto àquele que era seu mundo interior
quando adolescente, e por um breve período, marcado pela conversa noturna no alto
da escadaria, tinha parecido ser possível conciliar esses dois mundos, pertencer a um
deles mas participar do outro com tal frequência e confiança que a vida transcorria
além se sua individualidade, trapaceando os limites numa promiscuidade de
personalidades, temperamentos e visões de mundo. (GALERA, 2006, p. 75-176)
Hermano vai então até a casa de Naiara, a mesma casa de tantos anos atrás. Nela
Naiara e uma prima vivem juntas e dirigem ali mesmo uma creche. Uma série de momentos
compartilhados vêm em suas memórias. Ficam um tempo em silêncio sem saber o que dizer
um ao outro. “A janela está aberta e o sol já está rachando do lado de fora. Ela pergunta se ele
toma chimarrão mas ele não responde. Apenas levanta da cadeira. Está na hora de ir”
(GALERA, 2006, p. 179). Os capítulos da fase adulta ilustram reflexões de Hermano sobre a vida que leva,
lembra-se da trajetória acadêmica, graduação, especialização, até finalmente poder chegar
onde está e dizer que é um médico e que pode ajudar as pessoas. Mesmo formado, precisa
continuar dedicando-se às pesquisas e estudos a fim de aperfeiçoar sua prática na área de
estética. Ele está sempre em movimento, a exemplo de sua Caloi aro 20, na infância, e agora,
de sua Pajero.
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“Flutuar pelo asfalto, como se conduzido por um rio calmo e veloz”, mostra o
deslocamento e movimento do personagem sempre acompanhado pelas águas do Guaíba, que
costeiam a cidade, apesar de ser erroneamente tratando por rio, o lago Guaíba, de grande
extensão, flui, desembocando na Lagoa dos Patos e posteriormente no Oceano Atlântico. Num
movimento constante, apesar de quase imperceptível, assim como Hermano, ao refletir sobre
sua vida e a de Adriana, que parecendo estar em piloto automático são levados, sem se darem
por conta. Quando menos esperava, o protagonista já estava com seus trinta anos, tinha
emprego e tinha constituído uma família. O médico, amigo, pai, marido, especialista,
pesquisador e de espírito aventureiro, apesar de tantas conquistas, não se sentia feliz, tinha a
sensação de incompletude.
O romance Fama inicia com o personagem Ebling, que demonstra no dia a dia, certa
resistência em fazer uso de novas tecnologias, mas, por tornar-se algo necessário na atividade
profissional, ele acaba adquirindo um celular. “Antes de Ebling chegar em casa, seu celular
tocou. Durante anos, ele se recusara a comprar um, afinal ele era um técnico e não confiava
naquela geringonça” (KEHLMANN, 2011, p. 7).
Mas de seu trabalho ele gostava. Ele e dezenas de colegas ficavam sentados debaixo
de lâmpadas muito claras e examinavam computadores defeituosos que eram
enviados para lá por comerciantes de todo o país. Ele sabia o quão frágeis eram
aquelas pequenas placas pensantes, quão complicadas e enigmáticas. Ninguém as
entendia por inteiro; ninguém poderia realmente dizer por que de repente paravam
de funcionar ou começavam a fazer coisas estranhas. (KEHLMANN, 2011, p. 9)
Ao pensar nos avanços tecnológicos, até mesmo perdia o sono: “À noite, semi-
adormecido em sua cama, essa ideia o inquietava – todos os aviões, as armas guiadas
eletronicamente, os computadores nos bancos –, às vezes tanto que chegava a sentir
palpitações” (KEHLMANN, 2011, p. 9). Há então a demonstração da evolução das
tecnologias, que vêm influenciando tanto os meios de comunicação quanto as relações
pessoais e de trabalho. Ainda, é possível perceber que os objetos produzidos na atualidade não
possuem durabilidade, são produzidos no mercado para, em curto espaço de tempo, serem
substituídos por outros instrumentos mais modernos e sofisticados.
Em “Uma contribuição ao debate”, o blogueiro Mollwitz sente que precisa estar
conectado a todo o momento. Em seu blog o username é molwitt, nele posta críticas a textos,
livros, figuras importantes, expõe o quanto adora Leo Richter e declara estar apaixonado pelo
personagem de Lara Gaspard. Além desse, ele faz uso de outros três usernames. Ele viaja
representando a empresa em que trabalha e encontra Leo Richter, tentando conversar com ele,
mas entristece ao perceber que jamais faria parte de uma de suas narrativas.
Ele disse algo sobre o Congresso das Operadoras Europeias de Telecomunicações, o
start já é depois de amanhã. Ele próprio queria ir, mas não podia o departamento
precisava ser representado, e também havia uma apresentação para fazer: normas de
radiocomunicação nacionais versus europeias. (KEHLMANN, 2011, p. 106)
Muitas palavras indicando aplicativos, sites de busca, venda e, mesmo, palavras e
expressões em inglês são usadas pelo blogueiro, como: Supermovies, Literature4you, boss,
mega smile, power play, infos, IP, thetree.com, screen, desk, guestbook, start, busy, thoughts,
Nicks, usernames, wireless, life reality, movie forum, Amazon. O blogueiro não é identificado,
utiliza-se apenas de um usuário, o que permite que faça postagens livremente sobre seu ponto
de vista. Através das redes sociais, ele participa de debates e faz postagens sobre os escritores
Leo Richter, Miguel Auristos Blancos e sobre o ator Ralf Tanner. O blogueiro faria uma
apresentação aos participantes do congresso e ao preparar os slides no hotel, fica sem internet
e sente-se perdido:
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Admito que estava um tanto zonzo e alterado. Era muita coisa junta: a briga com a
minha mãe e como eu pude ser tão estúpido e informar meu IP. E o medo pelo dia
seguinte: o. k., um profissa como eu sabe muito bem fazer uma apresentação, mas
estava sem internet havia nove horas e meia, e totalmente por fora do que estava
rolando! [...] Mais alguns minutos no laptop. PowerPoint, difícil de mexer. Digitei
um pouco, arrastei janelas para cá e para lá. Simplesmente não consegui. Bem,
amanhã com certeza rodaria. (KEHLMANN, 2011, p. 112)
Apesar de ter domínio sobre o que falaria no dia seguinte, prepara os slides, mas se
preocupa, pois eles não estão rodando. Mesmo as facilidades, a mobilidade e a sofisticação
desses recursos, nem sempre garantem o bom desempenho no momento em que mais se
precisa deles.
Simmel (2009), ao se referir a modernidade, menciona que, por um lado, a vida tem se
tornado mais fácil, pois estímulos, interesses, preenchimento de tempo e de consciência são
oferecidos de todos os lados e isso sustém o indivíduo numa corrente, sem precisar nadar. Por
outro lado, há uma série de ofertas impessoais, há a necessidade de resgate das peculiaridades
e de salvar o que há em si mesmo.
Em “Em perigo”, Leo Richter e Elisabeth são recebidos pela Sra. Rappenzilch em
Berlim, a qual foi buscá-los no aeroporto para que se instalassem em um hotel, para que, no
dia seguinte proferissem palestras na universidade “No caminho para o instituto cultural, ela
contou histórias sobre crimes e assaltos nas ruas. Aquela era uma cidade muito perigosa.
Perturbado, Leo pegou seu bloco de anotações” (KEHLMANN, 2011, p. 28). Depois da
palestra, das saudações, dos aplausos e autógrafos, vê um cartaz de Ralf Tanner. Então ouviu
falar do escândalo do ator ter sido espancado por uma mulher, estando as cenas disponíveis no
YouTube. Richter lembra que deve ir a Ásia Central no mês seguinte. Viaja para Munique e
cancela a viagem para a Ásia Central e sugere a escritora Maria Rubinstein para ir em seu
lugar.
Os comentários acerca dos perigos da cidade deixaram o escritor perturbado. Num
território composto por distintas construções, movimentado por automóveis, desenhado por
ruas, agitado pelo barulho, habitado por muitas pessoas, que na indiferença, sobrevivem
isoladamente em seus mundos, os perigos emergem.
Em “Oriente” Maria Rubinstein, uma escritora em busca de maior sucesso, viaja para
o oriente no lugar de Leo Richter em uma turnê de escritores. “Seus romances policiais
vendiam bem, ela recebia muitas cartas de leitores. Ela amava o marido e o marido a amava.
Sua vida estava em ordem. Ela tinha mesmo que se aventurar numa viagem daquelas”
(KEHLMANN, 2011, p. 74). Uma série de fatos a deixa desolada: esquecem-na num hotel
vazio, não fala a língua do país, acaba a bateria do celular, não consegue comprar comida, por
não ter feito o câmbio, recolhem sua carteira, retiram seu passaporte – pelo visto
estavavencido – e não consegue retornar para casa.
Depois de uma hora de busca, ela se convenceu de que o edifício estava realmente
vazio [...] O calor estava pior do que no dia anterior. Logo suas roupas estavam
grudadas no corpo, o suor escorria pelo seu rosto, e ela estava tão debilitada pela
fome que mal conseguia carregar sua sacola [...] se deu conta de que não tinha
dinheiro do país, apenas euros [...] Os homens lançavam olhares maliciosos, crianças
apontavam para ela, exclamavam alguma coisa e então eram puxadas por suas mães.
(KEHLMANN, 2011, p. 84)
Observa-se aversão, repulsa, indiferença, disputa, imediatismo, rapidez. Os tipos de
individualidades das grandes cidades são elevadas, tendo uma intensificação da vida nervosa,
“que brota da mudança acelerada e ininterrupta das impressões interiores e exteriores. O
homem é um ser da diferença [...]” (SIMMEL, p. 4, 2009). Maria Rubinstein vive a diferença,
305
por ser de outro país, lidar com outra cultura, outra língua, outra realidade, ao mesmo tempo,
vive a indiferença, ninguém olha por ela, a não ser uma humilde senhora que lhe dá a chance
de tentar algo novo.
“Todos os dias, aprendemos que o inventário de perigos está longe de terminar: novos
perigos são descobertos e anunciados quase diariamente” (BAUMAN, p. 12, 2008). Nesse
espaço líquido-moderno, o medo é algo constante. A vida do indivíduo “está longe de ser livre
do medo e o ambiente líquido-moderno em que tende a ser conduzida está longe de ser livre
de perigos e ameaças” (BAUMAN, p. 15, 2008). O espaço da cidade envolve convivências
sociais no dia a dia, nesse, normas são estabelecidas, as regras envolvem comportamentos,
limites e interesses. No entanto, essas normas fracassam em relação à segurança prometida.
Segundo Rogério Haesbaert, no seu livro Viver no Limite, vive-se hoje a problemática dos
riscos. Para ele, “In-segurança também está intimamente ligada à questão dos riscos. A
preocupação constante com ‘(não) correr riscos’ tornou- se uma das principais características
das nossas sociedades de in-segurança” (HAESBAERT, 2014, p. 156). Há então um
“enfraquecimento do sistema de proteção social e também o estabelecimento de uma nova
relação dos indivíduos com uma força de Estado responsável pela segurança e geral”
(FOUCAULT apud HAESBAERT, 2014, p. 158-159).
Haesbaert trata ainda do espaço geográfico da cidade e sua dinamicidade:
O espaço geográfico, na verdade, partindo de uma posição relacional, envolve, tanto
o universo dos objetos quanto dos sujeitos e suas ações, tanto a dimensão dos
elementos (aparentemente) fixos quanto móveis, tanto a dimensão material quanto a
dimensão imaterial. (HAESBAERT, 2014, p. 37)
Diante das dimensões dos objetos, dos sujeitos e suas ações, é perceptível no cotidiano
da metrópole, o que Georg Simmel descreve. Ele enfatiza que os nervos dos homens têm “a
possibilidade de se ajustar aos conteúdos e à forma da vida na grande cidade, renunciando a
reagir a ela”. (SIMMEL, 2009, p. 10) Esse fenômeno de adaptação, segundo Simmel,
desencadeia no caráter blasé. A palavra blasé, de origem francesa, é designada como o que
exprime completa indiferença pela novidade, pelo que deve comover e chocar.
Talvez não haja nenhum fenômeno anímico, que esteja reservado de modo tão
incondicional à grande cidade, como o caráter blasé. Ele é, de início, a consequência
daqueles estímulos nervosos, que com rapidez se alteram e se condensam nos seus
antagonismos, dos quais nos parece provir também a intensificação da
intelectualidade na grande cidade; justamente por isso, homens broncos e de
antemão sem vida espiritual não costumam ser blasés. Assim como uma vida
imoderada de prazeres torna blasé, porque excita por muito tempo os nervos nas
suas reações mais fortes, até que eles acabam por já não ter nenhuma reação, assim
também as impressões inofensivas, pela rapidez e pela incompatibilidade da sua
mudança, forçam os nervos a respostas tão violentas, irrompem para cá e para lá de
modo tão brutal, que eles entregam a sua última reserva de forças e, permanecendo
no mesmo meio, já não têm tempo para acumular uma nova. (SIMMEL, 2009, p. 8)
Assim, há certo conformismo, pois o indivíduo é levado pela correnteza da cidade.
Nesse contexto em que há a necessidade de adaptação, ajustes à forma de vida, relações de
convivência dos homens com interesses diferenciados e acumulação de pessoas, o medo e a
insegurança são evidenciados. Diante do inventário de diferenças e estranhezas, as formas de
convivência com o outro resultam no isolamento e na indiferença (blasé).
Na narrativa “A saída”, o fato de Ralf não possuir o seu número de celular resulta em
uma série de desencontros e desentendimentos, sua namorada e seus amigos se afastam e o
personagem passa a se sentir irreal. “No princípio do verão de seu trigésimo nono ano de vida,
o ator Ralf Tanner começou a se sentir irreal” (KEHLMANN, 2011, p. 61). Sua rotina, vida
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pessoal e profissional mudam.
A última história é “Em perigo”, o título se repete ao da segunda narrativa, tratando
novamente de Elisabeth e Leo Richter, desta vez estão no avião indo para a África. Elisabeth
está em uma atividade do “Médico sem Fronteiras”. Na savana veem destruição e perigo, pois
há certo embate, este é um território em guerra, é preciso realizar pagamento a facções para
que seja permitida a passagem de pessoas, armas e mantimentos Durante o voo, Leo
demonstra temor, o suor e o aperto da mão de Elisabeth evidenciam a insegurança e o medo
de que algo possa acontecer durante o voo; qualquer falha no sistema ou erro de operação da
aeronave resultaria na queda. Há também certa ansiedade por estar indo a um lugar
desconhecido, cercado de perigos; não sabe quem encontrará, como é a realidade e como deve
agir ao chegar no local. Ambos vivem uma realidade totalmente distinta daquela que já tinham
vivido. Os personagens de ambas as obras ilustram o apego temporário e a transitoriedade das
identidades assumidas. Ebling, Leo Richter, Mollwitz, Ralf e Maria – de Fama, de Daniel
Kehlmann e Hermano – da obra Mãos de Cavalo, de Daniel Galera, diante da dinamicidade
do contexto em que vivem, forçam-se a adaptar-se e a estar em constante busca e movimento
a fim de lidar com as diferentes situações.
Segundo Hall, “as identidades são, pois, pontos de apego temporário às posições-de-
sujeito que as práticas discursivas constroem para nós” (HALL, 200, p. 112). Dese modo,
[...] as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão
em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno,
até aqui visto como sujeito unificado [...] as identidades modernas estão sendo
“descentradas’, isto é, deslocadas ou fragmentadas. (HALL, 1998, p. 7-9)
Nesse sentido, o sujeito pós-moderno não tem identidade fixa, essencial ou
permanente. A identidade torna-se uma “celebração móvel”: “formada e transformada
continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos
sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 1987 apud HALL, 1998, p. 13).
Portanto, a própria estrutura dos romances Fama e Mãos de Cavalo indica a fluidez
com que as vidas, as relações pessoais e profissionais transcorrem. No primeiro, as conexões
entre situações e personagens, por muitas vezes ocorrem de forma inesperada e suas ações
influenciam diretamente a vida um do outro. As tecnologias e os meios de comunicação
passam a representar tanto a comodidade e as facilidades no modo de vida quanto os
malefícios dos erros de comunicação e das falhas. Já no segundo, a narrativa flui de modo a
resgatar um passado que aos poucos se desvela no tempo presente da narrativa. Entre a
infância, a adolescência e a vida adulta, esta última carregada de tarefas, formações
acadêmicas e responsabilidades.
Das narrativas, o indivíduo teria, pois, uma “vida líquida”, ou seja, obriga-se a mudar
num tempo curto, o que por vezes impossibilita que os hábitos, formas de agir e rotinas sejam
consolidados. A comparação “Flutuando como água,... você vai em frente com rapidez, jamais
enfrentando a corrente nem parando o suficiente para ficar estagnado ou se prender às
margens ou às rochas” (BAUMAN, 2009, p. 11), exemplifica uma situação em que o
indivíduo se deixa levar pela correnteza das ações cotidianas estabelecidas e não consegue se
firmar.
A correnteza carrega o homem que não precisa nadar, pois segue seu curso limitado
pelas margens que lhe são impostas, precisa desviar-se das ásperas e brutas rochas. Na
tentativa de encontrar segurança e paz, refugia-se nas ilhas, prefere ou é forçado ao
isolamento e individualismo.
Considerações finais
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Nesse sentido, Giddens e Bauman oferecem diferentes leituras no que se refere ao
contexto atual, mas ambos marcam a ideia de necessidade de adaptação. Giddens, ao tratar da
alta modernidade, descreve que tais circunstâncias influenciam diretamente a relação entre
auto-identidade e instituições modernas, já Bauman reforça que, diante de um contexto
líquido, o indivíduo deve assumir diferentes formas, adotando uma forma líquida para
adaptar-se e sobreviver, Hall reforça a ideia de “identidades transitórias” e Simmel e
Haesbaert enfatizam a cidade, seu dinamismo, seus riscos, perigos e como resultado, a
indiferença, o caráter blasé.
Os sociólogos compartilham uma ideia comum ligada à modernidade, sua liquidez ou
desencaixe, bem como a influência disso na identidade, tendo o indivíduo “identidades
transitórias” por assumir distintas posições e no estilo de vida do indivíduo que deve adaptar-
se continuamente.
O presente texto demonstrou o quanto os personagens Ebling, Leo Richter, Mollwitz,
Ralf e Maria do romance Fama e Hermano de Mãos de Cavalo precisaram adaptar-se às
diferentes situações, deixando-se levar pelas correntes desse contexto líquido. A cada dia que
passa, percebe-se por meio das ações e do fluir dos pensamentos dos personagens, o quanto o
padrão de vida, as escolhas e as necessidades tornam a condição dos indivíduos fluida. Além
disso, através desses personagens, exemplificou-se a fragilidade das relações humanas, a
efemeridade do sucesso, os benefícios e malefícios das tecnologias e as diferentes identidades
assumidas.
Os personagens, incapazes de reduzir o ritmo da mudança, sem poder controlar seus
destinos e reduzir os riscos e as ameaças desse contexto líquido-moderno, movimentam-se em
direção a uma identidade “indeterminada, indeterminável e inatingível”. Vivem uma vida
líquida, em que se faz necessária “uma sucessão de reinícios”.
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. A arte da vida. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:
Zahar, 2009.
______. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro, 2001.
______. Tempos Líquidos. Tradução de Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
______. Vida Líquida. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
GALERA, Daniel. Mãos de Cavalo. São Paulo: Companhia das Letra, 2006.
HAESBARERT, Rogério. Viver no limite: território e multi/transterritorialidade em tempos
de in-segurança e contenção. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da
Silva, Guaracira Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
KEHLMANN, Daniel. Fama: um romance em nove histórias. Tradução de Sonali Bertuol.
São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito (1903). Mana, Rio de Janeiro, v. 11,
n. 2, p. 577-591, 2005.
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