A BIBLIOTECA ALEMÃ DE
TOBIAS BARRETO
(A Alemanha e os autores alemães que
fascinaram o jurista brasileiro)
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Sumário
I) Uma biblioteca com livros alemães no Brasil do século XIX
II) A personalidade e as ideias centrais de Tobias Barreto
III) O ambiente cultural e jurídico da Alemanha que fascinou Tobias Barreto
IV) Alguns autores alemães da biblioteca de Tobias Barreto
Rudolf von Jhering
Rudolf Gneist
Theodor Mommsen
Johann Caspar Bluntschli
Joseph Stövös
Albert Berner
Franz von Holtzendorff
Heinrich Lammasch
Julius Fröbel
Franz Adickes
Maximilian von Buri
Felix Dahn
Rudolf Haym
Hugo Meyer
Theodor Mutter
Conrad Franz Rosshirt
Ernst Traugott Rubo
Salomon Stricker
Adolf Samuely
August von Bethmann-Hollweg
Theodor Reinhold Schütze
Otto Stobbe
Edward Böcking
Emil Kraeplin
Karl Bolgiano
Frederich Oskar Schwarze
Leonhard Freund
Eugen Tuhn
William Lagenbeck
“Conta um viajante europeu dos nossos dias ter encontrado na América uma tribo
selvagem, a tribo dos Accawais, que entre outras singularidades possui também a
da formosura de suas mulheres. Fez-lhe sobretudo profunda impressão a beleza de
duas moças de 12 a 15 anos. Suas formas estavam já tão perfeitamente acabadas,
eram de tão clássico desenho, que poderiam servir a um escultor como modelo de
uma Vênus. Nada de beiços grossos e de narizes chatos, que são comuns aos tipos
da raça; mas narizes idealmente afilados, e rubros lábios regularmente polpudos,
como que abertos pela mão invisível, que distende a corola dos cravos; tudo isto
rematado ou realçado pela bagatela dos pés e o diminutivo das mãos. Mas eis aqui
o mais extraordinário: o viajante refere que fez a estas duas moças um presente de
fios de aljôfar, que elas aceitaram com muito prazer; em pago do que, pediu-lhes
ele que cada uma lhe desse um beijo. Elas olharam-se como que espantadas;
nenhuma sabia o que era um beijo, nem o modo de dar semelhante coisa; e quando
ele mostrou praticamente às duas belezas o valor dessa incógnita, os selvagens
presentes romperam numa gargalhada: nunca tinham visto este fenômeno,
chamado beijo... Ora pois, eu também com o meu contínuo citar de autores
alemães e ideias alemãs, não estarei sujeito a alguma risada accawaina? Tenho
meus receios”.
Tobias Barreto, As Faculdades Jurísticas como Fatores do Direito Nacional.
I) Uma biblioteca com livros alemães no Brasil do século XIX
Em seguida à morte do pensador sergipano Tobias Barreto de Menezes (1839-1889) sua
biblioteca (cerca de 437 volumes) foi comprada pela Faculdade de Direito do Recife. Clóvis
Beviláqua, então bibliotecário daquela escola, intermediou a transação, atendendo sugestão de
Silvio Romero e de Afonso Celso1.
Na década de 1950, Gláucio Veiga, historiador das ideias da Faculdade de Direito do
Recife, chamou a atenção para o fato de que boa parte dos livros que pertenceram a Tobias
Barreto estava escrita em alemão2. No fim da década de 1960, Vamireh Chacon catalogou essas
1 Beviláqua, Clóvis, História da Faculdade de Direito do Recife, Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1977, p. 201: “Por sugestão de Silvio Romero e Afonso Celso, promoveu-se a aquisição dos livros de Tobias para a biblioteca da Faculdade de Direito do Recife. Eram 437 volumes, que foram avaliados em 2:622$000, soma insignificante, porém que prestaria auxílio à família do lente, que ficara paupérrima”. 2 Veiga, Gláucio, História das Ideias da Faculdade de Direito do Recife, volume VIII. Recife: Artegrafi, 1977, pp. 33 e ss.
obras alemãs de Tobias, indicando 102 volumes, ainda que tenha localizado apenas 79 livros3.
Bibliotecas qualificam insuspeitos pontos de partida para inusitadas pesquisas4. É do que se trata
em seguida.
O acervo de livros alemães de Tobias Barreto foi assunto explorado por Lilian de Abreu
Pessoa, por Vamireh Chacon e por Mario Losano. Lilian Pessoa é especialista no pensamento
alemão de Tobias Barreto, assunto que tratou em livro hoje esgotado5. Vamireh Chacon é
historiador, cientista político e jurista, exímio conhecedor do pensamento e do legado de Tobias
Barreto, de quem traduziu vários textos originariamente escritos em alemão; foi o organizador da
primeira lista completa da biblioteca alemã do pensador sergipano6.
A pesquisa de Vamireh Chacon também nos revela uma carta escrita por João Barreto de
Menezes, filho de Tobias Barreto, endereçada a Artur Orlando, a propósito da angústia vivida
pela família, quanto ao recebimento da venda dos livros do pensador sergipano para a Faculdade
de Direito do Recife7. Sobre o mesmo assunto, Vamireh Chacon também nos revelou uma carta
3 Chacon, Vamireh, Da Escola de Recife ao Código Civil, Rio de Janeiro: Organização Simões, 1969, pp. 349-356. 4 Conferir, por exemplo, o interessantíssimo trabalho coordenado por Lilia Moritz Schwarcz, sobre a vinda da biblioteca da família real portuguesa para o Brasil. Schwarcz, Lilia Moritz, A Longa Viagem da Biblioteca dos Reis- do terremoto de Lisboa à independência do Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 5 Pessoa, Lilian de Abreu, Aspectos do Pensamento Alemão na Obra de Tobias Barreto, São Paulo: USP, 1985. 6 Conferir, entre tantos outros títulos de Vamireh Chacon, Da Escola do Recife ao Código Civil, Rio de Janeiro: Organizações Simões, 1969. Nesse último, especialmente, Vamireh Chacon refere-se ao rastreamento da biblioteca alemã de Tobias Barreto, dispersa no acervo da Faculdade de Direito do Recife, à qual tinha sido vendida. Vamireh Chacon agradece a Eunice Robalinho e a Leonice Ferreira da Silva, ambas da Biblioteca da Faculdade de Direito do Recife, que o teriam auxiliado. Cf. Chacon, Vamireh, cit., p. 19. 7 Segue excerto da carta, colhido no livro de Vamireh Chacon: “Recife, 21 de agosto de 1903. Amigo Dr. Artur.
Saudações. A minha velha mãe determina-me que lhe escreva algumas linhas mais, junto às muitas que lhe teem sido dirigidas, sobre a malfadada questão dos livros, isto é, o pagamento que ainda não foi realizado, como deve saber, pelo tesouro estadual, em vista de a isso se ter mostrado indiferente o governo. Não são pequenos os embaraços em que vivemos, com a pensão cortada em parte e sobre a qual há um projeto a dormir aí no senado (...) Ainda oportuna julguei ser a lembrança de minha velha em recorrer a uma influência, se não de todo política, mas pessoal, porque lhe sobram muitas, junto ao conselheiro Rosa e Silva, a fim de ser ordenado esse pagamento (...) Se tivesse eu o direito de lhe falar desse modo, não eu somente, mas toda a família de Tobias, que o estremecia deveras, distinguindo-o no Recife como discípulo, não escreveria essa carta, visto da ineficácia das outras (...) Queira desculpar semelhante franqueza que é toda filha do espírito de um de seus admiradores. João Barreto”. Chacon, Vamireh, cit., pp. 245-246.
de Silvio Romero, dirigida ao mesmo Artur Orlando, na qual o missivista discute também um
projeto para publicação - - pelo governo - - das obras de Tobias Barreto8
Vamireh Chacon não se identificava com uma reabilitação do que denominava de
germanismo tobiático, sobre o qual já indicara algumas fragilidades; segundo Chacon, Tobias
Barreto nem sempre se interessava pelo que de mais importante havia no pensamento alemão;
“deslumbrado com Haeckel, Noiré, Eduard von Hartmann, desprezando Nietzsche e ignorando
a revolução neokantista de Liebmann, Windelband, Rickert (...)9”.
O jurista italiano Mario Losano retomou o assunto, aprimorando a pesquisa, levando-a ao
limite, apresentando lista atualizada em livro que publicou sobre Tobias10
; trata-se de primoroso
trabalho que ainda não foi traduzido para o português. Mario Losano buscou exemplares
idênticos aos livros da biblioteca alemã de Tobias Barreto na Bayerische Staatsbibliotek em
Munique, fixando uma lista final, com a correta identificação dos vários autores. O trabalho de
Mario Losano é definitivo, no sentido de que esse jurista europeu conseguiu, de modo
conclusivo, explicitar as várias dúvidas que havia em torno dessa famosa biblioteca.
Aos 170 anos do nascimento de Tobias (em 2009), Karine Gomes Falcão Vilela, da
Biblioteca da Faculdade de Direito do Recife, coordenou publicação informativa, a propósito de
mostra bibliográfica comemorativa, sistematizando as informações hoje disponíveis, bem como
noticiando o estado atual do acervo11
. Nessa publicação há informações sobre alguns autores
alemães da biblioteca de Tobias Barreto12
.
8 Segue excerto da carta, colhido no livro de Vamireh Chacon: “ Amigo Artur. Peço-te para, sem a menor demora,
te entenderes com a D. Grata, a Exma. viúva do nosso grande Tobias, sobre os dois pontos que foram o objeto de meus requerimentos ao Governo geral: 1º a venda dos livros de Tobias ao mesmo Governo geral; 2º a publicação pelo Governo das obras escritas pelo mesmo Tobias. Essas duas operações são utilíssimas; mas é preciso que ela me autorize por escrito (...) Ponham aí os livros do Tobias a bom recanto, e enviem-me os jornais e papeis dele para a impressão das obras (...)”. Chacon, Vamireh, cit., p. 318. 9 Chacon, Vamireh, cit., p. 29.
10 Losano, Mario G., Um Giurista Tropicale- Tobias Barreto fra Brasile real e Germania ideale¸ Milano: Laterza, 2000, pp. 251 e ss. 11 Mostra Bibliográfica da exposição Tobias Barreto: as marcas de um homem: 170 anos de nascimento, 1839-1889, Recife, 2009. 12 No catálogo há informações sobre Bethmann-Hollwerg, Eduard Böcking, Dumont Schanberg, Heinrich Ewald, Karl Fortlage, Julius Fröbel, Rudolf von Gneist, Rudolf Haym, Rudolf von Jhering, Theodor Marezoll, Karl Marx, Alexander von Ubilischeff e Rudolf Ullmer.
A investigação em torno do catálogo das obras alemãs de Tobias suscita várias questões,
conceituais e metodológicas13
. Há um olhar externo, europeu (que pode ter impulsionado o
interesse e a pesquisa de Mario Losano, que é italiano, e que pesquisou e lecionou no Brasil) e há
um olhar interno, nosso (que marcou o interesse e a investigação de Vamireh Chacon, que é
pernambucano, e que estudou e lecionou na denominada Casa de Tobias). Há um forte apelo e
necessidade para a exploração dessa última perspectiva, porquanto, como afirmou o mais
significativo dos seguidores de Tobias, “nós desconhecemo-nos a nós mesmos”14
.
De um ponto de vista interno, interessa-nos a recepção de ideias europeias, situação
recorrente no contexto cultural brasileiro. Mais pontualmente, uma transição da mais absoluta
recepção do pensamento francês (substancializado na histeria positivista que marcou a recepção
brasileira da obra de Augusto Comte)15
, para uma alternativa apreensão do pensamento alemão,
o que apontaria para uma primeira onda de germanística entre nós. Uma segunda e
contemporânea onda de germanismo jurídico se reporta à dogmática dos direitos fundamentais e
à exploração do direito do repertório do público alemão pós-194516
.
De um ponto de vista externo, pode-se cogitar de um alargamento de possibilidades de
estudo do direito europeu, transposto e transformado, adaptado para problemas e circunstâncias
do Brasil da segunda metade do século XIX. O direito brasileiro do século XIX, quanto a suas
formas, conteúdos e ideias, é tradução e adaptação, pura e simples, dos arranjos culturais e
sociais europeus. O funcionamento do Conselho de Estado é exemplo significativo dessa
transposição17
.
13 Tem-se, substancialmente, tema de história das ideias. Metodologicamente, a questão é tratada por Michel Focault, The Order of Things, London and New York: Roudledge, 2004. Conferir também Foucault, Michel, A Arqueologia do Saber, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. Tradução do francês para o português de Luiz Filipe Baeta Neves. 14 Romero, Silvio, Literatura, História e Crítica, Rio de Janeiro: Imago, Aracaju: Universidade Federal do Sergipe, 2001, p. 182. Organização de Luiz Antonio Barreto. 15 Conferir, por todos, Lins, Ivan, História do Positivismo no Brasil, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967. 16 Conferir, Stolleis, Michael, Geschichte des öffentlichen Rechts in Deutschland, Vieter Band 1945-1990, München: Verlag C. H. Beck, 2012, Sosa Wagner, Francisco, Juristas y Enseñanzas Alemanas I- 1945-1975, Madrid: Marcial Pons, 2013, e Schlink, Bernhard, Guilt about the Past, Toronto: Anansi, 2009. 17 Conferir: Lima Lopes, José Reinaldo, O Oráculo de Delfos e o Conselho de Estado no Brasil Império, São Paulo: Saraiva, 2010. Rodrigues, José Honório, Conselho de Estado e o Quinto Poder, Brasília: Senado Federal, 1978. Torres, João Camilo de Oliveira, O Conselho de Estado, Rio de Janeiro: Edições GRD, 1965. Torres, João Camilo, A Democracia Coroada, Petrópolis: Vozes, 1964. Brasil. Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros. O Conselho de Estado e a Política Exterior do Império: Consultas da Seção dos
Pode-se averiguar, com os olhos de uma imaginária pesquisa de interesse de
investigadores europeus, o conjunto de autores citados e explorados por um pensador brasileiro
do século XIX. A par de autores absolutamente conhecidos e canônicos, a exemplo de Hegel
(1770-1831), Schopenhauer (1788-1860) e Kant (1724-1804), exaustivamente citados por Tobias
Barreto, há também autores menores, a exemplo de Ludwig Noiré (1829-1889), bem como de
autores de algum modo esquecidos, e que demandariam muita pesquisa.
Exemplo de autor esquecido na Europa, e muito citado no Brasil do século XIX, é Karl
Christian Friedrich Krause (1781-1832), filosófo idealista, de pouco importância entre os autores
e representantes do pensamento metafísico à época na qual viveu, mas que exerceu notável
influência no pensamento jurídico, especialmente por causa de seus discípulos, a exemplo de
Heinrich Ahrens (1809-1881), a quem certa feita Tobias Barreto denominou de “ilustre
fanfarrão da metafísica jurídica”18
. Krause foi conhecido especialmente na Espanha, de onde
seu pensamento, traduzido, alcançou a América Latina.
Tobias Barreto citou Hegel, por exemplo, para criticar D. Pedro II, fazendo-o, até mesmo,
de modo muito irônico. Tobias Barreto lembrou que o clássico princípio hegeliano, Was wirklich
ist, das ist vernuenftig - - o que é real é racional - -, não se aplicaria, de modo nenhum, à realeza
brasileira...19
Tobias Barreto também citou Kant, nesse passo dizendo estar agarrado ao manto
do pensador alemão, para sustentar a tese do monismo, invocando passagem do filósofo de
Koenisberg, para quem, em relação à forma dos organismos, “há sempre um resto que a
Negócios Estrangeiros: 1871-1874. Rio de Janeiro: Centro de História e Documentação Diplomática. Brasília: FUNAG, 2009. Mattos, Ilmar Rohloff de, O Tempo Saquarema, São Paulo: Editora HUCITEC, 2004. Para uma ampla visão do tempo, com coletânea de informações de primeira mão sobre conselheiros, conferir, Nabuco, Joaquim, Um Estadista no Império, 2 vol., Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. Para estudos sobre o Conselho de Estado, por juristas da época, Carvalho, José Murilo de (organização e introdução), Sousa, Paulino José de, Visconde do Uruguai, Coleção Fundadores do Brasil, São Paulo: Editora 34, 2002, pp. 219-305, bem como Kugelmas, Eduardo (organização e introdução), Bueno, José Antonio Pimenta, Marquês de São Vicente, Coleção Fundadores do Brasil, São Paulo: Editora 34, 2002, pp. 365-394. Carvalho, José Murilo, A Construção da Ordem (A Elite Política Imperial) - Teatro de Sombras (A Política Imperial), Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, pp. 355-390. Para um estudo do Conselho de Estado Francês, quanto a seu funcionamento efetivo, de um ponto de vista histórico, Gaudemet, Yves, Stirn, Bernard, Dal Farra, Thierry, e Rolin, Frédéric, Les Grands Avis du Conseil d´État, Paris: Dalloz, 2008. 18 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, Campinas: Bookseller, 2000, p. 109. 19 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, Rio de Janeiro: J. E. Salomon e Sergipe: Editora Diário Oficial, 2012, p. 98.
mecânica não explica”20
. Na América Latina tentou-se uma síntese entre várias vertentes da
filosofia europeia, a exemplo de um esforço de aproximação entre Kant e os filósofos monistas.
Tobias Barreto também invocou a autoridade de Schopenhauer para equiparar os
conceitos de vontade e de sentimento, este último da teoria monista, aquele primeiro, central no
pensamento do autor alemão acima citado21
. Na biblioteca de Tobias Barreto noticiou-se um
livro de Schopenhauer, Die Welt als Wille und Vorstellung (edição de 1873), em dois volumes,
segundo informação de Mario Losano22
, pesquisador que também deu conta de dois livros de
Kant na referida biblioteca, Kritik der praktischen Vernunf (edição de 1878) e Kritik der reinen
Vernunf (edição de 1878)23
. Tobias lia esses textos, no original, citando-os com frequência.
Entre os grandes nomes da cultura alemã, é recorrente em Tobias Barreto as citações de
Goethe (1749-1832), a exemplo da frase “o olho é um produto da luz”, no núcleo de argumento
que fundamentou a afirmação de que tudo que constituiu o homem é produto social, dado que os
órgãos nervosos do homem são um produto da sociedade, do mesmo modo que todos os órgãos
vegetais e animais seriam produto da luz24
. E também, a invocação de outro nome essencial na
cultura alemã, Wilhelm von Humboldt (1787-1835), idealizador e organizador da Universidade
de Berlim, no início do século XIX, no contexto histórico da reação prussiana à humilhação
sentida com a presença das forças napoleônicas na Alemanha. Tobias Barreto propôs o estudo do
pensamento de Humboldt, a propósito da discussão dos limites do poder público, fazendo-o
mediante proposta de lição em programa de ensino de Direito Público Universal25
.
Tobias Barreto foi muito influenciado por Ludwig Noiré, de quem possuía dois livros em
sua biblioteca26
. Trata-se de um autor menor, aspecto comentado em ensaio de Mário Losano27
20 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 56. 21 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 123. 22 Cf. Losano, Mario, cit., p. 264. 23 Cf. Losano, Mario G., Um Giurista Tropicale- Tobias Barreto fra Brasile real e Germania ideale¸ cit., p. 261. 24 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 127. 25 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 67. 26 Cf. Losano, Mario G., Um Giurista Tropicale- Tobias Barreto fra Brasile real e Germania ideale¸ cit., p. 263. Noiré, Ludwig, Die Welt als Entwicklung des Geites, Veit: Leipzig, 1874 e Grundlegung einer zeitgemässen Philosophie, Veit: Leipzig, 1875. 27 Losano, Mario, O Germanismo de Tobias Barreto, originalmente em italiano em volume das obras completas de Tobias Barreto, organizadas por Luiz Antonio Barreto, Estudos Alemães, publicado pela Editora Diário Oficial (Sergipe) e por Salomon Editores (Rio de Janeiro), 2012, pp. 273-281. Trata-se de
que reproduziu, inclusive, observação de Miguel Reale, que considerava Noiré “uma das mil
luzes gastas da cultura alemã”28
. Losano constatou que Noiré era um autor esquecido na
Alemanha, registrando que - - à época de sua investigação - - encontrara apenas uma dissertação
e algumas recensões que tratavam desse filósofo alemão, que pretendia fundir o kantismo com o
monismo de Ernst Haeckel (1834-1919)29
. Quantos outros autores alemães que referenciaram o
pensamento de Tobias Barreto não estão também hoje esquecidos na Alemanha?
Tobias Barreto citou recorrentemente Ernest Haeckel, especialmente quanto ao tema da
dificuldade de se construir uma ciência social de natureza substancialmente descritiva30
. Haeckel
era um admirador de Charles Darwin (1809-1882), que Tobias também assimilou ao estudar
Rudolf von Jhering (1818-1892). Nesse sentido, Tobias Barreto fou um veiculador do
darwinismo social no Brasil, resultado de uma admiração intelectual perene que o pensador
sergipano tinha para com autores como Haeckel e Jhering, introdutores de Darwin nas ciências
sociais aplicadas. Tobias Barreto também recebeu forte influência de Hermann Post (1839-
1895), de quem admirava a comparação entre direito e teologia: para Post, prosseguia Tobias
Barreto, o direito seria um irmão da teologia; enquanto esta última folheia a Bíblia, aquele
primeiro se limitaria a folhear o Corpus Juris Civilis31
.
Uma preocupação com todos os autores citados por Tobias Barreto redundaria em
empreitada interminável de tentativa de reconstrução de personagens, obras e itinerários. Muitos
desses autores foram por Tobias Barreto citados apenas pelos sobrenomes, sem quaisquer outras
indicações bibliográficas. Entre os vários autores alemães aludidos por Tobias Barreto,
registram-se vários nomes, a exemplo de Edmond Scherer32
, Julian Schmidt33
, Lorenz Stein34
,
Daniel Spitzer35
, Roderich Benedix36
, Bucher37
, Geffken38
, von Gerber39
, Otto Stobbe40
,
tópico de ensaio de Mario Losano, La Scuola di Recife e l’Influenza Tedesca Sul Diritto Brasiliano, separata de excerto de Mario Losano, publicano na Itália. 28 Informação colhida em Mario Losano, cit. 29 Cf. Losano, Mario, cit., tradução livre minha. 30 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 13. 31 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 51. 32 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 102. 33 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 196. 34 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 200. 35 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 212. 36 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 256. 37 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 266. 38 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., loc. cit.
Wachter41
, Franz Adickes42
, Adolfo Schmidt43
, Lazarus Geiger44
, Edward Lasker45
, Hugo
Sommer46
, Moritz Lazarus47
, Heinrich Steindhal48
, Robert von Mohl49
, Constantino Franz50
e
tantos outros. A lista também se ocuparia de autores mais conhecidos, como Hermann Post
(frequentemente citado por Tobias Barreto)51
, Theodor Mutter52
, Edward von Hartmann53
e
Ludwig Andreas Feurbach54
.
Trata-se de um volume formidável de autores, que foram estudados e citados por um
autodidata, que vivia em um ambiente cultural absolutamente diverso daquele no qual as ideias
importadas foram concebidas. Com vistas a limitar o campo da pesquisa, possibilitando que se
alcance alguma explicação para os temas aqui colocados, é que se tem foco, objetivamente, nos
livros alemães de Tobias Barreto, e não em todos os autores citados pelo pensador sergipano. Na
análise do acervo de Tobias Barreto, a pesquisa se preocupa com alguns dos livros que tratam de
assuntos jurídicos, ou de matérias que tenham alguma conexão com os problemas jurídicos que
Tobias Barreto enfrentou em sua vasta produção.
Por isso, e de um ponto de vista mais estreitamente pontual, isto é, jurídico, deve-se
cuidar dos autores que Tobias Barreto contava em sua biblioteca, alguns canônicos (Rudolf von
Jhering, Rudolf von Gneist, Thomas Mommsen, Johann Caspar Bluntschli), alguns bem
conhecidos (Berne, Holtzendorff, Stövös, Mutter), alguns menos conhecidos (Stricker,
Bethmann-Hollwerg, Lammash), outros hoje pouquíssimo lembrados (Adickes, von Buri, Dahn,
Hay, Meyer, Rosshirt, Rubo, Fröbel, Schütze, Stobbe, Böcking, Bolgiano, Scwarze, Leonhard
Freund, William Lagenbeck, Eugen Tuhn), o que sugere também uma condição aleatória e
39 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 281. 40 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., loc. cit. 41 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 282. 42 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 284. 43 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 32. 44 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 41. 45 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 47. 46 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 53. 47 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 55. 48 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., loc. cit. 49 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 64. 50 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 65. 51 Entre outros, Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p.77. 52 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 80. 53 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 199. 54 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 46.
randômica na seleção de autores e obras, especialmente porque essa seleção fora feita por um
autodidata.
Trata-se de uma biblioteca exuberante, especialmente para os padrões e conjuntura de
vida de Tobias Barreto. Tobias Barreto contava em seu acervo, por exemplo, com dois volumes
da obra de Karl Marx (1818-1883)55
. Em tema de ciências sociais, contava também com o livro
de Heinrich von Treitschke (1834-1896)56
, cujo antissemitismo Tobias Barreto criticou
veementemente57
.
A recepção de autores europeus no contexto latino-americano talvez não seja indicativo
seguro da importância de alguns desses autores. Porque eventualmente esquecidos na Europa, há
dúvidas se ainda poderia se reconhecer esses trabalhos, na medida em que raramente citados ou
discutidos em ambiente não europeu. Essa premissa, no entanto, revela alguma crueldade para
com as escolhas bibliográficas de Tobias Barreto, dado que qualquer avalição conta com o
benefício do retrospecto. Bem entendido, a preocupação do trabalho é com as obras jurídicas da
biblioteca de Tobias Barreto, ou com algumas obras que tenham alguma relação direta com
temas do direito.
Por outro lado, o que mais relevante, aos olhos latino-americanos, é a amplitude de
autores e leituras de Tobias Barreto, que se aproximou de uma tradição cultural que não era
dominante no Brasil do século XIX. Além do que, há alguma curiosidade em torno dos autores
alemães que Tobias Barreto citou. Quem são eles? Em princípio, pode-se admitir que o leitor
contemporâneo de Tobias Barreto desconheça a maioria dos autores alemães por ele citados.
Provavelmente, à época da publicação dos primeiros textos do autor sergipano, a realidade não
deveria ser distinta, o que se refletiria em discussões, polêmicas e aulas de Tobias Barreto, na
medida em que citava autores e redimensionava ideias desconhecidas no Brasil. Deve-se
reconhecer que a exuberância de autores alemães que citava lhe garantia uma vantajosa posição,
do ponto de vista das armas da retórica.
Tobias Barreto vinha de família humilde, seu pai fora amanuense, ganhava pouco.
Estudou direito em Recife. Aprendeu sozinho a língua alemã, o que foi talvez seu maior orgulho.
55 Na indicação de Vamireh Chacon: Marx, Karl, Das Kapital, Kritik der politischen Oekonomie, Hamburg: Otto Meissner, 2 volumes, 1883-1885. 56 Na indicação de Vamireh Chacon: Treistsche, Heinrich von, Historische und politische Aufsaetze, Leipzig: G. Hirzel, 1871. 57 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, São Paulo: Bookseller, 2000, especialmente, conferir o ensaio Variações Antisociológicas.
Em 1870 comprou um dicionário de alemão e uma gramática da língua que então começou a
estudar. Encomendou de seu livreiro o primeiro livro alemão que leu na vida: Einleitung in die
Geschichte des Volkes Israels, uma história do povo de Israel, de autoria de Heinrich Ewald
(1803-1875)58
, publicado em Goettingen, em 186459
. Esse livro encontra-se hoje na biblioteca da
Faculdade de Direito de Recife60
. É uma relíquia.
Os porquês da escolha desse primeiro livro em alemão que Tobias Barreto comprou é um
fato relevante para o argumento aqui sustentado. Não há um trato desse tema específico, por
parte de seus biógrafos. Um catálogo disponível pelo livreiro, o tempo de espera até a chegada
dos livros, preços, referências tomadas em leituras feitas, são circunstâncias que sugerem um
grande número de hipóteses, em relação às quais só se poderia especular. Para uma investigação
com olhos europeus essas questões também são relevantes, porquanto indicam pistas de como as
transposições de ideias possam ser processadas.
Com base nos dados do acervo de livros alemães de Tobias Barreto pode-se especular
também sobre a origem dos livros que citava. Há uma passagem emblemática em seus escritos,
na qual mencionou que tinha acesso a uma revista alemã, Anais Prussianos, que veiculava
ensaios e textos de autores que recorrentemente lia. Nessa passagem, Tobias Barreto está
noticiando e explicando a revista para um contendor, em meio a um debate, o que sugere que
muitos dos autores que citava poderiam decorrer da leitura dessa revista, de onde os conhecia, ou
de onde se orientava para optar pelos livros que comprava. Segue a passagem:
“(...) Anais Prussianos é o nome de uma revista científica e literária que se publica em
Berlim, desde 1857, em fascículos mensais, formando anualmente dois volumes de 500 a
600 páginas cada um e já contando, por conseguinte, no ano que corre, 62 volumes. Tem
como diretor e principal redator o grande Treitschke, professor universitário, e nela tem
nomes como os de Michael Bernays, Hermann Grimm, Henrique Honberger, Theodor
Mommsen, Rudolf Gneist e muitos outros (...)”61
Há uma outra passagem, que também pode auxiliar nessa questão, na qual Tobias Barreto
se referia a uma recensão crítica a um livro de Rudolf von Gneist (1816-1895), que fora
58 Heinrich Ewald estudou Teologia e Línguas Antigas na Universidade de Göttingen. 59 Ewald, Heinrich Einleitung in die Geschichte des Volkes Israels, Goettingen: Dietrichsche Buchlandlung, 1864. Esse é o exemplar da biblioteca de Tobias Barreto, a primeira edição do livro é de 1843. 60 Esse livro também é indicado no catálogo da exposição dos 170 anos do nascimento de Tobias Barreto. Catálogo da Mostra Bibliográfica da Exposição Tobias Barreto: as marcas de um homem (170 anos de nascimento- 1839-1889). Recife: Faculdade de Direito, 2009. 61 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 255.
publicada justamente nessa revista alemã acima mencionada, Preussiche Iahrbucher; a revista
indicada era de 188362
. Essa revista, em princípio, poderia ter sido uma fonte direta dos textos
lidos, eventualmente resenhados, bem como, uma pista indicativa de livros posteriormente
adquiridos.
Há outra passagem na qual Tobias Barreto apresenta a opinião de um autor alemão (Hugo
Sommer) colhida da referida revista Anais Prussianos, que apresentava como argumento na
crítica que então fazia ao positivismo63
. A indicação da revista, como fonte da citação
apresentada por Tobias Barreto, pode-nos permitir pensar que boa parte das citações alemãs do
pensador sergipano originava-se da leitura desse tipo de periódico.
Nem todos os autores citados por Tobias Barreto constavam de sua biblioteca. Por
exemplo, Mario Losano chamou a atenção para o fato de que Tobias Barreto não possuía o livro
de Jhering sobre a jurisprudência da vida cotidiana, o qual traduziu parcialmente e comentou.
Segundo o autor italiano que pesquisou a biblioteca de Tobias Barreto, o pensador sergipano
teria provavelmente utilizado uma edição desse livro, de 1877, que Losano encontrou na
Faculdade de Direito do Recife64
. Assim, além da biblioteca pessoal, Tobias Barreto contava
com outras fontes de livros alemães.
Outro ponto que orienta a investigação é a primeira fase do germanismo jurídico que se
viveu no Brasil na segunda metade do século XIX65
. Pode-se mencionar, assim, a importância de
estudo de Gilberto Freyre, que explorou - - entre outros - - o teuto-pernambucanismo que se
protagonizou na Escola do Recife, e na trajetória de Tobias Barreto e de Silvio Romero66
, em
estudo interessantíssimo sobre o germanismo na cultura brasileira67
, especialmente no contexto
cultural do Recife, a propósito do que denominou de um estudo “em torno de alguns aspectos
62 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 234. 63 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, Campinas, Bookseller, 2000, p. 53. 64 Cf. Losano, Mario, cit., p. 254. 65 O assunto também foi exaustivamente tratado, no que se refere à influência alemã na construção da dogmática do direito privado brasileiro, por Otávio Luiz Rodrigues Júnior, que se ocupou do papel do BGB-Bürgerliches Gesetzbuch, o Código Civil Alemão, bem como de juristas como Gustav Hugo, Friedrich Carl Savigny e Rudolf von Iehring no contexto conceitual que orientou a redação de nosso Código Civil de 1916. Rodrigues Júnior, Otávio Luiz, A Influência do BGB e da Doutrina Alemã no Direito Civil Brasileiro do Século XX, Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, v. 938, p. 79-155, dez. 2013. 66 A chamada Escola de Recife foi estudada também por Chacon, Vamireh, Da Escola de Recife ao Código Civil, Rio de Janeiro: Organização Simões Editora, 1969. 67 O tema também pode ser lido em Bragança, Dom Carlos Tasso de Saxe-Coburgo, Dom Pedro II na Alemanha- uma amizade tradicional, São Paulo: Senac, 2014.
das relações do Brasil com a cultura germânica no decorrer do século XIX68
”. Gilberto Freyre
colecionou recortes de jornal, que usou como linha argumentativa.
Na segunda metade do século XIX foi muito grande o prestígio de autores alemães entre
os intelectuais do núcleo da Escola do Recife69
. Esse prestígio deve-se de alguma forma à
obsessão que alguns membros dessa escola tinham para com o pensamento jurídico alemão.
Começava-se a se discutir no Brasil alguns temas debatidos na Alemanha, a exemplo de
Naturrecht, Positivismus, historiche Schule e Pandektenrecht, para usar algumas expressões da
obra monumental de Uwe Wesel70
. Tobias Barreto liderou uma forte resistência as influências
francesas, até então prevalecentes. Insistiu na alternativa germânica como ferramenta
metodológica importantíssima para a compreensão da realidade brasileira. Alguns temas por
Tobias Barreto explorados, e que indicam as linhas gerais de seu pensamento, mais a frente serão
considerados, com o objetivo de se apontar a influência alemã no pensador sergipano.
Além disso, a tendência de se seguir formulas alemãs de direito privado, em detrimento
de modelos franceses até então privilegiados, foi um dos resultados da atuação da referida Escola
de Recife. Por exemplo, Clóvis Beviláqua, o autor do Código Civil de 1916, era também
germanista, amigo próximo de Tobias Barreto. Foi Clóvis Beviláqua, como visto no início, quem
teria articulado a compra da biblioteca de Tobias Barreto por parte da Faculdade de Direito do
Recife.
Essa resistência à cultura francesa, com uma decorrente aproximação com a cultura
alemã, é fato apreendido por Mario Losano, para quem, “o ano de 1870 e a batalha de Sedan
marcam momento no qual a órbita ascendente da estrela alemã cruza e supera a órbita da
estrela francesa (...) essa mudança também se verificou fora do continente europeu”.71
Essa data
é fundamental quanto se pesquisa a recepção do pensamento alemão em várias partes do mundo.
68 Cf. Freyre, Gilberto, Nós e a Europa Germânica, Rio de Janeiro: Grifo, 1971. 69
Em linhas gerais, pode-se elencar a Escola de Recife, da forma que segue, com base em Marcelo Déda Chagas, em enumeração sujeita a controvérsias: Tobias Barreto, Silvio Romero, Artur Orlando, Clóvis Beviláqua, Fausto Cardoso, Castro Alves, Celso de Magalhães, Vitoriano Palhares, Araripe Junior, Capistrano de Abreu, Franklyn Távora, Carneiro Vilela, Inglês de Sousa, Domingos Olímpio, Luis Guimarães, Plínio de Lima, Santa Helena Magno. A renovação da cultura brasileira foi um tema comum para esse grupo tão heterogêneo. Cf. Chagas, Marcelo Déda, Fortuna Crítica de Tobias Barreto, in Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., pp. 7-9. 70 Wesel, Uwe, Geschichte des Rechts in Europa- von den Griechen bis zum Vertrag von Lissabon, München: Verlag C. H. Beck, 2010, pp.509-512. 71 Losano, Mario, cit., tradução livre minha.
De um ponto de vista mais conceitual, deve-se considerar também que a história do
direito americano, do direito latino-americano, e do direito brasileiro em particular, são
narrativas de uma recepção e de uma adaptação72
. O estudo do direito europeu transcende às
fronteiras geográficas de uma Europa idealizada; é esta a tese de Thomas Duve73
, para quem a
história do direito europeu deve ser vista a partir de uma perspectiva global.
Ainda que o espaço geográfico do direito seja um território tradicionalmente definido,
também há espaços imateriais, porquanto o território nem sempre é o espaço necessário para a
efetivação de um determinado arranjo jurídico74
; é o que se dá, entre outros, com a expansão do
direito europeu para o Brasil. Exemplificando: assim como a ordem e a organização medievais
europeias se transportaram e se realizaram no México, onde teriam de algum modo prevalecido
até o século XIX75
, a ordem jurídica medieval, tratada também por Paolo Grossi, de alguma
forma se realizou no Brasil, que recebeu o modelo português das Ordenações. As instituições se
transferem, pelo que, metaforicamente, a possibilidade de concebermos que detém um espírito,
como defendido por Antonio Pedro Barbas Homem.
Nossa recorrência na recepção e na adaptação das ideias estrangeiras sugere a
inexistência de um pensamento jurídico brasileiro que seja dotado de alguma originalidade76
. Foi
o próprio Silvio Romero, amigo e aliado incondicional de Tobias Barreto, quem observou que
“A nação brasileira não tem, pois, em rigor uma forma própria, nem intelectual (...) Todas as 72 Conferir, nesse tema, Horwitz, Morton, The Transformation of American Law, New York: Oxford University Press, 1994, Clavero, Barlome, Institucion Historica del Derecho, Madrid: Marcial Pons, 1992, Estrada, Liniers de, Manual de Historia del Derecho- Español- Indiano- Argentino, Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1997, Díaz, Alfonso Cano, e Cifuentes, José Santos Luis, Leciones de Historia de Derecho Argentino, Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1992, Martins Junior, Isidoro, Historia do Direito Nacional, Brasília: Imprensa Nacional, 1979, Alecrim, Otacílio, Ideias e Instituições do Império- Influências Francesas, Brasília: Senado Federal, 2011; Aguilera, Bruno Barchet, Introducción Juridica a la Historia del Derecho, Madrid: Editorial Civitas, 1996. 73 Duve, Thomas, Von der Europäischen Rechtsgesichichte zu einer Rechtsgesichichte Europas in globalhistorischer Perspektive, in Rechtsgeshichte-Legal History, RG 20 (2012) - 18-71. 74 Conferir Grossi, Paolo, Primeira Lição sobre Direito, Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 65 e ss. Tradução de Ricardo Marcelo Fonseca. 75 É a tese de Jérôme Baschet, para quem arranjos institucionais da idade média europeia persistiram no México até o século XIX. Baschet, Jérôme, A civilização feudal- do ano mil à colonização da América, Rio de Janeiro: Globo, 2006. Tradução de Marcelo Rede. O inspirador e prefaciador desse livro desconcertante é Jacques Le Goff. 76 Não é essa, no entanto, a avaliação de Wilson Martins, para quem a exuberância quantidade da produção cultural brasileira revelaria também ambiciosa criatividade. Conferir, para o tempo aqui estudado, Martins, Wilson, História da Inteligência Brasileira, Volume V, 1897-1914, Ponta Grossa: Editora da Universidade Estadual de Ponta Grossa, 2010.
nossas escolas, numa e noutra esfera, não tem feito mais em geral do que glosar, em clave
baixa, as ideias formadas na Europa, às vezes em segunda ou terceira mão”77
. Para esse autor,
“o povo brasileiro não pertence ao número de nações inventivas; tem sido, como o português,
organicamente incapaz de produzir para si”78
. Silvio Romero de certa forma comprovava a
própria assertiva, na medida em que suas referências a autores estrangeiros revelaram-se
intermináveis79
, o que confirma um certo sentimento patológico de província, recorrentemente
atacado por uma tentativa de formulação de um pensamento mais orientado para problemas
nacionais80
.
A questão da recepção das ideias estrangeiras foi colocada de um modo mais radical por
Flávio Kothe, professor na Universidade de Brasília, para quem a recepção da literatura europeia
pela literatura brasileira se deu em forma de paródias - - referia-se também ao germanismo, a
uma Weltliteratur -, nítidas em Gonçalves Dias e em Castro Alves81
. Essa recepção atendeu a
destinatários locais; não se pensou ou se escreveu para europeus, porque a eles nada tínhamos a
dizer ou a acrescentar82
.
O conceito de Europa é variável, dotado de plasticidade que permite a concepção
imaginária de fronteiras móveis e flexíveis. Paolo Grossi chamou a atenção para o fato de que
durante muito tempo o conceito de Europa foi marcado por uma compreensão exclusivamente
geográfica. A difusão do humanismo e a influência de Erasmo de Roterdã, prossegue Paolo
Grossi, construíram um significado mais complexo definidor de Europa, carregado de valores
espirituais e culturais83
.
A definição mesma de Europa, do ponto de vista da construção de uma tradição
normativa e filosófica, é problema cujas soluções variam entre os vários historiadores do direito
77 Romero, Silvio, cit. loc. cit. 78 Romero, Silvio, cit., p. 183. 79 Em livro conhecido de Filosofia do Direito, Silvio Romero comentou e reproduziu ideias de Darwin, Haeckel, Huxley, Gobineau, Renan, Kant, Noité e Hartmann. Conferir, Romero, Silvio, Ensaio de Filosofia do Direito, São Paulo: Landy, 2001. 80 É o tema que dá o pano de fundo para bem escrita biografia de Sílvio Romero. Conferir Rabello, Sylvio, Itinerário de Sílvio Romero, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. 81 Cf. Kothe, Flávio R., O Cânone Imperial, Brasília: Editora da UnB, 2000, pp. 165 e ss. 82 Cf. Kothe, Flávio R., cit., p. 314. 83 Cf. Grossi, Paolo, L´Europa del Diritto, Roma-Bari: Laterza, 2007, p. 4.
europeu, a exemplo de Antonio Manuel Hespanha84
, Paolo Grossi85
, Antonio Padoa Schioppa86
,
John Gilissen87
, Raoul van Caenegen, António Pedro Barbas Homem88
e Franz Wieacker89
.
Ponto de partida para a construção dos valores jurídicos da sociedade ocidental90
a ideia
de Europa é marcada também, e as vezes preponderantemente, pelo reconhecimento do direito
como forte elemento de identidade cultural91
, em permanente processo de construção92
, com
origens na Escola de Irineu (1055-1130)93
e na construção do mito pedagógico da Escola de
Bolonha,94
passando-se por Bartolo de Sasoferrato (1313-1357)95
.
84 Entre outros, conferir, Hespanha, Antonio Manuel, Cultura Jurídica Europeia, Mira-Sintra: Europa-América, 2003. 85 Grossi, Paolo, A Ordem Jurídica Medieval Europeia, São Paulo: Martins Fontes, 2014. Tradução de Denise Rossato Agostinetti. Revisão técnica de Ricardo Marcelo Fonseca. 86 Schioppa, Antonio Padoa, História do Direito na Europa- da Idade Média à Idade Contemporânea, São Paulo: Martins Fontes, 2004. Tradução de Marcos Marcionilo e Silvana Cobucci Leite. 87 Gilissen, John, Introdução História ao Direito, Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1995, tradução de Antonio Manuel Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros. 88 Barbas Homem, Antonio Pedro, O Espírito das Instituições- um Estudo de História do Estado, Coimbra: Almedina, 2006. 89 Wieacker, Franz, Privatrechtsgeschichte der Neuzeit, Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1952. Há tradução para o português. Conferir, História do Direito Privado Moderno, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. Tradução de A. M. Botelho Hespanha. 90 Cf. Stein, Peter and Shand, John, Legal Values in Western Society, Edinburgh: Edinburgh University Press, 1974. 91 Cf. Coing, Helmut, Das Recht als Element der Europäischen Kultur, Heildelberg: Verlag Lambert Schneider, 1983. 92 Cf. Helleringer, Geneviève, and Purnhagen, Kai, Towards a European Legal Culture, Baden-Baden: Nomos, 2014. 93 Irineu foi professor em Bolonha, de cuja escola é considerado o fundador. Deu início à escola dos glosadores, que consistiam em comentários explicativos e interpretativos dos textos do Corpus Juris Civilis. Participou da recuperação de muitas fontes perdidas, ou esquecidas. Protagonizou o chamando renascimento jurídico medieval. Foi considera como o lucerna iuris, isto é, a luz do direito. Seu magistério inaugurou as ligações entre o legado do direito romano e as universidades. Entre seus discípulos contam-se Búlgaro, Matin Sosia, Ugo de Ravenate e Jacob. Cf. Domingo, Rafael (org.), Juristas Universales, Madrid e Barcelona: Marcial Pons, 2004, pp. 309 e ss. 94 Cf. Bellomo, Manlio, L’Europa del Diritto Comune, Roma: Il Cigno Galileo Galilei Edizioni di Arte e Scienza, 1994, pp. 125 e ss. 95 Bartolo de Sasoferrato é reputado como o grande jurista de todos os tempos, de onde a expressão “nemo bonuns iurista nisi bartolista”. Estudou e lecionou em Perúgia e em Pisa. Sua opinião era a preferida em face das opiniões dos demais juristas. Uma lei espanhola de 1427 e uma lei portuguesa de 1433 dispôs que na hipótese de opiniões divergentes deveria prevalecer a opinião de Bartolo. Essa regra foi reproduzida nas Ordenações Filipinas de 1603. O bartolismo tornou-se uma corrente dominante em cátedras e tribunais. Centrou-se na compreensão de que os direitos nascem dos fatos, “ex facto oritur ius”. Foi contestado na renascença, quando seus comentários foram considerados uma profanação da antiguidade, que deveria ser restaurada, pelo que o bartolismo passou a significar um aspecto
Com base em Thomas Duve, que dirige o Max-Planck Institute für Europäische
Rechtsgeschichte (Instituto Max-Planck de História do Direito), em Frankfurt, Alemanha, pode-
se argumentar que há aspectos do direito europeu a serem pesquisados na também imaginária
periferia do território capitalista. Há uma tradição europeia inventada e transposta, a exemplo do
que europeus impuseram na África colonial96
. Pode-se argumentar, por analogia, que situação
parecida ocorreria com os modelos de transposição linguística.
Exemplifico com a possibilidade de estudos da língua alemã (com foco nos descendentes
de alemães no estado de Santa Catarina), de língua inglesa (com observação nos descendentes de
egressos da guerra civil norte-americana no interior do estado de São Paulo), ou por estudos de
língua japonesa (com pesquisa nos descendentes de japoneses no interior dos estados de São
Paulo e do Paraná). A par do congelamento de uma estrutura linguística transposta, há um
simultâneo desenvolvimento dos modos de fala, marcado por influências e fatores locais.
Com o direito e sua teorização pode-se admitir a mesma situação. O direito transposto é,
na essência, um direito transformado pelas condições locais. Essa ideia aqui colocada é
recorrente no pensamento da Escola Histórica, principalmente em Friedrich Karl von Savigny
(1779-1871) e em Jacob Grimm (1785-1863), para quem o desenvolvimento de uma linguagem
nacional teria seu equivalente no desenvolvimento de um direito também nacional.
De um modo mais contemporâneo pode-se confirmar a assertiva com a constatação de
que vários arranjos institucionais que recepcionamos foram substancialmente alterados ou
acomodados. O amigo da corte tornou-se amigo da parte. A medida provisória, emprestada do
direito italiano, que é parlamentarista, quase que se equipara entre nós com o decreto-lei, figura
típica de um modelo presidencialista e autoritário.
O direito europeu expandiu-se na mesma proporção e ao longo da própria rota da
expansão comercial e industrial do velho continente. Esse direito europeu, marcado pela
racionalidade, é traço característico do ocidente, de acordo com conhecida formulação de Max
Weber (1864-1920), a partir de quem uma tradição historiográfica sugere equivalência entre
decadente dos comentários ao legado romano. Cf. Domingo, Rafael (org.), Juristas Universales, cit., pp. 524 e ss. 96 Cf. Ranger, Terence, The Invention of Tradition in Colonial Africa, in Hobsbawn, Eric e Ranger, Terence, The Invention of Tradition, New York: Cambridge University Press, 2007, pp. 211-262.
racionalidade e modernidade, instâncias que dão a forma do direito europeu97
. Para Thomas
Duve, nesse mesmo tema,
“O conceito de tradição jurídica, a crença em um progresso contínuo do direito, sua
capacidade de expansão ao longo de gerações e tempos, são fatos tidos como
distintamente ocidentais. “Europa”, como hoje se enfatiza não apenas no diálogo
intercultural ou, o “Ocidente”, são categorias que produziram espectro amplo de
conquistas culturais espalhadas pelo mundo: segurança jurídica, direitos humanos,
distinções entre direito e religião, técnicas de codificação, etc.”98
Os limites dessa definida Europa, no entanto, são problematizados pela historiografia
jurídica contemporânea, a exemplo do que se constata nos trabalhos do mencionado Thomas
Duve, para quem, "há uma necessidade de que estudemos a história da Europa com perspectivas
globais, com respeito à justiça histórica, a uma melhor historiografia e como pré-condição para
um diálogo global sobre a justiça”99
. Essa perspectiva global aconselha uma leitura da Europa
tradicionalmente imaginada por meio de outros espaços, a exemplo da América Latina.
A biblioteca alemã de Tobias Barreto é campo temático que permite ao observador
europeu uma apreensão alternativa da historicidade de seus arranjos institucionais, ainda que se
corra o risco de uma imagem distorcida de seu processo de recepção. Altera-se a moldura
espacial de pesquisa do direito europeu, podendo-se tentar captar fórmulas de recepção, no caso,
do pensamento alemão, a partir de sua pregação e difusão no nordeste brasileiro. O estudo das
ideias de Tobias Barreto, nesse mesmo conjunto, também propicia amplo campo de
investigações. Faz-se um pouco do que a historiografia registra como a micro-história, na
concepção metodológica de Carlo Ginzburg100
.
Tobias Barreto é provavelmente o jusfilósofo brasileiro que conta com o maior nível de
reconhecimento por parte dos autores estrangeiros. Está entre os cinco juristas brasileiros
biografados no dicionário de Michael Stolleis, importantíssimo historiador do Direito que leciona
em Frankfurt, Alemanha, na Johann Wolfgang Goethe-Universität. Stolleis colabora também no
97 Cf. Coutu, Michel, Max Weber et les rationalités du droit, Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence e Laval: Les Presses de l’Université Laval, 1995. 98 Duve, Thomas, European Legal History- Global Perspectives- Working paper for the Colloquium “European Normativity- Global Historical Perspectives”, Max-Planck-Institute, September, 2nd- 4th, 2013, p. 1. Tradução livre minha. 99 Cf. Duve, Thomas, cit., p. 3. 100 Cf. Serna, Julio e Pons, Anaclet, Cómo se escribe la microhistória- ensayo sobre Carlo Ginzburg, Madrid: Cátedra, 2000.
Instituto Max-Planck de História do Direito101
, instituição que dirigiu. Entre vários de seus
trabalhos, de superlativo valor conceitual, Stolleis organizou um dicionário que sintetiza a vida e
a obra de grandes juristas, da antiguidade ao século XX102
. Trata-se de publicação em língua
alemã, que chega a 700 páginas, e que contempla pensadores antigos (Cícero), medievais
(Bartolo de Sasoferrato), modernos (Belarmino, Beccaria) e mais recentes (Cardozo, Emílio
Betti).
Há cinco juristas brasileiros biografados nessa valiosa obra de referência, circunstância
que revela um pouco da percepção que os europeus têm sobre o pensamento jurídico brasileiro.
Pode haver unanimidade da escolha, que bem representa referências mais marcantes de nossa
construção jurídico-filosófica. São poucos nomes indicativos de nossa cultura jurídica, talvez,
entre outros motivos, porque nossa tradição é de compilação e de fusão.
Apresentamos muito pouco de genuíno. Tobias Barreto já denunciava essa situação,
escrevendo que “os brasileiros, não somos pensadores, nem no amplo, nem no estreito sentido
da palavra (...) não sabemos, sequer, aproveitar-nos largamente dos produtos alheios (...) falta-
nos sobremodo aquele talento, aauela força de assimilação que muitas vezes susbtitui com
vantagem o próprio gênio criador”103
. Tem-se, no limite, uma transposição de instituições e de
ideias europeias (e algumas norte-americanas) para nossa conjuntura, em interessante processo
de transposição conceitual e normativa, tema de profundo estudo de Mário Losano104
.
Rui Barbosa (1849-1923), o próprio Tobias Barreto, Clóvis Beviláqua (1859-1944),
Teixeira de Freitas (1816- 1883) e Pontes de Miranda (1893-1979) são os juristas brasileiros que
Michael Solleis inseriu em seu dicionário. Os verbetes são assinados por Wolf Paul, professor na
Goethe Unviersität, em Frankfurt. O autor dos verbetes manejou bem as fontes, compondo bem
arranjados painéis.
Rui é referido como constitucionalista, legislador, político, advogado e publicista. Faz-se
menção a sua trajetória (aluno em Recife, e mais tarde em São Paulo), bem como a seu
protagonismo político, especialmente como Ministro da Fazenda do primeiro governo
republicano provisório que conhecemos; trata-se do governo provisório de Manuel Deodoro da
101 Esse instituto foi fundado em 1964 por Helmut Coing, respeitado historiador do direito. 102 Stolleis, Michael (direção), Juristen- Ein Biographisches Lexikon- von der Antike bis zum 20. Jahrhundert, München: Beck, 2001. 103 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., pp. 155-156. 104 Losano, Mário, Os Grandes Sistemas Jurídicos, São Paulo: Martins Fontes, 2007. Tradução de Marcela Varejão.
Fonseca (1889-1891). Mereceu registro também sua anglofilia, qualificada e comprovada pela
influência que exerceu na construção da constituição republicana de 1891. Há também menção à
discussão que Rui travou contra Clóvis Beviláqua, por ocasião da redação do primeiro Código
Civil brasileiro, finalmente aprovado em 1916. Questões de pormenor, de âmbito gramatical,
suscitaram interessante duelo.
Tobias Barreto é reverenciado como germanista. Menciona-se sua influência na
Faculdade de Direito do Recife e o amplo conjunto de discípulos que formou. Indica-se também
as influências alemãs que Tobias recebeu, a exemplo de Kant, Haeckel, Hartmann, Post e
Jhering. Não se menciona Ludwig Noiré, mentor intelectual de Tobias, kantiano hoje quase
esquecido na Alemanha, como o próprio Mario Losano havia observado, na importante obra que
escreveu sobre Tobias Barreto.
Clóvis Beviláqua é retratado como civilista que propagou o culturalismo da Escola do
Recife, herdeiro intelectual de Tobias Barreto e de Silvio Romero. Enfatizou-se sua atuação na
redação de nosso primeiro Código Civil. Há referência à influência que a pandectística alemã
exerceu sobre sua obra. Teixeira de Freitas é indicado como romanista, elaborador de um projeto
de Código Civil, e é apontado também como advogado. Seu Esboço de Código Civil é elogiado,
no sentido de que sistematizou os vários pontos esparsos de direito privado que compunham
nossa tradição, com origem nas Ordenações.
De igual modo, há notícias do Vocabulário Jurídico que Teixeira de Freitas organizou.
Pontes de Miranda é rotulado como humanista, filósofo, mentor do juspositivismo brasileiro. Há
menção a boa parte de seus livros, inclusive de epistemologia (O problema fundamental do
conhecimento, que é um livro de 1937). Sua imensa obra de direito privado é também objeto de
respeitosa alusão.
Tobias Barreto também é estudado em importante enciclopédia espanhola de pensadores
do direito, Juristas Universales105
, bem como no Dicionario critico de juristas espanoles,
portugueses y latinoamericanos106
; nesse último, se enfatizam as influências que Tobias Barreto
recebeu de Ernest Haeckel e de Ludwig Büchner. Tobias Barreto figura como significativo
jurista brasileiro em várias publicações internacionais.
105 Domingo, Rafael (org.), Juristas Universales, Madrid e Barcelona: Marcial Pons, 2004, pp. 466 e ss. Clóvis Beviláqua é também mencionado e estudado nesse trabalho, pp. 728 e ss. 106 Pelaiéz, Manuel J. (ed.), Dicionario critico de juristas espanoles, portugueses y latino americanos, Zaragoza y Barcelona: Cometa, 2005, p. 135.
Há uma entrevista de Mario Losano, conduzida por Cesar Antonio Serbena, junto à
Universidade Federal do Paraná, que dá indicativos dos porquês da curiosidade de um intelecutal
europeu por um autor brasileiro do século XIX107
. Conta Losano, que chegou ao Brasil em 1971,
para lecionar e pesquisar temas de informática jurídica. Na ocasião, pretendia compreender um
pouco do pensamento local, como condição que fixou para o andamento de suas pesquisas e
aulas. Por influência de Miguel Reale, que foi quem lhe sugeriu que estudasse a obra de Tobias
Barreto, Losano conheceu e estudou uma primeira edição das obras completas do pensador
sergipano, datada de 1925.
Losano, que também é destacado germanista108
, encontrou, na obra de Tobias, elos que
vinculam a expansão da tradição europeia pelo continente americano, em contexto que confirma
a tese de Thomas Duve, para quem não carecemos de uma história total, isto é, seria melhor nos
preocuparmos com histórias locais, substancialmente abertas para perspectivas globais. Tobias
Barreto é capítulo importante de uma história local, que se ajeita também a uma perspectiva
global. O estudo de Mario Losano, nesse sentido, oferece-nos uma perspectiva bem ampla para
um tema que tínhamos como marcadamente nosso.
A partir do estudo de Tobias Barreto, com foco em sua biblioteca alemã, cogita-se de
uma nova grade analítica, inspiradora de questões interessantes. Afinal, como Tobias Barreto
selecionava os livros alemães que comprava e estudava? Fazia-o intuitivamente? Dependia de
catálogos, vendedores, importadores? Vivendo em permanente estado de necessidade material,
que fatores econômicos condicionaram suas opções? Os biógrafos e estudiosos da obra de Tobias
Barreto, em fartíssima bibliografia109
, não exploraram adequadamente essas dúvidas, tampouco
formuladas.
107 A entrevista encontra-se publicada na Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, vol. 59, n. 2, pp. 203-209, 2014. 108 Conferir, entre outros, Losano, Mário, Il Centenario della morte di Rudolf von Jhering (1818-1892), in Quaderni Fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno, 21 (1992), pp. 89-96. 109 Entre outros, Amado, Gilberto. Tobias Barreto. Ariel, Rio de Janeiro, 1934. Barreto, Luiz Antônio. Tobias Barreto, a Abolição da Escravatura e a Organização da Sociedade. Sociedade Editorial de Sergipe. Recife, 1988. Bevilacqua, Clóvis. Tobias Barreto. In: Juristas Filósofos. Livraria Magalhães, Salvador, 1897. Campos, Virgílio. Tobias Barreto e a Revolução Jurídica Alemã: a influência de Von Jhering no Pensamento Tobiático. Recife, 1988. Cortes, Paulo Campos. Tobias Barreto, Antologia de Idéia, uma Revelação. Editora Radial, Rio de Janeiro, 1974. Cortes, Paulo Campos. A concepção Filosófica de Tobias Barreto. Rio de Janeiro, 1980. Dantas, Paulo. Tobias Barreto. 2ª Ed. Revista e Ampliada. São Paulo: 1952. Ferreira, Luis Pinto. Tobias Barreto e a Nova Escola de Recife. Imprensa Industrial, Recife, 1953. Gama, Affonso Dionyzio. Tobias Barreto. Monteiro Lobato, São Paulo, 1925. Lima, Hermes. O pensamento Vivo
Do ponto de vista metodológico, essas questões podem ser aplicadas em todos os
exemplos de transposição de ideias e de arranjos institucionais. Sustenta-se que há um
componente absolutamente randômico que também rege escolhas que redundam em
transposições e recepções de ideias, autores, livros e teorias. A construção e a história da
biblioteca de Tobias Barreto é atraente exemplo desse assertiva. É também um ponto de partida
para uma revisão rápida de suas ideias centrasis, bem como dos traços mais marcantes de sua
agitada personalidade.
O que se pretende no presente trabalho é a obtenção de alguma informação em torno de
autores alemães da biblioteca de Tobias Barreto, alguns esquecidos, especialmente para o leitor
brasileiro. Pretende-se também explorar aspectos do trânsito do pensamento europeu para a
América Latina, bem como algumas ideias e de traços da personalidade de Tobias Barreto.
II) A personalidade e as ideias centrais de Tobias Barreto
Tobias Barreto é o núcleo comum e originário de um pensamento germanista renovador
no Brasil. Defendeu a cultura e o pensamento alemães, combatendo as influências francesas que
havia no Brasil do século XIX. Singular personagem de nossa história cultural, Tobias Barreto
provocou os defensores de Augusto Comte (1798-1857) e os admiradores do pensamento
francês, ao afirmar que “os pensadores alemães, em quase todos os domínios da inteligência,
andam dez anos, pelo menos, adiante dos franceses”110
. Tobias Barreto aprendeu alemão
sozinho como se colhe em interessante passagem de um biógrafo:
“O que se sabe sobre o modo como se deu a sua adesão ao germanismo é muito vago e
prosaico; um dia, no Recife, entrou em uma livraria da rua do Imperador, conhecida por
Laillacard, e comprou um dicionário e uma gramática de alemão e pediu ao livreiro que
mandasse vir da Europa Geschitche des Wolkes Israel, de Ewald. Segundo Sílvio Romero
este foi o primeiro livro em alemão que Tobias leu; enquanto esperava recebê-lo
aprendeu, sem fazer uso de nenhum professor, a difícil língua tedesca; comentários de
autores ingleses e franceses sobre as novas teorias surgidas na Germânia tinham levado
de Tobias Barreto. Martins, São Paulo, 1943. Lira, Roberto. Tobias Barreto, O homem-Pêndulo. Companhia Editora Nacional. Rio de Janeiro, 1937. Mont’Alegre, Omer. Tobias Barreto. Vecchi, Rio de Janeiro, 1939. Moraes Filho, Evaristo de. Medo à Utopia: o Pensamento Social de Tobias Barreto e Silvio Romero. Nova Fronteira, Brasília, INL, Rio de Janeiro, 1985. Pereira, Virgílio de Sá. Tobias Barreto. Revistas dos Tribunais, Rio de Janeiro, 1917. Romero, Nelson. Tobias Barreto. Of. Gráficas O Globo, Rio de Janeiro, 1943, Paim, Antonio, A Filosofia da Escola do Recife, Rio de Janeiro: Saga, 1966. 110 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, Campinas: Bookseller, 2000, p. 19.
a sua curiosidade a conhecer os referidos autores e teorias na língua original. Sob esse
influxo, aos 31 anos de idade, teve que renovar todos os seus conhecimentos, todas as
suas teorias, adotando o critério monístico para suas dissertações de crítica, filosofia,
direito, religião e política”111
.
Tobias Barreto dedicou-se intensamente à língua alemã, como se confirma também no
seguinte comentário de Clóvis Beviláqua:
“Dedicando-se ao estudo da língua e da literatura alemãs, a impressão primeira de
Tobias foi a do deslumbramento pelas opulências apenas entrevistas até então, e agora
diretamente conhecidas. Depois o germanismo tornou-se forma de sua organização
espiritual, conquistando-lhe fortes simpatias na Alemanha e fortes increpações no
Brasil”112
.
E nesse mesmo assunto, outro estudioso de Tobias Barreto, Vamireh Chacon, registrou a
proeza que o domínio da língua alemã significa no contexto do estudo da vida e da obra do
pensador sergipano:
“Sem nunca ter visitado a Alemanha, sua conquista linguística se tornou ainda mais
extraordinária, no Brasil daquele tempo, embora marcada pelas inevitáveis deficiências
do autodidatismo: Tobias continuava pensando em português e traduzindo penosamente.
Isso deve ter representado um martírio para o seu temperamento explosivo e
incontrolável. O aprendizado do alemão representou assim o início de disciplina
intelectual, para qual ele não se inclinava, nem por temperamento, nem por vocação”113
.
De acordo com Vamireh Chacon, “a tradução dos textos alemães de Tobias coloca o
tradutor em graves dilemas: sua sintaxe é prolixa, as expressões nem sempre literárias ou
coloquiais”114
. Nesse sentido, o germanismo de Tobias Barreto também deve ser entendido com
as limitações naturais que o ambiente lhe colocou, circunstância que possibilita, por outro lado,
que realcemos seu esforço e seus resultados.
Para Miguel Reale, o pensamento e a trajetória de Tobias Barreto são divididos em quatro
fases bem distintas115
. Houve uma fase sergipana, centrada na música, no latim e na poesia. Em
seguida, uma primeira fase recifense, forte na criação poética. Houve também uma terceira fase,
relativa aos anos que Tobias Barreto viveu em Escada (1871-1883) quando floresceu seu
111 Mont’Alegre, Omer, Tobias Barreto, Rio de Janeiro: Vecchi, 1939, p. 92. 112 Beviláqua, Clóvis, História da Faculdade de Direito do Recife, Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1927, volume II, p. 104. 113
Chacon, Vamireh, cit., pp. 217 e 218. 114
Chacon, Vamireh, cit., loc. cit. 115
Cf. Reale, Miguel, Fortuna Crítica de Tobias Barreto, in Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., pp. 39-48.
filogermanismo e sua admiração por Haeckel, Hartmann e Noiré. Por fim, a fase na qual Tobias
lecionou na Faculdade de Direito do Recife, onde exerceu intensa influência116
, que pode ser
sentida em Silvio Romero, Clóvis Beviláqua, Graça Aranha, entre tantos outros. Tobias é
também considerado pensador que deu início ao culturalismo brasileiro, influenciando, nesse
sentido, Silvio Romero, Alcides Bezerra, Djacir de Menezes, Miguel Reale, Evaristo de Moraes
Filho, Luis Washington Vita, Paulo Mercadante, Roque Spencer Maciel de Barros, Antonio
Paim, Nelson Nogueira Saldanha, Ricardo Vélez Rodrigues, entre tantos outros117
. Tobias
Barreto foi um pioneiro do culturalismo brasileiro118
.
A denominada Escola do Recife, da qual Tobias Barreto foi nome mais acentuado,
rompeu com o ecletismo espiritualista de Victor Cousin (1792-1867) e com o positivismo já
então triunfante de Augusto Comte119
. Tobias Barreto e Silvio Romero fizeram forte oposição ao
positivismo de Miguel Lemos e de Teixeira Mendes120
.
Obcecado pela cultura alemã, o que ocorreu a partir de 1870, Tobias Barreto percebia no
germanismo mais uma forma, entre tantas outras possíveis, de se pensar o Brasil. Percebe-se a
surpresa e o entusiasmo que a notícia de que japoneses estavam estudando alemão provocaram
em Tobias Barreto, no excerto que segue, escondido em uma nota de rodapé do pensador
sergipano:
“(...) E 1º de janeiro de 1870 foi aberta na capital daquele Estado [Tóquio, no Japão], a
qual conta um milhão e meio de habitantes, uma escola para ensino da língua alemã,
apenas com 4 alunos, e no fim do mesmo ano havia já 400 a 500. No correr de 1871, e
como consequência dos grandes feitos da guerra, e do ascendente da Alemanha,
espalharam-se pelas províncias muitas outras escolas, e o próprio Imperador se mostrou
interessado a tal ponto que por ele e seu governo foram não só instituídas escolas ao
modelo alemão e para esta língua, com maior profusão, como também, foram logo
enviados para se educarem no seio da cultura germânica diversos moços japoneses de
famílias importantes. E ultimamente o governo fundou mais altos institutos científicos e
uma academia de medicina, onde exclusivamente se acham sábios e professores desse
país, que foram chamados para dirigir o ensino. Daí tem resultado uma viva procura de
livros alemães, de modo que uma célebre firma comercial (...) foi levada a entrar em
116 Essa influência pode ser estudada, entre outros, em Picanço, Melchiades, Picanço, Macário e Picanço, Aloysio, Tobias Barreto- pensamento e vida, Rio de Janeiro: sem indicação de editora, 2005. 117 Conferir, nesse tópico, inclusive com coletânea de textos originais, Carvalho, José Maurício de, Antologia do Culturalismo Brasileiro- um século de Filosofia, Londrina: CEFIL, 1998. 118 Cf. Reale, Miguel, Figuras da Inteligência Brasileira, São Paulo: Siciliano, 1994, p. 51. 119 Cf. Paim, Antonio, A Filosofia da Escola do Recife, Rio de Janeiro: Saga, 1966. 120 Cf. Moraes Filho, Evaristo, Medo à Utopia- o Pensamento Social de Tobias Barreto e Sílvio Romero, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
relações ativas com o comércio livreiro, principalmente de Leipzig, e dirigir-lhe uma
circular, nesse sentido. E então, podemos rir-nos dos dignos japoneses?”121
E ainda, a propósito de algumas reflexões que anotou sobre a função das faculdades de
direito, Tobias Barreto encerrou o tópico com algum sarcasmo sobre como era visto o
germanismo cultural que defendia. Comparou o desconhecimento que havia no Brasil para com
os autores alemães que citava, com o desconhecimento que um grupo indígena tinha de um
simples beijo, como indicado no início do presente trabalho. Os indígenas não conheciam o
beijo, do mesmo modo que os brasileiros não distinguiam os autores alemães que Tobias Barreto
citava.
Tobias Barreto escreveu também em alemão. Há notícias de três monografias, Brasilien
wie es ist in literarischer Hinsicht betrachtet (que publicou em Escada, no Pernambuco, em
1876), Ein offener Brief an die deutsche Presse (também publicada em Escada, em 1878), bem
como um estudo sobre o ensino de direito no Brasil, denominado de Rechtsleben und
Rechtstudium in Brasilien (que data de 1880)122
. Tobias Barreto chegou a editar um jornal em
língua alemã, quando vivia em Escada; o jornal denominava-se Deutscher Kämpfer, isto é, O
Lutador Alemão. Ao que consta, o estudo sobre o ensino de direito no Brasil, originariamente
redigido em alemão, nunca foi encontrado123
.
Vários textos de Tobias Barreto, a propósito de temas alemães, foram reunidos e
publicados124
; nestes excertos e fragmentos percebe-se a imensa influência de pensadores da
Alemanha, a exemplo de Eduard von Hartmann, Franz von Holkendorff, Rudolf von Iehring e,
talvez principalmente, Immanuel Kant125
. Tobias Barreto fora o primeiro intelectual brasileiro a
citar Marx126
, diretamente do Capital, passagem que em seguida reproduzo:
121 Barreto, Tobias, cit., pp. 149-150. 122 Cf. Mercadante, Paulo, Tobias Barreto na Cultura Brasileira- uma reavaliação, São Paulo: Grijalbo, Editora da USP, 1972, p. 39. 123 Conferir Vamireh Chacon em importantíssimo estudo sobre o germanismo de Tobias Barreto, em Barreto, Tobias, Monografias em Alemão, Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1978, p. 13. 124 Barreto, Tobias, Estudos Alemães, Rio de Janeiro: Record e Aracaju: Secretaria de Cultura e Meio Ambiente, 1991. 125 Conferir, por todos, nesse tema, o germanismo em Tobias Barreto, o importantíssimo estudo de Pessoa, Lilian de Abreu, Aspectos do Pensamento Alemão na Obra de Tobias Barreto, São Paulo: USP, 1985. 126 Tobias Barreto teria lido a terceira edição de O Capital, exemplar no qual lançou anotações nas páginas XV e XVII. Segundo Vamireh Chacon: “Tivemos a emoção de consultar um dia, na Biblioteca da Faculdade de Direito do Recife, as páginas amarelecidas, lidas pelo provinciano profético em tantas
“(...) Karl Marx diz uma bela verdade quando afirma que cada período histórico tem as
suas próprias leis.... Logo que a vida atravessa um dado período evolutivo, logo que
passa de um estádio a outro, ela começa também a ser dirigida por leis diferentes. Os
organismos sociais se distinguem entre si tão profundamente como os organismos
vegetais e animais. Um mesmo fenômeno está sujeito a leis inteiramente diversas em
consequência da diversidade de estrutura dos organismos, da aberração de seus órgãos
em particular, da diferença de condições enfim em que eles funcionam...”127
Para Vamireh Chacon, a primeira citação de Marx no Brasil, por Tobias Barreto, deu-se
em um discurso de colação de grau de bacharéis, de 1883, quando o pensador sergipano afirmara
que Karl Marx havia dito uma bela verdade, ao afirmar que cada período tem suas próprias
leis128
. De acordo com Chacon, essas“(...) pioneiras referências a Marx, aguçaram a
curiosidade brasileira por este novo alemão, entre tantos outros que Tobias descobriu para o
nosso país”129
.
A partir de Tobias Barreto engendrou-se um núcleo de pensamento que repudiava a
influência francesa e que defendia intransigentemente a cultura alemã, especialmente como
ferramenta intelectual e conceitual para compreensão da vida brasileira. A Escola do Recife, que
decorre da atuação, da pregação, do carisma e da empolgação de Tobias Barreto, marcou a
primeira onda de forte influência da cultura alemã no Brasil.
Tobias Barreto também deixou-nos um conjunto de textos, redigidos em alemão (e
traduzidos por Vamireh Chacon, como observado no início)130
, publicados no Brasil, ainda que
dirigidos a um público europeu. Dessa assertiva faz prova uma carta aberta à imprensa alemã131
e
um fragmento que explorava o Brasil do ponto de vista literário132
. Esses textos suscitam alguma
admiração interna, talvez menos pelo conteúdo, do que pela habilidade linguística de seu autor,
ocasiões. Só mesmo um apaixonado pela Alemanha descobriria Marx, para o Brasil, numa época de exacerbada francofilia. Sem dúvida citara Marx porque havia aqui uma coincidência com uma velha e predileta ideia sua, já enunciada em 1871 (...)”Chacon, Vamireh, Da Escola do Recife ao Código Civil, Rio de Janeiro: Organizações Simões Editora, 1969, p. 32. 127 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, p. 123. 128
Cf. Chacon, Vamireh, cit., p. 31. 129
Chacon, Vamireh, cit., p. 38. 130 Barreto, Tobias, Monografias em Alemão, Brasília e Aracaju: Instituto Nacional do Livro e Secretaria de Educação do Estado de Sergipe, 1978. 131 Ein offener Brief an die deutsche Presse, in Barreto, Tobias, cit., pp. 72 e ss. 132 Brasilien wie es ist in literarischer Hinsicht betrachtet, in Barreto, Tobias, cit., pp. 24-71.
que sozinho teria aprendido essa língua133
. Nesse contexto, a recepção da ideia estrangeira se faz
para um público consumidor local134
, razão da adaptação e de algum nível de versão e de
traduzibilidade135
.
A vitória alemã na batalha de Sedan (1870) pode ter acendido um maior interesse pelo
pensamento alemão136
, a chamada ciência de capacete, na expressão curiosa de Tobias
Barreto137
. Algum esgotamento para com as ideias francesas também pode ter impulsionado esse
movimento. Pode-se cogitar da necessidade de um alargamento de horizontes, isto é, na opinião
de Hermes Lima, “o alemão foi, porém, uma janela nova por onde Tobias descortinou e ensinou
à geração do seu tempo a descortinar aspectos diferentes e panoramas mais largos do que
aqueles que a literatura francesa, sozinha, lhe poderia oferecer”138
; para esse mesmo autor,
“essa lua-de-mel com a Alemanha durou-lhe a vida inteira”139
.
A influência alemã em Tobias Barreto também é captada com intensidade no tema da
faculdade de direito e do ensino jurídico. Em sua obra, esse assunto é encontrado em algumas
133 O germanismo em Tobias Barreto é explorado, entre outros, por Pessoa, Lilian de Abreu, Aspectos do Pensamento Alemão na obra de Tobias Barreto, São Paulo: Boletim nº 46 do Departamento de Letras Modernas e do Curso de Lingua e Literatura Alemã da Universidade de São Paulo, 1985. 134 Há também o caso da vinda e da fixação de intelectual europeu no Brasil, quando a transposição das ideias estrangeiras representa, de algum modo, uma continuidade. Exemplo mais significativo pode ser colhido na obra ensaística do austríaco Otto Maria Carpeaux. Conferir, Carpeaux, Otto Maria, Ensaios Reunidos, volume I, Rio de Janeiro: Topbooks, 1999. É de Carpeaux a conhecida advertência: “diante de uma peça de Shakespeare somente o espectador e o crítico podem fracassar”. Informações biográficas estão em Ventura, Mauro Souza, De Karpfen a Carpeaux- formação política e interpretação literária na obra do crítico austríaco-brasileiro, Rio de Janeiro: Topbooks, 2002. 135 Essa tradução imediata se constata, por exemplo, no primeiro compêndio propedêutico utilizado na Faculdade de Recife (então, em Olinda). Trata-se da versão de de Pedro Autran da Matta Albuquerque, do livro de Francisco Nobre de Zeller, pelo autor brasileiro aumentada e corrigida, publicada no Pernambuco, especialmente a segunda edição, datada de 1840. 136 Tem-se uma intensificação de conflitos nacionalistas, o que se reflete também no plano do confronto das ideiais e da busca de mercados consumidores de produtos culturais. Conferir Helmet, Guy, História das Nações e do Nacionalismo na Europa, Lisboa: Editorial Estampa, 1996. Tradução de Ana Moura. A posição alemã pode ser esboçada a partir de pesquisa de Elias, Norbert, Os Alemães- a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. Tradução de Álvaro Cabral. Também esclarecedora a abordagem de Kitchen, Martin, A History of Modern German- 1800-2000, Malden: Blackwell, 2006. 137 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 78. 138 Lima, Hermes, Tobias Barreto- a época e o homem, Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1963, p. 192. 139 Lima, Hermes, cit., p. 193.
passagens esparsas, em um texto sobre as faculdades jurídicas como fatores do direito nacional e
em um programa de ensino elaborado para as várias disciplinas então estudadas.
As críticas de Tobias Barreto foram prioritariamente dirigidas à Faculdade de Direito do
Recife, cuja Congregação, ao lado da Congregação do Index, entendia responsável pela
resistência ao pensamento alemão, complementando que “a faculdade não deve ser essa espécie
de alfândega moral, instituída e levantada na fronteira da civilização, para aprender e multar as
ideias estrangeiras”140
. Tobias Barreto observou que pensava como o historiador alemão
Heinreich von Sybel (1817-1895)141
, no sentido de que “(...) que as faculdades não são somente
estabelecimentos de instrução, mas ainda e principalmente (...) verdadeiros laboratórios,
oficinas de ciência”142
.
Em artigo que escreveu sobre as faculdades de direito como fatores do direito nacional,
Tobias Barreto defendeu que essas escolas podem colaborar para desenvolver o capital jurídico
nacional143
. Por capital jurídico nacional, conceito até então explorado por um autor alemão que
o inspirava, Tobias Barreto indicou o conjunto de questões elucidadas e de problemas resolvidos
nas várias relações de direito que acompanham a vida social144
. Revelou-se inspirado por Rudolf
Heinze (1825-1896)145
no sentido de que “(...) as faculdades devem entrar com a sua parte de
atividade para a formação do direito, não decerto como tribunais, que profiram sentenças, mas
como corpos científicos, que merecem ser ouvidos, quer no interesse da ciência mesma, quer
para o fim de aumentar e desenvolver o capital jurídico das nações”. Tobias Barreto pretendia
que as escolas de direito respondessem a questões práticas, quando pelo judiciário consultadas.
A consulta dos tribunais às faculdades de direito, para elucidação de questões jurídicas,
era uma praxe no contexto institucional alemão do século XIX. Tratava-se dos Spruchcollegien,
isto é, de sessões específicas nas universidades que respondiam consultas de juízes, que
adotavam essas opiniões e as publicavam como sentenças próprias; o próprio Savigny respondeu
140 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 90. 141 De quem, segundo Mario Losano, possuía um livro em sua biblioteca alemã. Sybel, Heinrich von, Die deutschen Universitäten, ihre Leistungen und Bedürfnisse, Boon: Max Cohen, 1874. Cf. Losano, Mario, Um giurista tropicale- Tobias Barreto fra Brasilia reale e Germania ideale, cit., p. 225. 142 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 54. 143 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 482. 144 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., loc. cit. 145 Há um exemplar do livro citado por Tobias Barreto disponível na biblioteca do Instituto Max-Planck de História do Direito em Frankfurt. Heinz, Rudolf, Strafprocessuale Eroterungen, Stuttgart: Verlag von Ferndinand Enfe, 1875.
consultas que lhe foram encaminhadas146
. Tobias Barreto propunha a adoção dessa fórmula,
como medida para vencer o abismo que se verificava entre teoria e prática, e o qual entendia
decorrente do insulamento das escolas147
. Sugeria a derrubada da muralha chinesa que separava
os cientistas dos práticos148
.
Diferenciava o jurisconsulto do advogado; para Tobias Barreto, este último, o advogado,
sustentava com idênticas vantagens o pró e o contra nas lides forenses, fechando “(...) o espírito
a toda espécie de convicções sinceras”149
. Um laço de cooperação exigia que as pontas fossem
ligadas; às escolas de direito Tobias Barreto propunha essa função nova, a elaboração de
pareceres como resposta a consultas, o que enalteceria a posição da academia, como órgão de
formulação de pensamento e de soluções150
.
Essa imersão prática qualificaria as escolas de direito. Para Tobias Barreto “a ciência
ganharia em ossos e nervos, o que perdesse em carnosidade supérflua; ganharia em fatos e
induções verdadeiras, o que se lhe tirasse de abstrações indefinidas e frívolas conjecturas”151
.
Em favor dessa proposta, Tobias Barreto invocava o passado romano, afirmando que “já os
romanos, que na jurisprudência foram mestres inexcedíveis, tiveram a lembrança de uma
prática igual, ou semelhante”152
. Nesse ponto, é exata a similitude entre Tobias Barreto e os
autores alemães que tanto apreciava, principalmente Savigny e Jhering.
Nos programas de ensino que Tobias Barreto preparou também é nítida essa influência
alemã, especialmente de Rudolf von Jhering, a partir de quem pretendia apresentar o tema do
darwinismo no direito153
. Tobias Barreto propunha o estudo do direito também como força, isto
é, pretendia explorar sua fisiologia e sua morfologia154
. A propósito do sugerido tema dos
Estados como forças culturais dotadas de vocações históricas particulares Tobias Barreto
pretendia discutir as opiniões divergentes de Bluntschli, Hartmann e Fröbel, autores que serão
146 Cf. Camacho, Fermin Evangelista, Friedrich von Savigny en su segundo centenário: 1779-1979, Separatas de los Cuadernos de la Associación Cultural Hispano Alemana –III. 147 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., loc. cit. 148 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., loc. cit. 149 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 483. 150 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., loc. cit. 151 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 484. 152 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., loc. cit. 153 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 65. 154 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., loc. cit.
melhor explicados ao longo do trabalho155
. Wilhelm Humboldt seria estudado no tópico dos
limites do poder público156
.
Intelectuais do sul do Brasil, ainda presos à influência francesa, a exemplo de Carlos de
Laet, gracejaram do grupo formado em torno de Tobias Barreto, denominando-os de membros de
uma escola teuto-sergipana, o que sublinhava “(...) nominalmente a desproporção entre o
elemento alemão e o elemento sergipano”157
. Tobias e seu grupo responderam, sugerindo que os
detratores aninhavam-se em uma escola galo-fluminense158
.
Uma comparação entre a biblioteca de Tobias Barreto e a biblioteca de Antonio Pereira
Rebouças, dois pensadores da mesma época, revela a esmagadora influência francesa nesse
último, em oposição ao intenso interesse pela Alemanha, naquele primeiro. A biblioteca de
Antonio Pereira Rebouças, composta de 2008 volumes, cujo catálogo foi publicado por Keila
Grinberg, nos indica uma obsessiva fixação com a produção cultural francesa; a maioria dos
títulos nessa lista indicados é de origem francesa159
. A maior parte das bibliotecas (públicas e
particulares) do século XIX era organizada tendo por base uma forte influência da produção
cultural francesa, de onde vinha a maioria dos títulos que eram lidos.
Também são reconhecidas as dificuldades da língua alemã, em oposição às supostas
facilidades do idioma francês, circunstância glotológica que excitou a discussão entre os teuto-
sergipanos e os galo-fluminenses. Silvio Romero bem captou esse dilema:
“A tarefa é sem dúvida duplamente embaraçosa; porquanto temos a lutar contra a
dificuldade da língua, e da profundeza e variedade dos produtos da inteligência
germânica de um lado; e de outro a tendência quase irresistível do espírito nacional
para o francesismo. Além de que este é um extremo fácil em seus meios de aquisição e
em seu conteúdo, nutrindo-se de frases feitas e generalidades atraentes, aptas a serem
decoradas pela retórica e pela superficialidade nacional”160
.
A personalidade de Tobias é forte presença nessa tentativa de transição; na alegoria e no
exagero de Pinto Ferreira, para quem, Tobias “(...) carregava sobre si o manto da realeza
155 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., loc. cit. 156 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 67. 157 Saldanha, Nelson, A Escola do Recife, São Paulo e Brasília: Convívio e Fundação Nacional Pró-Memória, 1985, p. 15. 158 Saldanha, Nelson, cit., p. 16. 159 Conferir Grinberg, Keila, O fiador dos brasileiros- cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. 160 Romero, Sílvio, cit., p. 189.
tribunícia e cuja palavra flamejava olimpicamente em fulgurações sidéreas como os raios de luz
cósmica no espaço luminoso da sala professoral”161
. Emblemáticas também as memórias de
Gilberto Amado162
e de Graça Aranha163
.
A partir do germanismo de Tobias Barreto, e da luta pelo consequente afastamento da
influência francesa, pode-se perceber a tentativa de construção de linha mais culturalista de
compreensão do direito164
. O germanismo de Tobias Barreto nos aproximou do evolucionismo
darwinista, ainda que por recepção de Hermann Post e de Rudolf von Iehring165
, concepção
marcada por uma clara antítese entre natureza e cultura166
.
Em Tobias Barreto, era recorrente uma comparação entre as formas de recepção que as
culturas da França e da Alemanha receberam no Brasil; é o que se lê, por exemplo, na seguinte
passagem, absolutamente carregada por metáforas e figuras de imaginação astronômica:
“É sabido que a luz de algumas estrelas gasta séculos e séculos em percorrer o espaço,
até chegar à vista do planeta. Quem nos dirá o tempo preciso, para as ideias vararem a
distância que medeia entre esse baixo império, espécie de Netuno do sistema solar da
civilização, e as fúlgidas cabeças, os globos incandescentes da grande ciência humana?
Eis aqui o que me enche de sérias dúvidas e apreensões. Na posição assaz inferior do
nosso mundo moral, se a França ainda nos aparece como um astro imensamente remoto,
objeto apenas de transporte e admiração poética, é muito natural que a Alemanha não
deixe de aparecer-nos, sempre ao longe, a miríadas de léguas, perdido no infinito, como
uma nebulosa”167
.
O próprio Tobias Barreto ilustrou a passagem acima com uma nota de rodapé,
despontando sua inquietação para com o preconceito que havia no Brasil para com a Alemanha e
para com a cultura alemã. Referiu-se a uma sessão parlamentar, ocorrida em 1870, quando se
discutia um projeto de lei que tratava da criação de uma universidade no Brasil. O parlamentar
que se opunha à proposta teria observado, “(...) em tom de mofa, que era uma coisa importada
161 Ferreira, Luiz Pinto, Tobias Barreto e a Nova Escola do Recife, Rio de Janeiro: José Konfino Editor, 1958, p. 19. 162 Amado, Gilberto, Tobias Barreto, Rio de Janeiro: Ariel, 1934, p. 19. 163 Aranha, Graça, O meu próprio romance, Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1931, pp. 152 e ss. 164 Mercadante, Paulo e Paim, Antonio, Tobias Barreto na Cultura Brasileira: uma Reavaliação, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1972, pp. 15 e ss. 165 Cf. Reale, Miguel, Estudos de Filosofia Brasileira, Lisboa: Guimarães Editores, 1994, p. 115. Excerto também encontrado em Reale, Miguel, Figuras da Inteligência Brasileira, São Paulo: Siciliano, 1994, pp. 51 e ss. 166 Cf. Reale, Miguel, Horizontes do Direito e da História, São Paulo: Saraiva, 1956, p. 225. 167 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 156.
da ‘nevoenta’ Alemanha”168
. Indignado com a observação, Tobias Barreto prosseguiu
comentando a empolgação que a guerra franco-prussiana provocou entre os simpatizantes da
cultura francesa, inclusive qualificando o conflito como uma luta entre um suposto despotismo
(alemão) e uma hipotética liberdade (francesa), situação que percebia como absolutamente
reveladora da incapacidade brasileira de pensar com a própria cabeça:
“Na mesma sessão de 1870, quando a guerra franco prussiana estava ainda em
movimento, disse também no Senado o Sr. Sousa Franco que só sentia já se achar
velho, e não poder talvez presenciar o desenlace final daquela luta monstruosa do
‘despotismo com a liberdade’!! Como se, dada a hipótese de serem os combatentes de
índole política tão diversa, o que aliás não passa de um palavreado de rua, como se,
repito, a liberdade francesa fosse a liberdade de todo o mundo, e o despotismo da
Prússia equivalesse ao despotismo em geral! Já se vê, mais ou menos, qual é a ideia
ordinariamente formada pelos nossos ‘grandes’ homens da Alemanha, e seu estado
moral e sua admirável ciência. É debalde que um escritor como Taine afirma ser hoje o
sério trabalho das cabeças pensantes introduzir em seu país o espírito alemão. No
Brasil não se trata nem se sabe disso; mas a razão é simples: não há quem pense”169
.
Tobias Barreto insistia que a cultura nos oferecia uma oportunidade de compreensão que
nos libertaria das fórmulas francesas, vagorosas e em sua impressão dispensáveis, observando,
sempre, com a ironia que lhe era peculiar:
“Verdade é que acertamos, a cada hora, o nosso relógio pela pêndula francesa; mas
seja como for, ou dureza ou desarranjo no mecanismo intelectual, não há dúvida de que
temos um andar mais vagaroso. E pode-se dizer que sempre nos achamos, longos anos,
atrasados em relação ao mesmo país, de onde recebemos os mais vivos elementos de
nossa cultura exígua”170
.
Tobias Barreto criticava Augusto Comte, símbolo da hegemonia cultural francesa,
admitindo que, embora um homem notável, Comte teria feito “(...) à filosofia um grande mal”171
.
Para Tobias Barreto, hostilizando Comte, “a filosofia não oferece exemplo de sistema algum,
que tanto abrisse caminho ao diletantismo filosófico, como a chamada escola positivista”172
. A
crítica ao pensamento francês era uma forma de pregação em favor às ideias alemãs. Tobias
Barreto referia-se a uma “(...) velha predileção pela Alemanha”173
”. Esse filogermanismo era
168 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., loc. cit. 169 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., loc. cit. 170 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 156. 171 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit. p. 52. 172 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., loc. cit. 173 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., loc. cit.
acentuado, como impressionante também a influência que Tobias Barreto exerceu sobre outros
intelectuais brasileiros, a exemplo de Graça Aranha.
As impressões que Tobias Barreto deixou no escritor brasileiro Graça Aranha foram
absolutamente marcantes, como pode se ler no livro de memórias desse intelectual
maranhense174
. A apoteose que se viveu no concurso que se submeteu Tobias Barreto, com vistas
a lecionar na Faculdade de Direito do Recife, presenciadas por Graça Aranha, preenchem
páginas de ardente entusiasmo e devoção, colaborando para a construção de uma imagem
absolutamente destemida e revolucionária. Graça Aranha principiou por contextualizar a disputa:
“Abrira-se o concurso para professor substituto da Faculdade. Foi o concurso de Tobias
Barreto. Eu já havia iniciado meus estudos na Academia. O que me ensinaram de
filosofia do direito, eu não entendia. Era superior ao meu preparo, e professado sem
clareza, sem o fluido da comunicação (...) O concurso abriu-se como um clarão para os
nossos espíritos. A eletricidade da esperança nos inflamava. Esperávamos, inconscientes,
a coisa nova e redentora. Eu saía do martírio, da opressão para a luz, para vida, para a
alegria”175
.
Graça Aranha fora um dos primeiros a chegar “ao vasto salão da Faculdade”176
,
tomando posição junto a uma grade que, recordou, “separava a Congregação da multidão de
estudantes”177
. O favoritismo de Tobias Barreto, prossegue Graça Aranha, fora imediato178
.
Lembrou que o candidato, “mulato desengonçado, entrava sobre o delírio das ovações”179
. A
descrição de Tobias Barreto feita por Graça Aranha é meticulosa:
“Os seus olhos flamejavam, da sua boca escancarada, roxa, móvel, saía uma voz
maravilhosa, de múltiplos timbres, a sua gesticulação transbordante, porém sempre
expressiva e completando o pensamento. O que ele dizia era novo, profundo, sugestivo.
Abria uma nova época na inteligência brasileira e nós recolhíamos a nova semente, sem
saber como ela frutificaria em nossos espíritos, mas seguros que por ela nos
transformávamos”180
.
174 Aranha, Graça, O meu próprio romance, Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1931, pp. 147 e ss. 175 Aranha, Graça, cit., pp. 147-148. 176 Aranha, Graça, cit., loc. cit. 177 Aranha, Graça, cit., loc. cit. 178 Aranha, Graça, cit., loc. cit. 179 Aranha, Graça, cit., loc. cit. 180 Aranha, Graça, cit., p. 149.
Para Graça Aranha, ao longo do concurso, os professores da Faculdade teriam sido
diminuídos, tendo-se provocado seus espíritos reacionários181
. Aranha acreditava que esse
concurso marcou a emancipação da mentalidade brasileira, “afundada na teologia, no direito
natural, em todos os abismos do conservantismo”182
. Ao fim da preleção oral Tobias Barreto
teria recebido “a mais grandiosa manifestação dos estudantes, a cujo entusiasmo aderiaram as
lentes unânimes”183
.
Graça Aranha narra que saltou da grade e atirou-se aos braços de Tobias Barreto, que
teria perguntado se o entusiasta já era acadêmico184
, ao que confirmou que já era calouro185
. O
escritor concluiu, confirmando a imensa influência que Tobias Barreto exercia sobre a juventude:
“Que deslumbramento! Não voltei a meus colegas. Fiquei por ali mesmo, metido em
algum canto da sala da Congregação, e saí acompanhando, como uma pequena sombra,
o Mestre. À noite, eu estava em sua casa em Afogados. Nunca mais me separei
intelectualmente de Tobias Barreto”186
.
Essas memórias foram registradas passados quarenta anos dos fatos, que Graça Aranha
recordou como um “grande choque mental”187
. Para Graça Aranha aquele encontro lhe afirmou
a “personalidade independente e soberana”188
. A grande lição do mestre sergipano, segundo
Graça, fora a de “pensar dessassombradamente, a de pensar com audácia, a de pensar por si
mesmo, emancipado das autoridades e dos canons”189
. A crítica de Tobias Barreto destruía e, ao
mesmo tempo apontava novas perspectivas para a cultura, firmando novas bases para a
inteligência, na compreensão do escritor maranhense190
.
Tobias Barreto venceu o referido concurso para professor na Faculdade de Direito do
Recife com tese, entre outras, na qual contestava a existência de direitos naturais originários.
Segundo Hermes Lima, “ao apresentar-se, em 1882, para concurso a um lugar de lente
181 Aranha, Graça, cit., loc. cit. 182 Aranha, Graça, cit., pp. 149-150. 183 Aranha, Graça, cit., p. 150. 184 Aranha, Graça, cit., loc. cit. 185 Aranha, Graça, cit., loc. cit. 186 Aranha, Graça, cit., pp. 150-151. 187 Aranha, Graça, cit., p. 151. 188 Aranha, Graça, cit., loc. cit. 189 Aranha, Graça, cit., p. 151. 190 Cf. Aranha, Graça, cit., loc. cit.
substituto, Tobias vinha já envolto numa auréola, que o destacava no respeito de um grupo,
embora restrito, de admiradores”191
.
Algumas linhas gerais do pensamento jurídico de Tobias Barreto também podem ser
alcançadas com a leitura das teses que apresentou no referido concurso. Tobias Barreto já
contava com 42 anos, vinha estudando alemão a mais de dez, já era poeta e pensador
reconhecido. Apresenta-se para o concurso já detentor de reconhecida maturidade intelectual.
Aprovado, nomeado e empossado, lecionou por cerca de oito anos. Faleceu aos 50 anos, doente e
debilitado.
As teses que apresentou, portanto, revelam ideias já amadurecidas. À época, Tobias já
pensava autonomamente, pregando a necessidade da regulamentação dos direitos autorais,
defendendo a aplicação da analogia em direito penal, criticando a menoridade penal, que era de
14 anos, e que criminaliza crianças, os pobres matutinhos, como certa vez se expressou192
.
Na edição das obras completas de Tobias Barreto, organizadas por Luiz Antonio Barreto,
há nota explicativa esclarecendo que as teses do concurso foram pela primeira vez divulgadas
por Oliveira Teles, em edição da obra de Tobias, a chamada edição de Sergipe.
De acordo com as regras da época, o interessado deveria apresentar três sínteses
conclusivas sobre cada uma das disciplinas lecionadas no curso de direito. Essas teses eram
apresentadas em forma de enunciados, que o candidato deveria defender, junto à banca
examinadora e mesmo junto aos demais candidatos à vaga em disputa.
Tobias Barreto apresentou teses nas disciplinas de Direito Natural, Direito Romano,
Direito Constitucional, Direito das Gentes, Diplomacia, Direito Eclesiástico, Direito Civil,
Direito Criminal, Direito Comercial, Direito Marítimo, Hermenêutica Jurídica, Processo Civil,
Processo Criminal, Economia Política e Direito Administrativo. Eram essas as disciplinas do
programa então ensinadas no Brasil193
. Observa-se que do candidato se exigia um vasto
191 Lima, Hermes, Tobias Barreto, a Época e o Homem, Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1963, p. 156. 192 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 52. 193 Essas disciplinas eram ensinadas nas duas escolas de direito que havia no Brasil, no Recife (onde ensinou Tobias Barreto) e em São Paulo. Para se ter uma percepção comparativa, à mesma época, as seguintes eram as disciplinas ensinadas em Coimbra, modelo que de alguma forma transportamos para o Brasil: 1º ano: História geral da jurisprudência e a particular do direito romano, canônico e pátrio; Ciência da legislação e direito natural. 2º ano: Direito público universal e das gentes. Instituições de direito eclesiástico, público e particular, e liberdades da igreja portuguesa. Direito romano elementar. 3º ano: Direito público português pela Constituição, direito administrativo pátrio, princípios de política e
conhecimento de todas as disciplinas que eram lecionadas no curso, especialmente porque, em
relação a cada uma delas, exigia-se a apresentação de três pontos de vista inovadores, de onde a
expressão Teses de concurso.
Ao longo das teses então enunciadas colhem-se ideias que Tobias Barreto
recorrentemente defendeu, a exemplo de algumas posições contrárias à Igreja Católica, como a
contestação ao direito de padroado. Nesse assunto, Tobias Barreto insistia que o respeito às
instituições juradas, a exemplo do referido padroado, era a tolice consagrada 194
.
Tobias Barreto tratou também do assunto do direito autoral (do qual ele foi o introdutor
no Brasil). Tobias Barreto abordou mais extensivamente esse tema em um artigo que publicou
em seu jornal O Americano, em 1870, afirmando tratar-se o direito autoral de um novo direito
que se precisava reconhecer. Em 1882, após o concurso, publicou artigo mais extenso sobre o
assunto, observando que “todo homem tem o direito de defender sua reputação literária, da
mesma forma que a sua reputação”195
. Tobias Barreto construiu sua doutrina do direito autoral
com base em autores alemães, a exemplo de Otto Stobbe e Bluntschli196
, sobre quem se
mencionará mais a frente. Nesse concurso, Tobias Barreto avançou com algumas concepções que
de algum modo anunciam uma defesa do que poderíamos hoje entender por posições de apoio ao
feminismo.
Segue, com o objetivo de se apresentar algumas linhas gerais do pensamento de Tobias
Barreto, um roteiro enunciativo então apresentado pelo pensador sergipano, com alguns poucos
comentários, quanto as teses enunciadas nas disciplinas de maior especulação, a exemplo do
Direito Natural, do Direito Público e da Hermenêutica Jurídica. Percebe-se, em quase todos esses
temas centrais, uma forte influência do pensamento alemão.
Para a cadeira de Direito Natural (que à época tinha função semelhante à Introdução ao
Estudo do Direito e à Filosofia do Direito, que hoje se ensinam) Tobias Barreto afirmou ser
adepto do monismo, recusou a metafísica como instância explicativa da normatividade e
direito dos tratados de Portugal com outros povos. Direito civil português. Economia política. 4º ano: Direito civil. Direito penal, inclusa a parte militar. Direito comercial e marítimo. 5º ano: Jurisprudência formularia e euremática, prática do processo civil, criminal, comercial e militar. Hermenêutica jurídica; análise de textos de direito pátrio, romano e canônico. Diplomática. Medicina legal. Merêa, Paulo, Esboço de uma história da Faculdade de Direito de Coimbra, Coimbra: Coimbra Editora, 1952, p. 5. 194 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, p. 97. 195 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, p. 277. 196 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, p. 281.
renunciou a probabilidade de uma sociologia do direito. Revelou-se, assim, adepto do monismo
de Ludwig Noiré, do darwinismo jurídico expressado por Rudolf von Jhering e do evolucionismo
de Ernst Haeckel.
Na primeira das teses Tobias Barreto proclamou que “de todos os sistemas filosóficos só
o monismo pode dar-nos a verdadeira concepção do direito”197
. A tese monística, para a qual a
realidade é uma unidade, fora absorvida por Tobias Barreto especialmente a partir de um livro de
Ludwig Noiré, Der monistische Gedenke. O pensador sergipano recorrentemente falava de uma
intuição monística198
, na qual haveria uma preponderância do movimento ou do sentimento, com
reflexos nas razões dos vários fenômenos, alguns sem causa, outros, sem alvo, o que agregaria
para a explicação do mundo os elementos que decorressem do acaso199
.
Invocando essa concepção, que também denominou de concepção monística de mundo,
Tobias Barreto afirmou que de todos os modos possíveis de convivência do mundo, o direito
seria o melhor deles, do mesmo modo que “de todos os modos possíveis de abreviar o caminho
entre dois pontos dados, a linha reta é o melhor; assim como, de todos os modos imagináveis de
um corpo girar em torno de outro corpo, o círculo é o mais regular”200
. Assim, o direito estaria
para a convivência social na mesma razão harmônica que faz com que uma reta una dois pontos
e que o círculo possibilite que um corpo gire em torno de outro corpo.
Reforçando essa crença no direito, com inspiração monística, Tobias Barreto distinguiu
que o “(...) o direito é um modus vivendi; é pacificação do antagonismo das forças sociais, da
mesma forma que, perante o telescópio moderno, os sistemas planetários são tratados de paz
entre as estrelas”201
. A metáfora com a qual comparou os sistemas planetários como tratados de
paz entre as estrelas revela serena confiança na construção de um ordenamento jurídico como
fórmula garantidora da harmonia e da estabilidade humanas. Tobias Barreto, ainda que
iconoclasta em muitos temas, não negava o direito e a experiência jurídica. Assimilava-os a toda
a realidade social, em percepção unificadora, indicativa da adesão ao monismo, tal como
anunciou em sua primeira tese de concurso.
197 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 56. 198 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 43. 199 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., loc. cit. 200 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit. p. 53. 201 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., loc. cit.
Tobias Barreto havia feito referência a Giambattista Vico (1668-1744), filósofo
napolitano, em quem creditou uma primitiva concepção monística de direito. Na referida
passagem, Tobias Barreto escarneceu de um filosofo italiano (Bertrando Spaventa- 1817-1883)
que teria afirmado ter sido Vico o precursor do pensamento alemão (il vero precursore de tuta
l’Allemagna), contrapondo essa opinião, e reforçando seu filogermanismo, observando que três
quartos do pensamento de Vico vinha de Leibnitz, pensador alemão202
.
A visão monista de mundo que o marcava era uma particular compreensão do
darwinismo que assimilou nas leituras de Heckel e Jhering. Darwin era o ponto comum de uma
percepção que desafiava os valores dominantes. Referindo-se ao cientista inglês, Tobias Barreto
afirmou que “Darwin descobriu o fio, que reduz o mundo orgânico a um todo comum e o fez
aparecer como uma continuação do inorgânico”203
. As ideias de Darwin foram absolutamente
impactantes no século XIX.
Tobias Barreto diferenciava o monismo filosófico de Noiré do monismo naturalístico de
Haeckel. Quanto ao primeiro, escreveu Tobias Barreto:
“Com efeito, a ideia fundamental do monismo, diz Ludwig Noiré, é que o universo
compõe-se de átomos inteiramente iguais que são dotados de duas propriedades, uma
interna, o sentimento, e outra externa, o movimento. Bem como os átomos, o sentimento e
o movimento, que lhes são inerentes, são também originariamente iguais. Destas duas
propriedades, originárias, inseparáveis, resulta todo o desenvolvimento, ou antes, o que
se chama desenvolvimento é a soma ou o produto de ambas; de modo que todo e
qualquer desenvolvimento é redutível a uma modificação do movimento, mas também, e
ao mesmo tempo, todo e qualquer desenvolvimento é redutível a uma modificação do
sentimento”204
.
Na segunda tese, Tobias Barreto criticou uma compreensão metafísica do direito,
perseverando que o direito também é submetido às leis de seleção natural, o que ocorre com base
na luta, o que revela, como assinalado, influência de Rudolf von Jhering. Segue a tese: “O
direito não é uma entidade puramente metafísica nem uma abstração resultante das leis da
evolução, que ainda se acham em estado de incógnitas, mas simplesmente a disciplina das
forças sociais, o princípio da seleção legal na luta pela existência”205
. Tobias Barreto em outro
escrito explicitou que a concepção metafísica de direito era retrógada, e que era uma das
202 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., loc. cit. 203 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 83. 204 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 20. 205 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I cit., p. 56.
responsáveis para o descrédito que se abatia sobre o direito, ao qual nesse passo era identificado
como “a ciência que cultivamos”206
. Com riqueza de imagens, explicitou essa crítica à
metafísica:
“A concepção de direito, como entidade metafísica, sub espécie aeterni, anterior e
superior à formação das sociedades, contemporâneas, portanto, dos mamutes
megatérios, quando aliás a verdade é que ele não vem de tão longe, e que a história do
fogo, a história dos vasos culinários, a história da cerâmica em geral, é muito mais
antiga do que a história do direito; essa concepção retrógrada, que pertence ao nosso
tempo, continua a entorpecer-nos e esterilizar-nos”207
.
Essa intuição realista de direito, que o tem como algo de nosso tempo, cuja história se
desdobra em tempos muito inferiores à todo o tempo imaginário da vida terrestre, dá-nos conta
da negação de compreensões metafísicas do direito, a exemplo do direito natural208
. Para Tobias
Barreto, o direito natural seria conceito inócuo, e que teria tanta razoabilidade quanto a
concepção de uma moral natural, uma gramática natural, uma ortografia natural, uma civilidade
natural; isto é, todas essas instâncias organizacionais, ponderou, são efeitos, e não causas, tratam-
se de inventos culturais209
. O direito seria um aspecto da cultura humana, não um dado
transcendente, concepção que Tobias Barreto recorrentemente retomava, afirmando que “o
direito não é um filho do céu, é simplesmente um fenômeno histórico”210
. Esse fenômeno
histórico é marcado por constantes disputas, isto é, “a luta fez parte essencial do direito”211
.
A noção de cultura em Tobias Barreto sugere esta como uma antítese da natureza,
exatamente porque a cultura muda a natureza, produzindo também o bom e o belo212
. Citando
Julius Fröbel, de quem se falará mais adiante, Tobias Barreto dimensionou um “processo geral
da vida”, que consistia justamente nessa oposição entre natureza e cultura213
. O direito é aspecto
cultural, e não natural, é construído, e não dos céus recebido.
206 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., loc. cit. 207 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., loc. cit. 208
A crítica de Tobias Barreto ao Direito Natural foi enfatizada por Djacir Menezes, para quem Tobias Barreto combateu o direito natural que se pensava na década de 1860, qual uma “ideologia obsoleta a serviço de privilégios canonizados”, sob forte influência de Noiré, Hartmann, Ewald, Hermann Post, Gneist e Jhering. Cf. Menezes, Djacir, Fortuna Crítica de Tobias Barreto, in Barreto, Tobias, Estudos de Direito I, cit., pp. 334-335. 209 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, pp. 32-33. 210 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 52. 211 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 34. 212 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 134. 213 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., loc. cit.
Essa percepção oferece-nos uma chave interpretativa importante para o estudo da obra de
Tobias Barreto. A concepção do direito como artefato cultural, construído, mostra-nos que o
pensador sergipano pensava na linha do relativismo dos historicistas. O historicismo entende o
homem como um ser histórico, contingencial, e que, portanto, só pode ser estudado na medida
em que contextualizado no ambiente cultural no qual vive. O mundo cultural não pode ser
entendido como um sistema; é um dado substancialmente histórico (Die Welt ist kein system,
sondern eine Geschichte).
Há uma busca inacabável do passado, ao qual não cabe - - necessariamente - - iluminar a
compreensão do presente. O passado seria um fim em si mesmo, concepção que resulta da
historização fundamental da concepção de homem e de mundo, que ocorreu ao longo do século
XIX214
. Se o século XVIII foi o século da biologia e das ciências naturais, o século XIX foi o
século da história.
O historicismo radica na obra de Montesquieu (1689-1755), cuja concepção de que leis
são relações necessárias que derivam da natureza das coisas aponta para um relativismo que
deve considerar épocas, locais, costumes215
. O historicismo revelou-se também em Voltaire
(1694-1778), para quem, o que preconizado como vício em um determinado país, seria
identificado como virtude em um outro lugar216
. Em Giambatistta Vico o historicismo era
também defendido, na medida em que esse pensador napolitano compreendia o relativismo como
resultado da impossibilidade de se medirem as culturas, comparativamente217
.
Na Alemanha o historicismo se desenvolveu com Johann Gottfried von Herder (1744-
1803), para quem não haveria superposições qualitativas entre as várias culturas e civilizações,
bem como não haveria civilizações superiores ou inferiores, isto é, não se poderia conjecturar
sobre cognominadas épocas de ouro218
. Savigny complementaria essa linha, com o tema do
Volksgeist, o espírito do povo, ainda que paradoxalmente obcecado com o direito romano. Pode-
se problematizar essa concepção, evidenciando-se uma contradição, na medida em que o
214 Cf. Contreras, Francisco J. Peláez, Savigny y el Historicismo Jurídico, Madrid: Tecnos, 2005, p. 23. 215 Cf. Contreras, Francisco J. Peláez, Savigny y el Historicismo Jurídico, cit., p. 37. 216 Cf. Contreras, Francisco J. Peláez, Savigny y el Historicismo Jurídico, cit., p. 40. 217 Cf. Contreras, Francisco J. Peláez, Savigny y el Historicismo Jurídico, cit., p. 43. 218 Cf. Contreras, Francisco J. Peláez, Savigny y el Historicismo Jurídico, cit., p. 45.
Volksgeist que plasmaria o direito alemão, para Savigny, seria justamente o direito romano do
baixo império219
.
Tobias Barreto revelou-se como um historicista, relativista, defensor de medidas
conceituais que apontam para as características culturalistas que seus intérpretes lhe imputam,
mais precisamente Miguel Reale.
Tobias Barreto denominava os defensores do direito natural de fabulistas, a quem
criticava por equipararem o direito aos frutos, que se colhem das selvas, ao ouro e a prata, das
minas extraídos, e “(...) até dos mariscos que se apanham na praia!”220
. E concluia, de modo
absolutamente irônico, provocando os defensores do direito natural: “(...) o direito natural vem a
ser, segundo eles, o direito sem mistura de realidade positiva, considerado em sua pureza
original; uma espécie de direito em pó ou de direito em barra, que vai sendo pouco a pouco
reduzido à obra... Não há maior contra-senso”221
. Tobias Barreto abominava “a velha razão,
infalível e absoluta, dos inventores de direito natural”222
, que não mais deveria ser invocada,
“como oráculo de verdades”223
.
Sempre com base em Jhering, Tobias Barreto concebia o direito como uma disciplina
social, “uma disciplina que a sociedade impõe a si mesma na pessoa de seus membros, como
meio de atingir o fim supremo (...)”224
. A finalidade o orienta; o direito é substancialmente
resultado da cultura humana, e não um dado metafísico, só pode ser entendido, “(...) não como
um presente divino, mas como um invento, um artefato, um produto do esforço do homem para
dirigir o homem mesmo”225
.
Na terceira e última tese de direito natural Tobias Barreto refutou a sociologia, no sentido
de que “a sociologia é apenas o nome de uma aspiração tão elevada quão pouco realizável”226
.
A crítica à sociologia é componente da crítica geral de Tobias Barreto em face do positivismo de
Augusto Comte, a quem se predica a concepção da sociologia como conhecimento com patamar
219 Cf. Contreras, Francisco J. Peláez, Savigny y el Historicismo Jurídico, cit. 220 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., loc. cit. 221 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., loc. cit. 222 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 287. 223 Barreto, Tobias, Estudos de Direito I, cit., loc. cit. 224 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 135. 225 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., loc. cit. 226 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 56.
de ciência. Para Tobias Barreto a sociologia não passava de uma frase227
. Ainda que admitisse
uma ciência social, esta não comportaria uma sociolatria, como ironicamente Tobias Barreto
assentava228
. Essa sociolatria, segundo o pensador sergipano, ainda reinava nos “domínios da
sociologia positivista”229
, passagem que nos remete a uma crítica direta a Augusto Comte.
Os sociólogos, continuava Tobias Barreto, pertenciam à ordem dos crentes; e crenças,
não se refutam...230
E a sociologia, afirmou, era “(...) apenas o nome de uma aspiração tão
elevada, quão pouco realizável”231
. Contra a sociologia, também ironicamente afirmava que não
estava disposto a afrontar um martírio; porém julgava-se no direito de exigir de seus “(...)
sectários alguma coisa mais séria do que meia dúzia de estribilhos e convenções de escola”232
.
Nas teses de Direito Público iniciou por afirmar que o “o ensino deve ser gratuito e
obrigatório”. Seguiu aqui o pensamento do publicista húngaro Joseph Stövös, cujo livro possuía,
e cuja trajetória acompanhava. Stövös fora um intransigente defensor do ensino obrigatório,
implantando esse modelo em seu país, quando foi ministro da educação. Tobias Barreto pregava
uma reforma educacional radical, que achava urgente, porquanto havia se perdido “a faculdade
de estudar”233
.
Em seguida, enunciou que “o governo de meu país pode obstar a emigração de
nacionais”234
. Aos olhos de hoje, a tese soaria estranha, porquanto invalidaria a liberdade de ir e
vir, valor do liberalismo jurídico, reconhecido nos países do Atlântico ocidental, ao longo do
século XIX. Chama a atenção o modo como o substantivo governo foi utilizado no texto. Já se
tinha uma percepção negativa, separando-se governo de Estado, no sentido de que este último
seria perene e aquele primeiro contingente. Em programa de ensino que elaborou Tobias Barreto
fez constar uma lição de Direito Público Universal com o tema “Estado e governo não são
sinônimos”235
.
O tema da emigração dos nacionais era relevantíssimo na segunda metade do século XIX.
A grande naturalização, que por decreto do governo provisório da república proclamada em
227 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 12. 228 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., loc. cit. 229 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., loc. cit. 230 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 14. 231 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 11. 232 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 12. 233 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 54. 234 Barreto, Tobias, Estudos de Direito I, cit., p. 57. 235 Barreto, Tobias, Estudos de Direito I, cit., p. 67.
novembro de 1889 (que Tobias Barreto não viu, porque morreu em junho daquele ano) concedeu
nacionalidade brasileira para todos os estrangeiros que aqui se encontrassem (e não se
manifestassem em contrário) é indicativo dessa preocupação, de se garantir uma expressão
populacional de nacionais.
Tobias Barreto concluiu as teses em direito público anunciando que “o conceito de
Estado é diverso do da Sociedade”. Essa tese alcançava toda a crítica de Tobias Barreto às
instituições do segundo reinado, que discutiu em textos alusivos ao Poder Moderador, ao modelo
federativo e à responsabilidade dos ministros no governo parlamentar. Ao Estado incumbiria
garantir instituições que atendessem as pulsões sociais. O Estado deveria refletir os costumes da
sociedade, sem o que perderia respeitabilidade e legitimidade. Segundo Tobias Barreto, “as
instituições que não são filhas dos costumes, mas um produto abstrato da razão, não aguentam
por muito tempo a experiência e vão logo quebrar-se contra os fatos”236
.
As teses de Hermenêutica Jurídica principiavam com uma declaração de que leis claras
não demandam esforço interpretativo, porque evidentes por si mesmas, do mesmo modo que
operações mentais dedutivas e indutivas não se aplicariam à compreensão do que pensamos e
sentimos. Assim, “A interpretação, que é um processo lógico, é tão pouco aplicável às leis
claras, como a indução e a dedução às instituições do pensamento ou dos sentidos”237
. Método
indutivos e dedutivos são aplicáveis às ciências da natureza, e não às ciências do espírito. O
pensamento é conteúdo, e não forma, é instrumento por intermédio do qual a indução e a
dedução se operacionalizam. A clareza da norma dispensa qualquer esforço lógico de
interpretação, porquanto a cognição se fez com o mero contato entre o intérprete e o enunciado.
A segunda tese deu-se no campo das antinomias. Tobias Barreto enunciou: “A regra a
seguir, no conflito de duas leis contraditórias, é ainda e sempre a lex posterior derogat priorem
subordinada ou modificada pela lex posterior generalis non derogat priorem specialem”238
. A
lei posterior revoga lei anterior, embora lei posterior geral não revogue lei anterior especial.
A terceira e última tese deu-se no campo das lacunas. Tobias Barreto contestou preceito
clássico (que denominou de velha parêmia) e que nos dá conta de que onde se têm as mesmas
razões, deve-se aplicar as disposições legais àquelas razões aplicáveis, enunciando: “Há casos
em que concorrem as mesmas razões, sem contudo prevalecerem as mesmas disposições; e tanto
236 Barreto, Tobias, Estudos de Direito I, cit., p. 102. 237 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 62. 238 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., loc. cit.
basta para matar a força da velha parêmia que não passa de uma indução precipitada- ubi
eadem ratio, eadem dispositivo”239
. Tobias Barreto imputou ao velho brocardo uma condição de
indução precipitada, anulando-o, porquanto, nem sempre, em âmbitos das mesmas razões devem
prevalecer as mesmas disposições.
Tobias Barreto revelava certa cautela para com a hermenêutica. Em um programa que
elaborou para o estudo dessa disciplina, incluiu uma lição que tinha por objetivo questionar sua
origem, indagando se a hermenêutica seria um “verdadeiro ramo do conhecimento, ou
simplesmente um produto retórico de gregos e romanos”240
. Essa restrição também era colocada
em relação à lógica, cuja força Tobias Barreto identificou como “(...) apenas a necessidade dos
tempos”241
, ainda que em outro contexto; para o pensador sergipano, a razão e a lógica
pertencem a certos homens, “(...) e estes homens, a uma certa época”242
.
A leitura das teses que Tobias Barreto apresentou à comissão do concurso, em 1882, nos
propicia uma introdução às linhas gerais que orientavam seu pensamento. Tobias Barreto era um
monista. Recusava a metafísica, o direito natural e a sociologia. Refutava o positivismo de
Comte. Declarava-se adepto do darwinismo, nas versões de Haeckel, Noiré e Jhering. Defendia a
gratuidade e a obrigatoriedade do ensino. Afirmava a possibilidade do governo imperial negar a
emigração de nacionais. Tobias Barreto refutava também a identidade entre Estado e Sociedade,
como também recusava a identidade entre Estado e Governo.
No contexto de alguns problemas mais analíticos, Tobias Barreto negava a interpretação
de norma clara, refutava o uso da indução e da dedução para apreensão do pensamento e dos
sentimentos. Afirmou que a lei posterior nem sempre revoga a lei anterior, porque esta pode ser
especial, e aquela pode ser geral. Por fim, negou que onde há as mesmas razões, deva-se ter,
necessariamente, as mesmas disposições.
Também chama a atenção em Tobias Barreto a atitude iconoclasta e crítica que
manifestou para com algumas instituições, a exemplo do poder moderador, bem como para com
ilustres personalidades do Império, a exemplo de José de Alencar, Joaquim Nabuco, Zacarias de
Góes e Vasconcelos, Visconde do Uruguai, Pimenta Bueno, Coelho Rodrigues, Tavares Bastos,
aos ministros de D. Pedro II em geral, bem como ao próprio Imperador.
239 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., loc. cit. 240 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 72. 241 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 111. 242 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., loc. cit.
Tobias Barreto tinha José de Alencar como “espírito superficial, destituído de ideias”243
.
Criticou Joaquim Nabuco porque este teria combatido proposta para criação do imposto de
renda, argumentando que na Inglaterra “não havia declaração de renda”; o que, segundo Tobias
Barreto, ironicamente, seria tão exato quanto dizer que “(...) nem a Grã-Bretanha é uma ilha”244
.
E quanto a Zacarias de Gois e Vasconcelos, a propósito de comentar o livro desse importante
político do Império, também com muito sarcasmo:
“(...) O autor é realmente, como dizem, um talento de primeira ordem, uma estrela de
primeira grandeza. Todavia, depois de muito afeito aos negócios políticos, depois de
dez anos de magistério, depois de exercitado nas práticas do governo representativo,
sem dúvida com uma grande provisão de leitura, aos cinquenta anos de idade, veio
enfim oferecer-nos, como fruto de eu talento e sua ciência, o pequeno livro sobre o
poder moderador! Livro sem seiva, pálido, inanido de ideias, através do qual não corre
uma só veia dquele puro sangue, que distingue a raça dos deuses, os heróis do
pensamento”245
.
Para Tobias Barreto, o parlamentar Zacarias de Goes e Vasconcelos não pertencia à
classe dos escritores; poderia ser considerado um distinto orador parlamentar, mas não um
escritor246
. Criticava também o Visconde do Uruguai e seu livro de direito administrativo, a
quem imputava os defeitos próprios de um legista: “dogmatismo, atitude magistral e pouca
ambição de descer ao fundo”247
, ainda que - - prosseguia Tobias - - escrevia melhor do que
Zacarias248
.
O pensador sergipano também criticou Pimenta Bueno (o Marquês de São Vicente), autor
de um “(...) volumoso livro de 582 páginas; espécie de armazém jurídico, onde a mocidade
estudiosa costuma embeber-se e ficar adormecida”249
. De igual modo, criticou Coelho
Rodrigues, quem, prossegue Tobias Barreto, “fazendo da soberania naciona uma dedução de
princípios metafísicos, mostra [...] desconhecer a natureza de uma e outra coisa: não sabe o que
é soberania nem o que é metafísica”250
. Tobias Barreto também não poupou Tavares Bastos,
fazendo-o ao comentar livro no qual o político alagoano defendia o federalismo:
243 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 149. 244 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 175. 245 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 107. 246 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 108. 247 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 110. 248 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., loc. cit. 249 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 140. 250 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 135.
“Há quem diga que o livro do Sr. Tavares há de ser, por muito tempo, o alimento das
aspirações de um partido. Isto se diz com intenção de tecer o maior dos elogios. Creio,
porém, que o autor, se tem consciência do mister, não verá nisso um motivo de lisonjear-
se. Pelo contrário. Quem produz um volumoso escrito, para o qual abriu sem dúvida os
tesouros de acumulado pensar, e recebe aquela espécie de louvor, me parecer que não
deve ficar muito satisfeito. Na verdade, um livro refletido, de mais de 400 páginas, cujo
mérito mais alto, qualquer que seja o seu objeto, é de alimentar, longo tempo, as
aspirações de um partido, um livro tal, com licença dos encomiastas, é um livro mau”251
.
Tobias Barreto, ainda que não fizesse propaganda republicana abertamente, criticava a
monarquia, e o fazia diretamente na pessoa do Imperador. Nesse tema, por outro lado, Tobias
Barreto deixou claro que não comungava “(...) no banquete dos que brindam a república,
atacando a pessoa, e só a pessoa do monarca”252
. Afirmou que não acreditava no talento e nem
na sabedoria de D. Pedro II253
, a quem ironizava, afirmando que o Imperador, que retornava da
Europa, iria- -quase esquecido da língua pátria - - “entreter-se em latim, grego ou hebreu com os
seus primeiros ministros, cuidando pouco dos interesses internos”254
. E, ainda com base e
referência a pensador alemão, Tobias Barreto hostilizava a realeza:
“A realeza me parece anacrônica, inaceitável, considerada em si mesma e por si mesma,
como diria um hegeliano. Pouco me importam as circunstâncias boas ou más que a
rodeia. Quanto a mim, o rei mais sábio e clemente, mais tocado de afetos paternais, tem
sempre um último ato a praticar, sem o qual nada julgo despertar admiração: é descer
do cimo olímpico e fazer-se homem como os outros”255
.
Em outra passagem, o tom é bem mais hostil. Tobias Barreto reconhece que o imperador
não alcançaria por méritos próprios alguma alusão na memória nacional. Ao fim, no entanto,
reconhece alguma liderança, que não contesta:
“Releva admitir que não tenho D. Pedro II na conta de um homem representativo: pelo
contrário, estou convencido de que, se outro fora o seu berço, se tivesse nascido na
obscuridade e na pobreza, se não fosse um daqueles que, ao abrirem os olhos à luz, já
encontram decidida em seu favor a luta pela existência, com todos os proventos da
vitória facilmente ganha, os seus talentos não chegariam para salvá-lo do esquecimento
que aguarda as pobres mediocridades. Mas a verdade é que, ou por efeito da posição, ou
251 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 151. 252 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., loc. cit. 253 CF. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 133. 254 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 133. 255 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., loc. cit.
pela boa índole do povo, a quem governa, ele é em todo caso o pastor do seu
rebanho”256
.
Tobias Barreto era diferente, pensava de modo díspar, diferenciava-se dos demais colegas
de ensino, especialmente no sentido de que “há no carácter de todo reformador uma certa
muscularidade, uma certa bruteza, companheiras da sinceridade da crença e da força dos
sentimentos”257
. Tobias Barreto, também foi poeta, competindo com Castro Alves, de quem foi
contemporâneo. Tobias Barreto é o patrono da cadeira número 38 da Academia Brasileira de
Letras.
Tobias Barreto representou uma onda de renovação, uma nova forma de se pensar a
influência francesa no Brasil, o que se afere nas várias vezes que opinava, a exemplo de famoso
discurso de formatura, sobre o qual se trata em seguida.
Em 10 de abril de 1883 Tobias Barreto proferiu discurso - - na qualidade de paraninfo - -
em cerimônia de colação de grau, na Faculdade de Direito do Recife258
. Trata-se de discurso
absolutamente inovador, provocativo, e ainda hoje o seria, passados mais de um século. Os
problemas centrais da discussão jurídica, postos no século XIX, permaneciam à espera de
solução; refiro-me, especialmente, ao dilema que opõe o jusnaturalismo ao juspositivismo, a
metafísica ao realismo259
.
Tobias Barreto foi um homem de ciência, muito adiante para o tempo no qual viveu. Se
estivesse entre nós, hoje, provavelmente criticaria a metafísica que é marca do raciocínio jurídico
dominante no Brasil; manteria, certamente, como mote, passagem memorável: “uma coisa são
princípios feitos; outras coisas os princípios que se fazem”260
. Multiplicamos princípios e
referências, como se referências e pressupostos fossem dados, e não construídos.
O então paraninfo iniciou sua fala lembrando que discursos proferidos em cerimônias de
formaturas deveriam obedecer a formas e ritos, todos já estabelecidos. Nada de novo ou de
inusitado poderia ocorrer. E assim, com mordacidade que lhe era característica, Tobias Barreto
provocava:
256 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 432, 257 Amado, Gilberto, Tobias Barreto, Rio de Janeiro: Ariel Editora, 1934, p. 29. 258 O discurso encontra-se reproduzido em Barreto, Tobias, Estudos de Direito- I, Rio de Janeiro: J. E. Solomon; Sergipe: Editora Diário Oficial, 2012, pp. 49-55. Organização de Luiz Antonio Barreto. 259 Conferir, por exemplo, Roberto Mangabeira Unger, The Universal History of Legal Thought, disponível em www.robertounger.net. 260 Barreto, Tobias, cit., p. 113, a propósito de um texto crítico sobre o Poder Moderador.
“Como vedes, é uma questão de ritual, e eu tenho obrigação de cingir-me a ele. Não
seria pois de estranhar que me limitasse a dizer: eu vos felicito, senhores doutores; a
importância do grau que vos foi conferido, medi-a pela magnitude dos esforços que ele
vos custou, e o uso que tendes a fazer das vossas letras, determinai-o vós mesmos,
segundo os ímpetos do vosso talento e as inspirações de vosso caráter. Não seria de
estranhar que a isto me limitasse, e desse então por findo o meu discurso. Nem haveria
razão para se me acusar de esterilmente conciso, por excesso de respeito a uma
disposição de lei (...)”261
.
Tobias Barreto de algum modo revoltava-se com o fato de que a condição de paraninfo o
condenava a “(...) entoar o mesmo hino, a recitar o mesmo epitalâmio, por esta espécie de
noivado científico(...)”262
. Via-se como mais um daqueles “(...) condenados a repetir em estilo
de brinde, as mesmas fazes frases consagradas, para acentuar a importância de um fato que
ninguém contesta, e o verdadeiro uso de um título que todo mundo sabe qual seja”263
. O
discurso de formatura é mero cumprimento de ritual, e Tobias Barreto não era homem para o
simples cumprimento de rituais e repetição de fórmulas litúrgicas. Era um pensador; não estava
preocupado com a colocação de pronomes, com a crase, com a vírgula no hebraico, como
sugeriu Monteiro Lobato, outro pensador independente, em conhecido conto.
O jurista sergipano se culpava por se apresentar, naquele momento, no “(...) modesto
papel eclesiástico de um mestre de cerimônias”264
. Por isso, aproveitou a ocasião para exercer
papel de educador pensante, provocando o auditório, com questões que - - naquela ocasião, como
ainda hoje - - colocam-se no centro das preocupações daqueles que refletem sobre a ação dos
juristas no contexto dos arranjos sociais que herdamos, e que precisamos transformar. O mundo é
um construído, e não um imaginário dado metafísico.
Tobias questionava por que a ciência do direito corria o risco “(...) de ser classificada no
meio dos expedientes grosseiros, de tornar-se uma ciência puramente nominal, que pode dar o
pão, porém não dá a honra a ninguém, ou, como diz H. Post, uma irmã da teologia que se limita
a folhear o Corpus Juris, como esta folheia a Bíblia?”265
. Comparando o direito com a teologia,
na forma e no fundo, Tobias Barreto irritava-se com o fato de que o pensamento jurídico resistia
261 Barreto, Tobias, cit., loc. cit. 262 Barreto, Tobias, cit., loc. cit. 263 Barreto, Tobias, cit., loc. cit. 264 Barreto, Tobias, cit., p. 50. 265 Barreto, Tobias, cit., p. 51.
às mudanças que se processavam nas ciências naturais, e que deveriam ser levadas em conta, a
exemplo da influência que Darwin exercera em Rudolf von Jhering.
Para o jurista sergipano, todas as ciências haviam quebrado “o primitivo invólucro
poético; só o direito não quer [queria] sair da sua casca mitológica”266
. E assim, em passagem
indicadora de pensamento culturalista267
, crítico da percepção de um direito transcendente,
prosseguia o orador:
“A concepção do direito, como entidade metafísica (...), anterior e superior à formação
das sociedades, contemporâneas, portanto, dos mamutes megatérios, quando aliás a
verdade é que ele não vem de tão longe, e que a história do fogo, a história dos vasos
culinários, a histórica da cerâmica em geral, é muito mais antiga do que a história do
direito; essa concepção retrógrada, que não pertence a nosso tempo, continua e
entorpecer-nos e esterilizar-nos. Aí está, senhores doutores, o segredo do descrédito em
que caiu a ciência que cultivamos”268
.
Nesse mesmo discurso, Tobias Barreto proferiu mais uma vez a frase que provavelmente
mais resume o seu pensamento: “o direito não é um filho do céu, é simplesmente um fenômeno
histórico, um produto cultural da humanidade”269
. Pensava como Rudolf von Iehring,
aproximando a ideia de direito ao juízo de força, em sentido absolutamente construtivo; lê-se no
que se registrou do discurso aqui comentado: “a força que não vence a força não se faz direito;
o direito é a força, que matou a própria força”270
. Tobias Barreto não mencionava a força da
contingência, bruta, abusiva; não falava de uma “(...) força de polícia, às ordens de um
delegado, cercando igrejas para fazer eleições (...)”271
.
Sempre preocupado com o mistério que é a vida humana, procurava “(...) melhor
compreender os homens e melhor perdoar-lhes as suas fraquezas”272
. Para Tobias Barreto, como
se colhe nesse vibrante discurso de paraninfo, o direito é “(...) a pacificação do antagonista das
266 Barreto, Tobias, cit., p. 52. 267 Esse tema, a relação de Tobias Barreto com o culturalismo, foi explorado exaustivamente por Miguel Reale. Consultar, Reale, Miguel, Horizontes do Direito e da História, São Paulo: Saraiva, 1956, pp. 225-233. 268 Barreto, Tobias, cit., loc. cit. 269 Barreto, Tobias, cit., loc. cit. 270 Barreto, Tobias, cit., loc. cit. 271 Barreto, Tobias, cit., p. 53. 272 Barreto, Tobias, cit., p. 55.
forças sociais, da forma que, perante o telescópio moderno, os sistemas planetários são tratados
de paz entre as estrelas”273
.
Tobias Barreto pretendeu uma mudança radical na cultura brasileira do século XIX,
pregando o afastamento do pensamento brasileiro do ultramontanismo de Joseph de Maistre e do
positivismo de Augusto Comte, em favor de várias manifestações do pensamento alemão que
colheu nas obras de Ludwig Noiré, Ernst Haeckel e Rudolf von Jhering.
A Alemanha e os pensadores alemães que fascinaram Tobias Barreto são temas que não
se pode desconsiderar quando se tenta entender o pensamento brasileiro do século XIX,
especialmente nesse contexto de oposição entre autores franceses e alemães. E de igual modo, do
ponto de vista europeu, e mais especificamente alemão, os autores que infuenciaram Tobias
Barreto, alguns esquecidos, são protagonistas de mais um movimento de transposição de ideias,
o que faz da Europa menos uma fronteira topográfica e geográfica do que efetivamente um
conceito histórico e cultural.
III) O ambiente cultural e jurídico da Alemanha que fascinou Tobias
Barreto
Como seria o ambiente político, cultural e jurídico da Alemanha nas décadas de 1870 e
de 1880274
? Que influência a Kulturkampf e a era de Bismarck275
exerceram sobre Tobias
Barreto? Como era o ambiente filosófico e normativo no qual escreveu Rudolf von Gneist, que
foi aluno de Savigny276
, e que foi tão recorrentemente citado por Tobias Barreto? De que modo
273 Barreto, Tobias, cit., p. 53. 274 Conferir, quanto ao ambiente jurídico, Fehr, Hans, Deutsche Rechtsgeschichte, Berlin: Walter de Gruyter & CO., 1962, pages 283-294. Também, Hoke, Rudolf, Österreichische und Deutsche Rechts-Geschichte, Wien, Köln, Weimar: Böhlau Verlag, 1992, pages 419-438. 275 Kunisch, Johannes, Bismarck und seine Zeit, Berlin: Humblot, 1992. Mergel, Thomas e Zieman, Benjamin, European Political History- 1870-1913, Aldershot e Burlington: Ashgate Publishing, 2007. Para uma percepção mais original, consultar documentos e cartas do próprio Bismarck em Bismarck, Otto von, Deutscher Staat, München: Drei Masfen Verlag, 1925. 276 Para uma visão geral, conferir, Hattenhauer, Hans, Europäische Rechtsgeschichte, Heilderberg: C. F. Müller Juristischer Verlag, 1992, pp. 585-651, nas quais o autor explora o que denomina de Europäische Weltherrschaft. Para uma síntese, Hülle, Werner, Deutsche Rechtsgeschichte, Heildelberg: Verlagsgesellschaft Rech um Wirschaft, 1979, p.120.
as fórmulas de proteção social decorrentes do Estado de Bismarck277
poderiam ter tido alguma
influência, ainda que reflexa, na obra de Tobias Barreto, por força dos autores alemães que ele
estudou?
Qual a origem comum dos autores alemães que Tobias Barreto estudou? Quais os
reflexos da polêmica Savigny versus Thibaut sobre a construção do pensamento jurídico alemão,
que tanta influência exerceu sobre Tobias Barreto? O que foi a escola histórica do direito? E a
pandectística? E a jurisprudência dos conceitos?
Pode-se afirmar que essas escolas de jurisprudência influenciaram o pensamento de
Tobias Barreto, possibilitando-se, assim, a transposição de ideias europeias na América Latina?
Uma tentativa de resposta a essas indagações propicia esclarecimentos que podem orientar uma
melhor compreensão da germanofilia em Tobias Barreto, bem como da construção do
pensamento brasileiro no século XIX.
Tobias Barreto recebeu impacto do novo papel que a Alemanha passou a desempenhar na
Europa a partir de 1870. A vitória alemã na guerra franco-prussiana marcou mais um passo na
rivalidade entre França e Alemanha, que se alongava desde o início da revolução francesa, e que
iria se projetar ainda no século XX. Tem-se uma crônica de permanente revanchismo, que se
desdobrou em duas guerras mundiais. No fim do século XVIII essa tensão ganhou maior
dimensão.
Os temas do iluminismo francês foram recepcionados, discutidos e difundidos na
Alemanha, no contexto de um movimento germânico de esclarecimento (Auklärung). As obras
de Immanuel Kant (1724-1804), no campo da filosofia, bem como uma literatura romântica que
se apreende em autores como Johann Wolfgang Goethe (1749-1832), Friedrich Schiller (1759-
1805) e Johann Gottfried von Herder (1744-1803), distinguem o protagonismo alemão nesse
ambiente cultural, com algumas particularidades.
Não há relação entre o iluminismo alemão e o radicalismo revolucionário que marcou o
ideário do idealismo francês. Goethe e Schiller, por exemplo, eram distantes de correntes mais
populares, fiando-se no absolutismo, que depurado da tirania, deteria um dos mais significativos
potenciais políticos para organização da sociedade, na compreensão desses autores278
. O
277 Para esse tema, por todos, Stolleis, Michael, History of Social Law in Germany, Berlin- Heidelberg, 2014, pp. 17-29. 278 Brose, Eric Dorn, German History- 1789-1871- From the Holy Roman Empire to the Bismarckian Reich, Providence and Oxford: Berghahn Books, 1997, p. 21.
aprendizado de Wilhelm Meister, bem como Hermann e Dorothea, aquele, um romance, este
último, um poema épico, são obras de Goethe que apontam para a possibilidade do ser humano
vencer e se movimentar em uma conjuntura social de estruturas limitantes. O mesmo Goethe, no
entanto, ponderou que seria improdutiva uma revolta contra as forças dominantes279
. Essa
dubiedade, o homem pode transcender ao meio, ainda que não possa se insurgir contra as forças
que dominam o meio no qual vive, é um dos traços que marca uma profunda tensão
caracterizadora do romantismo alemão.
De igual modo, a revolução francesa foi recebida com dubiedade, especialmente quanto à
atitude alemã para com Napoleão Bonaparte. Nesse último caso, é ilustrativa a apreensão em
Ludwig van Beethoven (1770-1827), na composição e edição da Terceira Sinfonia (A Heroica),
consagrada a Napoleão; a dedicatória foi superveniente suprimida. O primeiro movimento dessa
impressionante peça celebra o triunfo do imperador francês, ainda que este tenha provocado
posterior desapontamento e desilusão no compositor alemão280
. Beethoven teria rasgado a
dedicatória que fizera a Napoleão.
Ao longo das décadas de 1810 e de 1820 era frequente a passagem de exércitos franceses
pela Alemanha, ocorrência marcada por violências, saques e provocações. Em 1806 Napoleão
decretou o fim do Sacro Império Romano Germânico, uma frágil concepção política que se
suponha unir os vários principados e cidades alemãs. Sucedeu a este império secular uma
Confederação Renana, que não compreendia a Prússia. A resistência dessa última, com a
consequente ocupação de Berlim pelos exércitos napoleônicos, após a batalha de Iena, em 1806,
de uma certa forma, encorajou as regiões que ainda não pertenciam à Confederação Renana para
que dela participassem281
.
A Prússia engendrou se reerguer, em todos os aspectos, especialmente do ponto de vista
cultural, do que a Universidade de Berlim, fundada em 1810, é o mais significativo exemplo.
Nessa universidade, dirigida por Wilhelm von Humboldt (1767-1835), lecionaram, à época,
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1821), Leopold von Rancke (1795-1886) e Friedrich
Schleiermacher (1768-1834).
A preponderância da Prússia no conjunto político alemão ganhou uma maior dimensão
com a derrota de Napoleão em 1815. Ainda que a Prússia não tenha participado da então criada
279 Brose, Eric Dorn, cit., p. 38. 280 Brose, Eric Dorn, cit., p. 42. 281 Brose, Eric Dorn, cit., p. 52.
Confederação Germânica, seus líderes conseguiram tirar proveito da era de liberdade e de
competição que se desfrutou nas porções mais ocidentais da Alemanha, o que não deixou de ser
uma herança da presença francesa e dos ideais iluministas naquelas regiões então instituídos282
.
Uma concomitante preponderância austríaca sobre várias regiões da atual Alemanha
redundou em medidas conservadoras e repressivas, conduzidas pelo chanceler austríaco Klemens
von Metternich (1773-1859); tais medidas repressivas são conhecidas como os Decretos de
Carlsbad. Um antagonismo crescente entre Prússia e Áustria apontou para um dualismo
germânico, resultado, entre outros, do Congresso de Viena. Os Decretos de Carlsbad permitiram
a perseguição de liberais e de grupos de jovens nacionalistas, que então se multiplicavam, por
meios de associações (as Burchensschaften), bem como de clubes de ginástica e de
fisiculturismo, verdadeira mania que à época tomava conta da juventude alemã283
.
A defesa de valores liberais e democráticos impulsionou as revoltas alemãs de 1848 que
redundaram na votação e convocação de um parlamento (de Frankfurt, Die Frankfurter
Reichsverfassung von 1849)284
e em uma constituição (discutida em Frankfurt, a chamada
Paulskirchenverfassung)285
. O parlamento foi dissolvido e a constituição não alcançou todos os
interesses alemães, pelo que a fragmentação persistiu até a década de 1860.
A ascensão de Otto von Bismarck (1815-1898) como chanceler da Prússia distinguiu uma
intensa liderança no processo final de unificação, que se consubstanciou simbolicamente também
com a vitória alemã frente aos franceses na batalha de Sedan e posterior assinatura de um tratado
em Versalhes em 18 de janeiro de 1871. Esse processo coroou a chamada síntese de Bismarck286
.
Alterou-se profundamente o panorama política europeu287
. E houve reflexos em vários lugares
do mundo, a exemplo do Brasil, no que se refere à disputa da primazia intelectual entre França e
Alemanha.
282 Brose, Eric Dorn, cit., p. 108. 283 Brose, Eric Dorn, cit., p. 93. 284 Cf. Gmür, Rudolf e Roth, Andreas, Grundriss der deutschen Rechtsgeschite, München: Verlag Franz Vahlen, 2014, p. 163. 285 Brose, Eric Dorn, cit., pp. 250-252. 286 Brose, Eric Dorn, cit., p. 329. 287 Ziemann, Benjamin e Mergel, Thomas European Political History- 1870-1913, Aldershot: Ashagate 2007.
Imediatamente após a concretização da liderança prussiana na condução da nova unidade
política (o IIº Reich)288
Otto von Bismarck iniciou uma política hostilmente anticlerical, a
Kulturkampf, por intermédio da qual combateu intensamente o catolicismo, determinando, entre
outros, a obrigatoriedade do casamento civil (e não mais do religioso) como condição para
reconhecimento da união conjugal, por parte do Estado. Essa política resultou em intensa
perseguição a poloneses, identificados com o catolicismo.
Os autores alemães que fascinaram Tobias Barreto escreveram seus livros nos anos que
antecederam à conclusão do processo de unificação, bem como nos anos nos quais o processo de
guerra cultural Kulturkampf foi formulado e desenvolvido. A construção de uma unidade política
alemã alimentou as várias formulações dos pensadores jurídicos alemães do século XIX, a
exemplo do federalismo, que no Brasil também foi discutido, nos últimos anos do império.
Tobias Barreto criticou um livro de Tavares Bastos, cuja proposta se asselhava à criação de um
modelo federalista brasileiro.
O confronto político que opôs recorrentemente franceses e alemães também se verificou
nos campos da cultura e do direito, e de modo também absolutamente intenso. No caso interno
alemão, o pano de fundo desse antagonismo se deu em torno de um acirrado debate sobre a
codificação do direito. A polêmica entre Savigny e Thibaut é exemplo dessa disputa. A recepção
do chamado historicismo, entre os alemães, é um indicativo de repulsa às grandes narrativas que
a revolução francesa divulgava, a exemplo da construção de um direito natural, cujos atributos
teria pretensões universais.
O direito europeu do século XIX nasceu sob os auspícios dos grandes temas do
iluminismo jurídico: soberania nacional, representação política, liberdades civis (de reunião, de
propriedade, de expressão, de culto), divisão de poderes, império da lei e estado de direito.
Pretendia se fixar esse novo direito em textos claros, precisos, completos, sistemáticos e
redigidos em língua vernácula289
.
Essa tradição, defensora da chamada codificação, remontava a Gottfried Wilhelm
Leibnitz (1646-1716) e mais recentemente a Jeremiah Bentham (1748-1832). Na tradição de
288 Sucessor do I º Reich, o Sacro Império Romano Germânico, Heiliges Römisches Reich, que existiu da coroação de Carlos Magno, no ano 800, até a dissolução formal do Império, por determinação de Napoleão Bonaparte. 289 Cf. Alvarado, Javier, texto introdutório sobre o direito europeu no século XIX em Domingo, Rafael (org.), Juristas Universales, Madrid e Barcelona: Marcial Pons, 2004.
Leibnitz esgotava-se uma pretensão jusnaturalista de deduzir todo o direito de uma razão
universal, ideia compartilhada por Cristian Wolff (1679-1754). Na tradição de Bentham,
utilizada como razão justificativa do empenho de codificação, preponderava a pretensão de um
sistema que promovesse a segurança jurídica. A Leibnitz e a Bentham acrescenta-se o jurista
napolitano Gaetano Fielangeri (1752-1788) a quem pode-se imputar, na era moderna, o esforço
de edificação de uma ciência da legislação, a legística. A legística ocupa-se com a qualidade das
normas jurídicas.
Do ponto de vista dos arranjos jurídicos, para Javier Alvarado, “a física substituiu a
metafísica; a ciência abstrata e especulativa foi superada pela ciência prática e
experimental”290
; houve reflexos dessa nova época na construção fórmulas institucionais e
normativas, isto é, do modo como o ordenamento jurídico era publicamente revelado.
A ideia de código triunfou na França napoleônica, onde se registram o Código Civil
(1804), o Código de Processo Civil (1807), o Código de Processo Penal (1808) e o Código Penal
(1808). A pretensão de um ordenamento completo, sem lacunas, no qual o direito era a lei, e essa
a vontade do Estado, justificou a imensa tarefa de codificação então realizada. Decorre dessa
construção a Escola de Exegese, para a qual as leis naturais somente obrigariam quando
sancionadas por leis escritas.
A interpretação do direito iria se resumir à um processo de investigação do sentido do
texto codificado. Ao intérprete caberia buscar a intenção e a vontade do legislador. Charles
Aubry (1803-1883), Raymond-Theódore Troplong (1795-1869) e Jean Charles Florent
Demolombe (1804-1887) são os nomes mais expressivos dessa escola de interpretação, que na
França foi criticada e de algum modo superada pela obra superveniente de François Geny (1861-
1959). Para a Escola de Exegese, ao jurista, caberia, tão somente, a tarefa de exposição e de
comentário dos códigos então promulgados291
.
A reação alemã à escola de exegese deu-se com a escola histórica do direito. E é a partir
do papel e da influência desta escola de pensamento, liderada por Friedrich Carl von Savigny
(1779-1861), que se construiu uma linha de pensamento jurídico alemão, cujo ponto máximo no
século XIX deu-se no modelo da jurisprudência dos interesses, ligado à Rudolf von Jhering,
autor alemão que fascinou Tobias Barreto.
290 Alvarado, Javier, cit. 291 Alvarado, Javier, cit.
Ainda que menos sistematicamente - - as citações de Tobias Barreto em relação ao
trabalho de Friedrich Karl von Savigny são escassas -- é fundamental também, a influência desse
pensador alemão em Tobias Barreto. Não há registros de que Tobias Barreto possuísse livros de
Savigny em sua biblioteca, ainda que o admirasse intensamente. Deve-se levar em conta também
a influência de Savigny em relação a Rudolf von Jhering.
Tobias Barreto argumentava em favor de uma escola histórica para o direito penal, a
exemplo das escolas históricas que invadiam outros campos do direito, imensamente
influenciados pela doutrina de Savigny, em texto no qual lançou alguns apontamentos históricos
sobre o direito criminal292
. Tobias Barreto citou Savigny em artigo que elaborou a propósito de
uma nova intuição do direito, argumentando com base em percepção culturalista, no sentido de
que o direito seria uma criação humana293
, lembrando conceito de Savigny, para quem o direito
seria o “conjunto de condições existenciais da sociedade coativamente asseguradas”294
. Como
será mais a frente argumentado, há fortes razões para que se defina Tobias Barreto como um
historicista.
Savigny nasceu em Frankfurt, e tinha dez anos quando os revolucionários parisienses
tomaram a Bastilha. Savigny combateu o legado jurídico da Revolução Francesa: não
compreendia o conteúdo anacronicamente metafísico das premissas de igualdade, bem como não
admitia o construído pouco empírico do contrato social. Savigny sintetizou em sua trajetória o
romantismo jurídico alemão do século XIX, do que faz prova inclusive uma intensa reprodução
iconográfica em torno de sua pessoa295
.
A família de Savigny era de refugiados franceses, de onde seu nome, por alguns
pronunciado à moda francesa. Casou-se com Cunigunda Brentano, também de família
aristocrática, que o aproximou dos círculos culturais da época, ligados ao romantismo296
.
Protestante, apaixonado por arquitetura e pela literatura greco-romana, Savigny estudou
Direito, História e Filosofia em Marburgo e em Göttingen. Foi professor catedrático na
292 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, Campinas: Bookseller, 2000, p. 191. 293 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 105. 294 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., loc. cit. 295 Essa intensa reprodução iconográfica é apresentada e comentada por Rückert, Joachim, Ritzke, Beate e Foljanty, Lena, Savigny-Portraits, Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 2011. 296 Cf. Camacho, Fermin Evangelista, Friedrich Karl von Savigny em su segundo centenário: 1779-1979, Separata de los Cadernos de la Asociación Cultural Hispano Alemana, III, p. 169.
Universidade de Berlim, onde foi recebido por Wilhelm von Humboldt297
. Francisco Sosa
Wagner nos narra que Savigny era extremamente vaidoso; em seu livro sobre a história da
germanística jurídica Sosa Wagner conta-nos uma anedota: Savigny não passava perto de um
riacho sem olhar para a própria imagem refletida nas águas...298
Ainda que tenha iniciado sua carreira de professor lecionando Direito Penal — escreveu
tese sobre o concurso nos crimes formais — Savigny ensinou Direito Romano, História do
Direito e Metodologia Jurídica. Savigny foi reitor da Universidade de Berlim, em 1812,
sucedendo a Johann Gottliebe Fitche.
Substancialmente, defendia que o Estado não cria o Direito. Este último seria o resultado
da experiência espontânea de um povo. Por isso, o Direito é fato histórico, inerente a um
determinado grupo humano. E porque o Direito é qualificado pela existência cultural de uma
nação, não se poderia falar em um Direito novo. O Direito não nasceria; o direito apenas
persistiria. O Direito é função perene e recorrente que surge e que se esgota em si mesmo.
Falaciosa, assim, a busca de regras abstratas para fatos concretos; seriam estes últimos que ditam
aquelas primeiras.
Savigny era um inimigo da codificação, formulação que havia triunfado entre os
franceses299
. Repudiou o movimento que visava a sistematização do Direito Civil alemão,
polemizando com Anton Friedrich Justus Thibaut (1772-1840). Para Savigny a codificação do
Direito conduziria ao congelamento de uma latente e realizada experiência cultural e normativa.
Identificado como o maior nome da chamada escola histórica do direito, Savigny afirmava que
nenhuma etapa histórica vive por si mesma; todo momento histórico é, necessariamente, a
continuidade do passado. Para essa escola, o homem é fundamentalmente um ser histórico.
Savigny liderou a chamada escola histórica do direito, cuja metáfora constitutiva
radicava na ideia de organismo, concepção que se fundava na possibilidade de relação entre as
várias instâncias da vida social, que transitavam da língua para os costumes, no contexto mais
297 Cf. Camacho, Fermin Evangelista, cit. 298 Sosa Wagner, Francisco, Maestros alemanes del Derecho Público, Madrid e Barcelona: Marcial Pons, 2005. 299 Para uma visão francesa, formulada em meados do século XIX, a respeito da resistência de Savigny à ideia de codificação, Laboulaye, Édouard, Essai sur l avie et les doctrines de Frédéric Charls de Savigny, Paris: A. Durand, Libraire, 1842, pp. 35 ss.
amplo do romantismo alemão300
. A atuação de Savigny transcendeu ao contexto da academia.
Savigny foi também conselheiro do estado da Prússia (1817) e ministro da reforma legislativa
(1842-1848)301
.
Há uma aproximação intensa de Savigny com a obra dos irmãos Grimm, especialmente
com Jacob Grimm - - também citado por Tobias Barreto302
- - o fundador da germanística e da
filologia alemã. Jacob Grimm fora aluno de Savigny, com quem viajou a Paris, em missão de
estudos cujo objetivo era um levantamento das fontes do direito romano legadas pela idade
média. Jacob Grimm inventariou as fontes do direito alemão antigo. Os irmãos Grimm
realizaram um intenso trabalho de reunião de antigos contos e estórias populares alemãs,
empreitada que no Brasil realizou Silvio Romero. A concepção de um dicionário alemão
moderno também foi um projeto parcialmente realizado pelos irmãos Grimm.
A polêmica entre Savigny e Thibaut opôs os defensores de um direito de inspiração
popular aos defensores de um direito codificado. Anton Thibaut, professor na Universidade de
Heildelberg, publicou, em 1814, um libelo defendendo a necessidade da codificação na
Alemanha (Über die Notwendigkeit eines allgemeinen bürgerlichen Rechts in Deutschland),
inclusive, como meio para a unificação. Imbuído de forte espírito iluminista, entusiasmado pela
concepção de leis gerais, Thibaut invocava uma percepção científica do direito, que poderia ser
alcançada, de modo matemático, por textos normativos de abrangência geral303
. Seus detratores o
identificaram com o pensamento francês.
Thibaut pretendia superar particularismos localizados em favor da simplificação do
ordenamento, que na Alemanha deteria validade geral304
. Thibaut pretendia enfrentar a confusão
normativa e jurídico-institucional que reinava na Alemanha, em cujo espaço territorial conviviam
inúmeros ordenamentos, ainda que pretensamente radicados em um direito romano
recepcionado. Os historiadores do direito falam na existência de um direito comum alemão, não
codificado, e de conteúdo variável, ainda que radicado no direito romano recepcionado.
300 Cf. Jouanjan, Olivier, L’esprit de l’École historique du droit, textes inédits em français de F. C. von Savigny et G. F. Putcha, Strasbourg: Presses Universitaires de Strasbourg, 2004, p. 10. 301 Cf. Rückert, Joaquim, in Domingo, Rafael (org.), Juristas Universales, cit. p. 59. 302 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 74. 303 Cf. Grossi, Paolo, L’Europa del Diritto, cit., p. 162. 304 Cf. Becchi, Paolo, Ideologie della Codificazione in Germania- dalla recezione del códice napoleônico alla polemica sulla codificazione, Genova: Compagnia dei Librai, 1999, p. 21.
Para Thibaut, o ser humano não fora criado para ser objeto da experimentação dos
juristas. Thibaut argumentava que um professor de cirurgia não estaria autorizado a fazer
experimentos anatômicos em corpos vivos, que não poderiam ser objeto de tais experimentos305
.
Por isso, contestava os vários experimentalismos que disseminavam, e que poderiam ser
definitivamente resolvidos por intermédio de um sistema jurídico centrado em regras
logicamente disciplinadas em um código.
Savigny respondeu com um opúsculo, insistindo na vocação de seu tempo para a
legislação e para a jurisprudência (Vom Beruf unsrer Zeit für Gesetzgebung und
Rechtswissenschaft), concebendo o direito como realidade cultural com semelhanças estruturais
com as línguas faladas, e submetido a leis que não podem ser alcançadas ou alteradas por
legislação artificial306
. Reconhecendo que havia um movimento pela construção de um direito
nacional unificado, Savigny creditava essa tendência a uma reação à dominação francesa,
escrevendo que, passada a opressão, os alemães queriam ser dignos de sua época307
.
Seu repúdio à presença e influência francesas comprovam-se em passagem na qual
Savigny observou que o código francês se espalhava pela Alemanha como uma “grangena que
se propagava sem cessar sua ação corruptora”308
. Para Savigny, o código, naquele momento,
iníco do século XIX, era uma exigência de sofistas. Savigny não concordava como o fato de que
os defensores dos códigos proclamavam um texto que iria garantir com exatidão mecânica a
administração da justiça, dispensando-se o magistrado de qualquer juízo próprio, limitando-o a
um papel de simples intérprete literal do código, que seria construído livremente em relação a
qualquer influência histórica, obra de uma “solene e estranha abstração”, disponível a todos os
povos, de todos os tempos309
.
A polêmica Savigny versus Thibaut configura-se como um dos momentos mais tensos na
construção do direito alemão no século XIX, projetando-se seus efeitos para debates em outros
países, até cotidianamente. Essa disputa revelou uma tensão entre o racionalismo iluminista e o
historicismo que marcou o romantismo alemão, traduzida por dissensos que havia em torno do
305 Cf. Camacho, Fermin Evangelista, cit. 306 Cf. Grossi, Paolo, L’Europa del Diritto, cit., p. 163. 307 Savigny, Friedrich Karl von, De la Vocación de Nuestro Siglo para la Legislacion y la Ciencia del Derecho, Buenos Aires: Arengreen, 1946, p. 37. Tradução do alemão para o espanhol de Adolfo G. Posada. 308 Cf. Savigny, Friedrich Karl von, cit., 38. 309 Savigny, Friedrich Karl von, cit., p. 40.
direito romano. De um lado, um grupo reticente para com o legado justinianeu, liderado por
Thibaut310
; de outro, os defensores da consciência popular como reveladora do direito, cujos
conceitos formais se exprimiam pelo legado romano. Esse grupo estava sob a inspiração de
Savigny311
, que insistia na segurança que os procedimentos e conceitos romanos traziam para
uma ciência jurídica, desde que conectados com o comportamento natural da população alemã312
.
Pode-se captar na obra de Savigny uma reação à onda revolucionária francesa que
também afetou a Alemanha, especialmente na era napoleônica. O historicismo de Savigny
marcou uma resistência alemã à uma alegada arrogância francesa, marcada por uma filosofia
com pretensões universais313
. A escola histórica foi, na essência, o resultado da especulação
jurídica em torno de um conjunto de ideias reacionárias (ou antiliberais) em contradição com as
reformas políticas e culturais advindas do jusnaturalismo racionalista. Trata-se da reação alemã à
escola de exegese. Ainda que fortemente ligada ao estudo do direito romano, a escola histórica
abominava a concepção de que o Corpus Juris Civilis deveria ser recepcionado como um código
de direito natural universal314
.
Preponderantemente, para Savigny, o direito é um fato histórico315
. Decorre dos
costumes, das crenças populares, e também de sua observação científica, sempre como resultado
de uma força interior e perene, tacitamente ativa. Para Savigny, o arbítrio do legislador não era
condição única, necessária e suficiente para criação do direito316
.
A escola histórica opunha-se ao jusnaturalismo. O direito revelava o espírito de um povo,
o Volksgeist. A escola histórica, nesse sentido, exaltava o irracional, o nacionalismo germânico,
uma pretensa identidade coletiva, que também se revelava na língua e nos costumes. Esse
nacionalismo jurídico é encontrado também em Jacob Grimm (Antiguidades do Direito Alemão)
e em Georg Reseler, para quem a recepção do direito romano na Alemanha fora uma calamidade
nacional. Karl von Stein (1757-1831) foi também importante intelectual e político ligado a esse
310 Cf. Marini, Giuliano, La Polemica sulla Codificazione, Napoli: Edizioni Scientifiche Italiani, 1982, p. 31. 311 Cf. Contreras, Francisco J., cit., pp. 79 e ss. 312 Savigny, Friedrich Carl von, De la Vocación de Nuestro Siglo para la Legislacion y la Ciencia del Derecho, Buenos Aires: Arengreen, 1946, p. 63. Tradução do alemão para o espanhol de Adolfo G. Posada. 313 Cf. Brose, Eric Dorn, German History- 1789-1871- from the Holy Empire to the Bismarckian Reich, Providence and Oxford: Berghan Books, 1997, p. 148. 314 Cf. Alvarado, Javier, cit. 315 Cf. Savigny, Friedrich Karl von, cit., p. 48. 316 Cf. Savigny, Friedrich Karl von, cit., loc. cit.
movimento, iniciando a publicação de um conjunto de documentos sobre as fontes da história
alemã, os Monumenta Germaniae Historica.
A escola histórica de Savigny centrava-se na concepção de que o direito, como a
linguagem, tem vida própria e independente. Nesse sentido, insistia Savigny, o direito não
decorreria do arbítrio do legislador. Savigny pregava um retorno às fontes puras do direito
romano, na medida em que entendia que o direito romano recebido pela casuística alemã fora
aquele reelaborado pela escola italiana317
. Propunha uma depuração do legado romano como
instrumento de revelação de um espírito germânico, proposta que carrega um paradoxo.
Para a escola histórica, o povo é uma individualidade orgânica, tem vida própria, e se
concretiza na existência mediante uma língua, uma religião, bem como mediante o
desenvolvimento de vários costumes, bem como de um sistema jurídico. Trata-se de uma
entidade ideal, espiritual, invisível; por isso, a construção da língua, da religião, dos costumes e
do sistema jurídico pode-se dar - - inclusive - - de modo oculto.
Essa entidade é histórica, origina-se em algum lugar e tempo, evoluiu, decai, podendo,
inclusive, desaparecer. Essa entidade é a fonte de todo o direito318
. Esse direito popular, no
entanto, não afasta a possibilidade de uma análise científica319
. Para Savigny, cada povo é um
indivíduo320
, e assim deveria ser considerado e estudado. Esse estudo, todavia, seria prerrogativa
de juristas profissionais, a quem Savigny incumbia a tarefa de descoberta, revelação e
interpretação desse direito popular.
Savigny conferia certa preponderância aos costumes, no quadro geral das fontes do
direito. Os costumes revelavam o caráter de um povo, progrediam com o tempo, no contexto de
um processo idêntico ao que ocorre com a linguagem321
. Em passagem recorrentemente citada,
Savigny explicitou que o direito progride com um povo, com ele se aperfeiçoando, e com ele
perecendo322
. No entanto, e com veemência, Savigny não admitia categorias conceituais de
fabulização da realidade, a exemplo do contrato social, condenando-o:
317 Cf. Camacho, Fermin Evangelista, cit. 318 Cf. López, José Hernández, Introducción histórica a la filosofia del derecho contemporânea, Murcia: Universidade de Murcia Servicio de Publicaciones, 2005, p. 16. 319 Cf. Gómez, Juan A. García, El historicismo filosófico-jurídico de F. K. von Savigny, Madrid: Universidad Nacional de Educación a Distancia, 2001, pp. 166 e ss. 320 Cf. Savigny, Friedrich Karl von, cit., p. 44. 321 Cf. Savigny, Friedrich Karl von, cit., p. 46. 322 Cf. Savigny, Friedrich Karl von, cit., p. 46.
“Em certos tempos, dos quais não estamos muito distantes, vivia-se em uma condição
perfeitamente animal, a qual, graças a um sucessivo desenvolvimento, se foi
caminhando para uma existência cada vez melhor, até que se alcançou a altura da
civilização em que se agora se encontra, Pode-se prescindir, desde logo, de tal doutrina
(...)”323
Savigny invocava que cada povo contava com um direito civil detentor de um caráter
determinado, a ele peculiar, a exemplo do que ocorria com a língua, os costumes e a própria
organização política324
. Esse direito também se manifestava através de atos simbólicos, que
Savigny identificava como a gramática dos povos antigos. Ilustrava o argumento apontando a
tarefa principal dos jurisconsultos romanos, que consistia precisamente em manter a exatidão
desses atos carregados de simbologia325
. De fato, há registros de uma intensa preocupação da
jurisprudência romana com a regularidade das fórmulas que deveriam ser pronunciadas em juízo.
A escola histórica do direito contou também com a intensa participação de Georg
Friedrich Puchta (1798-1846), de cujo trabalho surgirá também outra linha do pensamento
jurídico alemão do século XIX, a jurisprudência dos conceitos (Begriffsjurisprudenz). Puchta
fora professor de Rudolf von Jhering, sobre quem exerceu grande influência. Para Puchta,
deveria o jurista extrair, por abstração, os conceitos jurídicos configuradores do direito, a partir
das fontes jurídicas existentes, especialmente as de origem romana326
. É intrigante essa
preocupação dos juristas alemães com o legado do direito romano.
A escola histórica do direito é uma doutrina carregada do espírito romântico do idealismo
alemão. Puchta e Savigny corresponderam-se por mais de vinte anos. Putcha havia estudado
filosofia com o próprio Hegel, de onde radicava a percepção relativa à existência de uma
consciência popular comum formadora do direito. Putcha deu um tratamento sofisticado ao tema
das fontes do direito, admitindo o direito legislado e as construções científicas de interpretação.
Para esse autor, Putcha, o direito teria como fontes o convencimento popular (die
Volksüberzeugung), a lei (die Gesetzgebung) e a ciência (die Wissenschaft). Admitia que os
juristas integrassem o espírito popular sendo, por isso, também autênticos criadores da ciência
jurídica327
. Putcha pretendia “vertebrar o direito alemão conforme as categorias do direito
323 Savigny, Friedrich Karl von, cit., p. 49. 324 Cf. Savigny, Friedrich Karl von, cit., p. 43. 325 Cf. Savigny, Friedrich Karl von, cit., p. 45. 326 Cf. Theo Mayer-Maly e Rafael Domingo in, Domingo, Rafael (org.), Juristas Univesales, cit., p. 140. 327 Cf. Theo Mayer-Maly e Rafael Domingo in, Domingo, Rafael (org.), Juristas Universales, cit.
romano, segundo a sistematização do digesto”, de onde se poderia construir uma genealogia de
conceitos, concebendo-se a ciência jurídica como um sistema verdadeiramente lógico328
.
Aos nomes de Savigny e de Putcha pode-se agregar, no contexto dos formuladores da
escola histórica, a Adolf August Friedrich Rudorff (1803-1873). Professor na universidade de
Berlim, Rudorff editou as obras de seus predecessores, dirigindo, especialmente, uma revista
especializada em história do direito329
. Rurdorff foi um fiel seguidor de Savigny, acompanhando
as edições de sua obra.
As ideias de Putcha influenciaram na construção de um tipo específico de literatura
jurídica, o Tratado (Lehrbuch), textos nos quais se pretendia uma sistematização racional ou
dogmática das categorias jurídicas. O jurista trabalharia como um naturalista, classificando,
dedutivamente, as várias categorias e conceitos jurídicos. Como resultado, chegou-se a uma total
desconexão com a realidade social e com os problemas empíricos do direito330
. O direito ganhou
uma identidade conceitual de certa forma desconectada com a realidade, situação que será mais
tarde será denunciada na própria Alemanha.
Essa metodologia historicista e conceitual causou intensa reação, também a partir de
Rudolf von Jhering, de quem se falará mais adiante em pormenor. Registra-se, por ora, que
Jhering criticava essa percepção da jurisprudência dos conceitos (derivada da escola histórica) de
que o direito seria um valor absoluto. A jurisprudência deveria se pautar por finalidades, revelar
seu caráter teleológico, levando em conta os vários interesses que pairam sobre a vida social.
Interesses econômicos, artísticos e científicos qualificam as exigências da vida, que não podiam
ser consideradas de modo abstrato331
.
Para Jhering, a investigação científica do direito deveria ser deslocada para a atividade do
legislador, campo no qual se poderia produzir uma teoria genética dos interesses, indicadora de
uma genética de conceitos verdadeiramente relevantes332
. O resultado das construções jurídicas,
para Jhering, deveria atender à resolução de problemas práticos.
Na parte final do século XIX essa linha compreensiva do direito alcançará nos trabalhos
de Hermann Kantarowicz (1877-1940) sua expressão mais bem definida. Trata-se da Escola do
328 Cf. Alvarado, Javier, cit. 329 Cf. Rafael Domingo, in Domingo, Rafael (org.), Juristas Universales, cit., p. 176. 330 Cf. Alvarado, Javier, cit. 331 Cf. Alvarado, Javier, cit. 332 Cf. Alvarado, Javier, cit.
Direito Livre, fortemente marcada pelo neokantismo então preponderante na filosofia alemã.
Escrevendo com o pseudônimo de Gnaeus Flavius, Kantarowicz problematizou a insuficiência
do direito colocado exclusivamente em formas jurídicas codificadas. Essa escola se insurgiu
contra os formalismos e legalismos estritos, reconheceu a existência de lacunas no direito,
enfatizou a importância dos intérpretes na construção do direito, admitindo-se sua historicidade e
insistindo na acomodação do direito com a realidade333
.
No contexto da escola histórica deve-se registrar a importância do direito romano,
qualificado por sua recepção pelo direito germânico, o que Savigny também denominava de
direito comum334
. Para Savigny os procedimentos de revelação do direito romano
assemelhavam-se às operações matemáticas, no sentido de que os jurisconsultos romanos, na
exagerada imagem do pensador alemão, calculavam com as ideias335
. Savigny não fazia
reticências em prantear o direito romano como um direito natural sancionado336
, tomando-se
esse último, no entanto, de modo alegórico.
Para Savigny, um código, simplesmente, não resolveria de modo definitivo o eterno
problema da estabilidade das relações jurídicas. O desejado laconismo dos textos legais,
apontava Savigny, poderia resultar em concisão estéril, incapaz de apreender os problemas
concretos das relações humanas. A prolixidade, por outro lado, condenaria as fontes do direito a
um papel de inaceitabilidade, ainda que, reconhecia, a redundância também poderia propiciar
uma eficácia cujo reconhecimento era necessário e merecido337
.
Os vários problemas submetidos às autoridades judiciárias deveriam guardar pertiência
com os casos concretos, a partir de onde seriam avaliados de acordo com o conjunto dos
costumes vigentes. Em favor (ou em desfavor) de um código não poderia prevalecer argumento
de concisão ou crítica de prolixidade, porquanto ambas, em menor ou maior grau, suscitavam
vantagens e desvantagens.
No panorama do pensamento jurídico alemão do século XIX destacou-se também Carl
Friedrich von Gerber (1823-1891) a quem se deu o epíteto de o pai do direito público alemão
moderno. Gerber correspondeu-se intensamente com Jhering; essas cartas foram estudadas e
333 Cf. Alvarado, Javier, cit. 334 Cf. Savigny, Friedrich Karl von, cit., p. 71. 335 Cf. Savigny, Friedrich Karl von, cit., p. 63. 336 Cf. Savigny, Friedrich Karl von, cit., p. 61. 337 Cf. Savigny, Friedrich Karl von, cit., p. 58.
comentadas por Mario Losano. Gerber lecionou em Iena, Erlanger, Tübingen e Leipzig.
Defendia um direito alemão unificado, na medida em que amadurecida a ideia, e na proporção
das necessidades políticas e econômicas de uma sociedade que estava em transformação, e que
era radicalmente diversa daquela dos tempos das invasões napoleônicas e das ordens reacionárias
de Metternich. Gerber centrou sua linha de raciocínio no conceito de vontade; no direito privado
deveria preponderar a vontade do indivíduo, e no direito público deveria prevalecer a vontade do
Estado338
. Essa visão dicotômica, de algum modo, prevalece até hoje.
Destaca-se ainda Karl Joseph Anton Mittermaier (1787-1867), que também defendeu a
modernização do direito, na linha de Feuerbach, de quem fora colaborar e secretário particular.
Mittermaier criticava a pena de morte, argumentando que a finalidade de qualquer pena consiste
na possibilidade de se tornar o delinquente uma pessoa melhor. No quadro de modernização que
concebia, Mittermaier defendia um processo penal dotado de publicidade e de oralidade.
Mittermaier é também considerado um dos pioneiros no estudo do direito comparado339
. A
ligação de Mittermeier com Feuerbach, e deste com os chamados jovens hegelianos, aponta para
uma aproximação entre o legado de Hegel e o desenvolvimento da escola histórica alemã. Em
ambos os casos é patente uma reação à presença francesa no território alemão, o que ocorreu no
início do século XIX.
À mesma época, e com igual importância, Carl Theodor Welcker (1790-1869), também
protótipo de professor e político, defensor do nacionalismo liberal alemão, marcado por um
destacado sentimento prussiano, ainda que simpatizante de uma grande Alemanha, com poder
centralizado em Viena. Welcker foi um dos que se insurgiu com o autoritarismo de Metternich,
reagindo aos decretos de Carlsbad, em sua juventude340
.
Há destaque também para Robert von Mohl (1799-1875), que participou das revoltas
estudantis de reação aos decretos de Carlsbad; posteriormente, foi membro da assembleia de
Frankfurt, ocasião na qual defendeu uma monarquia constitucional que coordenaria um estado
federal com ampla diversidade de culturas. Mohn notabilizou-se com um dos teóricos do Estado
de Direito (Staatsrecht)341
.
338 Cf. Juan Luis Requejo, in Domingo, Rafael (org.), Juristas Universales, cit., p. 331. 339 Cf. Pablo Sánchez-Ostj, in Domingo, Rafael (org.), Juristas Universales, cit., p. 106. 340 Cf. Ascensión Elvira Perales, in Domingo, Rafael (org.), Juristas Universales, cit., p. 115. 341 Cf. José Luis Martinez López, in Domingo, Rafael (org.), Juristas Universales, cit., p. 154.
Um pensamento de matriz mais protestante marcou a obra de Friedrich Julius Stahl
(1802-1861), considerado como um teórico do estado monárquico luterano. De origem judaica,
converteu-se ao luteranismo, quando passou a defender a necessidade de uma organização
política e jurídica de fundo ético, com referência em uma autoridade superior, muito acima dos
homens. Negava o poder do Estado que procedesse da soberania popular342
.
Pode-se resumir, assinalando-se que o pensamento jurídico alemão no século XIX
desenvolveu-se no contexto da escola histórica, na qual pontificaram Savigny e Putcha. Da
escola histórica alcançou-se sofisticada teorização, para a qual a tarefa do jurista consistiria na
apreensão de conceitos, a partir da experiência e das fórmulas consagradas romanas, como
exigência para o alcance de uma ciência do direito. Essa fixação com a experiência romana
redundou na escola dos pandectísticas, da qual Windscheid é o último e mais refinado
representante, e de onde se desdobrará a linha positivista que alcançará Hans Kelsen.
A partir da escola histórica assinala-se também uma derivação, por intermédio da obra de
Rudolf von Jhering, para quem, na segunda fase de sua atuação como professor de direito,
deveria o jurista captar os interesses em disputa, especialmente na atuação do legislador e na
observação da experiência histórica e cultural. É desse ambiente conceitual, a jurisprudência dos
interesses, que Tobias Barreto recebeu inspiração e linhas diretivas, as quais utilizou no
permanente combate ao pensamento francês então dominante no contexto filosófico e jurídico
brasileiro.
IV) Alguns autores alemães da biblioteca de Tobias Barreto
A maioria dos livros da biblioteca alemã de Tobias Barreto tratava de assuntos de
Filosofia do Direito, de Direito Constitucional, de Direito Administrativo, de Direito Romano e
de Ciências Sociais em geral. Em tema de Filosofia do Direito foram catalogados livros de
Rudolf von Jhering343
e de Salomon Stricker344
. Há um livro de Direito Administrativo, de
342 Cf. Antonio Truyol y Serra e Rafael Domingo, in Domingo, Rafael (org.), Juristas Universales, cit., p. 166. 343 Jhering, Rudolf von, Der Zweck im Recht, Leipzig: Breitkopft & Haertel, 1883. 344 Sricker, Samuel, Physiologie des Rechts, Wien: Teoplitz & Deutick, 1884.
autoria de Rudolf von Gneist345
. Entre as obras de Direito Constitucional no acervo há trabalhos
de Joseph Sötvös346
, Leonhard Freund347
, Julius Fröbel348
, Franz von Holtzendorff349
, Eugen
Huhn350
, Adolf Samuely351
e, mais uma vez, Rudolf von Gneist352
.
O conhecidíssimo livro de Direito Romano de Theodor Mommsen353
está listado entre as
obras alemãs de Tobias Barreto. Há também livros de Direito Penal, de autoria de Albert
Friedrich Berner354
, Emil Kraeplin355
, Heinrich Lammasch356
e William Lagenbeck357
.
Esse acervo dá-nos algumas pistas sobre as fontes que nutriram o pensamento de Tobias
Barreto. Não se sabe exatamente como esses livros foram escolhidos, ainda que se possa
especular sobre os efeitos dessa influência a partir de uma análise sobre as notas de rodapé, bem
como sobre as citações (diretas ou diretas) que Tobias Barreto lançou nos vários textos que
redigiu. Além do que, Tobias Barreto citou vários autores e livros que não constam do catálogo
de sua biblioteca.
Na vasta bibliografia produzida em torno da vida e da obra de Tobias Barreto há uma
recorrente ênfase nas influências alemãs que marcaram seu pensamento. Considera-se Tobias
Barreto como o grande responsável pela difusão do pensamento de Rudolf von Jhering na
América Latina. Tobias foi um obstinado seguidor do pensamento de Jhering, de quem recebeu
grande influência. Foi um crítico do Direito Natural, que entendia como uma concepção
absolutamente anacrônica da realidade normativa. Tobias negava também a possibilidade de uma
345 Gneist, Rudolf, Self-government: Communalverfassung und Verwaltungs-gerichte, Berlin: Springer, 1871. 346 Sötvös, Joseph, Der Einfluss der herrschenden Ideen des 19. Jahrhunderts auf den Staat, Leipzig: F. U. Brockhaus, 1854. 347 Freund, Leonhard, Thaten und Namen: Forschungen ueber Staat und Gesellschaft mit besonderer Ruecksicht auf Lorenz Stein und Ruldolf Gneist, Berlin: F. Henschel, 1871. 348 Fröbel, Julius, Die Gesichtspunkte und Aufgaben der Politik, Leipzig: Duncker & Humboldt, 1878. 349 Holtzendorff, Franz Von, Materialen der deutschen Reichsverfasssung, Berlin: C. Habel, 1873. 350 Huhn, Eugen, Politik, Leipzig: Wilhelm Grunow, 1865. 351 Samuely, Adolf, Das Prinzip der Ministerverantwortlichkeit in der constitutionellen Monarchie, Berlin: J. Springer, 1869. 352 Gneist, Rudolf, Die preussische Kreis-Ordnung, Berlin: J. Springer, 1870. 353 Mommsen, Theodor, Roemisches Staatsrecht, Leipzig: Hirzel, 1876. 354 Berner, Albert Friedrich, Grundsaetze des preussichen Strafrechts, Leipzig: Verlag von Berhnhard Tauchnilz, 1861. 355 Kraeplin, Emil, Die Abschaffung des Strassnasses, Stuttgart: F. Enke, 1880. 356 Lammasch, Heinrich, Das Moment objectiver Gefaehrlichheit im Begriffe des Verbrechensersuches, Wien: Alfred Hoelder, 1879. 357 Lagenbeck, Whillelm, Die Lehre von der Teilnahme am Verbrechen, Jena: Mauke, 1868.
sociologia do direito, circunstância que o marcou como crítico do positivismo de Augusto
Comte358
.
Imensamente influenciado por Rudolf von Jhering, Tobias Barreto foi também, insista-se,
um precursor do culturalismo, concepção jusfilosófica que vicejou no Brasil, para a qual o direito
é um arranjo institucional criado por seres humanos e que refletem o meio cultural de uma dada
sociedade. O direito não é um filho dos céus, é um produto da cultura humana; afirmação que
fora um mantra para Tobias Barreto, que a utilizava recorrentemente ou, mais precisamente,
como segue, em passagem que revela intensa influência de Rudolf von Jehring:
“O direito não é um filho do céu, é simplesmente um fenômeno histórico, um produto
cultural da humanidade - serpe nisi sepertem comederit, non fit draco -; a força que não
vence a força não se faz direito; o direito é a força, que mata a própria força”359
.
Tobias Barreto entendia o direito como um artefato histórico. Nesse sentido, tem alguma
relação com a escola histórica do direito (Historische Rechtsschule), vinculada às obras de
Friedrich Carl von Savigny e com os movimentos subsequentes, a exemplo do darwinismo
jurídico, ou da jurisprudência dos interesses (Begriffjurisprudenz360
), ligados a Rudolf von
Jhering361
. Alguns temas dessas escolas contaram no Brasil com uma versão um pouco alterada,
qualificada pela corrente do culturalismo.
Tobias era obcecado com um livro de Rudolf von Jhering, (A jurisprudência da vida
diária- Die Jüsprudenz des täglichen Lebens), texto no qual o célebre autor alemão analisou
fatos da vida cotidiana sob a perspectiva de suas consequências jurídicas. Na biblioteca do
Instituto Max-Planck para a História Europeia do Direito em Frankfurt há um exemplar desse
interessantíssimo livro362
. Trata-se de um pequeno livro impresso em letras góticas, divido em 24
capítulos, nos quais Jhering argumenta que o direito está em todos momentos da vida cotidiana.
358 Manuel J. Peléz and Antonio Brás Teixeira, Tobias Barreto, in Domingo, Rafael (org.), Juristas Universales, Madrid e Barcelona: Marcial Pons, 2004, p. 466. 359 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 52. 360 Falk, Ulrich, Der Gipfel der Pandektistik: Bernhard Windscheid (1817-1892) - Windscheid, Jhering und die Begriffjurisprudenz, in Lege, Joachim (org), Greifswald-Speigell der deutschen Rechtswissenschaft- 1815 bis 1945, Tübingen: Mohr Siebeck, 2009, pp. 129-150. No mesmo tema, Seinecke, Ralf, Methode um Zivilrecht beim “Begriffjuristen” Jhering (1818-1892), in Rückert, Joachim and Seinecke, Ralf (org), Methodik des Zivilrechts- von Savigny bis Teubner, Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 2012, pp. 123-150. 361 Kleman, Bernd, Rudof von Jhering und die Historische Rechtschule, Frankfurt am Main, Bern, New York, Paris: Verlag Peter Lang, 1989. 362 Jhering, Rudolf von, Die Jurisprudenz des täglichen Lebens, Iena: Verlag von Gustav Fischer, 1927.
O direito seria menos um problema metafísico do que um efetivo aspecto da existência diária,
ainda que eventualmente apreendido de um modo prosaico, como se lê nas várias narrativas
desse livro de Jhering.
Tobias Barreto comentou exaustivamente esse interessante livro363
. Iniciou suas
observações apresentando Jhering, afirmando que conhecia sua obra de fonte direta, criticando
aqueles que liam alemão nas traduções francesas, em reduções para clave de sol para uso dos
diletantes, conforme registrou expressamente:
“O nome deste jurista [Jhering], atualmente professor universitário de Goettingen, já
não é, creio eu, de todo desconhecido entre nós, já não goza do privilégio comum aos
hodiernos sábios alemães, o privilégio, quero dizer, de ser por nós voluntariamente
ignorado. As suas obras tem tido a felicidade de não ficarem na partitura, sendo logo
reduzidas à clave de sol para uso dos diletantes, isto é, traduzidas em francês para uso
dos doutores. E só assim é que eu explico a mim mesmo ser-me agora possível falar de
von Jhering como de um astro do nosso sistema sem correr o riso de passar, ainda uma
vez, por excêntrico, extravagante e, no pensar dos psiquiatras da terra, um pouco
adoentado de germanomania”.364
Tobias Barreto definiu o livro de Jhering sobre a jurisprudência da vida cotidiana como
“(...) um produto sui generis, meio esquisito, meio chistoso, alguma coisa que se poderia chamar
um exercício de ginástica jurídica, se a frase não corresse o risco de deixar, como tantas outras
da espécie, um ressaibo de disparate romântico”365
. Nesse livro, Rudolf von Jhering tratou de
cerca de 543 casos imaginários, que possibilitam uma reflexão sobre a jurisprudência da vida
cotidiana, como definido no título366
.
Tobias Barreto traduziu e comentou passagens desse livro de Jhering, explicando
questões jurídicas que decorrem de fatos muito simples, que variam de uma ida ao teatro, a
aspectos da vida doméstica, ao uso de trens e à vida social em geral. Sobre aspectos da vida
doméstica, por exemplo, Tobias Barreto reproduziu Jhering e provocou: “Dá-se um mandato,
quanto o homem fornece à sua mulher o dinheiro preciso para as despesas da casa? O restante
pertence à mulher? Ou pode o marido reclamá-lo? Segundo que princípios?”367
. Tobias Barreto
363 Barreto, Tobias, Estudos de Direito I, Rio de Janeiro: J. E. Salomon e Sergipe: Editora Diário Oficial, 2012, pp. 72-82. 364 Barreto, Tobias, Estudos de Direito I, cit. p. 73. 365 Barreto, Tobias, Estudos de Direito I, cit. p. 75. 366 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit. p. 75. 367 Barreto, Tobias, cit. p. 77. No original em alemão, Jhering explorou o tema na seção Aus dem häuslichen Leben. Na edição de 1927 o assunto encontra-se nas pp. 61 e ss.
trabalhou com uma edição de 1877. O comentário que fez a esse texto de Jehring suscitou
inflamada declaração em favor do estudo dos autores alemães:
“Bem se vê: continuo na minha obstinação, inabalável, incorrigível, no empenho
pertinace de criar adeptos ou suscitar inimigos, por amor do germanismo. É um
trabalho para o qual nunca me sinta indisposto, e que seria por si só capaz de
constituir a única missão de minha vida, se eu não tivesse, a par desta, uma outra
ocupação muito imprescindível, incessante: é a de rir-me de mim mesmo e um pouco
também (...) dos esnobes literários do meu país”368
.
Na Alemanha, entre os vários autores listados no acervo da biblioteca alemã de Tobias
Barreto vários são hoje esquecidos, alguns pouco lembrados e apenas quatro recorrentemente
citados. Com exceção de Jhering, os autores de direito do acervo de Tobias Barreto não foram
traduzidos para o português, observação válida para Rudolf von Gneist e para Theodor
Mommsen, autores conhecidos, com livros na biblioteca de Tobias.
O leitor contemporâneo enfrenta uma tarefa difícil quando procura entender as fontes que
Tobias Barreto utilizou. No contexto alemão das décadas de 1870 e de 1880, quem eram os
autores que Tobias Barreto estudou e citou369
? Mais, há entre esses autores, atualmente, um mero
registro histórico ou, de algum modo, ainda teriam algum nível de importância no debate
contemporâneo?
O núcleo do pensamento de Tobias Barreto era essencialmente alemão. Os autores que
citou em sua grande maioria eram juristas, filósofos e cientistas sociais alemães. Em uma lista de
síntese, tomados na sequência de três de seus livros, do modo como os autores aparecem, pode se
listar: Hermann Post, Franz von Holtzendorff, Heinrich Sybel, Rudolf von Jhering, Wilhelm
Humboldt, Hegel, Rudolf von Gneist, Edmond Scherer, Bluntschli, Lorenz Stein, Lagemans,
Bucher, Kant, Goethe, Marx, Treitschke, Oppenheim, Fröbel, Strauss, Stövös, Edmond Scherer,
Mommsen, Robert von Mohl, Zachariae, Held, Samuely, Schürtze, Haym, Julian Schmidt,
Edward von Hartmann, Daniel Spitzer, Roderich Benedix, Bucher, Geffken, von Gerber, Otto
Stobbe, Wachter, Heydemann, Dahn, Bethmann-Hollweg, Haeckel, Heinrich von Struve,
Ludwig Noiré, Schopenhauer, Moleschott, Lazarus Geiger, Feuerbach, Edward Lasker,
Lilienfeld, Hugo Sommer, Ernesto Laas, Moritz Lazarus, Heinrich Stendhal, Constantino Franz,
368 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, pp. 78-79. 369 Especialmente para um estudo sobre o papel de Rudolf von Jhering na história do direito alemão, conferir, Hurwicz, E., Rudolf von Jhering und die deutsche Rechtswissenschaft, Berlin: J. Guttentag Verlagsbuchhandlung, 1911.
Jacob Grimm, Ludwig Boerne, Theodor Mutter, Carl Erdmann, Gustav Klemm, Franz Rossirt,
Trendenburg, Herbart, Hartenstein, Christian Muff, Humboldt, Edwar Strasburger, Ahrens,
Wilhelm Arnold, Georg Meyer, Berner, Oscar Schwarz, Luden, Heberlin, Ernest Rubo,
Mittermaier, Rudolf Heinze, Putcha, Moritz Woigt, Schaumann, Klose, Bernhard Schmitz, Rein,
Bekker, e tantos outros, o que sugere uma ampla transposição de autores alemães para o Brasil.
A par das informações colhidas nos livros de Michael Stolleis370
, bem como em
Francisco de Sosa Wagner371
, há certa dificuldade em se coletar informações biográficas sobre
autores alemães do século XIX, que compunham a biblioteca de Tobias Barreto. Há necessidade
de fontes bibliográficas que explorem a trajetória de autores alemães da segunda metade do
século XIX372
.
No importante livro de Michael Stolleis há passagens que tratam de Rudolf von
Jhering373
, de Rudolf von Gneist374
, Franz von Holtzendorff375
, Adolf Samuely376
, Theodor
Mommsen377
e Heinrich Lammasch378
. Francisco Sosa Wagner mencionou Theodor
Mommsen379
, Heinrich Lammasch380
, Franz von Holtzendorff381
e Rudolf Gneist382
.
No entanto, quais as pistas para outros autores cujos livros Tobias Barreto possuía? O
simples fato de que a literatura posterior não menciona alguns deles seria indicativo de que seus
valores sejam discutíveis? Seria significativo o fato de que alguns deles não contarem com
reconhecimento posterior? Por outro lado, deve-se reconhecer, como já mencionado, que alguma
injustiça poderia ser feita para com as opções de Tobias Barreto, porquanto informações que há
hoje que não estavam disponíveis à época.
370 Stolleis, Michael, Public Law in Germany, 1800-1914, New York and Oxford, 2001. 371 Sosa Wagner, Francisco, Maestros Alemanes del Derecho Público, Madrid y Barcelona: Marcial Pons, 2005. 372 Eisenhardt, Ulrich, Deutsche Rechtsgeschichte, München, Verlag C. H. Beck, 1994, pp. 367-390. 373 Stolleis, Michael, Public Law in Germany, 1800-1914, New York and Oxford, 2001, pp. 260, 310, 316, 357, 420, 429, 436. 374 Stolleis, Michael, cit., pp. 207, 217, 240, 257, 281, 329, 339, 361, 377-9, 396. 375 Stolleis, Michael, cit., pp. 357, 365, 372, 410, 454. 376 Stolleis, Michael, cit., p. 87. 377 Stolleis, Michael, cit., pp. 133, 287, 261. 378 Stolleis, Michael cit., p. 304. 379 Sosa Wagner, Francisco, Maestros Alemanes del Derecho Público, Madrid y Barcelona: Marcial Pons, 2005, pp. 84, 115, 118, 119, 149, 189, 227, 427. 380 Sosa Wagner, Francisco, cit., pp. 179, 386-388. 381 Sosa Wagner, Francisco, cit., p. 208. 382 Sosa Wagner, Francisco, cit., pp. 84, 89, 131, 166, 177, 208, 421, 426, 520.
A tarefa mais desafiadora que a questão nos coloca consiste em se explorar autores
alemães sem nível de proeminência que exerceram influência sobre o pensamento de Tobias
Barreto. Informações que possam ser levantadas colaboram para que se tenha um melhor nível
de compreensão em relação às ideias brasileiras no século XIX, bem como propiciam insumo
para uma discussão em torno da tradução e da recepção de valores culturais. Há um forte
componente de nível retórico que precisa ser constantemente lembrado e reforçado. A citação de
autores alemães, especialmente porque aqui desconhecidos, é fortíssimo elemento que define os
rumos de um debate, como o registro das polêmicas de Tobias Barreto bem comprova.
Assim, com o objetivo de se mapear o acervo da biblioteca alemã de Tobias Barreto as
seguintes fontes foram tratadas. Em primeiro lugar, investiga-se a presença (ou não) de alguns
autores que constam da lista da biblioteca alemã de Tobias Barreto em importante dicionário
enciclopédico e biográfico alemão (Deutsche Biographische Enzyklopädie383
). Essa publicação
nos revela algum nível de importância dos personagens biografados. É significativo o fato de que
esse dicionário enciclopédico trate de Rudolf von Jhering, Rudolf von Gneist, Julius Fröbel,
Theodor Mommsen, Franz von Holtzendorf, Albert Berner, Emil Kraeplin, Henrich Lammasch,
Edward Böcking, e outros autores que Tobias Barreto leu e citou. Eram autores que tinha
disponíveis em sua biblioteca. E são autores de reconhecida presença no pensamento alemão do
século XIX. Alguns, como Jhering e Mommsen, são estudados e explicados até hoje.
Em seguida, verifica-se um catálogo de livros da biblioteca do parlamento alemão,
publicado em Berlim, em 1882 (Katalog der Bibliotek des Deutschen Reichstages). Esse
pesquisa permite que se alcance quais autores eram contavam com alguma relevância à época na
qual Tobias Barreto comprou seus livros alemães. É também significativo o fato de que Rudolf
von Jhering, Theodor Mommsen, Albert Berner, Emil Kraeplin, Franz von Holtzendorf e Joseph
Sövös, entre outros, tivessem, suas obras coletadas e catalogadas nessa importante biblioteca
nacional alemã.
Em terceiro lugar, estuda-se um dicionário de juristas europeus do século XIX (Deutsche
und Europäische Juristen aus Neun Jahrhunderten384
). Essa parte da investigação pode nos
revelar qual a percepção contemporânea de juristas do século XIX; isto é, o fato de que autores
383 Killy, Walter, Deustsche Biographische Enzyklopädie, München, New Providence, London and Paris: K. G. Saur, 1995. 384 Kleinmeyer, Gerd and Schröder, Jan (Hrsg.), Deutsche und Europäische Juristen aus Neun Jahrhunderten, Heilderberg: C. F. Müller Verlag, 2008.
estudados por Tobias Barreto sejam citados na referida recolha é indicativo de que houve
recepção futura por parte da cultura jurídica alemã.
Investigou-se também um dicionário biográfico de juristas, editado na Espanha, Juristas
Universales385
. Pode-se revelar a importância de juristas alemães biografados. Quando
encontrados, os verbetes dessa enciclopédia propiciam informações sobre alguns de
proeminentes juristas alemães do século XIX.
A pesquisa avança com minucioso levantamento na biblioteca do Instituto Max-Planck
de História do Direito em Frankfurt, acervo amplo que cobre exaustivamente a história do
pensamento jurídico no século XIX. Por fim, a pesquisa exige um levantamento de fontes
cibernéticas, explorando-se na rede mundial de computadores fontes e bases de dados, que
variam de ferramentas como google e antiquários que informam os respectivos acervos.
Especialmente, procura-se verificar as edições antigas desses livros, se as há disponíveis,
bem como, principalmente, se há novas edições dessas obras, o que absolutamente relevante.
Reedições posteriores podem indicar que a obra foi recepcionada, que transcendeu ao tempo e
que contém conteúdo atemporal. A abordagem que segue será feita com destaque para os autores
cujos livros constam no acervo alemão de Tobias Barreto.
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Rudolf von Jhering
Rudolf von Jhering (1818-1892) é o mais conhecido dos autores que compõem o acervo
alemão de Tobias Barreto386
. Um dos mais importantes juristas alemães, Jhering conta com
pormenorizada descrição no mencionado dicionário biográfico alemão387
. Em 1882, o catálogo
do parlamento alemão registrou vários de seus livros388
. Jhering também é biografado na coleção
dos Juristas Universales389
, bem como no Lexicon de Michael Stolleis390
.
385 Domingo, Rafael, Juristas Universales, cit. 386 Para uma ampla bibliografia sobre Rudolf von Jhering, ainda que pesquisada na década de 1960, consultar Losano, Mario, Bibliografia di Rudof von Jhering, Torino: Giulio Einaudi, 1968. 387 Deustsche Biographische Enzyklopädie, vol. 5, p. 245. 388 Entre as entradas: Geist des Römischen Rechts (p. 379), Kampf und Recht (p. 373) and Jurisprudenz des täglichen Lebens (p. 371). 389 Domingo, Rafael, Juristas Universales, cit., p. 308.
Rudolf von Jhering391
, doutor pela Universidade de Berlin, convidado para lecionar em
Leipzig e em Heildelberg, professor catedrático de Direito Romano em universidades da Suíça
(Basiléia), da Alemanha (Kiel) e da Áustria (Viena)392
, é muito conhecido, entre outros, por
memorável conferência que proferiu em Viena, no ano de 1872. Esta conferência foi
posteriormente publicada com o título de A Luta pela Direito- Der Kampf um’s Recht393
; trata-se
de um dos mais lidos e debatidos opúsculos jurídicos da tradição ocidental.
A essa conferência se referiu Tobias Barreto, em uma das várias passagens de sua obra
nas quais critica os que não sabiam ler alemão, observando, com muita ironia:
“O discurso que fizera o ilustre sábio em março de 1872, antes de sua partida de Viena
para Goettingen, na Sociedade Jurídica Vienense, e sob o título, que vale por si só um
descoberta, ‘A Luta pelo Direito’ (Der Kampf ums Recht), foi logo depois de sua
publicação vertido em francês; e, nesse trajo, pode também chegar até nós”394
.
Nesse texto, curto, porém substancialmente muito rico, Rudolf von Jhering defendeu o
afastamento do idealismo em favor de um certo naturalismo, culturalista, transitando da
preocupação com o que se sonha para a obsessão com o que se realiza395
. Rudolf von Jhering foi
entusiasta da ideia de que o direito decorre de propósitos e de interesses, o que nos permite
identificá-lo como um pensador centrado nos problemas do mundo real396
. Jhering foi muito
influenciado por Charles Darwin397
e Herbert Spencer398
. Tobias Barreto e a Escola do Recife,
390 Stolleis, Michael (org), Juristen- Ein Biographisches Lexicon von der Antike bis zum 20 Jahrhundert. München: Beck, 2001, p. 334. 391 A grafia Jhering, com “I” é resultado da influência dos tradutores espanhóis do mestre alemão. O próprio Jhering escrevia seu nome com “J”, como, aliás, lê-se em sua certidão de nascimento. Conferir estudo introdutório em Iehring, Rudolf von, É o Direito uma Ciência? São Paulo: Rideel, 2005. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. Conferir o prefácio de Diógenes Madeu. 392 Cf. Sosa Wagner, Francisco, cit., pp. 143 e ss. 393 Entre as várias traduções que há para o português, destaco as versões de José Tavares Bastos (Porto: Livraria Chardron, 1810), também publicada no Brasil, Canoas: Livraria Vendramim, s.d., há também a de João Vasconcelos, São Paulo: Forense, 2006. A primeira edição da tradução de João Vasconcelos é de 1967. 394 Barreto, Tobias, cit., p. 73. 395 Cf. Stolleis, Michael, cit., p. 429. 396 Cf. Stolleis, Michael, cit., loc. cit. 397 Conferir, em Darwin, o capítulo da Origem das Espécies no qual se trata da luta pela existência relacionada à seleção natural, especialmente no tópico da luta pela vida travada de modo mais feroz, quando a disputa se dá dentro da mesma espécie. Darwin, Charles, A Origem das Espécies, São Paulo: Martin Claret, 2004, pp. 89-106. Tradução para o português de John Green. 398 Conferir, especialmente, o excerto O Homem versus o Estado, em Spencer, Herbert, Political Writtings, (ed. John Offer), New York: Cambridge University Press, 2001, pp. 59 e ss.
mostraram-se como uma versão brasileira desse modo de pensar399
. Percebe-se em Jhering, nesse
texto, um naturalismo biologista e mecanicista.
Para Rudolf von Jhering, direito e força se confundiam; o direito se tornaria vazio, na
medida em que desprovido de força400
. Jurista de sólida formação romanística, que percebia no
direito alemão de seu tempo um direito romano atualizado, von Jhering deixou grandes
contribuições para o direito privado (a exemplo do conceito de culpa in contrahendo – e
consequente alargamento da responsabilidade contratual), bem como para o direito público (a
exemplo de distinção entre infração jurídica objetiva e culpa)401
.
Ao longo de A Luta pelo Direito, livro que Tobias Barreto admirava, Jhering destacou e
defendeu a ideia de que a defesa do direito é um dever do interessado para consigo próprio (tema
da primeira sessão ou, do primeiro capítulo do livro) ou, de um modo mais abrangente, é também
um dever para com a sociedade (tema da segunda sessão ou, do segundo capítulo).
A frase de abertura dessa conferência que foi publicada em livro é emblemática: “A paz é
o fim que o direito tem em vista, a luta é o meio de que se serve para o conseguir”402
. Isto é, o
direito busca a paz, fazendo-o por intermédio da luta. A premissa é válida para o indivíduo, para
sua classe e para o próprio Estado: “A vida do direito é uma luta: luta dos povos, do Estado, das
classes, dos indivíduos”403
.
Luta e firmeza são as condições para a construção e a manutenção de direitos, que não
são dados espontaneamente pela natureza; direitos são duramente conquistados e mais duramente
ainda mantidos: “Todos os direitos da humanidade foram conquistados na luta: todas as regras
importantes do direito devem ter sido, na sua origem, arrancadas àquelas que a elas se
opunham, e todo o direito, direito de um povo ou direito de um particular, faz-se presumir que se
esteja decidido a mantê-lo com firmeza”404
. O direito não se teoriza, se vive, é alcançado
mediante força e luta: “O direito não é uma pura teoria, mas uma força viva”405
. É também de
Jhering mais uma referência à conhecida metáfora da balança da justiça, no sentido de que; “(...)
a justiça sustenta numa das mãos a balança e que pesa o direito, e na outra a espada de que se
399 Conferir, Paim, Antonio, A Filosofia da Escola do Recife, cit., pp. 105 e ss. 400 Sosa Wagner, Francisco, cit., p. 143. 401 Cf. Sosa Wagner, Francisco, cit., p. 145. 402 Jhering, Rudolf von, São Paulo: Forense, 2006, p. 1. Tradução de João Vasconcelos. 403 Jhering, Rudolf von, cit. loc. cit. 404 Jhering, Rudolf von, cit. loc. cit. 405 Jhering, Rudolf von, cit. loc. cit.
serve para o defender. A espada sem a balança é a força brutal; a balança sem a espada é a
impotência do direito”406
.
A conferência é um convite à luta e à vigilância; para Jhering, “A paz sem luta, o gozo
sem trabalho, nunca existiram senão no paraíso terrestre; a história só os conhece como o
resultado de incessantes, de laboriosos esforços”407
. De tal modo, a luta está para o direito na
mesma medida em que o trabalho está para a propriedade408
. Diferenciando o direito objetivo
(como “conjunto de princípios jurídicos aplicados pelo Estado à ordem legal da vida”409
) de
direito subjetivo (como “a transfusão da regra abstrata no direito concreto da pessoa
interessada”410
), Jhering define que o objeto de seu estudo seja este último, o direito subjetivo,
ainda que o direito objetivo não fragilize a asserção feita, relativa à compreensão de que o direito
seja na essência luta411
.
Jhering impugnava, nesse ponto, e de algum modo, Savigny e Putcha, defensores do
historicismo, que pregavam o direito como expressão viva da história, declarado também pela
linguagem; Jhering defendia o direito posto na lei, resultante de intensa luta, por parte dos
interessados na fixação do direito em norma que seria por toda a gente conhecida. Segundo
Jhering, as convicções de Savigny e Putcha indicavam que a
“(...) a formação do direito faz-se tão sutilmente, tão livre de dificuldades como a
formação da linguagem; nem exige esforço, nem luta, nem sequer lucubrações – é a
força tranquilamente ativa da verdade que sem esforço violento, lentamente, mas
seguramente, segue a sua derrota; é o poder da convicção à qual se submetem as almas e
que elas exprimem pelos seus atos”412
.
Jhering contestava uma visão idílica do direito, indicadora de que direito e linguagem
seriam instâncias meramente históricas, concepção que recebera quando havia se formado em
direito413
; no entanto, a propósito dessa concepção romântica, perguntou, e observou
“É ela verdadeira? É preciso confessar que o direito, à semelhança da linguagem,
admite um desenvolvimento, de dentro para fora, imperceptível, inconsciente, ou melhor;
orgânico, para me servir de expressão tradicional. É a este modo de desenvolvimento
406 Jhering, Rudolf von, cit. loc. cit. 407 Jhering, Rudolf von, cit. p. 3. 408 Cf. Jhering, Rudolf von, cit. loc. cit. 409 Jhering, Rudolf von, cit. p. 4. 410 Jhering, Rudolf von, cit. loc. cit. 411 Jhering, Rudolf von, cit. loc. cit. 412 Jhering, Rudolf von, cit. p. 5. 413 Cf. Jhering, Rudolf von, cit. loc. cit.
que se ligam todas aquelas regras de direito que confia às relações civis a conclusão
autônoma e uniforme dos atos jurídicos, da mesma maneira que todas aquelas
abstrações, conclusões e regras que a ciência descobre pelo processo analítico nos
direitos existentes e revela à sua consciência”414
.
À concepção de Savigny, centrada no direito como resultante da convivência e da
contínua e pacífica formação da vida social, Jhering opunha visão mais realista, que de certa
forma se identificava com a própria percepção que os alemães faziam de si mesmos, na parte
final do século XIX415
, após a guerra franco-prussiana:
“Todas as grandes conquistas que a história do direito registra: - a abolição da
escravatura, da servidão pessoal, liberdade da propriedade predial, da indústria,
crenças, etc., foram alcançadas assim à custa de lutas ardentes, na maior parte das vezes
continuadas através dos séculos; por vezes são torrentes de sangue, mas sempre são
direitos aniquilados que marcam o caminho seguido pelo direito. O direito é como
Saturno devorando os seus próprios filhos; não pode remoçar sem fazer tábua rasa do
seu próprio passado”416
.
No debate vivo entre os defensores da legislação e os defensores da revelação do direito
como experiência e costume417
, Jhering defendia o direito legislado, o qual, afinal, também tinha
como fonte a consciência nacional418
; para Jhering, Savigny e seus seguidores ficavam apenas na
época pré-histórica, sobre a qual não havia muitas informações419
. O direito seria o resultado
direto da luta, isto é, segundo Jhering, “pode afirmar-se sem rodeios: - a energia do amor com
que um povo está preso ao seu direito e o defende, está na medida do trabalho e dos
esforços”420
. De tal modo, prossigo com Jhering, “a luta que exige o direito para desbrochar
não é uma fatalidade mas uma graça”421
.
Segundo Jhering, a medida certa decorreria da reação que se tem na hipótese de um
direito próprio lesado. Pode-se se lutar pelo direito lesado, resistindo-se ao adversário, pode-se
414 Jhering, Rudolf von, cit. loc. cit. 415 Para uma abordagem dessa época, conferir Kent, George O., Bismarck e seu tempo, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982. Tradução de Lucia P. Caldas de Moura. 416 Jhering, Rudolf von, cit. p. 7. 417 Assunto explorado extensivamente por Grossi, Paolo, L’Europa del Diritto, cit. pp. 170 e ss. 418 Cf. Jhering, Rudolf von, cit. p. 9. 419 Cf. Jhering, Rudolf von, cit. p. 9. 420 Jhering, Rudolf von, cit. p. 11. 421 Jhering, Rudolf von, cit. p. 12.
também covardemente entregá-lo ao opoente422
; operação que decorre de um cálculo prévio, que
aproxima e relaciona custos e benefícios:
“Qualquer que seja, afinal, a decisão, implica ela sempre um sacrifício. Num caso, o
direito é sacrificado à paz; no outro, a paz é sacrificada a direito. A questão parece
reduzir-se desde então, definitivamente, a saber qual é o sacrifício mais suportável,
segundo as circunstâncias do fato e as condições individuais da pessoa. O rico
renunciará, no interesse da paz, ao valor total do litígio que para ele é insignificante;
pelo contrário, o pobre para quem esta quantia é relativamente mais importante,
renunciará de preferência a paz. A questão da luta pelo direito reduzir-se-ia assim a
uma pura operação matemática, na qual deveriam estabelecer-se por hipótese de uma e
de outra parte as vantagens e os inconvenientes, para se conformar qualquer decisão
com o resultado”423
.
Constata-se alguma semelhança com o núcleo da chamada análise econômica do direito,
e com a típica preocupação com o cálculo de custos e benefícios. Nesse sentido, “aquele que
deixou cair um franco na água não despenderá nunca dois para o reaver; para ele a questão de
saber quanto gastará nisso é um puro cálculo de aritmética424
. Direitos tem custos, também
nesse sentido de que há entraves para realiza-los.
A proximidade com o darwinismo (e sua aplicação nas ciências sociais aplicadas) é muito
nítida em Rudolf von Jhering, especialmente como se lê nessa conferência aqui tratada. Porque
“a luta pela existência é a lei suprema de toda a criação animada; manifesta-se em toda a
criatura sob a forma de instinto de conservação”425
, é que a luta pela vida também se revela na
luta pelo direito ameaçado ou usurpado. A luta pela vida não se revela apenas em seus aspectos
físicos e biológicos, é também condição de existência moral426
dado que “(...) é um dever de todo
o homem para consigo combater por todos os meios de que disponha a desconsideração para
com sua pessoa no desprezo de seu direito”427
.
À dor física (sinal de perturbação no organismo, da presença de uma influência
inimiga428
), segundo Jhering, deve se acrescentar também uma dor moral, desconhecida por
quem não tenha sofrido com golpes de ilegalidade, que “recorda o dever da própria
422 Cf. Jhering, Rudolf von, cit. p. 14. 423 Jhering, Rudolf von, cit. loc. cit. 424 Jhering, Rudolf von, cit. loc. cit. 425 Jhering, Rudolf von, cit. p. 19. 426 Cf. Jhering, Rudolf von, cit. loc. cit. 427 Jhering, Rudolf von, cit. p. 21. 428 Cf. Jhering, Rudolf von, cit. p. 26.
conservação moral, como a dor física nos faz lembrar o dever de conservação física”429
. Essa
dor moral é sentida por tantos quantos sofrem injustiças; isto é, segundo Jhering, “aquele que
por si ou por outrem nunca experimentou essa dor, não sabe o que é o direito, embora tenha de
cabeça todos o corpus juris”430
. Para Jhering, em relação à essa dor moral, “não é a experiência,
nem a educação, mas o simples sentimento da dor (...) a dor é o grito de alarde e a chamada de
socorro da natureza ameaçada (...) isso é verdade tanto para o organismo moral, como para o
organismo físico”431
.
O estudo dessa dor moral, que o direito combate, é a substância de uma patologia do
sentimento jurídico; o direito “é a condição da existência moral da pessoa; a defesa do direito
constitui, portanto, a conservação moral da mesma”432
. Consequentemente, para Jhering, “a dor
que o homem experimenta, quanto é lesado no seu direito, contém o reconhecimento espontâneo,
instintivo, e violentamente arrancado, do que é o seu direito, primeiro para ele, indivíduo, em
seguida para a sociedade humana”433
. Deve-se tirar proveito dessa dor, compreendendo-se o
aviso que ela carrega, lutando-se contra o perigo, porquanto o conformismo é a negação do
sentimento jurídico434
. O direito tem como essência, assim, uma realização prática435
.
Prepondera, em todos os casos, um certo interesse, justificativo de sistemas protetivos
relativamente mais fortes ou mais fracos. Por exemplo, segundo Jhering, nos estados teocráticos
o sacrilégio é punido com a pena capital; nos estados agrícolas, penaliza-se mais intensamente o
remanejamento de marcos e estacas demarcadoras da propriedade; nos estados mercantis, a
falsificação de moedas; nos estados militares, a insubordinação e a falta de disciplina436
.
A defesa de direito próprio tem como consequência também a defesa do direito de toda a
sociedade437
; ao mesmo tempo em que injustiças não possam ser cometidas, deve-se lutar
também para não sofrê-las438
; de onde duas máximas: “nunca façais uma injustiça e nunca
429 Jhering, Rudolf von, cit. p. 27. 430 Jhering, Rudolf von, cit. p. 39. 431 Jhering, Rudolf von, cit. p. 38. 432 Jhering, Rudolf von, cit. p. 39. 433 Jhering, Rudolf von, cit. pp. 38-39. 434 Cf. Jhering, Rudolf von, cit. p. 40. 435 Cf. Jhering, Rudolf von, cit. p. 45. 436 Jhering, Rudolf von, cit. p. 31. 437 Cf. Jhering, Rudolf von, cit. p. 48. 438 Cf. Jhering, Rudolf von, cit. p. 49.
sofrais uma injustiça439
”. Por isso, sustentou Jhering, “toda a gente tem a missão e a obrigação
de esmagar em toda parte, onde ela se erga, a cabeça de hidra que se chama o arbítrio e a
ilegalidade440
. De tal modo, “cada qual é um lutador nato, pelo direito, no interesse da
sociedade”441
. Jhering foi intransigente defensor da libertação do homem, que só pode assim se
considerar quanto mereça viver, o que se alcança quando se mostra vigilante e intransigente para
com a defesa de seus direitos. Segundo Sosa Wagner, em passo biográfico sobre Rudolf von
Jhering,
“(...) ninguém que tenha mínima sensibilidade pode ficar indiferente ante o personagem
de Jhering, uma explosão, um vulcão (...) capta, atrai, seduz. Sofreu na vida, pois perdeu
as duas mulheres com as quais havia se casado e a um filho, porém foi amigo de seus
amigos, inimigo de seus inimigos, conversador agudo e irônico, conhecedor dos grandes
vinhos, gastrônomo, leitor de Shakespeare e, como não podia ser menos em tão grande
personalidade, contraditória até o final de seus dias, em seus juízos, opiniões e
atitudes”442
.
Jhering alertou que se deve “despertar nos espíritos essa disposição moral que deve
constituir a força suprema do direito: a manifestação corajosa e firme do sentimento
jurídico”443
. Afinal, “àquele que não experimenta a irresistível necessidade de defender a sua
pessoa e o justo direito, não temos que prestar auxílio e nenhum interesse tenho em o
converter”444
. Aquele que não luta por seus direitos, acusa Jhering, é o filisteu do direito445
.
É central a relação entre Jhering e Friedrich Carl von Savigny. Jhering impugnou Savigny
algumas vezes, ainda que ambos partissem da experiência histórica como marco criador do
direito. Insistindo na importância do direito legislado, ainda assim Jhering se aproximava de
Savigny; é que valorizava o direito legislado como um produto histórico, revelador de sua
vontade criadora, histórica na essência, e não na contingência.
439 Cf. Jhering, Rudolf von, cit. loc. cit. 440 Jhering, Rudolf von, cit. p. 50. 441 Jhering, Rudolf von, cit. loc. cit. 442 Sosa Wagner, Francisco, cit., p. 145. No original: “(...) nadie con una mínima sensibilidad puede quedar indiferente ante el personaje Jhering, una explosión, um volcán. Jhering capta, atrae, seduce. Sufrió en la vida, pues perdió a los dos mujeres com las que estuvo casado y a un hijo, pero fue amigo de sus amigos, enimigo de sus enimigos, conversador agudo e irônico, conocedor de los grandes vinos, gastrónomo, lector de Shakespeare y, como no podía ser menos em tan grande personalidad, contradictorio hasta el final de sus días, em sus juícios, em sus opiniones, em sus actitudes...” 443 Jhering, Rudolf von, cit. p. VII. 444 Jhering, Rudolf von, cit. p. VIII. 445 Cf. Jhering, Rudolf von, cit. loc. cit.
O pensamento de Jhering evoluiu, alcançando um método no qual preponderava uma
total abdicação para com o primado da lógica, a busca da crescente vinculação social para com
as fórmulas de interpretação jurídica, a crítica ao formalismo voluntarista, bem como uma
absoluta necessidade de articulação entre a experiência jurídica e os interesses reais. Dessa linha
de raciocínio define-se o direito como um interesse que deva ser juridicamente protegido. Grande
renovador do método jurídico, o pensamento de Jhering sugere que se abandone o microscópio
utilizado pela escola de exegese, em favor de um telescópio que afira interesses e confitos
reais446
.
Jhering é provavelmente o autor alemão que maior influência exerceu sobre Tobias
Barreto, a levarmos em conta a recorrência como ele é citado pelo pensador sergipano. Ao
conceber um programa de curso de Filosofia do Direito, Tobias Barreto fez constar uma lição
sobre Rudolf Jhering, que denominou de “o darwinismo no direito”447
. Ao tratar da
jurisprudência da vida diária, livro de Jhering, acima comentado, Tobias Barreto o anuncia
como “romancista alemão”448
, acrescentando:
“Rudolf von Jhering, segundo alguns indícios, está aclimatado entre nós. Não tanto
pelo seu profundo trabalho – O Espírito do Direito Romano – obra conscienciosa na
qual rompeu com as tradições recebidas a respeito do rigor e dureza desse direito, e
insurgiu-se contra o que ele chama ‘das ganze Geklingel Germanischer Sittlichkeits
Melodien’, isto é, a velha ilusão, provinda de Tácito, de um exemplar perfeição de
costumes entre antigos germanos, não tanto por essa obra, digo eu, como pelo pequeno
escrito ‘A Luta pela Direito’, escrito de ocasião, sem dúvida, porém não menos
profundo e bem pensado, onde a genial concepção darwínica do ‘struggle for life’ é
transportada do domínio da natureza para o domínio da sociedade, e o direito se
resigna a ser um capítulo da História Natural, o sábio jurista já ocupa aqui, no meio
dos doutores, um lugar de honra”449
.
Tobias Barreto registrou que Silvio Romero (a quem se referiu nessa passagem como
ilustre coprovinciano e amigo) teria convidado Jhering para fazer uma visita à Faculdade de
Direito de Recife450
. Lembrou também que Silvio Romero citou Jhering na tese de doutoramento
que apresentou no famoso concurso no qual supostamente fora reprovado por uma discussão
com a banca examinadora, em seguida a ter afirmado que “a metafísica estava morta”;
446 Cf. López, José Javier Jacoste, in Domingo, Rafael, cit., p. 308. 447 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, p. 65. 448 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, p. 72. 449 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, pp. 73-74. 450 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, p. 73.
jocosamente, Tobias Barreto referiu-se a esse episódio com um “triste resultado metafísico-
criminal”451
. Tobias Barreto valeu-se desse ensejo para criticar o fato de que os professores da
Faculdade de Direito do Recife não conheciam Rudolf von Jhering, fazendo-o de um modo
absolutamente sarcástico:
“(...) naquela ocasião a autoridade e o nome do jurista germânico achavam tanto eco
nos salões da Faculdade, tinham tanto peso e influência sobre a maioria dos espíritos
docentes quanto puderam ter o nome e a autoridade, verbi gratia, do defunto Major José
Severino, velho rábula de Santo Antão. Talvez que ainda menos; pois este sempre era um
dos nossos, e o alemão, quem sabia mesmo que ele existisse”452
.
A presença de Rudolf von Jhering é constante na construção intelectual de Tobias
Barreto. Pode-se verificar no pensamento de Tobias Barreto uma forte influência do darwinismo
social, bem como uma recorrente busca da compreensão dos interesses em jogo, o que decorre,
basicamente, da predileção de nosso pensador sergipano para com esse grande nome do direito
alemão do século XIX.
Rudolf Gneist
Rudolf Gneist (1816-1895) também compõe o grupo dos mais conhecidos autores
alemães que Tobias Barreto lia e recorrentemente citava. Gneist conta com um imponente
sumário biográfico no dicionário biográfico alemão453
. Foi também biografado na coleção dos
Juristas Universales454
, bem como no Lexicon dirigido por Michael Stolleis455
. Rudolf Gneist é o
típico jurista político da era de Bismarck (Ein politischer Jurist in der Bismarckzeit), como
observou Eric J. Hahn, um de seus biógrafos, em tese de doutoramento defendida em Yale, em
1971456
.
Tobias Barreto deixou-nos uma descrição de Rudolf von Gneist, como segue:
451 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, loc. cit. 452 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, loc. cit. 453 Deustsche Biographische Enzyklopädie, vol. 3, p. 44. 454 Domingo, Rafael, Juristas Universales, cit., p. 281. 455 Stolleis, Michael (org), Juristen- Ein Biographisches Lexicon von der Antike bis zum 20 Jahrhundert. München: Beck, 2001, p. 246. 456 Hahn, Ericj J., Rudolf von Gneist- 1816-1895, Ein politischer Jurist in der Bismarckzeit, Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1995.
“Henrique Rodolfo Frederico Gneist, membro do Reichtag alemão e professor da
Faculdade Jurídica, na Universidade de Berlim, é contado entre os maiores publicistas
da época atual. No seu país, onde aliás se agrupam grandezas de todo o gênero e muitas
vezes numa só colina aninha-se um bando de águias, passa ele sem contestação pelo
mais vasto conhecedor do direito público inglês (...) As obras de Gneist, consagradas ao
estudo dessa matéria, quase tornam inúteis as dos próprios escritores da Grã-Bretanha,
sobrepujando-as em profundeza de análise e extensão de vistas. Para tornar concebível e
evidenciar essa verdade, basta advertir que os publicistas ingleses são todos
tendenciosos, prismáticos, refletores de um partido a que pertencem (...) Compreende-se
que o sábio professor de Berlim pôde bem evitar um tal defeito que não é pequeno. Já
seria por si só uma excelência, quando a isto não se reunisse, como se reúne em grau
superior, a genialidade científica de uma pesquisa própria, fecunda e infatigável, no
meio de uma erudição pasmosa”457
.
Rudolf Gneist estudou direito em Berlim. Foi aluno de Savigny458
, que o influenciou para
o estudo do direito romano, ao qual tanto se dedicou, disciplina que ensinou na universidade na
qual se formou. Admirador do direito constitucional inglês, bem como do liberalismo britânico,
Gneist foi um ferrenho opositor da autocracia prussiana.
Recebeu na Alemanha várias delegações de legisladores japoneses, com quem colaborou
na construção de um modelo constitucional, nos padrões das constituições ocidentais. A
cooperação de Gneist com autoridades japonesas deu-se no auge da Era Meiji, época na qual os
japoneses buscavam copiar arranjos institucionais ocidentais459
. Gneist recebeu em Berlim o
ministro japonês Hirobumi Ito (1841-1909), entre os anos de 1882-1883, estabelecendo um
permanente contato cultural que teve como resultado a colaboração de Gneist para a construção
do texto da constituição japonesa de 1889460
.
Convencido de que teoria e prática deveriam ser ligadas, Gneist advogou nas Cortes
prussianas461
. De acordo com Michael Stolleis,
“Rudolf von Gneist for a parlamentar, professor universitário, pai-fundador do Colóquio
dos Juristas Alemães, fundador da União para a Defesa contra o antissemitismo,
conselheiro do Ministério das Relações Exteriores, conselheiro privado, Wirkilich
Geheimer Oberjustitzrat (com direito ao título de Excelência) (…) um homem conduzido
457 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, p. 231. 458 Hahn, Ericj J., Rudolf von Gneist- 1816-1895, p. 3. 459 Hahn, Ericj J., Rudolf von Gneist- 1816-1895, p. 233. 460 Cf. Domingo, Rafael (org.), Juristas Universales, cit., p. 281. 461 Esser, Dirk, Gneist als Zivilrechtslehrer- Die Pandektenvorlesung des Wintersemesters- 1854-55, Paderborn, München, Wien, Zurich: Ferdinand Schöningh, 2004, p. 16.
à nobreza com direito a deixar como herança seu título, ele recebeu doutorados
honorários das universidades de Edimburgo, Bolonha, Oxford e Dublin”462
Rudolf von Gneist permanentemente vinculou sua atividade acadêmica com objetivos e
projetos políticos. Ainda que influenciado por Hegel, o máximo teorizador do poder absoluto do
estado prussiano, Gneist defendia governos locais, insistia na importância do Estado de Direito e
teorizava o Estado a partir de uma monarquia social. Nesse sentido, seus biógrafos observam que
Gneist pretendeu introduzir o conceito inglês de selfgovernment na concepção alemã de
Selbsterwaltung463
.
Rudolf von Gneist defendia administrações locais, porém, não no sentido de que as várias
instituições administrativas seriam autônomas; pretendia, no entanto, que o cidadão pudesse
participar intensamente da vida local. Não se preocupou em divisão de tarefas administrativas;
pensou em uma teoria do Estado que contemplasse unidades administrativas localizadas. Assim,
é um dos que primeiramente conceberam a figura jurídico-administrativa do Kreis, que funciona
como uma demarcação que alcança vários núcleos populacionais originariamente isolados464
.
Trata-se de acadêmico que participou intensamente da reforma administrativa prussiana,
com fortes posições em favor do respeito ao princípio da legalidade, pela Administração, que
entendia que deveria ser submetida à lei, como fundamento do estado de direito. Atuou como
magistrado no Tribunal Superior Administrativo da Prússia. Defendeu que tribunais deveriam
contar com juízes que não fossem recrutados entre os agentes da administração, como condição
de independência nas decisões465
.
Um dos primeiros teóricos do Estado Social, Rudolf von Gneist defendia um Estado ativo
na prestação de serviços sociais. Pregou um liberalismo censitário que deveria ser agregado ao
corporativismo germânico, na busca de um estado formado por uma comunidade de indivíduos
sujeitos a obrigações466
.
462 Stolleis, Michael, Public Law in Germany, 1800-1914, New York and Oxford, 2001, p. 379. No original: “Rudolf von Gneist was a parliamentarian, university teacher, founding father of the German Jurists’ Colloquy, founder of the Union for Defense against anti-Semitism, advisor to the foreigner office, privy councilor, Wirkilich Geheimer Oberjustitzrat (with the right to title ‘Excellenz’) (…) a man raised to the status of nobility with right to bequeath his title, he held honorary doctorates from the universities of Edinburgh, Bologna, Oxford, and Dublin (…)” 463 Cf. Domingo, Rafael (org.), Juristas Universales, cit., p. 281. 464 Cf. Domingo, Rafael (org.), Juristas Universales, cit., loc. cit. 465 Cf. Domingo, Rafael (org.), Juristas Universales, cit., loc. cit. 466 Cf. Domingo, Rafael (org.), Juristas Universales, cit., loc. cit.
Na biblioteca do Instituto Max-Planck de História do Direito, em Frankfurt, há um
exemplar do livro de Rudolf Gneist sobre o direito constitucional inglês467
. No Brasil, esse livro
suscitou um amplo debate entre Tobias Barreto e José Higino Duarte Pereira. A disputa se deu
em torno da tradução de uma palavra alemã, “Obrigkeit”. Durante a disputa, Tobias Barreto
esforçou-se para se mostrar como a única pessoa em Recife que conseguia ler e traduzir
diretamente do alemão. Pode-se admitir que o conhecimento da língua alemã pode ter sido uma
estratégia retórica que Tobias Barreto utilizou para diminuir seus oponentes. É o que se relata em
seguida.
A referida estratégia do uso da língua alemã como técnica de imposição argumentativa
pode ser explorada em animada polêmica468
que Tobias Barreto travou com José Higino Duarte
Pereira, em 1888, a propósito de uma tese que este último apresentou em prova escrita em
concurso na Faculdade de Direito do Recife469
.
José Higino havia afirmado, em tese de concurso, com base na doutrina de Rudolf von
Gneist, que a essência do selfgovernment consistiria na obrigatoriedade e na gratuidade dos
serviços públicos. Tobias cismou que José Higino traduzira equivocadamente do alemão,
desafiando-o para apresentar a obra de Gneist que utilizara, o que fez em artigo publicado no
Jornal do Recife, na edição de 18 de setembro de 1888. Tobias pediu que José Higino apontasse
a obra, com indicação do capítulo e da página, em que o autor alemão – Rudolf von Gneist –
teria exposto as ideias citadas no texto apresentado no concurso.
José Higino respondeu, logo no dia seguinte, 19 de setembro, que possuía o livro de
Rudolf von Gneist, mas que conhecia suas ideias por intermédio de outro autor, Oscar Gluth; e
concluiu: “Entendi dever dar essa resposta já por delicadeza, já porque não pegarei nunca o
meu muito fraco concurso para a discussão de um ponto de doutrina (...) não tenho, porém, a
pretensão de ensinar senão aos meus discípulos”470
. Tobias saiu novamente contra José Higino,
insinuando que apenas ele - - Tobias - - conhecia e traduzia Rudolf von Gneist, e que, se o
467 Gneist, Rudolf, Selfgovernment- Communalverfassung und Verwaltusgnsgerichtr in England, Berlin: Verlag von Julius Springer, 1871. 468 A propósito das várias polêmicas que houve na história brasileira, conferir o interessante estudo de Bueno, Alexei e Ermakoff, George, Duelos no Serpentário- uma Antologia da Polêmica Intelectual no Brasil- 1850-1950, Rio de Janeiro: Ermakoff Casa Editorial, 2005. 469 A querela está documentada em Barreto, Tobias, Obras Completas, Estudos de Direito I, Rio de Janeiro: J. E. Solomon Editores e Sergipe: Editora do Diário Oficial, 2012, pp. 181-274. Organização de Luiz Antonio Barreto. 470 Excerto reproduzido em Barreto, Tobias, cit., pp. 182-183.
contendor tivesse dúvidas “(...) sobre qualquer das citações de Gneist, pode indicar o lugar
onde lhe mande levar as respectivas obras (...)”471
.
José Higino respondeu imediatamente; ressaltou que enfrentava um nevropata, para o
qual deveria observar normas muito severas de delicadeza; observou ainda que seus hábitos e
educação não o permitiam de tomar parte em um verdadeiro pugilato, “destinado a fazer as
delícias de alguns amadores de escândalos”472
. Em 22 de setembro Tobias Barreto reiterou que
José Higino lhe escondia um livro, que não comprovava uma citação, e que não sabia alemão
suficientemente para traduzir os livros que supostamente lia e mencionava473
.
Em 26 de setembro José Higino ainda argumentou, explicando seus pontos de vista, com
várias referências às obras discutidas, todas em alemão474
. Tobias respondeu, indicando o ponto
central da controvérsia: José Higino teria traduzido Obrigkeit por obrigação, enquanto que a
correta versão da expressão alemã seria poder público, autoridade, magistratura475
. José Higino
retrucou, com severidade, observando que se Tobias Barreto, “em vez das cinco obras de Gneist,
que ornam a sua estante, possuísse uma só e a tivesse lido, seria mais pobre de livros e mais rico
de ideias”476
.
Em 27 de setembro Tobias colocou seus cinco volumes de Rudolf von Gneist às ordens
de José Higino, desafiando o rival a apresentar em público as obras alemãs que citava477
; mais
tarde, 1º de outubro, desafiou José Higino a apontar “o dicionário alemão, no qual achou que a
palavra Obrigkeit quer dizer obrigação; e Obrigkeitsamt cargo obrigatório”478
. No dia seguinte,
José Higino encerrou artigo de jornal nominando Tobias Barreto de “palhaço literário
bufarinheiro da ciência”479
. Mais tarde, Tobias observou que José Higino, “além da ridícula
fanfarronada de uma comprida preleção, composta de farrapos mal alinhavados de um ou dois
alemães, não teve senso bastante para tirar desses autores, pelo menos, o que eles podiam
oferecer de mais agradável sobre a matéria”480
.
471 Barreto, Tobias, cit., p. 186. 472 Conforme excerto reproduzido em Barreto, Tobias, cit., p. 187. 473 Conforme excerto reproduzido em Barreto, Tobias, cit., p. 189. 474 Conforme excerto reproduzido em Barreto, Tobias, cit., pp. 189-193. 475 Conforme excerto reproduzido em Barreto, Tobias, cit., p. 200. 476 Conforme excerto reproduzido em Barreto, Tobias, cit., 205. 477 Conforme excerto reproduzido em Barreto, Tobias, cit., p. 206. 478 Conforme excerto reproduzido em Barreto, Tobias, cit., p. 215. 479 Conforme excerto reproduzido em Barreto, Tobias, cit., p. 220. 480 Conforme excerto reproduzido em Barreto, Tobias, cit., p. 235.
Em 24 de outubro Tobias publicou artigo reiterando que José Higino não sabia alemão,
aproveitando para apresentar, traduzida, excerto da tese contestada, com o objetivo de enviá-la
ao autor alemão citado, o que iria constatar o equívoco que José Higino cometera. A contenda
seguiu até 6 de dezembro de 1888, quando Tobias Barreto publicou artigo afirmando que a
Alemanha estava completamente fora do horizonte de José Higino481
.
Como se percebe, Tobias Barreto se enfurecia com aqueles que pretendiam disputar
conhecimentos de alemão e de cultura germânica, obsessão revelada na polêmica acima
mencionada.
Ao discutir o Poder Moderador no modelo brasileiro, Tobias Barreto valeu-se
recorrentemente de Rudolf von Gneist, como indicativo de exemplos e comentários sobre o
constitucionalismo inglês. Ilustrando a alta significação política e moral que os ingleses
conferiam ao combate à corrupção na Corte do século XVIII, Tobias Barreto citou Rudolf von
Gneist diretamente em alemão482
.
De igual modo, em outro texto, Tobias Barreto novamente citou Rudolf von Gneist
diretamente em alemão, identificando as consistências do governo inglês, ao longo dos séculos,
em esforço para demonstrar que copiávamos as instituições inglesas, e que o fazíamos
inadequadamente483
; afinal, Tobias Barreto insistia que o organismo social brasileiro não era o
organismo social inglês484
.
As várias observações que Tobias Barreto lançou sobre as instituições políticas inglesas
não foram feitas com base em autores ingleses; o conhecimento que Tobias Barreto tinha do
direito constitucional inglês fora obtido diretamente da leitura de Rudolf von Gneist,
circunstância que fica muito clara no passo no qual o pensador sergipano discorreu sobre a
responsabilidade jurídica e política dos ministros ingleses485
.
Tobias Barreto referia-se a Rudolf von Gneist como “melhor conhecedor do direito
público inglês”486
. Ainda em 1888, na polêmica com José Higino Duarte Pereira, Tobias Barreto
dizia que possuía, há cinco anos, diversas obras de Rudolf von Gneist487
. Apresentava-se, assim,
481 Conforme excerto reproduzido em Barreto, Tobias, cit., p. 269. 482 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, pp. 101-102. 483 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, p. 107. 484 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, p. 123. 485 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, loc. cit. 486 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, p. 176. 487 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, p. 181.
ou pelo pretendia de tal modo, como o maior conhecedor da obra de Rudolf von Gneist, entre os
acadêmicos brasileiros. A polêmica que Tobias Barreto manteve com José Higino Duarte Pereira
é indicativo de que se pode falar de um uso retórico do domínio da língua alemã nas várias
contendas jurídicas que há no Brasil.
Theodor Mommsen
Na biblioteca alemã de Tobias Barreto encontrava-se também obra de Theodor
Mommsen (1817-1903). Destacado jurista, historiador, romanista e filólogo, Theodor Mommsen
deixou um grande legado, centrado nas relações que estabeleceu entre Direito e História488
. Esse
esforço o revela como um dos grandes romanistas na tradição acadêmica alemã. Mommsen
exerceu grande influência sobre Savigny, pelo que dever ser ligado, desde o início, à escola
histórica de jurisprudência.
Seu livro Römisches Strafrecht fora estudado por Tobias Barreto. Mommsen tinha
familiaridade com Cicero, Tácito, Paulo, Varro, entre tantos outros personagens da história
romana489
. Mommsen é a mais completa ilustração de um bem sucedido acadêmico alemão do
século XIX490
. Em 1902 foi laureado com o Prêmio Nobel, como reconhecimento das qualidades
literárias de sua produção romanística, considerado, à época, como “o maior mestre na arte da
escrita da história”491
.
Filho de um pastor protestante, Mommsen estudou em Kiel, obteve a cátedra de Direito
Romano em Breslau (1854) e seguiu para a Universidade de Berlim (1861) onde foi reitor.
Marcado pela paixão como se referia aos personagens da história de Roma sobre os quais
dissertava (ao que parece, adorava César e desprezava Cícero), Mommsen também foi um
apaixonado na política. Divergiu de Bismarck, por quem foi processado por calúnia, ainda quem
tenha sido posteriormente absolvido. Mommsen era um crítico da política social de Bismarck,
bem como do antissemitismo que marcou sua época.
488 Domingo, Rafael, Juristas Universales, Madrid e Barcelona: Marcial Pons, 2004, p. 298. 489 Mommsen, Theodor, Römisches Strafrecht, Graz: Akademische Druck-U. Verlagsansalt, 1955. 490 Para um estudo do papel de Theodor Mommser ao longo do século XIX, conferir Heuss, Alfred, Theodor Mommsen und ds 19. Jahrhundert, Kiel: Ferdinand Hirt, 1956, especialmente pp. 33-57, Mommsen als Jurist. 491 Domingo, Rafael, Juristas Universales, cit., loc. cit.
Mommsen devotou a vida para a cultura e para o conhecimento492
. Wissenschaft e
Bildung (noções muito próprias da língua alemã, que identificam apreço à ciência e a construção
do conhecimento493
) são epítetos que invariavelmente identificam sua trajetória intelectual. Há
muitas referências de seus livros no já mencionado catálogo do Parlamento alemão494
. Deixou
mais de 1500 títulos publicados, entre artigos e livros; segundo seus biógrafos, Mommsen “será
sempre um ponto de partida obrigatório em qualquer estudo sério sobre quaisquer dos múltiplos
campos que cultivou”495
.
Tobias Barreto citou Mommsen algumas vezes. Há uma nota de rodapé que Tobias
Barreto lançou na parte final de um texto no qual comentava um livro de Tavares Bastos (sobre o
federalismo); o pensador sergipano registrava conhecer a História Romana, que lembrou ter sido
publicada em 1854, quando Mommsen contaria com 37 anos496
.
Tobias Barreto argumentou com Mommsen, ao discutir o tema da interpelação no direito
processual, aderindo à compreensão do romanista alemão para quem, “a interpelação tem por
fim fazer conhecida do devedor a vontade do credor de ver realizado o cumprimento da
obrigação e nestas condições nem é bastante, por um lado, que a questão seja levada ao
conhecimento da justiça, se o devedor não é inteirado da vontade do credor (...)”497
.
Ao comentar os fundamentos do direito de punir, Tobias Barreto lembrou, com base em
Mommsen, algum resquício do legado romano, em cujo contexto histórico as ofensas cometidas
contra um indivíduo, e não contra a comunidade em seu sentido representativo, dependeriam de
manifestação do interessado atingido, com vistas à punição498
.
492 Consultar as memórias de sua filha, Mommsen, Adelheid, Mein Vater- Erinnerunger an Theodor Mommsen, München: Matthes & Seitz Verlag, 1992. 493 Cf. Watson, Peter, The German Genius- Europe´s third Renaissance, the second scientific revolution and the twentieth century, London: Simon & Schuster, 2010, p. 53. O conceito de Bildung, esclarece esse autor, é um neologismo do século XIX, que tinha como origem duas passagens da tradução que Martinho Lutero fizera da Bíblia. Em Gênesis, I: 26-7 e na Epístola de Paulo aos Coríntios, 2, 3:18, tem-se a expressão imagem, isto é, o homem como imagem (Bild)d e Deus e a imagem (Bild) da glória, como indicativos da construção de uma visão pessoal de mundo, decorrente de uma mentalidade cultivada, instruída, dotada de bom gosto, determinante na fixação de uma direção a seguir. 494 Entre eles: Die Annexion Schleswig-Holsteins- ein Senschreiben an die Wählmänner der Stadt Halle (p. 68); Römische Froschungen (p. 774); Römische Geschichte (p. 773) and Römische Staatrecht (p. 49). 495 Domingo, Rafael, Juristas Universales, cit., p. 299. 496 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito I, p. 168. 497 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito I, p. 292. 498 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, p. 176.
Ao comentar o Código Criminal Brasileiro do Império, Tobias Barreto citou Mommsen
para problematizar as fórmulas classificatórias daquele código que, entre outros, dispunha que
crime e delito eram expressões sinônimas, para os efeitos daquele texto legal. A dicotomia do
código, que tratava de crime (ou delito) e lei definidora, Tobias reputou como uma reação às
tricotomias tradicionais, a exemplo da divisão do “ius publicum, feita por Ulpiano, como
consistindo in sacris, sacerdotibus et magistratibus”499
.
Tobias Barreto também era experiente latinista, pelo que sua proximidade com
Mommsen transcendia as preocupações contingenciais de ordem normativa, radicando em um
interesse comum com os temas universais e recorrentes da cultura clássica.
Johann Caspar Bluntschli
Johann Kaspar Bluntschli (1808-1888) foi aluno de Savigny em Berlim. Jurista, professor
de direito em Zurique (1836), em Munique (1848) e depois em Heidelberg (1861), Bluntschli
também se dedicou à vida política. Conta-se que Bluntschli era consciente dessa dupla
dedicação, da qual gracejava, dizendo que entregava 3/7 de seu tempo para o magistério, e 4/7
para a política. Pelo que se observa do estudo da história desse autor nascido na Suíça percebe-se
um pouco mais um político e um pouco menos um professor500
.
Bluntschli doutorou-se com tese em direito romano, tratando do direito hereditário no
código de Justiniano (Noterbrecht der Novelle 115). Foi membro do conselho do Cantão de
Zurique, para o qual redigiu um código civil, aprovado, e que teve vigência até 1912, quando da
promulgação de um código civil federal suíço. Georg Jellineck o sucedeu em sua cátedra de
Heidelberg. Bluntschli está biografado no dicionário de juristas coordenado por Michael
Stolleis501
, bem como no dicionário de juristas alemães e europeus do século XIX502
.
499 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, p. 218. 500 Cf. Domingo, Rafael (org), Juristas Universales, cit., p. 218. 501 Stolleis, Michael (org), Juristen- Ein Biographisches Lexicon von der Antike bis zum 20 Jahrhundert, cit., p. 89. 502 Kleinmeyer, Gerd and Schröder, Jan (Hrsg.), Deutsche und Europäische Juristen aus Neun Jahrhunderten, pp. 70-73.
Mario Losano nos dá conta que havia um volume de Bluntschli na biblioteca de Tobias
Barreto503
. Bluntschli é autor conhecido fora da Alemanha; seus livros foram traduzidos para o
inglês504
e para o francês505
. Há um outro livro de Bluntschli que teve apenas uma edição no
século XIX506
. Trata-se de autor também hoje estudado, pelo que se infere de três obras suas, que
foram reproduzidas na segunda metade do século XX507
. Bluntschli foi figura importante do
movimento jurídico germanista, notabilizando-se por suas críticas à recepção do direito romano,
o qual teria representado uma desgraça nacional, no sentido em que teria impedido o pleno
desenvolvimento de um direito autóctone508
. Ainda que entusiastas do direito romano, que
estudavam com afinco, vários autores alemães repudiavam sua recepção.
Tobias Barreto citou Bluntschli em um artigo que redigiu sobre direito autoral,
observando que esse autor alemão tratava “(...) do direito autoral na seção de direito das
pessoas, depois das pessoas jurídicas”509
. Em linhas gerais, a questão da exposição do direito
civil suscitava alguma polêmica no século XIX. O plano clássico, ou de Gaio, denominado de
plano romano-francês, apresentava o direito civil em três seções: pessoas, coisas e ações510
. É a
linha seguida pelo código civil francês, bem como pelos códigos da Áustria, da Argentina e da
Itália511
.
A partir de Savigny os alemães passaram a se valer de um outro modelo, também
denominado modelo moderno, no qual o direito civil seria dividido em quatro seções: direitos
reais, direitos obrigacionais, direito de família e direito das sucessões, antecedidos por uma parte
geral; é esse o modelo do código civil alemão, e de algum modo seguido pelo código civil
503 Conferir Losano, Mario, Um giurista tropicale- Tobias Barreto fra Brasile reale e Germania ideale cit., loc. cit. Bluntschli, Johann Caspar, Deutsches Staats-Wörterbuch, Stugart und Leipzig, 1857-1870, 11 vol. 504 Bluntschli, Johann Caspar, The theory of the state, Oxford: Clarendon, 1885. 505 Bluntschli, Johann Caspar, Le droit public general, Paris: Guillaumin, 1880. Trad. Armand de Riedmatten. La politique, Paris: Guillaumin, 1883. Trad. Armand de Riedmatten. Théorie générale de l’État, Paris: Guillaumin, 1877. Trad. Armand de Riedmatten. 506 Bluntschli, Johann Caspar, Deutsche Statslehre für Gebildete, Nördlingen: Beck, 1874. 507 Bluntschli, Johann Caspar, Allgemeine Staatslehre, Aalen: Scientia Verl., 1965. Allgemeines Staatsrecht, Aalen: Scientia Verl., 1965. Charakter und Geist der politischen Parteien, Aalen: Scientia Verl., 1970.Barr 508 Cf. Contreras, Francisco J. Peláez, cit., p. 93. 509 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 283. 510 Cf. Camacho, Fermin Evangelista, cit., p. 181. 511 Cf. Camacho, Fermin Evangelista, cit., loc. cit.
brasileiro de 1916512
. A classificação de Bluntschli, aceita por Tobias Barreto, seguia essa lógica
da fórmula de Savigny.
Bluntschli também foi citado por Tobias Barreto na polêmica com José Higino Duarte
Ferreira. Tobias Barreto invocava a autoridade de Bluntschi para enfatizar que entre o direito
público e o direito privado não haveria lugar para uma terceira categoria, denominada de direito
social513
. Esse tema foi retomado no século XX, quando se discutiu a natureza jurídica do direito
do trabalho.
********************************************
Após esse primeiro grupo de pensadores, Rudolf von Jhering, Rodolf Gneist, Theodor
Mommsen e Johann Kaspar Bluntschli, segue um segundo grupo, menos conhecido hoje em dia,
inclusive no contexto alemão, nada obstante o fato de que esses autores sejam citados em alguns
livros de referência. São os casos de Joseph Sötvös, Franz von Holtzendorff, Albert Berner,
Heinrich Lammasch, Franz Adickes, Maximilian von Buri, Felix Dahn, Rudolf Haym, Hugo
Meyer, Theodor Mutter, Conrad Franz Rossirt, Ernest Traugott Rubo, Julius Fröbel, Salomon
Stricker, Adolf Samuely, August von Bethmann-Hollweg, Theodor Reinhold Schütze, Otto
Stobbe, Edward Bocking, Karl Bolgiano e Frederich Oskar Scwarze.
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Joseph Stövos
Joseph Stövos (1813-1871) era húngaro. É nome reconhecido na Hungria, devido a suas
contribuições na literatura, ciência política e pedagogia. Foi ministro da educação em seu país,
de 1867 a 1871, posição da qual se valeu para realizar algumas medidas avançadas. Seu grande
legado consistiu na proposta e aprovação de uma lei educacional, por intermédio da qual a
educação elementar foi considerada compulsória na Hungria514
.
512 Cf. Camacho, Fermin Evangelista, cit., loc. cit. 513 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit. pp. 199-200. 514 Bödy, Paul, Joseph Eötvös and the Modernization of Hungary, 1840-1870, Philadelphia: The American Philosophical Society, 1972, pp. 98-110.
Na biblioteca do Instituto Max Planck há um exemplar de um livro de Stövos, datado de
1851, Der Einfluss der herrschenden Ideen des 19. Jahrhunderts auf den Staat515
; editado em
Viena. Esse livro é mencionado no catálogo de 1882 da biblioteca do parlamento alemão516
.
Tobias Barreto possuía um exemplar desse mesmo livro, ainda que uma edição de 1854, feita em
Leipzig.
Cuida-se do tratado político de Stövös, que grande influência provocou na Hungria, onde
foi originalmente publicado. Stövos conceituou liberdade517
, igualdade518
, nacionalidade519
;
discutiu os contornos de uma constituição republicana520
e idilicamente comentou a chegada de
Pisarro no Peru, tratando da conquista do reino dos Incas, cuja organização política comentou521
.
Joseph Stövös foi um dos mais combativos defensores da modernização da Hungria, em
meados do século XIX. Insistiu na busca de justiça social, ideário que se fazia presente no
liberalismo europeu ao qual foi agregado o romantismo social. Ainda que de família nobre,
Stövös rejeitou os compromissos familiares com a dinastia dos Habsburgos. Autor conhecido,
utilizou a literatura como instrumento de protesto. No estilo romântico da época, compôs novelas
de forte impacto social, a exemplo da narrativa de um jovem obstinado com a busca do amor e
da fé522
.
Em vão foram as tentativas que empregou, no sentido de aplicar os princípios do
liberalismo ocidental na sociedade feudal húngara. Concebeu uma teoria do Estado (anunciada
no livro que Tobias Barreto conhecia e mantinha em sua biblioteca), na qual insistiu na
formulação de uma política liberal que protegesse os direitos de personalidade, as liberdades
religiosas e as liberdades pessoais. Há em Stövös uma forte marca dos escritos de Tocqueville523
.
Stövös de algum modo repudiava o nacionalismo de seu tempo, o qual reduzia a um
tribalismo moderno. Dotado de grande imaginação política, frustrou-se com a recorrente
oposição que seu pensamento à época suscitou na Hungria. Defensor da autonomia
515 Stövös, Joseph, Der Einfluss der herrschenden Ideen des 19. Jahrhunderts auf den Staat, Wien: Jasper, Hügel & Manz, 1851. 516 Der Einfluss der herrschenden Ideen des 19. Jahrhunderts auf den Staat, p. 37 do Catálogo. 517 Stövös, Joseph, cit., p. 35. 518 Stövös, Joseph, cit., loc. cit. 519 Stövös, Joseph, cit., p. 49. 520 Stövös, Joseph, cit. p. 228. 521 Stövös, Joseph, pp. 280 e ss. 522 Cf. Bödy, Paul, cit., loc. cit. 523 Cf. Bödy, Paul, cit., loc. cit.
constitucional húngara, Stövös propôs que os conflitos religiosos que afetavam seu país
deveriam ser resolvidos mediante a outorga de autonomia para todos os grupos envolvidos na
disputa524
.
Tobias Barreto também mencionou expressamente um outro livro de Stövos, “(...) o
importante escrito do Barão Joseph Eötros525
, intitulado Ueber die Gleich berechtigung der
Nationalitaten in Oesterreich”526
, revelando acompanhar a história e os acontecimentos da
Hungria, no contexto de uma polêmica com Tavares Bastos, a propósito do federalismo.
Referiu-se a Stövos como “um ilustre e abalizado escritor húngaro”527
, citando-o
textualmente. Observou também no mesmo escrito que o exemplo da situação húngara, utilizado
por Tavares Bastos como ilustrativa de disputa e convivência entre nacionalidades distintas, nada
revelava de instrutivo, naquele tema, porque “ali se puseram em jogo as distinções de povo a
povo: ali se fizeram obras, para sustentar-se o igual valor de nacionalidades justapostas”528
,
afirmação que buscou comprovar com a imediata citação do autor húngaro aqui mencionado.
Essa passagem comprova o uso retórico e argumentativo que Tobias Barreto fazia dos autores
que lia e conhecia.
Albert Berner
Tobias Barreto citou Albert Berner em ensaio que redigiu sobre o tema da tentativa em
matéria criminal, argumentando, em concordância com o autor alemão, em favor da necessidade
da punição de atos preparatórios529
. Por outro lado, Tobias Barreto discordou de Berner, ao
comentar a extensão do conceito de mandato, tal como então disposto no art. 4º do Código
Criminal do Império. Avaliando o mandato em matéria penal, em convergência ao conceito de
cumplicidade, Tobias Barreto dissentia de Berner, porquanto o autor alemão entendia que na
inexistência de participação criminosa do mandante, este deveria ficar impune530
.
524 Cf. Bödy, Paul, cit., loc. cit. 525 Há uma permanente confusão de grafias do nome Stövös, o qual aparece também como Eötos, ou como Eötros, a propósito dessa referência do próprio Tobias Barreto. 526 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 166. 527 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 153. 528 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 166. 529 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, p. 321. 530 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, p. 355.
Albert Berner (1818-1907) conta com uma entrada na Deutsche Biographische
Enzyklopädie531
; seu trabalho também é mencionado no catálogo da biblioteca do parlamento
alemão532
. Na biblioteca do Instituto Max-Planck em Frankfurt há uma edição de 1861 de um de
seus livros, com o título Grundsätze des preussbischen Strafrechts, edição em alfabeto gótico533
.
Trata-se da mesma edição que consta do acervo de Tobias Barreto.
Uma biografia de Albert Berner foi publicada em 1960; originariamente, era uma tese de
doutoramento. Seu autor, Hubert Alda, enfatizou a importância de Berner para as ciências
(bedeutung für die Wissenschaft)534
.
Um dos mais importantes criminalistas alemães do século passado, Berner é autor de um
tratado de direito penal (que Tobias Barreto conhecia, a primeira edição é de 1857, o livro foi
traduzido para várias línguas) que exerceu grande influência na construção desse ramo do direito
alemão535
. Berner lecionou direito penal em Berlim (foi substituído por Franz Lizt).
Adepto da chamada escola hegeliana de direito penal, Berner é um dos principais
representantes dessa linha, ao lado de Julius Abegg (1796-1868), Christian Köstlin (1813-1856)
e Hugo Hälsmer (1817-1889). Nesse sentido, Berner fundamentava a sanção como um dever
jurídico e não como uma exigência ética. A pena anularia o crime, restabelecendo uma ordem,
revelada pela vontade geral, que fora desrespeitada.
Albert Berner deixou extensa obra536
, cujo núcleo é um curso de direito penal alemão537
,
traduzida para o italiano, ainda no século XIX538
. Um de seus livros mais conhecidos foi editado
e estudado no século XX539
.
531 Deustsche Biographische Enzyklopädie, vol. 1, p. 463. 532 Entre eles: Lehrbuch des Deutschen Straffrechts (p. 543); Die Lehre von der Theilname am Verbrechen und neuren Controversen über dolus und culpa (p. 546); Lehrbuch des Deutschen Pressrechts (p. 538) and Wirkungskreis des Strafgesetzes (p. 527). 533 Berner, Albert Friedrich, Grundssätze des preussbischen Strafrechts, Verlag von Berhnhard Tauchnilz, 1861. 534 Alda, Hubert, Albert Friedrich Berner, Eine Biographie, Münster: Max Kramer, 1960, p. 136. 535 Cf. Vormbaum, Thomas, A Modern History of German Criminal Law, Heildelberg: Springer, 2014. 536 Entre outros, Berner, Albert Friedrich, Abschaffung der Todesstrafe, Dresden: Boetthicher, 1861. Wirkingskreis des Strafgesetzes nach Zeit, Raum und Personen, Berlin: Decker, 1853. 537 Berner, Albert Friedrich, Lehrbuch des deutschen Strafrechtes, Leipzig, Tauchnitz, 1866. Lehrbruch des deutschen Strafrechtes, Aalen: Scientia Verlag, 1986. Lehrbuch des deutschen Strafrechtes, Goldbach: Keip, 1996. 538 Berner, Albert Friedrich, Trattato de diritto penale, Milano: Vallardi, 1887. Tradução de Eduardo Bertola.
Franz von Holtzendorff
Tobias Barreto se referia a Franz von Holtzendorff quando tratava da teoria dos motivos
em matéria penal, ao estudar o significado jurídico do arrependimento, o que justificava que se
punisse a tentativa. Nesse passo, recomendava um ensaio de Holtzendorff540
, Psychologie des
Mordes541
, que discutia aspectos psicológicos ligados ao homicídio.
Em estudo sobre direito criminal, Tobias Barreto apoiou-se em Holtzendorff para
enfatizar que Estado, direito e pena eram completamente inseparáveis, “(...) no sentido de que
todos três brotaram da mesma raiz histórica, da mesma necessidade ética da natureza
humana”542
. Em outro passo, também tratando de matéria penal, Tobias Barreto referiu-se à já
mencionada monografia de Holtzendorff (Psychologie des Mordes) como um pequeno ensaio,
“digno de estudo”543
. Ao dissertar sobre o mandato em matéria penal Tobias Barreto citou
passagem de Holtzendorff, na qual o penalista alemão afirmava que o silêncio do legislador não
poderia ser entendido pelo intérprete como “uma proposta de enigmas”544
.
Franz von Holtzendorff (1829-1889) foi biografado pelo dicionário enciclopédico
alemão545
. Há também referências a seu trabalho no catálogo de livros do parlamento alemão, de
1882546
. De uma família da nobreza, estudou em Bonn, Heidelberg e Berlim. Lecionou na
Universidade de Munique, destacando-se nos campos do direito penal e do direito internacional.
539 Berner, Albert Friedrich, Grundlinien der criminalistischen Imputationslehre, Frankfurt: Sauer & Auvermann, 1968. 540 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, II, Rio de Janeiro: J. E. Salomon e Sergipe: Editora Diário Oficial, 2012, p. 256. 541 Com esse título há também um outro livro em alemão, Bjerre, Andreas, Zu Psychologie des Mordes, Heildelberg: Winter im Komm, 1925. 542 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 186. 543 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 324. 544 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 342. 545 Deustsche Biographische Enzyklopädie, vol. 5, p. 156. 546 Entre eles, Die Auslieferung der Verbrecher und das Asylrecht (p. 528); Die Deportation als Strafmittel in Alter und neuer Zeit (p. 548), Eroberunger und Eroberungsrecht (p. 524); Für den Grafen Harry von Armin (p. 556), Das Irische Gefängnissystem insbesondere die Zwischenans halten vor der Entlassung der Sträfflinge (p. 551); Die Kürzungsfähigkeit der Freihetsstrafen un die bedingte Freilassung der Sträflinge in ihrem Verhältmiss zum Strafmasse und zu den Strafzwecken (p. 549).
Holtzendorff coordenou vários trabalhos coletivos, a exemplo de uma enciclopédia que analisava
vários pontos da ciência jurídica547
.
Os tradutores espanhóis de Holtzendorff registraram (em 1888) que o autor do livro era
suficientemente conhecido entre as pessoas cultas do mundo civilizado548
. Noticiam também que
Holtzendorff era implacável contestador da pena de morte, humanista militante que percorreu os
campos da guerra franco-prussiana, em Sedan, como membro da sociedade berlinense para
socorro dos feridos de guerra549
.
Informam também que Holtzendorff era membro correspondente da Academia de
Ciências Morais e Políticas de Paris, que era membro da Associação Nacional para Progresso da
Ciência, na Inglaterra, bem como era membro da Academia de Jurisprudência de Madri. Era um
símbolo do que os tradutores espanhóis de Holtzendorff denominavam de Europa Civilizada550
.
Holtzendorff deixou uma extensa obra, ainda que novas edições não tivessem alcançado
o século XX551
. Tratou também de ciência política552
, estudo que foi traduzido para o espanhol, e
publicado em fins do século XIX553
.
Tobias Barreto teria enviado uma carta a Holtzendorff, com demais professores da
Faculdade de Direito de Recife. Ao que consta, segundo o próprio Tobias Barreto, a carta teria
sido respondida554
.
Heinrich Lammasch
Heinrich Lammasch (1853-1920) nasceu na Áustria. Sua biografia consta do dicionário
biográfico alemão555
; Lammasch também fora citado por Michael Stolleis. A biblioteca do
547 Holtzendorff, Franz von, Encyklopädie der Rechtswissenschaft in systematischer Bearbeitung, Leipzig, Duncker und Humblot, 1870. 548 Cf. Buylla, Adolfo e Posada, Adolfo, Estudo Preliminar em Holtzendorff, Franz von, Princípios de Politica, Madrid: Libería de Fernando Fé, 1888, p. IX. 549 Cf. Buylla, Adolfo e Posada, Adolfo, cit., p. XII. 550 Cf. Buylla, Adolfo e Posada, Adolfo, cit., loc. cit. 551 Holtzendorff, Franz von, De rebus quarum commercium non est, Berolini: Schlesinger, 1852. Eroberungen und Eroberungsrecht, Berlin: Lüderitz, 1871. Die Idee des ewigen Völkefriedens, Berlin: Habel, 1882. Zeitglossen des gesunden Menschenverstandes, München: Ackerman, 1884. 552 Holtzendorff, Franz von, Allgemeines Staatsrecht und Politik, München, 1874. 553 Holtzendorff, Franz von, Princípios de Política, Madrid: Fé, 1888, tradução de Adolfo Buylla e de Adolfo Posada. 554 Barreto, Tobias, Estudos de Direito I, cit., p.53.
Instituto Max-Planck de Frankfurt conta com uma edição de 1926 de um dos livros de Hammash,
Grundriss des Österreichischen Strafrechts556
.
Lammasch foi professor em Viena. A edição de seu livro foi atualizada (em 1926) por
Theodor Rittler, então professor em Innsbruck. Lammasch deixou uma obra relativamente
ampla557
, com dois livros ainda publicados no início do século XX558
.
Seus conhecimentos de direito internacional o credenciaram como árbitro internacional.
Lammasch foi juiz da Corte Internacional da Haia. Espírito internacionalista e cosmopolita,
Lammasch pregou ativamente a necessidade da criação de uma liga entre as nações, o que
ocorreu efetivamente ao fim da Primeira Guerra Mundial.
Julius Fröbel
Julius Fröbel (1805-1893) exerceu grande influência em Tobias Barreto, especialmente
por suas ideias de darwinismo social e de realismo político. Há um livro de sua autoria na
biblioteca do Instituto Max-Planck de História do Direito559
. Trata-se de uma edição de 1971, de
um mesmo livro que Tobias Barreto possuíra.
As ideias radicais de Fröbel foram exploradas por Rainer Koch, pesquisador que de certa
forma questionou o liberalismo desse autor560
. Os temas de democracia e Estado, tal como
colocados por Fröbel, enfatizavam forças políticas locais, postulando-se um federalismo
democrático561
.
Fröbel era um realista, zombava da ideia fixa sobre composição e imposição de uma
constituição (die fixe Idee der Konstitution)562
; lembrando que todos os Estados possuem alguma
555 Deustsche Biographische Enzyklopädie, vol. 6, p. 206. 556 Lammasch, Heinrich, Grundris der Österreichischen Strafrechts, Wien: Druck und Verlag der Österr. Staatsdruckerei, 1926. 557 Lammasch, Heinrich, Auslieferungspflicht und Asylrecht, Leipzig: Duncker und Humblot, 1887. Diebstahl und Beleidigung, Wien: Manz, 1893. Das Recht der Auslieferung wegen politischer Verbrechen, Wien: Manz, 1884. Studien zum Strafgesetzentwurfe, Wien: Manz, 1891. 558 Lammasch, Heinrich, Die Rechtskraft internationaler Schiedssprüche, München: Duncker und Humblot, 1913. Die Völkerrecht nach dem Kriege, Kristiania: Aschehoug, 1917. 559 Fröbel, Julius, Die Gesichtspunkte und aufgaben der Politik, Darmstadt: Scientia Verlag, 1971. 560 Koch, Rainer, Demokratie und Staat bei Julius Fröbel- 1805-1893, Liberales Denken Zwischen Naturrecht und Sozialdarwinismus, Wiesbaden: Franz Steiner Verlag, 1978. 561 Cf. Koch, Rainer, cit., pp. 185 e ss. 562 Fröbel, Julius, cit., pp. 365 e ss.
forma de Constituição (Jeder Stat hat irgend eine Verfassung), escrita ou embutida nos
princípios que orientam a ação dos vários governos que há563
.
Típico revolucionário romântico do século XIX, Fröbel obteve naturalização suíça, e
mais tarde norte-americana, o que não impediu que exercesse o cargo de cônsul alemão na
Turquia e na Argélia. Estudou em Berlim, Munique e Iena. Segundo Tobias Barreto, Fröbel foi
companheiro de lutas de Robert Blum564
, mártir da revolução alemã de 1848, que foi executado
em Viena.
Fröbel foi membro do parlamento alemão em Frankfurt. Viveu nos Estados Unidos,
deixando interessante livro de memórias, reconstituindo sua passagem pelos Estados Unidos na
segunda metade do século XIX.
Tobias Barreto incluiu Fröbel em um programa de aulas de Direito Público Universal, a
propósito do estudo de opiniões sobre a definição de Estado como força cultural dotada de
vocação histórica particular565
. Fröbel também foi a referência que Tobias Barreto utilizou para
discutir o papel da oratória política, no sentido de que o fluxo das palavras seria mecanismo
sempre colocado a serviço do governo e da oposição566
; nesse passo, criticou o comportamento
dos oradores políticos franceses, para quem a forma seria muito mais importante do que o
conteúdo567
.
Conhecedor do trabalho de Fröbel, Tobias Barreto corrigiu um contendor, que em debate
travado nos jornais de Recife citara ideias de próprio Fröbel, por esse autor já abandonadas, isto
é, nos dizeres de Tobias Barreto, “as ideias que contém já foram solenemente desaprovadas pelo
próprio autor no prólogo de um de seus trabalhos mais recentes”568
. O trabalho mais recente era
justamente o livro de Fröbel que Tobias Barreto possuía em sua biblioteca. Nesse mesmo debate,
Tobias Barreto também citou Fröbel para argumentar que a organização da sociedade se dava por
leis por detrás das quais deveria existir um poder coativo569
.
Fröbel também foi citado por Tobias Barreto em um texto no qual o pensador sergipano
combatia a sociologia; com base em Fröbel, Tobias argumentava que a sociologia não podia ser
563 Fröbel, Julius, cit., p. 366. 564 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, p. 58. 565 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit. p. 66. 566 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, p. 130. 567 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, p. 131. 568 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, p. 198. 569 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, p. 200.
mais do que um capítulo de uma teoria política geral570
, bem como insistia que o Estado submete
a sociedade a seus desígnios571
. Tobias Barreto citou Fröbel no debate que travou com um colega
da faculdade do Recife, sobre a natureza do selfgovernment; nesse passo, ao evidenciar a
importância do socialismo na discussão teórica e política europeia, Tobias Barreto indicou um
livro de Fröbel, “System der socialien Politik”572
.
As teses culturalistas de Tobias Barreto de uma certa forma radicam no pensamento de
Fröbel. Em um texto concebido a propósito de uma nova intuição no direito, Tobias Barreto
apoiou-se em Fröbel para argumentar, com base em uma transcrição, que a cultura, em oposição
à natureza, é o processo geral da vida573
.
Franz Adickes
Franz Adickes (1846-1915) destacou-se na vida política alemã, foi prefeito da cidade de
Frankfurt. Foi um dos principais mentores da criação da Johann Wolfgang Universität, naquela
cidade. Adickes estudou em Heidelberg, Munique e em Göttingen. Há no acervo alemão de
Tobias Barreto o registro de um livro de Adickes, na informação de Mario Losano574
. Há registro
e disponibilidade dessa obra na biblioteca do Instituto Max-Planck em Frankfurt; trata-se da
mesma edição constante no acervo de Tobias Barreto. No catálogo da biblioteca do Parlamento
de alemão de 1882 há uma entrada indicando livro de Franz Adickes575
.
Tobias Barreto citou Adickes em texto que redigiu sobre direito autoral (de cuja
expressão teria feito uso pioneiro no Brasil), transcrevendo passagem do autor alemão, em
tradução para o português576
. Nesse passo, Tobias Barreto criticava o direito natural, que insistia
que não mais poderia ser invocado como um oráculo de verdades577
. Franz Adickes deixou
570 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, p. 58. 571 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, p. 59. 572 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, p. 199. 573 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, p. 102. 574 Conferir Losano, Mario, Um giurista tropicale- Tobias Barreto fra Brasile reale e Germania ideale, cit., p. 257. Adickes, Franz, Zur Lehre von den Rechtsquellen, insbesondere über die Vernung und die Natur der Sache als Rechtsquellen um über das Gewohnheitsrecht, Leipzig: G. H. Wigand, Cassel & Göttingen, 1872. 575 Katalog der Bibliotek des Deutschen Reichstages, 1882, p. 383. 576 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 287. 577 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., loc. cit.
outras obras publicadas, tratando da reforma da justiça578
e da história do direito579
. No entanto,
do ponto de vista literário, Adickes é mais lembrado como um memorialista580
.
Maximilian von Buri
Maximilian von Buri (1825-1902) foi um especialista em direito penal, cujo principal
livro, de 1873, se encontrava no acervo alemão de Tobias Barreto581
. Na biblioteca do Instituto
Max Planck de História do Direito há um exemplar desse mesmo livro. Percebe-se alguma
importância dessa obra, porque reeditada em 1968582
. Von Buri foi conhecido no século XIX,
por suas contribuições à teoria do direito penal583
, a par de seus estudos sobre a causalidade584
.
Tobias Barreto citou von Buri em uma nota de rodapé, em seu comentário teórico e
crítico ao código criminal brasileiro. Indicou esse autor alemão como fonte para estudo dos
delitos omissivos impróprios ou comissivos praticados por omissão, no sentido de que esses não
se achavam nas mesmas condições dos omissivos propriamente ditos, sendo casos de fato, não
possíveis de enumeração, dando “somente lugar a exemplificações de toda espécie”, nas
palavras próprias do pensador sergipano585
. Esse autor alemão foi outra vez citado por Tobias
Barreto em um ensaio no qual também tratava dos delitos por omissão, na passagem seguinte, no
qual de certa forma nosso pensador sergipano impugnou tese do autor alemão:
“(...) M, em viagem para um certo lugar, tem de passar necessariamente pela porta da
casa de N, que mora à margem de um rio, sobre o qual há uma ponte de trânsito geral e
quotidiano. Sucede, porém, que nesse dia a ponte se acha deteriorada e não é transitável
sem perigo. M ignora, mas N conhece esse estado; e não só deixa de advertir o
transeunte da catástrofe iminente, como ainda se comprar em assistir ao espetáculo,
dizendo cinicamente: vejamos a queda daquele demônio. Dito e feito; M cai da ponte
578 Adickes, Franz, Grundlinien durchgreifender Justizreform, Berlin: Guttentag, 1906. 579 Adickes, Franz, Zur Lehre von den Bedingungen nach römischem und heutigem Recht, Berlin: Guttentag, 1876. 580 Adickes, Franz, Persönliche Erinnerungen zur Vorgeschichte der Universität Frankfurt a.M. Frankfurt: Englert & Schlosser, 1915. 581 Cf. Losano, Mario, Um giurista tropicale- Tobias Barreto fra Brasile reale e Germania ideale, cit., p. 258. Buri, Maximilian von, Ueber Causalität und deren Verantwortung, Leipzig 1873. 582 Buri, Maximilian von, Einheit und Mehrheit der Verbrechen, Frankfurt am Main: Keip, 1968. 583 Buri, Maximilian von, Beiträge zur Theorie des Strafrechts und zum Strafgesetzbuche, Leipzig: Veit, 1894. 584 Buri, Maximilian von, Die Causalität und ihre strafrechtlichen Beziehungen, Stuttgart: Enke, 1885. 585 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 253.
arruinada e quebra uma perna. Não haverá imputabilidade criminosa no proceder de N?
Eu acho na verdade justo o que diz Von Buri, que seria ir muito longe com o princípio de
direito, que faz a qualquer responsável pelo resultado de um ato, que ele pudera,
querendo, ter evitado, se se transportasse esse princípio, sem limitação alguma, do
domínio da ética para o domínio do direito penal. Mas também me parece inquestionável
que seria difícil de conservar-se num certo pé de ordem e tranquilidade uma sociedade,
onde fatos de semelhante natureza tivessem por único óbice, ou por corretivo único a voz
da consciência moral, que é relativa às individualidades, segundo a educação, o seu
temperamento e suas paixões habituais”586
.
Tobias Barreto invocava autores alemães ente em socorro de suas teses e ideias. Tem-se a
impressão de que com eles o nosso pensador mantinha um constante diálogo, impugnando-os e
contraditando-os também, quando necessário. Deve-se ressaltar também que o uso dos autores
alemães também poderia qualificar uma estratégica de discussão, levando-se em conta que
Tobias Barreto invocava autores praticamente desconhecidos no Brasil.
Felix Dahn
Felix Dahn (1834-1912) foi historiador, nasceu em Hamburgo, estudou em Munique e em
Berlim, e lecionou em Munique e em Breslau; era um nacionalista. Na biblioteca de Tobias
Barreto, Mario Losano nos noticia a existência de um exemplar de um livro de Felix Dahn, que
trata do direito privado alemão587
. Na biblioteca do Instituto Max-Planck de História do Direito
há um exemplar da mesma edição. Há oito entradas indicando livros de Felix Dahn no catálogo
do parlamento alemão de 1882588
.
Tobias Barreto citou Felix Dahn em seu texto sobre direito autoral, referindo-se ao
professor alemão como “o sábio professor de Köenisgberg”589
. Tobias Barreto citou no mesmo
artigo uma expressão de Felix Dahn, que constava do livro que estava em sua biblioteca, “droit
éternel de l’ auteur”, em francês mesmo, tal como supostamente pronunciada em um congresso
em Bruxelas, como noticiado pelo pensador sergipano590
.
586 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 307. 587 Cf. Losano, Mario, Um giurista tropicale- Tobias Barreto fra Brasile reale e Germania ideale, cit., p. 258. Dahn, Felix, Deutsches Privatrecht, Leipzig: Breitkoppf und Härtel, 1872. 588 Katalog der Bibliotek des Deutschen Reichstages, 1882, p. 1289. 589 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 284. 590 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 283.
Esse professor alemão também nos deixou livros de estudos históricos591
, um deles
editado em 1857592
e reeditado em 1998593
.
Rudolf Haym
Rudolf Haym (1821-1901) destacou-se como historiador da Assembleia Constituinte de
Frankfurt, de 1848, na qual ocupou um lugar. Estudou em Halle e Berlim. Lecionou em Halle.
Foi biografado por Hans Rosenberg, na década de 1930594
. Mario Losano localizou um livro de
Rudolf Haym na biblioteca de Tobias Barreto595
. Há um exemplar do mesmo livro, idêntica
edição, na biblioteca do Instituto Max-Planck de História do Direito. O catálogo do parlamento
alemão de 1882 registra cinco livros de Rudolf Haym596
.
Tobias Barreto citou Rudolf Haym ao longo da polêmica com José Higino, ao mencionar
a autonomia das comunas na Alemanha, observando que, com base em Haym (a quem citou
textualmente), “apenas em 1848, na célebre assembleia nacional de Frankfurt, a autonomia das
comunas figurou também entre os direitos fundamentais (Grundrechte), que deviam ser
garantidos pela Constituição”597
. Deve-se registrar o modo seletivo como Tobias Barreto se
valia das fontes doutrinárias com as quais contava; nesse caso, exemplificava com dado de uma
assembleia constituinte alemã, fundamentado em autor que dela participara.
Vamireh Chacon observou que Tobias Barreto não teria entendido completamente Hegel,
por força de uma “deformante mediação de Rudolf Haym, cujo livro se encontrava na biblioteca
do teuto-sergipano598
”, prosseguindo:
“Ali Tobias deixou anotações sintomáticas. Por exemplo, quando Haym atribuiu a crise
da Filosofia à crise do Hegelianismo e quando ainda Haym propõe, não uma volta a
Hegel segundo Dilthey o faria depois, e sim a afirmação kantiana de um pensamento
591 Dahn, Felix, Westgothische Studien, Würzburg: Stahel, 1874. 592 Dahn, Felix, Studien zur Geschichte der germanischen Gottes-Urtheile, München 1857. 593 Dahn, Felix, Studien zur Geschichte der germanischen Gottes-Urtheile, Dillenburg:Gruber, 1998. 594 Rosenberg, Hans, Rudolf Haym und die Anfänge des klassischen Liberalismus, München: Oldenbourg, 1933. 595 Cf. Losano, Mario, Losano, Mario, Um giurista tropicale- Tobias Barreto fra Brasile reale e Germania ideale, cit., p. 260. Raym, Rudolf, Die Deutsche Nationalversammlung bis zu September-ereignissen, Frankfurt: Carl Jügel, 1848. 596 Katalog der Bibliotek des Deutschen Reichstages, 1882, p. 1322. 597 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 196. 598
Cf. Chacon, Vamireh, cit., p. 51.
crítico e transcendental, tendo o Homem, ‘na totalidade de sua essência’, enquando seu
objeto. Com especial ênfase Tobias anotou a conclusão de Haym, tão de seu agrado, que
as grandes construções estéticas e metafísicas só ocorrem quando o ‘pulso da vida
nacional bate mais alto’ (...)”599
.
Hugo Meyer
Hugo Meyer (1837-1902) comentou o código penal alemão. Estudou em Göttingen e em
Berlim, e foi professor em Halle e em Tübingen. Mario Losano faz referência a um exemplar de
um livro de Hugo Meyer, danificado, que encontrou na coleção de Tobias, pelo que teria
examinado e corrigido as informações na Biblioteca de Munique (Bayerische Staatsbibliotek)600
.
Na biblioteca do Instituto Max-Planck de História do Direito há duas edições desse livro; uma,
de 1875, publicada em Erlangen601
, e outra, de 1907, da mesma casa editora, porém publicada
em Leipzig602
. Há também registro de outra obra de direito penal de Hugo Meyer, datada de
1869603
. O catálogo do parlamento alemão de 1882 registra três livros de autoria de sua
autoria604
.
Theodor Muther
Theodor Muther (1826-1878), professor em Iena, notabilizou-se pela polêmica que
manteve com Bernhard Windscheid (1817-1892) a propósito da autonomia do processo civil.
Windscheid era “um inimigo jurado do jusnaturalismo e de sua mitologia”605
, para a quem a
“actio” romana fora inadequadamente estudada na Alemanha (especialmente por Savigny).
Windscheid entendia que nas formulações processuais romanas o interessado era titular de uma
ação, e não de um direito subjetivo, isto é, o titular detinha a prerrogativa de exigir do juiz uma
decisão, o que não se confundia com direitos subjetivos que eventualmente possuísse. Mutter
599
Chacon, Vamireh, cit., loc. cit. 600 Cf. Losano, Mario, Losano, Mario, Um giurista tropicale- Tobias Barreto fra Brasile reale e Germania ideale, cit., p. 262. Meyer, Hugo, Lehrbuch des deutsches Strafrechts, Erlangen: Deichert, 1882. 601 Meyer, Hugo, Lehrbuch des deutschen Strafrechts, Erlangen: Deichert, 1875. 602 Meyer, Hugo, Lehrbuch des deutschen Strafrechts, Leipzig: Deichert, 1907. 603 Meyer, Hugo, Das Norddeutsche Strafrecht, Halle: Waisenhauses, 1869. 604 Katalog der Bibliotek des Deutschen Reichstages, 1882, p. 1359. 605 Cf. Grossi, Paolo, L’ Europa del Diritto, cit., p. 169.
contestou essa posição, argumentando que a pretensão de direito material era o traço definidor do
poder de requerer a intervenção do Estado.
Mario Losano noticia que Tobias Barreto possuía um livro de Mutter em sua biblioteca,
texto que tratava da reforma do ensino jurídico606
. Há na biblioteca do Instituto Max-Planck de
História do Direito um exemplar dessa edição, bem como uma reedição copiada datada de
1968607
. Tobias Barreto citou esse livro de Mutter, ao tratar de ensino jurídico, pregando sua
reforma:
“A ideia de uma reforma da instrução jurídica, talvez estranha entre nós e até de sabor
herético, não é uma novidade no mundo científico. Em 1872, Theodor Mutter, professor
universitário de Iena, fez uma preleção especial nesse sentido (...)”608
.
Mutter também foi um historiador do direito, com livro sobre os direitos românico e
canônico na idade média alemã609
. O catálogo do parlamento alemão de 1882 registra três livros
de autoria de sua autoria610
.
Conrad Franz Rosshirt
O acervo alemão de Tobias Barreto contava com uma obra de Conrad Franz Rossirt,
segundo informação de Mario Losano611
. Há notícias de outras obras desse mesmo autor, que
revelam que ele detinha avançados conhecimentos de direito romano612
, de direito canônico613
,
de suas fontes614
, de direito processual615
, e de direito civil616
.
606 Cf. Losano, Mario, Losano, Mario, Um giurista tropicale- Tobias Barreto fra Brasile reale e Germania ideale, cit., p. 262. Muther, Theodor, Die Reform des juristischen Unterrichts, Weimar: Böhlau 1873. 607 Muther, Theodor, Die Reform des juristischen Unterrichts, Frankfurt: Keip, 1968. 608 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 80. 609 Muther, Theodor, Roemisches und kanonisches Recht im deutschen Mittelalter, Rostock: Kuhn, 1871. 610 Katalog der Bibliotek des Deutschen Reichstages, 1882, p. 1365. 611 Cf. Losano, Mario, Losano, Mario, Um giurista tropicale- Tobias Barreto fra Brasile reale e Germania ideale, cit., p. 262. Rossirt, Conrad Franz, Entwickelung der Grundsätze des Strafgesetzbuch für das Deutsche Reich unda Einführunggsgesetz, Berlin: Carl Heymanns, 1872. 612 Rosshirt, Conrad Franz, Einleitung in das Erbrecht und Darstellung des ganzen Intestat-Erbrechts, besonders nach römischen Quellen, Landshut: Krüll, 1831. 613 Rosshirt, Conrad Franz, Canonisches Recht, Schaffhausen: Hurter, 1857. 614 Rosshirt, Conrad Franz, Zu den kirchenrechtlichen Quellen des ersten Jahrtausends und zu denpseudoisidorischen Decretalen, Heidelberg: Mohr, 1849. 615 Rosshirt, Conrad Franz, Beiträge zum gemeinen deutschen Prozeß, Heidelberg: Mohr, 1868. 616 Rosshirt, Conrad Franz, Ueber die Tendenz des prätorischen Rechts und über das Verhältniss desselben zum Civilrechte, Erlangen: Hilpert, 1812.
Tobias Barreto definiu Rossirt como um penalista, defensor do direito natural, na
passagem que segue, e na qual o pensador sergipano enfrentou as teses do jurista alemão:
“Um velho penalista alemão, Franz Rossirt, ainda sob influência da filosofia kantesca,
deturpada em mais de um ponto e exagerada pelos epígonos, inclusive o krausista
Ahrens, ousa perguntar com certo ar de triunfo: se não existisse um direito natural, onde
se poderia encontrar o meio de comparação e julgamento dos diversos fenômenos do
direito positivo? Mas a resposta é facílima. Em primeiro convém notar que o ilustre
criminalista pressupôs a exigência de uma coisa, que de fato não existia em seu tempo,
nem existe hoje, isto é, o direito comparado, de cuja construção científica o maior
embaraço tem sido mesmo a teoria estéril do direito natural”617
.
Tobias Barreto lançou a mesma observação, em outro texto, denominado de
Prolegômenos de Direito Criminal618
. Rossirt também foi citado em passo no qual Tobias
Barreto aproximou o direito alemão do direito romano, a propósito da construção teórica da
tentativa em matéria penal619
. Em outro passo, Tobias Barreto chama Rossirt de “velho
criminalista latinizante”620
, porquanto concebia a delinquência sobre as únicas formas de autoria
e de cumplicidade621
. No célebre ensaio sobre Menores e Loucos Tobias Barreto também citou
Rossirt, criticando a interpretação ampliativa do direito criminal:
“Mas é o caso de dizer com Rossirt que a liberdade deve ser protegida por outro modo,
que não o simples respeito da letra da lei; porquanto, onde a independência e
integridade dos juízes, a honra do soberano e da nação não são garantias suficientes de
justiça, a lei é um instrumento na mão dos mais sabidos. A santidade do direito e de sua
justa distribuição não pode ser posta em perigo por esta ou por aquela doutrina de
juristas”622
.
Ernst Traugott Rubo
Ernst Traugott Rubo (1834-1895), formado em Heidelberg, penalista, foi juiz em Berlim.
Desse autor, Mario Losano nos dá notícia de que Tobias Barreto possuía o livro de comentários
617 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., pp. 91-92. 618 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 184. 619 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., pp. 255-256. 620 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 338. 621 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., loc. cit. 622 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, II, cit., p. 44.
do código penal623
. Na biblioteca do Instituto Max-Planck de História do Direito há dois
exemplares desse livro, uma edição de 1879624
e uma edição do século XX, cópia, datada de
1992625
. O catálogo do parlamento alemão de 1882 registra três livros de Ernst Rubo626
.
Tobias Barreto citou Rubo em um ensaio que redigiu sobre a tentativa em matéria
criminal627
, explorando as linhas que separariam aspectos éticos de aspectos jurídicos, a partir de
um exemplo sobre tentativa por omissão, absolutamente prosaico:
“(...) suponhamos que Pedro, um homem casado, já tem a experiência feita por três ou
quatro vezes que um desejo de sua mulher, no estado interessante, não sendo logo
satisfeito, produz o aborto, e com este sempre um decrescimento de saúde. Já ouviu até
do médico a singular declaração de que, se o fenômeno se repetir, a morte é
probabilíssima. Porém, ele se mostra surdo a tal observação. A jovem grávida insiste
agora em querer satisfazer um dos seus caprichos apetites; mas Pedro responde-lhe com
indiferença, e não só deixa de acudir o seu apelo, como também previne e ordena à
criadagem que nada faça. A habitação é solitária; a doente está prostrada. A isto junta-
se a particularidade de haver Pedro escrito a sua amante, dizendo-lhe em termos claros:
desta vez, creio eu, ficaremos livres do embaraço que se opõe a nossa felicidade. A
infeliz esposa aborta, enfim, e pouco falta que sucumba, o que ter-se-ia dado, a não ser a
interposição de circunstâncias estranhas, que desmancharam o criminoso plano de
Pedro. Semelhante ato será judicialmente inapreciável”628
.
Tobias Barreto reconheceu que a apreciação jurídica desse fenômeno seria difícil e, com
base em Rubo, entendeu pela possibilidade de que se compreendesse os delitos por omissão, de
forma tentada.
Salomon Stricker
Salomon Stricker (1834-1898), autor que consta do acervo germânico de Tobias Barreto,
era médico e biólogo de formação. Muito conhecido como especialista em histologia, deixou um
623 Cf. Losano, Mario, Losano, Mario, Um giurista tropicale- Tobias Barreto fra Brasile reale e Germania ideale, cit., p. 262. Rubo, Rubo, Ernst Traugott, Kommentar über das Strafgesetzbuch für das Deutsche Reich, Berlin: Carl Heimanns Verlag, 1872. 624 Rubo, Ernst Traugott, Kommentar über das Strafgesetzbuch für das Deutsche Reich, Berlin, 1879. 625 Rubo, Ernst Traugott, Kommentar über das Strafgesetzbuch für das Deutsche Reich, Frankfurt: Keip, 1992. 626 Katalog der Bibliotek des Deutschen Reichstages, 1882, p. 1389. 627 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 325. 628 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., loc. cit.
intrigante livro no qual tratava de uma fisiologia do direito629
. Há um exemplar fac-simile desse
livro na biblioteca do Instituto Max-Planck de História do Direito.
Cuida-se exatamente de uma mesma edição que consta do acervo de Tobias Barreto,
ainda que a reprodução seja de 1970. Trata-se de um livro que explora, entre outros, as
dissemelhanças entre Recht and Gesetz630
, isto é, entre um conceito geral de ordem jurídica,
contrastante com uma noção particular de regra a ser seguida. Nas entrelinhas, percebe-se que
Stricker problematizou as divergências entre direito natural e direito positivo, questão central na
agenda conceitual da filosofia do direito do século XIX.
Há registro de uma citação de Stricker, feita por Tobias Barreto, em texto de direito
penal, em passagem na qual se defendeu, com base em Stricker, que “a seleção penal é
determinada por meio de lei. As leis em geral não são mais do que regras sobre o curso de
certos acontecimentos (...)”631
. Tobias Barreto conhecia esse autor alemão, hoje pouquíssimo
lembrado, citando-o, como acima indicado.
Adolf Samuely
Adolf Samuely, mencionado por Michael Stolleis, é autor cujo legado é difícil de ser
mapeado. Na biblioteca do Instituto Max-Planck há um ensaio de sua autoria, datado de 1875632
.
Trata-se de um comentário a um artigo 50 da constituição suíça de 1849, que cuidava da
inviolabilidade do direito à crença religiosa. Samuely foi a professor em Berna. Seu liberalismo,
em matéria de religião, afina-se com o laicismo que Tobias Barreto defendeu recorrentemente.
Tobias Barreto citou Samuely, de quem transcreveu parágrafo, a propósito da discussão
da responsabilidade dos ministros no regime parlamentar; a passagem transcrita referia-se a uma
apreciação de Samuely sobre o impeachment na Câmara dos Comuns e a jurisdição da Câmara
dos Lordes, naturalmente, no contexto do direito constitucional inglês633
.
629 Stricker, Samuel, Physiologie des Rechts, Wien: Toeplitz & Deuticke, 1884. Edição fac-simile de 1970. 630 Stricker, Samuel, Physiologie des Rechts, cit., p. 61. 631 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., pp. 244-245. 632 Samuely, Adolf, Artikel 50 der Schweirzerischen Bundesverfassung vom 20. Mai. 1874, Bern: Buchdrukerei von Jent & Reinert. 633 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, p. 176.
De igual modo, uma outra citação de Samuely foi o argumento que Tobias Barreto
utilizou para sustentar que um servidor público que pratica delito comum viola gravemente as
obrigações inerentes ao desempenho de seu cargo634
.
August von Bethmann-Hollweg
August von Bethmann-Hollweg (1795-1877) é outro autor cujo trabalho Tobias Barreto
conhecia. Há uma edição de 1864 de um de seus livros na biblioteca do Instituto Max-Planck de
Frankfurt635
. Cuida-se de um estudo sobre o processo civil romano, assunto com o qual Tobias
Barreto tinha muita familiaridade. Em um estudo sobre o processo civil entre os romanos, Tobias
Barreto citou Bethmann-Hollweg636
. Em dado passo, registrou que
“Historicamente apreciado, o processo civil nasceu em Roma. É verdade que os povos
mais antigos, quando uma vez atingiram um certo grau de cultura, tiveram também o
seu processo, ou, para servir-me de uma expressão de Bethmann-Hollweg, tiveram
também uma terapêutica a serviço da patologia do seu organismo jurídico-civil”637
Esse autor alemão também é citado em outros fragmentos do texto de Tobias Barreto, a
propósito de uma discussão em torno das espécies das legis actiones, conforme uma tipificação
clássica romana638
, passo no qual Tobias Barreto invocou a autoridade de Bethmann-Hollweg
para contestar essa taxionomia convencional639
. Bethmann-Hollweg teve duas de obras
reeditadas no século XX640
. Persistem, no entanto, as edições do século XIX641
. Bethmann-
634 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, p. 174. 635 Bethmann-Hollweg, August von, Der Römische Civilprozess, Bonn: Aldolph Mareus, 1864. 636 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., pp. 311 e ss. 637 Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, cit., p. 311. 638 Nomeadamente: sacramento, per judicis postulacionem, per condictionem, per manus injectionem, per pignoris capionem, Barreto, Tobias, Estudos de Direito I, cit. p. 312. 639 Barreto, Tobias, Estudos de Direito I, cit., loc. cit. 640 Hollweg, August von Bethmann, Gerischtsverfassung und Prozess des sinkenden römischen Reichs, Frankfurt: Keip, 1970. Hollweg, August von Bethmann, Unsprung der lombardischen Städtefreiheit, Amsterdam: Bonset, 1971. 641 Hollweg, August von Bethmann, Grundriss zu Pandektenvorlesungen, Frankfurt: Broenner, 1831. Ueber Gesetzgebung und Rechtswissenschaft als Aufagabe unserer Zeit, Bonn: Marcus, 1876. Versuche über einzelne Theile der Theorie des Civilprozesses, Berlin: Nicolai, 1827.
Hollweg deixou também um interesante livro de suas memórias de Savigny642
, com quem
conviveu e de quem foi admirador e discípulo643
.
Theodor Reinhold Schütze
Theodor Reinhold Schütze (1827-1897) estudou em Kiel e em Munique. Colaborou com
Franz von Holtzendorff. Mario Losano registra que na biblioteca de Tobias Barreto havia dois
livros de Schütze, ambos em matéria penal644
. Há exemplares desses dois livros na biblioteca do
instituto Max-Planck de História do Direito, exatamente essas duas edições que se encontravam
no acervo de Tobias Barreto. O catálogo do parlamento alemão de 1882 registra um livro de
autoria de Theodor Schütze645
.
Tobias Barreto citou Schütze no comentário teórico e crítico que redigiu sobre o código
criminal brasileiro, quando tratou da classificação dos chamados delitos próprios646
. Nesse
mesmo comentário crítico Tobias Barreto citou Schütze, discordando de sua opinião, em relação
à impunidade da desistência da tentativa647
. Também o fez quanto tratou da co-deliquência, e
respectivos efeitos na praxe processual, especificamente ao explicitar os casos de participação
criminosas, nos quais se poderia identificar a unidade do delito e a reciprocidade de
cooperação648
.
Otto Stobbe
Otto Stobbe (1831-1897), historiador e professor de direito, estudou em Koenisberg e
lecionou em Breslau, em Leipzig e na própria universidade onde se formou. Mario Losano dá-
nos notícia de um de seus livros na biblioteca alemã de Tobias Barreto649
. Stobbe escreveu livros
642 Hollwegg, August von Bethmann, Erinnerung an Friedrich Carl von Savigny- als Rechtlehrer, Staatsmann und Schift, Weimar: Hermann Böhlan, 1867. 643 Cf.Contreras, Francisco J. Peláez, Savigny y el Historicismo Jurídico, Madrid: Tecnos, 2005, p. 101. 644 Cf. Losano, Mario, Losano, Mario, Um giurista tropicale- Tobias Barreto fra Brasile reale e Germania ideale, cit., p. 264. Schütze, Theodor Reinhold, Lehrbuch des Deutschen Strafrechts, Leipzig: J. M. Gebhardt, 1874. Die nothiwendige Theilnahme am Verbrechen, Leipzig: J. M. Gebhardt, 1869. 645 Katalog der Bibliotek des Deutschen Reichstages, 1882, p. 542. 646 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 247. 647 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 285. 648 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 506. 649 Cf. Losano, Mario, Losano, Mario, Um giurista tropicale- Tobias Barreto fra Brasile reale e Germania ideale, cit., p. 264. Stobbe, Otto, Hanbuch des deutschen Privatrechts, Berlin: W. Hertz, 1871-1878, 3 vol.
sobre a história das fontes do direito alemão650
, sobre a presença dos judeus na Alemanha
durante a idade média, um livro que se conhece uma edição póstuma, de 1923651
. Há também
notícia de um curso de direito privado alemão, em edição de 1882, tema próximo ao livro que
Tobias Barreto possuía652
, bem como uma história dos direitos autorais, em duas edições, uma de
1855653
e uma nova edição do século XX, de 1969654
. O catálogo do parlamento alemão de 1882
registra cinco livros de autoria de Otto Stobbe655
.
Emil Kraeplin
Emil Kraeplin (1856-1926) era médico de formação. Não era jurista, ainda que seu
trabalho, como médico psiquiatra, tenha sido recorrentemente citado e utilizado por
criminalistas. Consta do já referido dicionário biográfico656
. Também foi citado no já várias
vezes mencionado catálogo de 1882657
.
Kraeplin insistia que as doenças mentais decorrem de causas orgânicas. Nesse sentido,
opunha-se às ideias de Sigmund Freud, para quem as patologias mentais teriam como causa as
condições psicológicas dos afetados. Autor de um artigo sobre o crime como doença social (Das
Verbrechen als soziale Krankheit, 1906), Kraeplin participou de uma obra organizada por Franz
von Lizt658
.
Edward Böcking
Edward Böcking (1802-1870) também conta com uma entrada no dicionário biográfico
alemão aqui citado659
. Um de seus livros, Pandekten des römischen, era conhecido por Tobias
650 Stobbe, Otto, Geschichte der deutschen Rechtsquellen, Leipzig, 1860. 651 Stobbe, Otto, Die Juden in Deutschland während des Mittelalters in politischer, socialer und rechtlicher Beziehung, Verlagsort: Berlin: Lamm, 1923. 652 Stobbe, Otto, Handbuch des deutschen Privatrechts, Berlin: Hertz, 1882. 653 Stobbe, Otto, Zur Geschichte des deutschen Vertragsrechts, Leipzig, 1855. 654 Stobbe, Otto, Zur Geschichte des deutschen Vertragsrechts, Frankfurt: Minerva, 1969. 655 Katalog der Bibliotek des Deutschen Reichstages, 1882, p. 1408. 656 Deustsche Biographische Enzyklopädie, vol. 6, p. 62. 657 Die Abschaffung des Stafmasses- Ein Vorschlag zur Reform der heutigen Strafrechtsplege, p. 547. 658 Lizt, Franz von (org), Vergeltungsstrafe Rechtsstrafe Schutzstrafe, Heidelberg: Winter, 1906. 659 Deutsche Biographische Enzyklopädie, vol. 1, p. 609.
Barreto. Na biblioteca do Instituto Max-Planck, em Frankfurt, há uma edição desse livro, de
1855660
. Estudou em Heidelberg, Göttingen, Bonn (onde mais tarde foi professor) e Berlim.
Deixou vários estudos sobre o direito romano661
. Um de seus livros contou com uma tradução
para o italiano662
.
Karl Bolgiano
Karl Bolgiano (1816-1897), autor alemão de origens italianas, que estudou em Munique e
em Heidelberg, e que lecionou em Munique, contava com um livro na biblioteca de Tobias
Barreto, segundo informação de Mario Losano663
. Bolgiano escreveu também um livro sobre a
reincidência no direito bávaro664
.O catálogo do parlamento alemão de 1882 registra duas obras
de autoria de Karl Bolgiano665
.
Frederich Oskar Schwarze
Frederich Oskar Schwarze (1816-1886), penalista, que estudou em Leipzig, e que foi
professor em Desdren e membro do Reichtag, também contava com um livro na biblioteca alemã
de Tobias Barreto, segundo também nos informa Mario Losano666
. Tobias Barreto citou
Schwarze em ensaio que redigiu sobre delitos por omissão, a propósito do nível de participação,
por omissão, em crimes alheios667
.
***********************************************************
660 Böcking, Eduard, Pandecten der Römischen Privatrechts, Leipzig: Verlag von Sirzel, 1855. 661 Böcking, Edward, Ueber die Notitia dignitatum utriusque imperii, Bonn: Marcus, 1834. Einleitung in die Pandekten des gemeinen Civilrechts, Bonn: Marcus, 1853. Römisches Privatrecht, Bonn: Cohen, 1862. 662 Böcking, Edward, Instituzioni di diritto civile romano, Napoli: Vallardi, 1885. Tradução de Baldassare Squitti. 663 Cf. Losano, Mario, Losano, Mario, Um giurista tropicale- Tobias Barreto fra Brasile reale e Germania ideale, cit., p. 258. Bolgiano, Karl, Handbuch des Rechts-Civil-Processrechts, Stuttgart: F. Enke, 1879. 664 Bolgiano, Karl, Beitrag zur Lehre vom Rückfall nach bayerischem Staats rechte, München, 1843. 665 Katalog der Bibliotek des Deutschen Reichstages, 1882, p. 589 e p. 590. 666 Cf. Losano, Mario, Losano, Mario, Um giurista tropicale- Tobias Barreto fra Brasile reale e Germania ideale, cit., p. 264. Schwarze, Friedrich Oskar, Commentar zum Strafgesetzbuch für das Deutsche Reich, Leipzig: Fue, 1873. 667 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, cit., p. 297.
Finalmente, a pesquisa consigna que não há registros para Leonhard Freund, Eugen
Tuhn e Wilhelm Lagenbeck. Tobias Barreto citou Leonhard Freund, a quem imputou uma
concepção de sociedade fixada nos limites de um ponto de vista meramente econômico668
.
Tobias Barreto também informa ter Leonhard Freund comentado Gneist, a propósito do
recorrente tema do selfgovernment669
.
668 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, p. 199. 669 Cf. Barreto, Tobias, Estudos de Direito, I, p. 225.