APRENDENDO A AMAR: considerações sobre os aspectos cognitivos dos afetos e das emoções
LEARNING TO LOVE: considerations about the cognitive aspects of affects and emotions
Francine Tavares 1
Resumo: O artigo parte de um texto de sucesso na internet sobre as “verdades cruéis dos relacionamentos modernos” para pensar sobre como a atualidade das relações mediadas por múltiplas combinações de arranjos midiáticos parecem exigir a aprendizagem de um emergente modo de amar. Com as abordagens teóricas de Damásio (2004), Massumi (1995), Varela (1998;1993) e Darwin (1872), trabalhamos a hipótese de que a dimensão sensível do corpo não escapa à aprendizagem. Entretanto, consideramos as diferenças que constituem tanto o processo cognitivo quanto expressivo dos afetos e das emoções.
Palavra chave: amor, afeto, emoção, cognição, tecnologia.
Abstract: The article is based on a successful text on the internet about the "cruel truths of modern relationships" to think about the present of the relations mediated by multiple combinations of media arrangements that seem to require knowledge about the emerging way of loving. With the theoretical approaches of Damasio (2004), Massumi (1995), Varela (1998, 1993) and Darwin (1872), we work the hypothesis that the sensitive body dimension does not escape learning. However, we consider the differences about cognitive process and the expression between feelings and emotions.
Keywords: love, affect, emotion, cognition, technology.
Introdução
Ah, a razão, a seriedade, o domínio sobre os afetos, toda essa coisa sombria que se chama reflexão, todos esses privilégios e adereços do homem: como foi alto o seu preço! Quanto sangue e quanto horror há no fundo de todas as ‘coisas boas’. Nietzsche, em Genealogia da Moral, p. 52.
Em abril de 2014, o blog brasileiro “Relatos de Uma Diva” publicou um post traduzido do
site Thought Catalog com o título “18 Verdades cruéis sobre os relacionamentos modernos que
você vai ter que encarar”1. Na ocasião, o texto chegou até a mim pelo feed de notícias do
Facebook.Diversos colegas, amigos e pessoas que sigo compartilharam o link, que rendeu muitas
curtidas, compartilhamentos e comentários. Seguindo os rastros deixados na internet, observei que
a discussão girava em torno de argumentações de que as coisas sempre foram daquele jeito
(“Sempre foi assim, mas as comunicações e evoluções das pessoas deixaram as situações mais
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expostas”, leitor em 24 de abril de 2014) e afirmações que, de fato, seriam tempos difíceis para os
relacionamentos amorosos (“Este texto é tão verdade que chega a ser assustador”, leitora em 25 de
abril de 2014 ).
Foi interessante perceber que não se tratava de uma simples lista curiosa e engraçada como
as que são publicadas no site BuzzFeed. O texto fez diferença, movimentou controvérsias e gerou
afetações. Apenas no blog, estão registrados atualmente mais de 200 comentários, 10 mil
compartilhamentos diretos no Facebook (o site registrou mais de 200 mil compartilhamentos
internos), mais de 2 mil no Twitter e 53 curtidas por bloggers.
Evidentemente, não se chegou a um consenso sobre a questão principal apontada ali, mas o
que chamou a atenção foi o grande número de pessoas que se expressaram sobre três pontos
principais: que há uma mudança na maneira como as pessoas se relacionam atualmente (“Eu
acredito que os relacionamentos modernos estão cada vez caminhando pra pegar e não se apegar, e
namorar, noivar e casar é coisa do passado...”, leitor em 29 de abril de 2014); que as tecnologias
móveis e digitais de comunicação têm a ver com essa mudança (“Concordo, principalmente com o
facebook estar virando menu de pessoas interessantes.”, leitor em 26 de abril de 2014); e que
muitas pessoas não se identificam com essa nova forma de se relacionar, o que acaba causando
sofrimento e desilusão (“Deu pra ver que todos sentimos a mesma coisa, e mesmo assim
continuamos agindo assim. Não só nos relacionamentos mas em tudo que pede ação e
comprometimento. Estamos virando um bando de covardes…”, leitora em 26 de abril de
2014). Claro que diversas outras pessoas falaram exatamente o contrário, que não há muita
diferença em relação aos namoros de outras épocas, que as tecnologias funcionam apenas como
suporte ou que apenas intensificam a personalidade do mundo físico/real e que atualmente as
pessoas reclamam muito de qualquer coisa. Mas a maioria das manifestações, independente de
idade e de orientação sexual, versa sobre a concordância de que são tempos difíceis para os
amantes:
E para mim que sou gay? o pesadelo é muito pior! A esmagadora maioria dos gays só se preocupam com beleza física e dote sexual, e ainda tem o agravante de não poder manifestar sua afetividade em público sob pena de ser xingado e agredido, pois é meus caros, parece que a sociedade tá muito boazinha na teoria , mas na prática nossa vida é assim! CRUEL!! (leitor em 30 de de 2014).
A hipótese que será trabalhada neste estudo, com base inicial nos comentários do post do
blog e no próprio texto publicado, será de que a atualidade das relações mediadas, expressadas e
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inspiradas pelas tecnologias móveis e digitais de comunicação promovem novas formas de
relacionamento e exigem a aprendizagem de formas compatíveis de amar.
Defende-se que essa aprendizagem tem a ver com o manuseio dos próprios dispositivos
técnicos de comunicação, com a decodificação dos signos mediados por eles e, em especial, com as
experiências possibilitadas pelos modos atuais de se relacionar cotidianamente, de demonstrar
sentimento, enfim, de amar.
A partir da conceituação de Antonio Damásio e de Brian Massumi sobre as diferenças entre
emoção, sentimento e afeto, consideraremos os aspectos aprendidos no campo sensível na
concepção cognitiva do amor. Embora as principais diferenças apontadas por esses autores não seja
o foco do trabalho, faz-se necessária a diferenciação ao menos entre emoção e afeto por conta do
ponto especial apontado por Massumi em relação ao aspecto não-organizado (narrativamente e
socio-linguísticamente) do afeto, que será abordado em maior profundidade mais à frente.
Junto a esses autores, traremos a abordagem biológica de Varela sobre a cognição
corporificada (embodied cognition) com o objetivo de legitimar o lugar do corpo no processo de
aprendizagem, inclusive no desenvolvimento de competências sensíveis com a vivência e a
experimentação do ambiente não apenas de maneira consciente, e de Darwin sobre os aspectos
evolutivos das expressões faciais das emoções.
A emergência do campo sensível
No livro “Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos” (2004), Antônio
Damásio retoma a essência do pensamento desse filósofo especialmente no sentido de localizar nas
emoções o plano de fundo das decisões e de avançar na abordagem dualista corpo/mente.
Damásio não afirma que corpo (entende-se aqui o cérebro também) e mente são a mesma
coisa, mas não concorda com a supremacia atribuída à mente que perpassa todo o pensamento
racionalista, sobretudo a partir de Descartes, e que modulou a sociedade moderna. Além de
discordar, afirma que a mente serve ao corpo, e não o contrário. A base da teoria das emoções e dos
sentimentos de Damásio é a mente encarnada.
Nas investigações que contam com pesquisas de mapeamento do cérebro, o neurologista
diferencia emoção de sentimento. Para o autor, a emoção pode ser entendida como um conjunto de
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respostas químicas e neurais que possuem a função reguladora de manter a sobrevivência do
organismo e seu bem estar. Essas respostas podem ser acionadas tanto por dispositivos inatos
quanto por aqueles dispositivos alterados culturalmente, mas as respostas para os “estímulos
emocionalmente competentes”, para Damásio, são automáticas – e podem ser biológicas ou
aprendidas no decorrer da vida.
A principal diferença que ele faz da emoção para o sentimento é que o segundo passa pela
percepção do estado do corpo. O sentimento do amor, por exemplo, pressupõe certos estados
corporais que, dependendo de seu estágio, podem ter a ver com palpitação do coração, pupilas
dilatadas, face corada, relaxamento dos músculos etc.
Damásio salienta ainda que o amor pode ser investigado tanto em sua manifestação
emocional, com o mapeamento das alterações de determinados padrões químicos e neurais (o que,
inclusive, é o cerne do trabalho da pesquisadora Helen Fisher em “Anatomia do Amor”, 1995),
quanto a partir das exposições sentimentais de quem ama, acessível apenas por intermédio de quem
sente, através dos conteúdos dos sentimentos, por exemplo.
Também seguindo a linha de Espinosa, Brian Massumi se aproxima de Damásio quando
ambos concordam que há um espaço entre o que se passa no corpo e o que as pessoas verbalizam
no campo sensível. No artigo chamado The Autonomy of the Affect (A Autonomia do Afeto), de
1995, Massumi aborda algumas questões em torno dessa separação e da diferença entre aquilo que
é intenso e inqualificável, como o afeto, e aquilo que pode ser qualificado, verbalizado, organizado
linguisticamente, como a emoção. Partindo de um experimento que monitora a reação de crianças
ao assistirem a três versões diferentes de um filme, sendo uma apenas com imagens e as outras
duas com imagens e narração, uma factual e outra com carga emocional (palavras e expressões que
convencionalmente são reconhecidas como emocionais), Massumi inicia seu artigo ressaltando que
a versão sem palavras foi elencada pelas crianças como a mais agradável, pouco acima da versão
emocional, que foi a mais lembrada, enquanto a versão factual foi a menos lembrada e menos
agradável.
O que mais chamou a atenção dos pesquisadores nesse episódio, conforme ressalta
Massumi, foi o fato das crianças terem classificado as cenas tristes como as mais prazerosas.
Mesmo a versão factual tendo sido a menos lembrada e tendo sido classificada como mais
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desagradável, ela foi a que mais produziu excitação nas crianças. Essa excitação foi medida no
corpo: a versão factual fez o coração das crianças bater mais rápido e acelerou a respiração. A
versão sem narração teve mais efeito sobre a pele dos voluntários.
A conclusão a que chegou a equipe de pesquisa liderada por Hertha Sturm é que “a
primazia do afeto é marcada por um espaço entre conteúdo e efeito” (MASSUMI, 1995, p; 84,
tradução nossa). Conteúdo da imagem, o autor esclarece, tem a ver com a indexação aos
significados convencionais, qualificados de maneira sociolinguística. Essa indexação tem a ver
com a qualidade da imagem, já a força de duração tem a ver com a intensidade. Isso quer dizer que
a priori não há relação entre a qualidade e a intensidade do que se sente. O autor explica que há um
funcionamento multinivelado na recepção da imagem que, no caso observado, operou em dois
níveis autônomos: o de intensidade, no qual “triste é agradável” e o de qualidade, no qual
“emocional é duradouro”. No primeiro caso, o nível não é organizado de maneira semântica,
simbólica, o que permite conexões distintas, inclusive “incoerentes”."A desconexão entre forma e
conteúdo e efeito de intensidade não é só negativa: ela permite uma conectividade diferente, uma
diferença diferente, em paralelo" (MASSUMI, 1995, p.85, tradução nossa).
Assim como a constatação de Damásio de que tanto a emoção quanto o sentimento
necessariamente passam pelo corpo, Massumi reitera esse posicionamento: "Ambos os níveis,
qualificação e intensidade, são imediatamente incorporados” (idem). Entretanto, enquanto o afeto é
marcado pela intensidade do momento, o nível da forma/conteúdo da qualificação, ou seja, da
emoção é registrado no tempo. A hipótese trabalhada no artigo é que por haver envolvimento
racional na criação de expectativa, promovendo posicionamento consciente num estado linear
próprio da narrativa, os casos qualificados geralmente são melhor fixados. Em outras palavras,
lembramos melhor daquilo que é narrativamente organizado em contrapartida àqueles eventos que
nos envolvem de maneira intensa, mas que não podemos definir por não ter sido anteriormente
acordado ou por nunca termos passado por tal situação.
A emoção é um conteúdo subjetivo, a fixação sócio-linguística da qualidade de uma experiência que é a partir desse ponto em diante definido como pessoal. Emoção é a intensidade qualificada, o ponto convencional, consensual de inserção de intensidade em semanticamente e semioticamente formado progressões, em circuitos de ação-reação narrável, em função e significado. (MASSUMI, 1995, p. 88, tradução nossa).
Em contrapartida, não estamos imunes ao afeto, àquilo inqualificável e, portanto,
impossível de ser apropriado e reconhecível. A potência do afeto está justamente na sua
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virtualidade, em sua capacidade de emergir sem se enquadrar ou estabelecer uma forma.
Em suma, o afeto pode ser entendido como associal, mas não pré-social, porque ele inclui
elementos sociais que são misturados com elementos pertencentes a outros níveis de
funcionamento e combinados de acordo com uma lógica diferente da narrativa. Pode-se dizer que o
afeto encontra-se no lugar onde Varela (1998) chama de sub-simbólico, inspirado na teoria da
harmonia de Smolensky, e emerge num processo de enação (abordada mais à frente).
Segundo Massumi, isso é possível porque
é tudo uma questão de emergência, que é precisamente o foco das várias teorias derivadas de ciência que convergem em torno da noção de auto-organização (a produção espontânea de um nível de realidade que tem as suas próprias regras de formação e ordem de conexão). Afeto ou intensidade no presente relato é semelhante ao que é chamado de ponto crítico, ou um ponto de bifurcação, ou ponto singular, na teoria do caos e da teoria das estruturas dissipativas. (idem, p.93, tradução nossa).
Nesse sentido, a teoria da enação, criada pelo biólogo chinelo Francisco Varela em
alternativa às abordagens representativas no campo das ciências cognitivas, se apresenta de
maneira interessante para entender o afeto como um fenômeno do conhecimento. Com base nessa
concepção, podemos perceber que a aprendizagem do afeto não se dá por uma transferência de
informação e sim por uma modulação mútua entre ambiente e conhecedor a partir de um corpo
sensorialmente atuante, como será visto mais adiante na perspectiva da cognição corporificada.
Os pontos principais que nos interessam na abordagem da enação, essencial para pensarmos o
processo de aprendizagem de um novo tipo de amor, é que Varela considera o conhecimento como
algo construído na “ação do ser”, sem uma finalidade específica a não ser a própria sobrevivência
desse sistema vivo e em constante mudança. “Sujeito” e “objeto” constituem-se um ao outro, não
havendo algo externo àquele que busca conhecer e nem um objeto à espera de ser desvendado. Essa
noção é importante porque, ao nos debruçarmos sobre as “verdades cruéis” relatadas no blog, a
impressão que se tem é que há algo a ser aprendido (“relacionamentos modernos, não sei lidar!”,
afirma uma leitora em 29 junho de 2014) , há um tipo de relacionamento com o qual a maioria
parece não concordar, não se sentir confortável, mas mesmo assim parece haver uma necessidade
de adequação a esse novo modo de amar, sob pena de não mais estar em qualquer relação. Ambos
os casos parecem dolorosos: aceitar a realidade e viver relações “modernas” ou não aceitar e viver
só: “É o que me fez desistir de relacionamentos... me tornou uma dessas pessoas desinteressadas de
verdade” (comentário da leitora em 25 de abril de 2014).
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Embora a apreensão cotidiana de modelos hegemônicos de relacionamentos amorosos não
seja uma particularidade contemporânea, como Rougemont observa no decorrer dos séculos com a
clássica obra “História do Amor no Ocidente”, parece haver atualmente uma diferença peculiar em
relação à consciência de um certo estado de incerteza quando o assunto é amor. Como salienta
outra leitora do blog sobre o comentário de uma pessoa que diz ter um relacionamento diferente
daquele descrito no texto: “O de vcs deve ser o modelo antigo de relacionamento.” (em 27 de abril
de 2014). E outro complementa: “E é bom que não atualizem o sistema!!! KKK” (lem 1º de maio
de 2014).
Se o conhecimento emerge a partir de múltiplas forças sociais, históricas, econômicas,
psicológicas, tecnológicas etc. e se não há conhecimento externo ao conhecedor, podemos assumir
uma primeira conclusão de que se existe e é praticado esse tipo atual de relacionamento é porque
de alguma forma ele está presente no contexto do qual fazem parte seus adeptos, conhecedores e
resistentes. Nesse sentido, os próprios atores que engendram esse processo parecem ter ciência de
sua participação ativa na mudança dos modos de amar: “Falar assim sugere que o problema é, em
suma, ‘o outro’. E quem é ‘o outro’ que não cada um de nós?” (leitor em 25 de abril de 2014).
O lugar do corpo na aprendizagem do amor
O estudo dos aspectos cognitivos das emoções, mais precisamente das particularidades
evolutivas das expressões faciais de caráter emocional, data desde Charles Darwin. Como o próprio
naturalista salienta, desde 1838 ele se dedicava ao assunto esporadicamente, até que decidiu se
aprofundar nas investigações das expressões das emoções após tomar conhecimento do trabalho de
Sir Charles Bell2 e discordar de que “o homem teria sido criado com certos músculos
especialmente adaptados para a expressão de seus sentimentos” (DARWIN, 2000, p. 28).
A hipótese trabalhada por Darwin era de que os movimentos corporais que expressam
sentimentos tinham sido adquiridos gradualmente com a evolução das espécies. Embora tivesse
ciência de que a investigação de como os hábitos foram adquiridos não fosse fácil, ele se propôs a
estudar as expressões de diversas “raças de homens”, como os aborígenes australianos, por
exemplo, e encontrou evidências importantes que confirmaram sua hipótese. As expressões faciais
das emoções, embora inatas naquele momento, um dia foram aprendidas.
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Neste momento, torna-se oportuno trazer a perspectiva de Varela mais uma vez no que se
refere ao modo como aprendemos. Para o autor, os seres vivos se constituem sobretudo como
sistemas autopoiéticos (palavra de origem grega que pode ser entendida como auto-criação) que
produzem-se a si mesmos ao mesmo tempo em que são produzidos pelo meio. Embora haja uma
determinação estrutural biológica que configura o organismo vivo como tal, não há determinismo
biológico e de nenhuma outra instância. Consideram-se participações mútuas na constituição do
ser, a partir dos acoplamentos estruturais aos quais todo ser vivo está sujeito enquanto houver vida.
A transformação circular e autônoma está presente desde o início da vida.
Mais importante ainda para a elaboração deste trabalho em relação à hipótese de que
estamos passando por um momento crucial de modulação dos modos de amar é a concepção de
embodiment cognition, algo que poderia ser traduzido como “cognição corporificada”.
A partir desse olhar, podemos dizer que a “cognição depende das experiências nas quais o
corpo se coloca com capacidades sensório-motoras e as próprias habilidades sensoriais são
incorporadas no cruzamento entre biologia, psicologia e contexto cultural” (VARELA,
THOMPSON, ROSCH, 1993, p. 173, tradução nossa). Dito de outra forma, o corpo tem um papel
fundamental no processo de conhecimento, tanto de reprodução quanto de produção, como todo
sistema autopoiético. Com isso, chegamos ao ponto em que podemos pensar em
conhecimento/aprendizagem/inteligência não apenas como aquilo “adquirido conscientemente com
a finalidade de solucionar problemas”, mas sim como aquilo que emerge na interação com o outro,
com o meio, com os objetos, com a vida.
Os sistemas vivos nascem com possibilidades estruturais de se emocionarem, de sentirem,
de serem afetados. À medida em que crescem, constroem seus mapas amorosos (FISHER, 1995)
estruturados de múltiplas formas e em confluência com inúmeras fontes, conscientes e
inconscientes. Ao mesmo tempo em que a estrutura sensível, desenvolvida há milênios com a
evolução, altera o ambiente, os organismos são alterados, a estrutura sensível, afetiva e emocional é
alterada pelo meio. Por esses motivos, o amor pode ser considerado na perspectiva cognitiva, tal
como qualquer dimensão emocional e afetiva, embora de modos diferentes.
Amor moderno?
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Tomando como marco histórico a popularização da psicanálise nos EUA, encontramos no
desenvolvimento da cultura terapêutica durante todo o século XX a elaboração de um novo
paradigma de sociabilidade e de desenvolvimento pessoal. Na inauguração do que Illouz chama de
“capitalismo afetivo”, a cultura dos sentimentos foi realinhada, “tornando emocional o eu
econômico e fazendo os afetos se atrelarem mais estreitamente à ação instrumental” (2011, p.
38). Nesse sentido, a comunicação passou a ser usada fortemente no âmbito do novo espírito
empresarial como uma importante ferramenta de conhecimento e controle de si e dos outros. “A
‘comunicação’ instila técnicas e mecanismos de ‘reconhecimento social’, criando normas e
técnicas para aceitação, validação e reconhecimento dos sentimentos alheios” (idem, p. 34),
exigindo, assim, tanto dos líderes empresariais quanto dos maridos, esposas, pais e mães, as
competências comunicacionais adquiridas em programas de treinamento pessoal, terapia de casal e
familiar, literatura especializada etc.
Ao examinar o culto da autoestima a partir do chamado “jornalismo de autoajuda”, João
Freire Filho argumenta como a exaltação dos benefícios e da utilidade prática do “amor próprio”
são apresentadas de maneira muito próximas às técnicas de programação neurolinguística (PNL)
presentes em inúmeros livros de autoajuda e em programas de desenvolvimento pessoal. De
acordo com o autor, o objetivo da PNL, que
tem como base uma abordagem cognitiva do funcionamento mental, inspirada no modelo da informática, [...] é ajudar as pessoas a reprogramarem a forma como transformaram suas experiências em representações do mundo, a fim de fazê-las adotar representações portadoras de novas potencialidades. (2011, p.73)
Com a indústria terapêutica, o que se pretende é formar pessoas afetivamente inteligentes a
ponto de serem capazes de manejar seus próprios sentimentos e os dos outros para alcançar os
objetivos que desejam.
A questão é que os seguidores dessa linha de práticas e pensamentos desconsideram
justamente a dimensão afetiva do campo sensível, para a qual não é possível qualquer tipo de
previsibilidade. Além disso, considerar a inteligência como um recurso solucionador de problemas
e um ambiente pré-definido para o qual é possível se preparar previamente, desde que se esteja
emocionalmente habilitado, é ir justamente na contramão à perspectiva atuacionista da cognição, a
enação.
A impossibilidade do pensamento linear quando o assunto é “amor” torna-se ainda mais
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evidente quando adentramos no texto escolhido como objeto deste artigo e nas reações mediante
aos pontos destacados no post.
A Inteligência Emocional3 da qual tanto se fala nos livros de autoajuda e nas matérias das
revistas femininas parece não ser útil para o ambiente descrito no texto, conforme aponta a
“verdade cruel” de número 6:
Planos com antecedência estão mortos. As pessoas tem opções e atualizações de última hora da localização dos seus amigos (ou outros potenciais romances) graças as mensagens e as redes sociais. Se você não é a prioridade, você vai ouvir um “Talvez” ou “A gente se fala” como resposta para o seu convite para uma saída e o(s) fator(es) decisivo(s) serão se a pessoa recebeu ou não ofertas mais divertidas/interessantes que você. (sic).
Há tantas variáveis que tornam as relações amorosas, as pessoas e o ambiente tão
complexos a ponto de ser difícil pôr em prática conhecimentos adquiridos de maneira pragmática,
como propõem os programas de desenvolvimento pessoal e inteligência emocional. Ainda mais
para assuntos que não são de ordem racional, como a sensibilidade, e para os quais são
desenvolvidos saberes em uma dimensão muito mais sensorial do que narrativa.
Em primeiro lugar, vale destacar que muitas das “verdades cruéis” do texto estão
relacionadas ao uso de tecnologias de comunicação que permitem o contato direto, a conexão com
diversas pessoas ao mesmo tempo e a agilidade da comunicação em qualquer lugar. Essas
poderiam ser funcionalidades incríveis no dia a dia de um casal do século XIX, quiçá XX, que
precisava esperar dias para receber uma correspondência com a declaração de seu amado e sofria
com a distância e a falta de contato. Atualmente, essas mesmas funcionalidades podem apresentar
verdadeiros problemas para relações do tipo “modernas”, como as relatadas no texto. Mesmo sendo
difícil idealizar um relacionamento sem que aplicativos de mensagem instantânea e dispositivos do
tipo telefone móvel estejam presentes, não se pode desconsiderar os usos das tecnologias de
comunicação digital como ferramentas de controle que podem, inclusive, influenciar na
intensificação da ansiedade, da insegurança e de um modo específico de sofrimento. A verdade de
número 9 exemplifica esse ponto de maneira sucinta: “A mensagem que você mandou chegou. Se
ele não respondeu, pode ter certeza que não foi por causa do mau funcionamento das operadoras de
celular.”.
Passando por todas as etapas do relacionamento, da conquista ao término, as tecnologias
digitais de comunicação e os sites de redes sociais têm estado presentes moldando o modo como se
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dá tanto a comunicação quanto a própria aprendizagem sensível. Contatos via aplicativos de
geolocalização como o Tinder exemplificam uma das inúmeras possibilidades de iniciar um flerte
ao alcance dos dedos, das pontas dos dedos sobre uma tela, para ser mais exato. A manutenção de
uma pré-relação também passa pelos sites de redes sociais e aplicativos de mensagem. Como
exemplificado no post do blog, encontros de última hora são marcados e desmarcados com a
mesma facilidade com a qual negamos solicitações de jogos indesejáveis. Um clique, poucas
palavras ou um emoticon podem produzir afetações intensas em quem aguarda ansiosamente o
acender da luz verde (online) do outro lado da tela. Ansiedade essa que se estende ao “fuxicar” a
vida virtual/digital alheia, prática conhecida como “stalking”.
A vigilância se amplia não apenas a histórias passadas, acontecimentos anteriores ao início
desse relacionamento que nem começou ainda, mas também a pessoas da família, amigos e a
outros possíveis pretendentes. O tipo e a frequência da interação são índices confiáveis para medir
o interesse do outro a um terceiro, e de insegurança de quem espera engrenar um relacionamento
estável.
Quantas curtidas dele (a) tem no perfil daquele(a) rapaz/moça? Quantos comentários? Qual
é o teor dessas interações? Esse monitoramento do outro e da aparente rede afetiva acaba fazendo
parte da rotina de insegurança de quem se encontra numa tentativa de relacionamento moldado pela
sensibilidade digital. A verdade de número 12 toca justamente nesse ponto: "As mídias sociais
criam novas tentações e oportunidades para trair. As mensagens por inbox e opções para um flerte
sutil (ex. curtir a foto alheia) não servem como desculpa ou prova de uma traição, mas eles
certamente aumentam as chances disso acontecer.".
Além das tecnologias de comunicação digitais, este foi o segundo ponto que mais apareceu
como problemático nas relações contemporâneas: a dificuldade de se estabelecer compromisso. A
estabilidade parece cada vez mais difícil de ser alcançada nos relacionamentos: “Tantas pessoas
tem medo de compromisso e de estar sério com alguém que continuam um relacionamento não-
definido, que acaba confundindo as coisas e só funciona até não funcionar mais.” (trecho da
verdade de número 11). Mais uma vez, as tecnologias de comunicação móveis e digitais e os sites
de redes sociais são declarados “culpados” nesse quesito, afinal as “mídias sociais também criam
a ilusão de que você tem opções, o que leva as pessoas a verem o Facebook como um menu de
pessoas atraentes...” (verdade de número 13). Fartura de oferta, facilidade de se estabelecer contato
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e diálogo, facilidade de gerenciar múltiplas “pré-relações” ao mesmo tempo, facilidade de
desconectar-se dos “pré-relacionamentos” que não vingaram.
A perda da noção de caráter da qual fala Sennett em seu livro “A corrosão do caráter”
(1999) é justificada especialmente pela incapacidade de seus personagens estabelecerem
compromissos no âmbito do capitalismo pós-industrial dos EUA. O autor defende que as condições
de trabalho desenvolvidas com a lógica neoliberal que prezam pela flexibilização do ambiente de
trabalho como uma evolução dos modos de produção têm impactos não apenas nas relações de
trabalho, mas também nas relações pessoais de quem vive esse novo cotidano.
O capitalismo “moderno”, tal qual o amor “moderno”, possibilitam a vivência fluida,
escorregadia e fragmentada das relações, e parece dificultar decisões, projetos e relacionamentos a
longo prazo, ou seja, compromissos. Dessa forma, desfazer um relacionamento moderno parece
não exigir tanto cuidado com o sentimento do outro. Ora, se os dispositivos de comunicação
estiveram presentes nessas quase-relações desde a conquista, por que seria diferente no momento
de desfazer as conexões amorosas? Dessa maneira, um relacionamento até mesmo “estável”, um
compromisso por assim dizer, pode ser rompido via Whatsapp com a mesma facilidade com a qual
começou.
Esse ponto, aliás, que aparece como a 18ª verdade do texto foi mencionado como a verdade
com a qual as pessoas mais se identificam e a que parece ser a mais cruel:
Se você tomar um fora, provavelmente vai ser bem brutal. As pessoas podem cortar laços pelo telefone e evitar ter que ver as lágrimas rolando pelo seu rosto ou terminar tudo por mensagem e evitar ouvir a dor na sua voz e o seu nariz escorrendo. Envie um texto longo e voilá, o relacionamento acabou. O caminho mais fácil está longe de ser o mais atencioso.
A nuvem de tags abaixo mostra as palavras mais mencionadas nos comentários do post e
serve para visualizarmos graficamente as principais questões que envolvem a problemática das
relações modernas sob a perspectiva dos leitores do blog.
Figura 1: nuvem de tags que mostra as palavras mais citadas nos comentários do post em ordem alfabética, de cima para baixo
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Fonte: capturado pela autora com auxílio da ferramenta wordle.net.
De modo geral, os leitores concordam com o fato de que existem mudanças e que parece
não haver outra alternativa a não ser aprender a lidar com a diferença: “acredito que os
relacionamentos modernos estão cada vez caminhando pra pegar e não se apegar, e namorar, noivar
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e casar é coisa do passado...” leitor em 29 de abril de 2014. Quando são apresentados argumentos
contrários à adesão desse modo emergente de amar, fica evidente a necessidade de mudanças na
maneira como as relações são mediadas:
Penso que se não desejamos um relacionamento assim, devemos tentar mudar. Conheça e converse sim com a pessoa por mensagem no começo, depois vá para mensagens de voz… fale que esta ocupada(o) e é mais facil se falarem por telefone… quem sabe assim não fique algo mais pessoal…” leitora em 29 de abril de 2014.
Por outro lado, há relatos de pessoas que dizem viver relacionamentos diferentes daquele
descrito na lista: “Meu relacionamento é incrível, fonte de amor, paixão, respeito e amizade (...) e
nem precisamos compartilhar nossa felicidade pelas redes sociais pra sabermos disso! Façam
mudar as cabeças que criaram isso!” (sic) leitora em 25 de abril de 2014. Com isso, é possível
perceber que, embora assuma-se a existência da realidade e a necessidade de se adequar à “cruel
verdade dos relacionamentos modernos”, valores como compromisso e lealdade continuam sendo
desejados, mesmo que o ambiente impulsione outros tipos de comportamento, outras
aprendizagens e competências.
Neste ponto, é importante trazer um pouco da linha de pensamento do pesquisador do amor
Simon May. Para o autor de “Amor, uma história” (2012), pouco mudou em relação ao imaginário
do amor nos últimos séculos. Embora a passagem do século XIX para o século XX tenha
transformado profundamente a sociedade em diversos setores, o ideal do amor romântico do século
XIX ainda tem ressoado nas relações atuais. Sem desconsiderar grandes conquistas como o
divórcio, os métodos contraceptivos e maior aceitação das relações homossexuais pela sociedade,
Simon May alega que o “amor livre” não produziu rearranjos amorosos de maneira ampliada,
como a adesão a modelos de relacionamento não-monogâmicos, por exemplo. Entretanto,
estimulou a liberdade de escolha do parceiro por desejo e não mais por imposição social,
necessariamente.
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Ainda que o imaginário do amor não tenha sido transformado como afirma May, da mesma
forma como Helen Fisher, em “Anatomia do Amor” (1995), assegura a inscrição do amor
romântico no corpo ao constatar que a estrutura cerebral desenvolvida com a evolução possibilita a
vivência de três fases distintas do amor, sendo o apego uma das inscrições adquiridas para a
tolerância do outro e para a manutenção da família, não se pode negar que as transformações
sociais, econômicas e tecnológicas das últimas décadas, ao alterar o cotidiano, transformam
também a comunicação entre os casais e suas próprias relações.
Dessa forma, pode-se pensar não apenas em um imaginário romântico, mas também em
uma materialidade vinculativa, mesmo que não seja a única, que tem sido útil há séculos na
conservação de compromissos amorosos a longo prazo, em confronto com práticas cotidianas
concretas, também materiais, que estimulam e privilegiam conexões a vínculos, satisfação de
desejos a curto prazo, bem-estar, diversão e felicidade sem interrupção, tudo isso em uma medida
inorgânica de espaço-tempo, própria da lógica digital de comunicação (BIFO, 2012).
Na falta de instituições formadoras das grandes narrativas, como a Igreja, o Estado e a
Sociedade, a contemporaneidade deixa de produzir mitos do amor como em outras épocas
(ROUGEMONT, 2003). Atualmente, sem narrativa, sem mitos, sem compromissos de pares,
apenas fluxos de redes-individuais, ou melhor, clusters. Apenas conexões, nada de vínculos.
Ao que parece, esse espaço de quase-acontecimento, de quase-início, de momento
incipiente se assemelha bastante à concepção de afeto de Massumi.
Pense nas cortes entre programação e comerciais alcançáveis através de zapping. Pense na distração de visualização televisão, os cortes constantes a partir da tela de seu entorno imediato, para o contexto de visualização onde outras ações são realizadas aos trancos e barrancos como atenção esvoaça. Pense nas justaposições alegremente incongruentes de navegação na Internet. Pense em nosso bombardeio de imagens comerciais fora da tela, a cada passo em nossas rondas diárias. Pense em operação imagético do objeto de consumo, como o volume de negócios do tempo aumenta tão rápido quanto os estilos podem ser reciclados. Em todos os lugares, o corte, suspense-incipiência. Virtualidade, talvez? (1995, p. 104, tradução nossa).
O fluxo das redes de comunicação do tempo digital não estabiliza o afeto, não há tempo
hábil para o afeto se organizar narrativamente transformando-se em emoção e, portanto, em algo
durável, memorável. Os relacionamentos modernos parecem ser tão cruéis para os leitores que
comentaram e compartilharam o texto porque as “18 verdades” se impõem às estruturas sensíveis
adquiridas com o desenvolvimento das funções biológicas vinculativas úteis há séculos. Além
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disso, essas práticas são dolorosas porque operam numa medida de tempo incompatível com a
capacidade orgânica de assimilação dos acontecimentos emocionais.
Considerações Finais
Embora o principal objetivo do artigo tenha sido alcançado, com a apresentação de
perspectivas teóricas e exemplos práticos, na linguagem dos próprios leitores do blog “Relatos de
uma Diva”, de que o campo sensível não escapa ao aprendizado, é importante registrar que este
estudo faz parte de uma pesquisa em andamento sobre a relação de modulação mútua entre
amantes, modos de amar e tecnologias de comunicação mediadoras do cotidiano das relações
amorosas atuais.
O cruzamento das abordagens escolhidas para este trabalho abrem perspectivas
interessantes para o estudo em andamento, especialmente sobre como as relações duplamente
mediadas (corpo + meio/arranjos midiáticos) promovem e necessitam da aprendizagem
(codificação e decodificação) de novos signos emocionais (emoticons, palavras, textos, imagens,
curtidas, comentários), de novos ritmos (encontros e desencontros que podem se alterar a cada
segundo, transições instantâneas de sentimentos) e novas habilidades sensíveis (sentir-se tocado
por uma declaração no Facebook e não mais ou nem tanto por uma carta de amor privada, por
exemplo; esquecimento do outro quase que de maneira instantânea com o apagamento do histórico
vivenciado, por meio das próprias ferramentas que dispositivos como Facebook e Whatsapp
oferecem [bloquear, excluir conversas, deletar acontecimentos da linha do tempo etc.], privação do
sofrimento).
Ainda que cheguemos ao ponto em que todo esse novo aparato simbólico tenha sido
absorvido, mesmo sabendo que isso não é possível, pois, de acordo com a proposta da enação, o ser
não conhece simplesmente apreendendo representações, mas sim atuando sobre elas e produzindo
conhecimento, a dimensão afetiva estará presente para alertar que, por mais competentes
emocionalmente que possamos ser, o afeto escapa à previsibilidade.
Dessa forma, não podemos crer em uma conclusão simplista de que vivemos num ambiente
que impossibilita relações amorosas tão genuínas quanto em outros tempos, já que o ambiente não
é externo ao ser e a experiência estética de ser afetado em uma relação amorosa é tão antiga quanto
o primeiro casal que sucumbiu à força da paixão, esse modo irracional de nos mover em direção
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aos nossos desejos.
Entretanto, é importante considerar que o cotidiano mediado pelos múltiplos arranjos
midiáticos, ao exigirem a codificação de nossas emoções e estimularem outras formas de
comunicar nossos sentimentos, podem alterar também a percepção de estados corporais na
presença de um corpo não-digitalizado4
, dificultando a leitura dos signos emocionais do outro.
Essa parece uma questão importante a se pensar, considerando a função homeostática das emoções,
defendida por Damásio, como essencial para a sobrevivência do próprio organismo em sua relação
com a sociedade.
1Mestranda na linha de Tecnologias e Cultura da Comunicação no PPGCOM-UERJ, bolsista
Capes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, [email protected]
Notas
1 O texto foi publicado originalmente no site Thought Catalog, por um homem, e teve mais de 1400 comentários.
2 Que teve o conhecido trabalho sobre a descoberta da fisiologia publicado em 1806 e 1844, “Anatomy and Philosophy of Expression” (Anatomia e filosofia da expressão).
3 “Inteligência Emocional”, de Daniel Goleman, foi a publicação de maior destaque nesse sentido, influenciando uma série de outros autores na linha da preparação emocional para as problemáticas da vida, inclusive as relações amorosas.
4 A título de exemplo, vale olhar a pesquisa realizada pela Universidade da Califórnia sobre como crianças que interagem cotidianamente com telas multimídia estão perdendo a capacidade de identificar emoções pessoalmente. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/08/140827_celularinfantil_ebc. Acessado em 18/01/2015.
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