UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
GUILHERME FLORIANI SACCOMORI
ARQUEIROS NA GUERRA DOS CEM ANOS: A TRANSIÇÃO MILITAR DA BAIXA
IDADE MÉDIA
CURITIBA
2011
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
GUILHERME FLORIANI SACCOMORI
ARQUEIROS NA GUERRA DOS CEM ANOS: A TRANSIÇÃO MILITAR DA BAIXA
IDADE MÉDIA
Monografia apresentada à disciplina de Estágio
Supervisionado em Pesquisa Histórica, como
requisito à conclusão do Curso de Licenciatura e
Bacharelado em História, Setor de Ciências
Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do
Paraná.
Orientadora: Professora Doutora Marcella Lopes
Guimarães.
CURITIBA
2011
AGRADECIMENTOS
À minha mãe Marí, primeiramente, que me deu apoio, forças, e que acreditou em
mim para que eu tivesse condições de estudar e empreender essa caminhada. Sem você, eu
não teria conseguido nada na vida, pois me ensinaste a nunca desistir e nunca deixar de me
esforçar para atingir os meus objetivos
Aos meus irmãos, Felipe e Eduardo, que nunca me negaram e nunca deixaram de me
estender a mão quando precisei.
À Saionara, a quem devo muitos anos de cuidado e dedicação.
À Tia Elenir Saccomori, pela inspiração profissional, que me apaixonou pela
História.
À minha madrinha Márcia, que mesmo na distância sinto sua energia me
acompanhando.
Aos meus avós: Verílio, Nadir, Sady e Zaida, por terem estado presentes na minha
vida sempre me apoiando e auxiliando com minhas necessidades.
À minha família, que é tão grande que perderia páginas citando-a aqui, mas da qual
me sinto orgulhoso em fazer parte, por ser simples, alegre e trabalhadora. Não tenho
arrependimentos quando ao pertencimento a esta.
Aos meus amigos Willian, Renan, Tainã, Henrique, que mesmo de longe estiveram
presentes na minha vida.
À Tuany, que de uma forma ou outra sempre esteve presente na minha vida, e
sempre pude contar com seu apoio.
Ao Ricardo, amigo pra todas as horas, que nunca evitou em me estender a mão
quando precisei.
Ao Guilherme, que apesar do atual distanciamento, esteve presente nessa minha
caminhada em Curitiba.
Aos colegas Sérgio, Naiara, Thiago, Stella, Angelita, Gustavo, Rafaela, Jacqueline,
aos quais devo muitas horas de conversa, apoio, risadas, ansiosidades, nervosismos e
comemoração.
À Vanessa, minha irmã mais velha perdida de Rondônia, pelas conversas e risadas
juntos.
À Annelyse e Érica, pessoas sem as quais minha graduação não seria a mesma, pois
sempre caminhamos juntos desde o começo – sempre fomos um único corpo como grupo - e
chegamos juntos ao final, tendo comemorado, brigado, sorrido, chorado, sorrido até chorar,
entre tantas outras coisas que devo muito a vocês duas.
À Marcella Lopes Guimarães, pela compreensão, paciência, e inspiração para que eu
executasse minha pesquisa.
Ao professor Peter Ainsworth que de Sheffield na Inglaterra me deu assistência na
pesquisa e acesso a materiais que no Brasil não teria.
Aos professores da minha caminhada, mas em especial aos professores Dennison,
Martha e Renata, com quem tive maior contato. Obrigado pelo apoio, momentos de conversa,
críticas e puxões de orelha.
À Luiza, finalmente, por quem eu tenho uma dívida impagável de apoio e
compreensão. Inegavelmente, meu trabalho só foi empreendido por causa do apoio que tu me
deste, apoio esse que serei eternamente grato. O seu amor me ensinou que minha caminhada
nunca foi em vão, e que nunca estive sozinho durante o meu percurso.
“Mesmo que a rota da minha vida me conduza a uma estrela, nem por isso fui
dispensado de percorrer os caminhos do mundo.”
José Saramago
RESUMO
O objetivo da pesquisa foi analisar de que maneira o exército inglês, distinto pela essencial
presença dos arqueiros, contribuiu para a ruptura de uma tradição feudal de guerra, baseado
na cavalaria nobre como forma predominante de combate, a partir da Guerra dos Cem Anos
(1337-1453). Para isso, buscamos dentro dos relatos de batalha de Crécy (1346) e Aljubarrota
(1385) do cronista Jean Froissart (1337-1405) aspectos dessa transição focando
principalmente no papel que tiveram os arqueiros ingleses, munidos do longbow ou arco-
longo inglês. Verificou-se inclusive o estranhamento nos modos de combate durante esse
período – medidas e contramedidas durante as mudanças das táticas militares. Assim,
constatou-se de que maneira se alterado o estilo de batalha, da guerre guérreable para guerre
mortelle, onde o resultado da batalha interessava mais que os meios honrosos de se atingi-lo.
Por fim, foi notada a grande importância que o arco-longo inglês teve durante o período, e
que, devido a um novo estilo de batalha de combate à distância, proporcionou a introdução de
armas de fogo nas guerras.
Palavras-chave: Guerra dos Cem Anos – Arqueiros – Jean Froissart
ABSTRACT
The aim of this research was to analyze how the English army, distinguished by the
essential presence of archers, contributed to the rupture of a feudal tradition of war, based on
the noble chivalry as a predominant form of combat, from the Hundred Years War (1337-
1453). For that, we searched on Jean Froissart’s (1337-1405) battle reports of Crécy (1346)
and Aljubarrota (1385) aspects of this transition by focusing mainly on the role that had the
English archer, armed with the longbow. It was verified also the strangeness in the ways of
combating during this time – measures and counter-measures during the changes in military
tactics. Thus, it was noticed how it changed the battle style, from guerre guérreable to guerre
mortelle, where the result of the battle interested more than the honorable means of achieving
it. Finally, it was established the great importance that the English longbow had during the
period and that due to a new battle style of ranged combat, it made way to the introduction of
firearms in war.
Keywords: Hundred Years War – Archers – Jean Froissart
SUMÁRIO
Introdução ............................................................................................................................ 1
Capítulo I - Um contexto político e militar de transição: dos valores cavaleirescos para a
Guerra Mortal...........................................................................................................................5
1.1 - A crise da Cavalaria como forma de combate...............................................................5
1.2 – Os gauleses e o arco-longo...............................................................................................7
1.3 – Guerra anglo-escocesa – o teste da nova arma..............................................................9
1.4 – Guerra dos Cem Anos – uma questão de hereditariedade?.........................................9
1.5 – A Batalha de Crécy (1346).............................................................................................10
1.6 – A Batalha de Poitiers (1356)..........................................................................................11
1.7 – A Batalha de Nájera (1367)...........................................................................................12
1.8 – A Batalha de Aljubarrota (1385)..................................................................................13
1.9 – A Batalha de Agincourt (1415).....................................................................................14
Capítulo II - Jean Froissart – o cronista da cavalaria.........................................................16
2.1 – Trajetória do cronista....................................................................................................16
2.2 – A influência de Jean Le Bel...........................................................................................18
2.3 – Prólogos dos Livros I e III.............................................................................................19
2.4 – O coletor de testemunhos..............................................................................................20
2.5 – A sociedade para Jean Froissart...................................................................................21
2.6 – As características das crônicas de Jean Froissart.......................................................22
2.7 – Um exemplo de crítica a Froissart................................................................................24
Capítulo III – Os sintomas da crise da cavalaria em Jean Froissart: Crécy (1346) e
Aljubarrota (1385)..................................................................................................................26
3.1 – Os arqueiros em Crécy por Jean Froissart..................................................................26
3.2 – Os arqueiros em Aljubarrota por Jean Froissart.......................................................31
Conclusão.................................................................................................................................36
Bibliografia..............................................................................................................................39
1
INTRODUÇÃO
A natureza é um mundo violento, isso não se deve só à ação do homem, os animais
matam uns aos outros para poderem sobreviver. Se estamos aqui hoje é porque de alguma
forma driblamos os predadores e nos sobrepusemos a eles. Sem armas naturais, o ser humano
se utilizou para poder sobreviver da maior arma já vista até então: a mente humana. A partir
dela, se é capaz de muito – e esse muito o fez dominar a natureza, consequentemente, dominar
o uso da violência para seu proveito.
Não se pretende defender aqui o uso da violência. Num mundo onde se busca cada
vez mais viver em paz, abomina-se esse tipo de ato, porém, certas civilizações se
sobrepuseram às outras por meio da belicosidade. Foi a partir de engenhos de guerra, muitas
vezes inspirados na própria natureza1, que o homem se permitiu dar ao luxo de caçar e colocar
no seu cardápio a carne, essencial para seu desenvolvimento craniano. Inevitavelmente,
passou-se a atacar membros da própria espécie por diversos fatores, como bens, territórios e
simplesmente rixas tribais.
A invenção do arco representou um grande avanço para o homem. A partir de
princípios mecânicos, o atirador poderia abater seu alvo sem precisar se expor ao perigo do
contato próximo. Não foi a primeira arma de longo alcance, pois antes os homens utilizavam
pedras, lanças, e a funda, mas o arco simples aumentou consideravelmente o alcance e a
velocidade, além de um bom poder de penetração. “(...) Mortal contra caça até o tamanho do
antílope, o arco era extraordinariamente adequado ao tipo de combate característico dos
caçadores coletores.”2
Nas civilizações antigas, o arco estava presente nas táticas militares dos Persas,
Acádios, Assírios, Babilônios, Indianos, Hunos, Coreanos, Japoneses, Chineses, todos
produzidos de diferentes tamanhos e materiais dependendo da região. No caso dos Assírios,
povo guerreiro por excelência, grande ênfase foi dada aos arqueiros nas táticas de batalha,
sobretudo no que diz respeito à proteção aos atiradores pelo resto do exército3.
Com gregos e romanos foi diferente. Embora o arco estivesse presente na mitologia
com os deuses Apolo e Ártemis, atirar com arco era tido como ato de pouca bravura, já que
não se expunha ao risco do contato próximo para lutar4. Esse mesmo pensamento foi
1 O’CONNELL, Robert L. História da Guerra. Armas e homens. Uma história da guerra, do armamento e da
agressão. Alfragide: Teorema, 1989.p. 27 2 Idem. p. 36
3 Idem. p. 52 4 Idem. p. 104.
2
predominante na Idade Média, e embora presentes nas hostes, os arqueiros também eram
abominados pela cavalaria nobre dado à facilidade em matar o inimigo sem ser “por meio
honroso”, ou seja, combate corpo a corpo, fato que era tão exaltado pelos cronistas medievais.
Dentro da nobreza, o arco fica apenas como arma de caça e diversão. Segundo O’Connel,
Foi [...] uma das supremas ironias da história militar do Ocidente o facto de uma
cultura em que todo o poder político assentava ostensivamente na coerção ter desprezado o mais mortífero sistema de armamento existente. O arco é que não se
enquadrou, nem cultural, nem economicamente.5
No entanto, foi o arco um dos principais componentes da transição nos aspectos de
batalha do período conhecido como Baixa Idade Média. Nesse estudo, analisamos qual o
papel que o arco-longo conquistou dentro do período conhecido como Guerra dos Cem Anos
(1337-1453), travado entre França e Inglaterra, e também com a presença de outros reinos,
como Aragão, Castela, Navarra, Portugal, Escócia, Flandres e outros do Ocidente Europeu
que tiveram participações pontuais. Nos diversos âmbitos de transformações desse período, o
conflito franco-inglês foi palco de uma mudança militar marcante para ambos os reinos, e que
também repercutiria nos reinos vizinhos. Essa mudança seria a formação de uma hoste ou
exército composto majoritariamente por arqueiros – sendo os ingleses os pioneiros do uso
maciço dessa tática.
Baseamos nosso estudo em cima de batalhas ocorridas durante a Guerra dos Cem
Anos, e por esse motivo, é preciso entender qual a importância desse tipo de análise. O que se
pretendeu fazer não foi uma análise simplesmente factual, mas entender as transformações
ocorridas a partir de determinados eventos, sejam eles sociais, psicológicos e tecnológicos. No
livro “Como se faz a História” é possível ler:
Ainda, nesse campo [História militar] procuramos relacionar a evolução das
sociedades (e das civilizações) com as revoluções estratégicas e técnicas, e suas
concepções culturais próprias a cada uma delas. Assim como falamos de “cultura
política”, não devemos ignorar uma “cultura de guerra”, suscetível de explicar as
evoluções mais diversas no nível social e político. Seja como for, é a noção de
cultura que tende a se afirmar como um conceito operativo fundamental.6
Logo, a retomada de uma História política a partir de meados da década de 80,
propõe-se fazer uma História militar diferente daquela feita pelo positivismo no século XIX.
Os fatos seriam tratados não de forma cadencial, mas de forma que, inserida dentro do seu
5Idem. Ibidem. 6 CADIOU, François; COULOMB, Clarisse et. alli. Como se faz a história: historiografia, método e pesquisa.
Tradução: Giselli Unti. Petrópolis: Vozes, 2007. P 184
3
próprio contexto, fazem sentido para a época em que se vive. Querendo ou não, alguns
acontecimentos marcaram profundamente determinados períodos, e não deveriam ser
deixados de lado no estudo da História.
A História militar, para John Keegan7, deveria não só apresentar as batalhas do ponto
de vista de seus generais e relações com seus “soldados-peões”, mas também englobar as
outras camadas envolvidas nas batalhas.8No nosso caso, estudamos essas transformações
militares pelas crônicas do francês Jean Froissart – um apaixonado pela cavalaria, pois suas
crônicas nos permitem visualizar os outros extratos participantes nos combates medievais –
como os arqueiros.
Escolhemos as batalhas de Crécy (1347) e Aljubarrota (1385) por terem sido eventos
de grande importância em que se pode efetuar uma análise de transição militar. Crécy foi uma
batalha em solo francês, e a primeira em que os ingleses enfrentaram os franceses em terra
com um exército composto por mais da metade por arqueiros e triunfaram. Já no caso de
Aljubarrota, foi uma batalha travada entre, principalmente, portugueses e castelhanos, mas
onde os ingleses e seus arqueiros estiveram presentes aliados com Portugal, e franceses
aliados aos castelhanos.
Com essas duas batalhas, temos um espaço de tempo considerável (38 anos) além de
duas localidades diferentes, com conjunturas distintas, mas inseridas dentro da Guerra dos
Cem Anos. A partir de Aljubarrota é possível verificar, dentro de aproximadamente 40 anos,
como os países envolvidos na Guerra dos Cem Anos absorveram esse novo modo de batalha,
e até mesmo, as influências que batalhas anteriores tiveram nesta. Logo, Crécy e Aljubarrota
representariam, respectivamente, a “apresentação do problema” e Aljubarrota “tentativas de
se lidar com ele”.
Dessa forma, organizamos a estrutura da seguinte maneira: no primeiro capítulo,
apresentamos o contexto militar do nosso estudo – apontando fatores da crise da cavalaria e
da assimilação e utilização do longbow dentro da Baixa Idade Média, focando em importantes
batalhas onde esses fatores podem ser constatados.
No segundo capítulo, apresentamos o cronista Jean Froissart, incluindo sua trajetória,
lugares por onde esteve e suas principais características de escrita que podem ser encontradas
nas crônicas.
7 KEEGAN, John. O Rosto da Batalha. Lisboa: Fragmentos, Data não especificada. 8 Idem. P. 58
4
Por fim, passamos ao terceiro capítulo, em que analisamos as batalhas de Crécy e
Aljubarrota através das crônicas de Jean Froissart, e onde buscamos detectar de que maneira
os arqueiros britânicos contribuíram para uma transição na forma de batalha e guerra,
proporcionando posturas de ataque com distâncias maiores entre os exércitos, que fariam os
combates cavalheirescos medievais sofrerem importantes alterações.
5
CAPÍTULO 1
UM CONTEXTO POLÍTICO E MILITAR DE TRANSIÇÃO:
DOS VALORES CAVALEIRESCOS PARA
A GUERRA MORTAL
1.1 - A crise da cavalaria como forma de combate
Do ponto de vista militar, a primeira grande derrota da cavalaria medieval pode ser
situada na batalha de Courtrai (1302). O combate entre as tropas nobres montadas da França
contra uma infantaria flamenga munida de lanças e goedendags9 dava a grande possibilidade
de vitória dos franceses. Encurralados entre o exército inimigo e com um rio em suas costas,
os flamengos não tinham opção senão lutar. Para tornar ineficaz a carga da cavalaria, cavaram
buracos e bocas-de-lobo no campo de batalha, e se posicionaram de forma a suportar a
investida inimiga.
Após uma breve troca de tiros de besta (cuja ação era desprezada pela cavalaria10
) os
franceses investem pelos lados, considerando quebrar a formação dos peões flamengos uma
tarefa fácil (como sempre fora) e posteriormente ao desbaratamento, aniquilar o inimigo. Mas
pela primeira vez isso não aconteceu. O que se sucedeu foi conforme os planos flamengos: os
cavalos caíram nos fossos e buracos e facilitaram a caça de seus montadores. Quem
desbaratava eram os franceses, destituídos de sua formação de batalha.
No entanto, outro fato inédito ocorreu. Os cavaleiros franceses esperavam ser feitos
prisioneiros, pois segundo o código de cavalaria era isso que o inimigo deveria fazer do
derrotado. Mas a ordem antes da batalha foi bem clara aos flamengos: não fazer prisioneiros.
Segue-se assim a carnificina.
Esse episódio será o ponto de partida de nossa análise. O que acontecia com os
valores cavaleirescos dessa época?
Pode parecer irônico, mas nossa noção de guerra relacionada com a morte confunde-
nos em um momento como o da batalha de Courtrai. Na Idade Média, principalmente no auge
9Lanças tipicamente flamengas. In: MONTEIRO, João Gouveia. Aljubarrota 1385. A batalha real. Lisboa:
Tribuna da História, 2003.p.44 10 Inclusive, no segundo Concílio de Latrão de 1139 seu uso foi condenado entre os cristãos, a não ser que fosse
usado contra os muçulmanos. O’CONNELL, Robert L. História da Guerra... Op. Cit. p. 116
6
da cavalaria, predominava o conceito de “guerre guérreable”, era combater o inimigo e
realizar proezas, vencê-lo pela habilidade no manejo de armas11
. Derrotá-lo, não matá-lo.
Claro, isso servia de um nobre para outro nobre – os peões, ou homens sem valor para serem
capturados eram, segundo Georges Duby, “aqueles que morriam”12
. A honra de um cavaleiro
se escrevia por suas vitórias sobre os inimigos e pelo tamanho das recompensas que obtinha
deles, não era uma proeza (ou vantajoso) matá-lo.
No século XIV há uma inversão ao surgir o conceito de “guerre mortelle”, que eram
peculiares aos burgueses flamengos e povos célticos, onde o que importava era o resultado
efetivo da batalha, a vitória, independente dos meios para se atingi-la. A utilização de uma
arma como o arco e flecha se encaixava dentro desse tipo de batalha em que dentro de uma
chuva de flechas não se escolhia inimigos, e quanto mais fossem atingidos melhor13
. Mas isso
não significa que as capturas foram abolidas nas batalhas do século XIV, como se verificará
principalmente em Poitiers e Agincourt, o que aconteceu foi uma gradual mudança que
privilegiava o resultado da batalha em detrimento de como obtê-lo.
A partir de Courtrai, a cavalaria francesa começou a apresentar problemas no que
tange à sua eficácia até então. Seu código de combate havia sido negligenciado com a derrota
para aqueles que eram alvo de matança, a infantaria de combatentes do próprio povo.
1.2 - Os galeses e o arco-longo
Mesmo o código de cavalaria de batalha, que prezava o combate corpo a corpo, não
suplantou completamente a utilização do arco na guerra durante a Idade Média Ocidental. Foi
especificamente um povo que propagou sua utilização: os ingleses. No entanto, quem
realmente introduziu o arco-longo na cultura ocidental foram os galeses, que ao longo da
Idade Média foram sempre um povo esguio e difícil de ser conquistado, embora
frequentemente derrotado. 14
Cabe aqui dizer que, mesmo após a Batalha de Hastings (1066) e a propagação de
uma cultura franco-normanda dentro das ilhas britânicas, que tinha a cavalaria como base
militar, havia enorme dificuldade em combater lá devido à topografia insular, marcada por
montanhas onde a cavalaria pouco teria efeito dado a dificuldade de locomoção. Desse modo,
11 Idem. p. 112 12 DUBY, Georges. O domingo de Bouvines: 27 de julho de 1214. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. 13
SILVA, Victor Deodato da. Cavalaria e nobreza no fim da Idade Media. Belo Horizonte; São Paulo: Ed.
Itatiaia: EDUSP, 1990. p. 186 14 Idem. p. 111
7
os galeses permaneceram independentes até a dominação do rei Eduardo I da Inglaterra no
século XIII, que estabeleceu uma estratégia militar de construção de castelos em pontos-chave
fronteiriços, até a assimilação desse povo. Junto com ele, houve a introdução do arco-longo na
Inglaterra com os soldados galeses que viram no ingresso às hostes inglesas uma
oportunidade atrativa.15
O arco-longo galês não era um arco comum - sua diferença se dava, principalmente,
com o alcance obtido. Era um arco alto e feito de teixo, que possibilitava um tiro de grande
impacto a uma ampla distância. Comparado aos besteiros, um arqueiro exigia treinamento de
anos que lhe daria uma condição física e óssea diferenciada16
e a força suficiente para levantar
um homem ao retesar o arco17
, mas também sua investida era mais eficaz que as bestas.18
De
arma puramente galesa, passou a ser inglesa, e sua efetividade seria testada contra os
escoceses, outro incômodo aos ingleses dentro da ilha britânica.
1.3 - Guerra Anglo-Escocesa – o teste da nova arma
Sendo de origem inglesa, os Bruce, reis da Escócia, contavam com um certo número
de cavalaria em suas hostes, mas predominantemente seu esquema de batalha era composto
por schyltrons, uma organização em círculo com homens de infantaria munidos de lanças,
machados e escudos19
. Na primeira batalha, de Bannockburn (1314), ocorreu a vitória dos
escoceses, e a derrota inglesa foi atribuída ao péssimo comando das tropas de Eduardo II, que
deixou que seus barões tomassem o controle da situação investindo com cargas de cavalaria
desunidas, impedindo a ação de seus arqueiros galeses, acabando por cair em armadilhas –
fossos e estacas – instaladas pelos escoceses20
.
Essa batalha destacou novamente um fator importante para os ocidentais: a cavalaria,
método de batalha utilizado no ocidente, havia sido derrotada, tal qual haviam sido os
franceses em Courtrai (1302). Ambos os vencedores, flamengos e escoceses, haviam adotado
posturas defensivas e enchido o campo de batalha com armadilhas para tornar ineficaz o
poderio do combatente equestre. Assim, era preciso mudar a tática de batalha.
15 Idem. p. 112 16 HARDY, Robert. The Battle of Neville’s Cross, 1346, editado por ROLLASON, D. e PRESTWICH M.;
Stamford: Shuan Tyas, 1998. p. 119. 17 O’CONNELL, Robert L. História da Guerra... Op. Cit. p. 126 18
Idem. Ibidem. 19 SILVA, Victor Deodato da. Cavalaria e nobreza no fim da Idade Media... Op. Cit. p. 113. 20 Idem. Ibidem.
8
Quando Eduardo III assume o trono da Inglaterra, faz-se nova crise escocesa, sendo
que a vitória de uma das facções políticas da Escócia interessava ao rei inglês. Este organiza
seu exército e encontra as forças escocesas muito mais poderosas que as suas em Dupplin
Moor(1332)21
. Mas desta vez, os arqueiros dispostos nos flancos do exército inglês acabaram
com a investida dos escoceses, não apenas matando, mas causando pânico e desordem, já que
os escoceses não usavam elmos e grande parte dos guerreiros foi alvo de flechas na cabeça. O
pânico ocasionou a maioria das mortes do campo de batalha por pisoteamento dada à
desordem que se instalara no exército escocês22
. Por fim, as forças inglesas e do grupo aliado
de escoceses obtiveram a vitória.
Dupplin Moor teve um caráter decisivo para os ingleses. Não de se sobrepor aos
escoceses, mas de estabelecer sua nova tática militar. A partir de então, os ingleses
aprenderiam a combater a pé, em postura defensiva (em Dupplin Moor estavam encurralados
entre o rio Earn e os escoceses), e, principalmente, com arqueiros posicionados nas alas23
. No
entanto, o que dá o aspecto decisivo a esses arqueiros era a quantidade que estaria presente
dentro do exército inglês, muitas vezes superando ou sendo o triplo de homens-de-armas24
.
Esse número de arqueiros possibilitava o chamado volley de flechas, um ataque onde todos
arqueiros atiravam ao mesmo tempo. Sendo muitas vezes de 3 a 6 mil arqueiros no exército, é
imaginável o impacto que causaria no exército inimigo, tanto fisicamente como moralmente.
No meio de uma chuva de flechas, de nada adiantava ser nobre ou não para ter a chance de
oferecer rendição ou resgate25
– o pavor e a morte eram certos.
Nova batalha se faria contra os escoceses em Hallidon Hill(1333). Mais uma vez os
ingleses se dispuseram em três batalhões de homens-de-armas protegidos pelo grande número
de arqueiros nas alas. No entanto, é preciso destacar que essas alas de arqueiros eram
levemente avançadas, dando ao exército inglês um aspecto de cunha, e alvejavam
principalmente o flanco e a retaguarda do inimigo, deixando que a fina vanguarda sem
proteção nos flancos caísse na mão dos homens-de-armas ingleses. Novamente os escoceses
foram massacrados, e segundo Monteiro: “O sistema tático inglês estava, assim,
definitivamente testado e apurado”26
.
21 MONTEIRO, João Gouveia. Aljubarrota 1385..Op Cit. Lisboa: Tribuna da História, 2003. P. 48. 22 Idem. p. 50 23 Idem. Ibidem. 24
Ou seja, soldados a pé ou a cavalo. 25 SILVA, Victor Deodato da. Cavalaria e nobreza no fim da Idade Media... Op. Cit. p. 198 26 MONTEIRO, João Gouveia. Aljubarrota 1385. Op. Cit. p. 51
9
1.4 - Guerra dos Cem Anos – uma questão de hereditariedade?
A rixa entre Inglaterra e França pode ter tido origem no casamento de Henrique II da
Inglaterra com Eleanor da Aquitânia, em 1152. Com esse casamento, várias terras francesas
passaram a ser inglesas, embora o rei inglês prestasse homenagens ao rei francês por elas.
Mas esse poderio inglês sobre as terras era uma ameaça aos franceses. Com o passar do
tempo, só restou aos ingleses a Aquitânia dado a conquistas francesas nas terras. E em 1337,
Felipe VI confiscou as terras da Aquitânia por desobediência de Eduardo III.
Também Eduardo III era neto do rei francês Felipe IV. Todos os filhos varões que
puderam assumir o trono francês morreram, e assim que o irmão de Felipe IV tomaria o poder
– Carlos de Valois. E Eduardo III, era filho de uma filha de Felipe IV, portanto se sentia no
direito de hereditariedade ao trono da França. Não que fosse ilegítimo o trono francês passar
por uma linhagem a partir de uma mulher, simplesmente, como argumenta Jean Froissart
inclusive, era inconcebível que o trono francês caísse nas mãos de uma mulher ou de sua
linhagem. Ainda assim, Eduardo III da Inglaterra sentia-se no direito de tomar o trono
francês.27
Em 1336, enquanto o rei da França, “mui católico e fortíssimo campeão da fé
cristã”, reunia uma frota em Marselha para singrar rumo à Terra Santa, Eduardo III
intrigava em Flandres, tentando conquistar as cidades têxteis. E quando o ducado de Guiena[Aquitânia] foi-lhe novamente confiscado, em razão dessa traição, ele
afirmou seus direitos, tomando em 1337 o brasão dos reis da França28
1.5 - A Batalha de Crécy (1346)
Em sua primeira incursão na Normandia francesa, Eduardo III pretendia pilhar a
região e retornar à Inglaterra com um bom butim. Causando destruição pelo local visando
aterrorizar a população local, despertou os cavaleiros franceses que, sob a chefia do rei Felipe
VI, filho de Carlos de Valois, foram de encontro aos ingleses – mas sempre evitando o
combate, até encontrar a oportunidade de armar uma emboscada.29
O número da hoste francesa era quase o triplo dos ingleses. Estes, assumiram a
posição defensiva em uma elevação, formando três batalhões com suas alas adiantadas e com
27 SEWARD, Desmond. A Brief history of ‘The Hundred Years War’.London: Robinson, 2003. p. 21. 28
DUBY, Georges. A Idade Media na França: (987-1460) : de Hugo Capeto a Joana d'Arc. Rio de Janeiro: J.
Zahar, 1992. p. 262 29 SEWARD, Desmond. A Brief history of ‘The Hundred Years War’… Op. Cit. p. 47
10
arqueiros nelas e mais dois grupos de arqueiros entre o batalhão central, totalizando 4 grupos
de arqueiros. Primeiramente, os franceses mandaram seus besteiros genoveses atacarem, mas
fracassaram e fugiram, causando a ira dos franceses que os atropelaram com seus cavalos e
partiram para cima dos ingleses.30
Atrás, veio a infantaria que não sabia o que ocorria à frente,
deixando os cavaleiros sem lugar para fugir e deixando-os prensados dentro da linha de tiro
dos arqueiros ingleses.31
Os ingleses souberam usar bem seus arqueiros junto com sua infantaria e
destroçaram os franceses. “Ao mesmo tempo, sofria baixas pesadas em resultado do tiro dos
arqueiros ingleses, que obviamente tiravam grande partido do embaraço e surpresa dos
adversários”32
. O rei Felipe VI, fadado à derrota, fugiu com o resto de suas hostes.
As consequências da batalha foram mais psicológicas do que materiais – pelo menos
para os ingleses. Com seu “passeio” pela Normandia, o principal bem que conseguiram foi a
conquista da cidade portuária de Calais. Mas também, mostraram aos franceses seu novo
poderio militar.
Durante a batalha, os cavaleiros franceses sofreram muito com as flechadas inglesas
(quando não morriam por elas), pois seus cavalos ficavam desnorteados e com medo, assim
arruinaram qualquer tipo de formação para uma investida de quebra de linhas.
Desorganizados, foram alvos fáceis para a infantaria inglesa, e inclusive os arqueiros que
largavam seus arcos e combatiam com espadas. Froissart também comenta que os próprios
genoveses em fuga desestruturaram a formação francesa. Assim, o resultado foi a vitória
esmagadora dos ingleses para os incrédulos franceses “Tactically and technologically the
battle amounted to a military revolution, a triumph of fire-power over armour”33
– mais uma
vez a cavalaria perdera para a infantaria.
1.6 - A Batalha de Poitiers (1356)
Anos mais tarde, dessa vez chefiados pelo filho de Eduardo III Eduardo Príncipe
Negro, os ingleses voltam à França e fazem uma chevauché, ou cavalgada, pilhando tudo que
encontraram pela frente. Novamente as tropas francesas foram de encontro às inglesas, mas
desta vez, cientes do perigo das flechas. Dessa forma, estabeleceram que quem atacaria
30 SILVA, Victor Deodato da. Cavalaria e nobreza no fim da Idade Media... Op. Cit. p. 128 31 SEWARD, Desmond. A Brief history of ‘The Hundred Years War’… Op. Cit. p. 65 32 MONTEIRO, João Gouveia. Aljubarrota 1385. Op. Cit. p. 55 33
“Taticamente e tecnologicamente a batalha resultou numa revolução militar, um triunfo do poder de fogo
[representado pelos arqueiros] sobre a armadura”. Tradução livre feita por Guilherme Floriani Saccomori de
SEWARD, Desmond. A Brief history of ‘The Hundred Years War’… Op. Cit. p. 68
11
seriam homens desmontados, enquanto dois grupos de cavaleiros nas alas iriam distrair os
arqueiros ingleses. Estes se posicionaram do mesmo modo que em Crécy: em uma elevação
com as alas de arqueiros avançadas e também com mais dois grupos destes ao lado do
batalhão central, rodeados por florestas que impeliam o inimigo sempre para o centro de sua
formação. No entanto, sua vanguarda era composta por uma cavalaria chefiada pelo Príncipe
Negro34
.
O ataque francês foi frustrado pelos arqueiros, que danificaram tanto a cavalaria
francesa das alas que eles mesmos retardaram o ataque de seu batalhão central. O príncipe
Carlos V, diante dessa tentativa frustrada do primeiro batalhão francês, que comandava, fugiu.
O segundo batalhão francês foi atacado e derrotado por uma força de reserva do Príncipe
Negro. Por fim, os ingleses novamente venceriam a batalha. Mas o fato mais impactante dessa
batalha foi o número de capturas e principalmente, a captura do rei francês João o Bom35
, que
renderia uma boa quantia aos cofres ingleses pelo resgate.
1.7 - A Batalha de Nájera (1367)
Nájera se encaixa num contexto diferente das duas batalhas anteriores, pois no
momento dessa, Inglaterra e França já havia estabelecido em acordo de paz no tratado de
Bretigny (1360).
36
No entanto, a rivalidade continuava, e se estendeu até a crise real de Castela.
Henrique conde de Trastâmara disputava o trono com seu meio-irmão Pedro I, o cruel, e
34 SILVA, Victor Deodato da. Cavalaria e nobreza no fim da Idade Media... Op. Cit. p. 132 35
MONTEIRO, João Gouveia. Aljubarrota 1385. Op. Cit. p. 58 36 Tratado de Bretigny 1360. Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/en/a/a8/Map-
_France_at_the_Treaty_of_Bretigny.jpg. Último acesso em 06/04/11.
12
acaba se refugiando na França de onde consegue uma aliança com o rei francês Carlos V, que
envia tropas sob o comando do Condestável Du Guesclin. Pedro o Cruel, vendo que Henrique
vinha com uma força para reivindicar o trono, pede auxílio às forças inglesas que se
encontravam na Aquitânia, liderados pelo Príncipe Negro.37
Próximos do choque dos exércitos, os franceses tentaram convencer Henrique a
evitar a batalha devido as suas anteriores derrotas campais para os ingleses, e pelo fato de os
espanhóis serem mais acostumados ao tipo de batalha com os mouros do que com os
britânicos. Mas se Henrique Trastâmara desistisse, perderia seus partidários.38
Dessa vez, nenhum dos exércitos ficou na defensiva, ambos estavam em terrenos que
não davam vantagem a nenhum dos dois, pois era plano e sem muitos rios ou florestas. Ainda,
as forças inglesas e de Pedro I eram maiores. Os cronistas Froissart e Ayala relatam como um
exército avançou sobre o outro39
até o choque, dessa forma, ambos com postura ofensiva
diferente da então tradição inglesa.
O exército anglo-castelhano combateu a pé, muito próximos ao estilo de Crécy,
enquanto o de Henrique e seus aliados franceses tinham suas alas compostas por cavalaria, e o
centro a pé. No entanto, Don Telo que comandava a direita dos “rebeldes” fugiu com seus
homens quando estavam próximos do choque. Froissart comenta que não se sabe bem ao certo
o que aconteceu, mas apenas que o conde Don Telo se assustou, e é provável que tenha sido
com as flechas inglesas40
. O fato foi que sem a ala direita, o exército íbero-francês foi
envolvido e desbaratado.
Essa batalha estabeleceu dois pontos importantes. O primeiro, foi que os franceses já
estavam mais que cuidadosos em relação aos ingleses, inclusive adotando armaduras que
resistissem à penetração das flechas. Em segundo, assinalou a primeira derrota de uma força
castelhana para os ingleses, já que esses tinham um aspecto militar semelhante ao francês – de
cavalaria. Portanto, na Espanha, foi o princípio de crise da cavalaria no meio militar.
No entanto, a expressão “venceu a batalha, mas não a guerra” se aplica bem aqui.
Apesar da vitória em Nájera, Pedro I não pode pagar aos serviços prestados pelos ingleses, e
foi abandonado por seus aliados políticos à própria sorte, facilitando a tomada de Henrique
Trastâmara (o futuro Henrique II) do trono.41
37 MONTEIRO, João Gouveia. Aljubarrota 1385. Op. Cit. p. 58-59. 38 SILVA,. Op. Cit. p. 145. 39
Idem. p. 147. 40 Idem. p. 149. 41 Idem. p. 150.
13
1.8 - A Batalha de Aljubarrota (1385)
D. Fernando, rei de Portugal, interveio no reino de Castela na condição de candidato
à substituição de Pedro I. Mas à sua morte em 1383, seguiu-se um cerco em Lisboa, e após
um tempo, os castelhanos, devido à peste negra que assolava seus soldados, desistiram de
capitulá-la. Reunindo aliados, o Mestre de Avis conseguiu subir ao trono como D. João I para
liderar as forças portuguesas contra as castelhanas.
D. João I liderou os portugueses a uma série de incursões para tomar posse de
castelos e ataques a regiões hostis aos portugueses dentro do reino42
. Ocorreram duas batalhas
de pequena proporção, a de Atoleiros e de Trancoso, nas quais os castelhanos foram vencidos.
Nesta última, Castela perdeu seus melhores homens, que ao comando do rei castelhano Juan I
havia formado um grupo de elite e acabaram derrotados por peões portugueses. Por fim,
seguiu-se a batalha de Aljubarrota.
Aliado do reino inglês, e com um número de arqueiros destes sob o comando,
Portugal acatou as táticas militares dos insulares. Posicionaram-se entre dois rios e em um
local elevado, e suas alas não teriam como ser flanqueadas.43
Sob o comando dos arqueiros
ingleses, o campo próximo às forças portuguesas é preenchido com buracos e lanças para
dificultar o avanço da cavalaria espanhola.
As tropas castelhanas contavam com o auxílio de forças de Aragão e da França, e
tinham a intenção de atacar com seus cavaleiros as forças anglo-portuguesas, bem mais
inferiores. O centro franco-castelhano combatia a pé, enquanto suas alas eram compostas por
cavaleiros.
Os castelhano investem contra os portugueses, que cedem primeiramente e são
envolvidos pelos castelhanos. Ainda, um corpo de cavalaria atacou-os pela retaguarda,
tornando o resultado previsível de vitória castelhana.
Mas estando cercados, os portugueses seguiram lutando (uma vez que não tinham
como fugir). E estando envolvidos, o número superior do exército inimigo foi neutralizado.
Os arqueiros ingleses foram cruciais em combate do lado dos portugueses, (apesar de estarem
42 SILVA, Victor Deodato da. Cavalaria e nobreza no fim da Idade Media... Op. Cit. p. 157 43 GUIMARÃES, Marcella Lopes. “Aljubarrota e as vozes que fundam a lembrança” (no prelo)
14
em apenas cerca de 700)44
, e por fim, os lusos inverteram a situação até vencerem a batalha. O
conflito em Aljubarrota durou apenas duas horas, algo que dificilmente ocorria no medievo
em batalhas dessa proporção. Foi um desastre para Castela, que ficaria receosa de combater
em campo aberto contra os portugueses novamente. Do ponto de vista militar, Portugal sairia
fortalecido militarmente e politicamente45
, além de ter estabelecido uma aliança com os
ingleses que se perpetuaria por séculos.
1.9 - A Batalha de Agincourt (1415)
Brevemente passando sobre aspectos políticos, pois não é este nosso foco, temos
crises dentro da Inglaterra para a sucessão dinástica. Ricardo II, filho do Príncipe Negro, é
deposto pelo primo Henrique de Lancaster sob a acusação de mau governo. O filho deste,
Henrique V, ressuscita a ideia de direito ao trono francês, sobretudo devido às incursões que a
França vinha fazendo para retomar os territórios perdidos pelo Tratado de Bretigny. Assim,
recomeça-se a Guerra dos Cem Anos.46
Henrique V organiza uma campanha para tomar pontos na Normandia e inicia
capitulando a cidade portuária de Harfleur. Mas o cerco dessa cidade lhe custou caro, pois
desgastou demais suas tropas que se prejudicaram com infecções de disenteria. Enfraquecido,
decide abrir mão de uma campanha muito longa, e propõe que se vá até o porto de Calais,
cidade sob domínio inglês, para o regresso à Inglaterra.47
Durante o transcurso, os franceses
reúnem suas tropas e vão interceptá-los. Vários choques de pequena proporção ao longo do
caminho ocorreram, mas as duas forças se encontrariam para a decisão próximos ao castelo de
Agincourt.
As características militares de Henrique V eram parecidas com as de Eduardo III e
do Príncipe Negro – três batalhões com as alas de arqueiros avançadas. Já o exército francês
se estabeleceu em 3 batalhões, e os “mais bravos cavaleiros” brigavam para estar no primeiro
batalhão, a vanguarda, que no código de cavalaria que ainda persistia, era um lugar de honra.
A teimosia dos franceses em novamente lutar contra os ingleses se explica com a
Batalha de Roosebecke, onde a cavalaria venceu um grupo de rebeldes flamengos48
. Isso
44 Silva sugere que tenham sido 15.000 do lado dos castelhanos contra 7.000 do lado dos ingleses. Sendo assim,
a quantidade de arqueiros ingleses no combate foi pequena, embora tenham mostrado sua eficiência. p. 168 45 Pois também houve a consolidação da dinastia de Avis. SILVA, Victor Deodato da. Cavalaria e nobreza no
fim da Idade Media... Op. Cit. P.169 46
BARKER, Juliet. Agincourt. Rio de Janeiro: Record, 2009. PP. 33-41 47 Idem. p. 250 48 SILVA, Victor Deodato da. Cavalaria e nobreza no fim da Idade Media... Op. Cit. PP. 104-107
15
serviu como moral para a derrota de Courtrai há tempos atrás, e seria mais um incentivo à
permanência da cavalaria como modo de combate. Também, os franceses procuraram se
adaptar às flechas inglesas aperfeiçoando suas armaduras ao máximo para tornarem-nas
impenetráveis – o que de fato ocorreu, mas com um custo: eram tão pesadas que os cavaleiros
se moviam com enorme dificuldade49
. Já os arqueiros ingleses, destacaram-se nessa batalha
por serem leves e ágeis, além de estarem protegido da carga da cavalaria por estacas.
Ao ataque inglês de flechas é certo que muito cavaleiros não morreram, mas o
barulho de flechas batendo em armaduras, de cavalos relinchando deve ter sido apavorante
para os franceses, causando o pavor nas tropas50
. Já os ingleses, embora estivessem cansados,
alguns doentes, em número incrivelmente inferior, tinham seu rei para lhes dar moral,
enquanto os franceses eram comandados por uma cavalaria individualista, dada a ausência de
seu rei no campo de batalha.
O avanço das tropas a pé francesas foi prejudicado pelo campo embarrado pela chuva
e pelos volleys de flechas inglesas. Os que caíam no chão morreriam pisoteados. Quando
chegaram no exército inglês, foram massacrados pelos próprios arqueiros que se desfizeram
dos arcos e agilmente massacraram os franceses. Os números franceses, mais que o dobro dos
britânicos, acabaram sendo prejudiciais, pois havia a pressão dos que vinham atrás prensando
os da frente contra os ágeis ingleses51
. O final não podia ser outro: vitória inglesa. Dessa vez,
a França e a cavalaria sofreriam uma derrota tão marcante que definitivamente suas táticas de
batalha teriam de ser mudadas.
49
Algumas armaduras completas chegavam a pesar cerca de 50 quilos 50 KEEGAN, John. O Rosto da Batalha. Lisboa: Fragmentos, 1976. P. 71 51 Idem. PP. 75-76
16
CAPÍTULO 2
JEAN FROISSART – O CRONISTA DA CAVALARIA
2.1 – Trajetória do cronista
Jean Froissart nasceu em Valenciennes no condado de Hainaut, França,
coincidentemente no mesmo ano de início da Guerra dos Cem Anos – 1337. Lá viveu sua
infância até ir para a Inglaterra para a corte de sua conterrânea, a rainha Phillipa de Hainaut,
esposa de Eduardo III. Já na chegada presenteou a rainha com trechos de uma crônica a
respeito da vitória de seu filho – Eduardo o Príncipe Negro – sobre sua vitória sobre João o
Bom em Poitiers.52
Froissart passou então a servir à rainha como poeta-escritor. Envolvido com a corte
Inglesa, foi testemunha de muito do que acontecia dentro desta, e muito importante foi o
contato que teve com os prisioneiros de guerra franceses, com os quais conseguiu
testemunhos de batalhas, dessa forma possibilitando que escrevesse seu “Livro I”, que trata da
ascensão de Eduardo III ao trono inglês e do início da Guerra dos Cem Anos. Esse livro foi
reescrito várias vezes, mas sua primeira versão surgiu dentro desse ínterim, principalmente
sob a benção da rainha Phillipa.53
Froissart viajou para vários locais nesse período em que pertencia à corte inglesa, aos
Países Baixos, Gales e províncias italianas. Ao retornar de Milão, em 1369, foi informado da
morte de Phillipa, e com isso, o cronista regressou à sua região natal, sob o provável patronato
de Wenceslas de Brabant, onde terminou em 1373 a primeira versão do Livro I. Esse período,
para Michael Zink, foi “um período de intensa criatividade”54
, pois além da conclusão do
Livro I, fez sua primeira revisão e inclusão a partir de novos relatos que coletou, concluído
em 1378. O Livro I de Jean Froissart trata do
Grande conflito dinástico entre os reis de Inglaterra e França e seus respectivos
aliados. Essa é uma guerra de incursões militares [ou chevauchées], pilhagem e
52 http://www.hrionline.ac.uk/onlinefroissart/apparatus.jsp?type=intros&intro=f.intros.PFA-Froissart. Último
acesso em 15/11/11. 53 Idem. 54 ZINK, Michael, Froissart et le temps. P.U.F. Paris, 1998. P. 10
17
cercos, pontuada por poucas batalhas campais em que os vencedores são
frequentemente os brilhantes capitães de Eduardo III, habilmente apoiados por
arqueiros galeses ou de Cheshire, (Sluys em 1340, Crécy em 1346 e Poitiers em
1356) 55
O “Livro II” foi escrito dado à extensão de manuscritos que seriam incluídos no
Livro I, e para que este não ficasse muito grande, foi iniciado um novo Livro. Esse Livro II,
por sua vez, retrata o conflito entre Luís, conde de Flandres e a cidade e tecelões de Ghent.
Compôs a narrativa entre 1378 e 1385, e desse conflito, Froissart foi testemunha de vários
acontecimentos. “O Livro II provém ao leitor uma narrativa [...] na qual nobres falham em
governar, enquanto a imaginação , energia e paixão são a aparência das classes médias
urbanas de Ghent e seus líderes [...]”56
A partir de 1382 Froissart estava sob patronato de Guy de Châtillon, conde de Blois,
e a partir do forte apoio do nobre, Froissart iniciou uma nova jornada até Orthez, na corte de
Gaston Fébus, conde de Foix-Béarn. Então, escreveria seu “Livro III” entre 1389 e 1391, que
trataria do conflito entre Castela e Portugal e seus aliados Franceses e Ingleses. Nas diversas
cortes coletava relatos como das batalhas de Aljubarrota e Trancoso, e sobre o conflito
hispânico-português. “O cronista entrevistou diversos personagens em cortes principescas e,
depois de escutar os participantes de tantas lides, fazia anotações sobsequentes para não
perder detalhes”57
.
No entanto, após a conclusão do mesmo, o cronista redigiu nova versão que abrangia
informações coletadas com o cavaleiro e diplomata português João Fernandes Pacheco, que
lhe disponibilizaria uma visão mais fiel de ambos os lados, português e castelhano.
Em 1392, muda novamente de patrono, uma vez que Guy de Châtillon estava
arruinado e vendera seu condado de Blois para Luís de Tourraine. No entanto, Froissart se
encontrava com alguém de quem não poderia ter apoio para continuar escrevendo suas
crônicas. Dessa maneira, liga-se a patronos em Hainaut, como Albrecht da Bavaria e seu filho
e herdeiro William Ostrevant.58
Em 1395, faz sua última jornada para a Inglaterra, mas não tem a mesma recepção na
corte de Ricardo II, neto da rainha Phillipa, “Tudo havia mudado, e praticamente todos seus
55 Tradução livre do inglês feita por Guilherme Floriani Saccomori, extraído de
http://www.hrionline.ac.uk/onlinefroissart/apparatus.jsp?type=intros&intro=f.intros.PFA-Froissart Último acesso
em 15/11/11. 56Tradução do inglês. Idem. 57
GUIMARÃES, Marcella Lopes. “Aljubarrota e as vozes que fundam a lembrança” (no prelo) p. 10 58 http://www.hrionline.ac.uk/onlinefroissart/apparatus.jsp?type=intros&intro=f.intros.PFA-Froissart. Último
acesso em 15/11/11.
18
antigos amigos ingleses haviam se ido”.59
Voltando a Hainaut, onde ficou seus últimos dias,
terminou o “Livro IV”, que trata do “reinado e loucura de Charles VI e os últimos dias do
reinado turbulento de Ricardo II”60
. Ainda antes de morrer fez uma nova reescrita do Livro I,
conhecida como a “terceira redação”, com a qual
parece dar expressão indireta e algumas vezes aberta de seus medos pela
sobrevivência da Proeza [cavaleiresca] em um país que havia recentemente testemunhado a deposição e homicídio de seu soberano ungido.61
Froissart morreria no ano de 1405, em Chimay, na atual Bélgica.
2.2 – A influência de Jean Le Bel
Froissart iniciou os escritos do Livro I por volta de 1369, relatando os eventos da
ascensão de Eduardo III ao trono inglês. Nesse período, utilizou como fonte outro cronista
renomado da Idade Média – Jean Le Bel, cânone de St Lambert de Liège, e testemunha dos
eventos que Froissart narra. Embora Jean Le Bel tenha presenciado grande parte dos
acontecimentos narrados por Froissart no Livro I62
, nosso cronista, como já dito, coletou
outros testemunhos e relatos desses acontecimentos, já que pretendia tornar sua narrativa o
mais fidedigna e imparcial possível.
O estilo em prosa também era manifestadamente preferido por Jean Le Bel, pois
criticava o tipo de cronista que narrava eventos históricos em versos, pois não seria
apropriado se relatar o passado com precisão e integridade uma vez que os “historiadores de
verso” seriam inclinados a distorcer a verdade em prol de se obter rimas. Froissart também se
mostrou a favor desse tipo de crítica, como pode ser visto no prólogo da primeira redação do
Livro I63
No prólogo de Jean Froissart do Livro I, temos uma citação à Jean Le Bel, um
agradecimento ao cânone por ter cido uma das fontes de apoio para Froissart
Agora, para tratar do assunto que eu me comprometi a iniciar, em primeiro lugar,
[...] desejaria me basear nas verdadeiras crônicas anteriormente compostas e
coletadas por esse venerável e sábio mestre Jean le Bel, cânone de Saint Lambert,
59 Idem. 60 Idem, Ibidem. 61 Idem, Ibidem. 62 Muitas vezes transcrevendo palavra por palavra da crônica de Jean Le Bel.
http://www.hrionline.ac.uk/onlinefroissart/apparatus.jsp?type=intros&intro=f.intros.PFA-Froissart. Último
acesso em 15/11/11 63 Idem, Ibidem
19
em Liège, que dedicou-se com o maior cuidado e diligência nesse assunto, e
continuou assim por sua vida inteira com a maior precisão possível64.
Aqui podemos perceber a estima que Froissart tem por Jean Le Bel, a quem credita
confiança em seus escritos por serem precisos. Dessa forma, sua narrativa é primeiramente
baseados nas de Jean Le Bel “seguindo a partir do relato feito por meu senhor Jean le Bel”65
,
e posteriormente acrescida das entrevistas com outras pessoas66
.
2.3 – Prólogos dos Livros I e III
Froissart sempre escrevia um prólogo em seus livros onde estabelecia os objetivos de
sua escrita. Como nesse estudo vamos nos focar nas batalhas de Crécy (1346) e de
Aljubarrota (1385), iremos nos ater aos prólogos dos Livros I e III.
No Livro I, primeiro de todos, o cronista deixa bem claro seu objetivo: documentar e
comentar os grandes feitos de armas realizados durante as guerras entre França e Inglaterra, “e
dessa forma homens corajosos poderão seguir tais exemplos para inspirá-los, é meu desejo
intentar registrar essa gloriosa história.”67
Para isso, se utilizaria de testemunhos de
participantes do eventos, arautos e cavaleiros, uma vez que ele próprio não esteve presente.
Assim, fica claro o objetivo de se narrar uma história aristocrática, uma vez que os grandes
feitos das quais trata são os empreendidos pelos nobres cavaleiros.
Também no prólogo da segunda versão do Livro I temos um fato curioso, que pode
demonstrar o sentimento de Jean Froissart por uma “casta” a qual não poderia aspirar. Nesse
prólogo, Jean Froissart faz menção às três ordens feudais, mas alterando crucialmente a
primeira ordem, substituindo os oratore, aqueles que rezariam para o bem-estar daqueles que
64Tradução do inglês de http://www.hrionline.ac.uk/onlinefroissart/browsey.jsp?pb0=BookI-
Translation_1v&img0=&GlobalMode=facsimile&img0=&pb0=BookI-
Translation_1r&GlobalWord=0&div0=ms.f.transl.BookI-Translation&disp0=pb&GlobalShf=&panes=1. Último
acesso em 15/11/11 65 http://www.hrionline.ac.uk/onlinefroissart/browsey.jsp?pb0=BookI-
Translation_2r&img0=&GlobalMode=facsimile&img0=&pb0=BookI-Translation_1v&GlobalWord=0&div0=ms.f.transl.BookI-Translation&disp0=pb&GlobalShf=&panes=1. Último
acesso em 15/11/11. 66 HUXTABLE, M. J. Of device as device: the narrative functioning of armorial display’s in Froissart’s
Chronicles. Disponível em:
http://www.dur.ac.uk/postgraduate.english/Issue%2018/Huxtable%20%20(Of%20devices%20as%20devices%2
0in%20Froissart).pdf p. 2. Último acesso em 15/11/11. 67
Tradução do inglês por Guilherme Floriani
Saccomori.http://www.hrionline.ac.uk/onlinefroissart/browsey.jsp?AbsDiv=ms.f.transl.BookI-
Translation&AbsPb=BookI-Translation_1r. Último acesso em 15/11/11.
20
lutariam, por aqueles que seriam encarregados de compilar as grandes ações dos cavaleiros.68
No prólogo do Livro III temos praticamente os mesmos objetivos – escrever para
salvar esses acontecimentos do esquecimento, dar prazer e exemplo aos leitores. No entanto,
nessa narrativa há a intenção de se relatar sobre “terras distantes”, que seriam Castela,
Portugal, Gasconha, demonstrando como se teceram jogadas políticas e criaram estratégias ao
se confrontarem em batalhas.69
Cristopher Allmand comenta que Froissart objetiva prover exemplos de
comportamento humano da nobreza para a nobreza, mas também de moralizá-lo, pois as ações
cavaleirescas, embora em seu auge segundo nosso cronista, nem sempre se mostraram do lado
vencedor. Dessa forma era necessário enaltecer os atos nobres e honrosos, e denegrir atos que
não se enquadrassem dentro do código da cavalaria70
. No entanto, mesmo que o objetivo seja
entreter as cortes com seus feitos, é possível ver nas crônicas a presença das camadas mais
baixas – mesmo que não diretamente. São aquelas principalmente que “desestruturam” o
sistema cavalheiresco, sejam peões flamengos, arqueiros ingleses, ou revoltosos da jacquerie
francesa.
2.4 - O coletor de testemunhos
Froissart não se ateve a testemunhos de uma única pessoa. Mesmo nos eventos em
que foi testemunha, buscou relatos de outros participantes para enriquecer sua narrativa.
Mesmo que tenha baseado seu Livro I nos relatos de Jean Le Bel, havia uma preferência pelo
testemunho oral, uma vez que no tempo em que viveu o testemunho ditado de boa fé era ainda
reverenciado. Dessa forma, o que podemos ler em suas crônicas é uma coletânea de
testemunhos sob seu moralismo. O cronista entrevistava aqueles que encontrava pelo caminho
nas hospedarias e cortes, mas também partia em busca daqueles que pudessem lhe dar um
bom testemunho dos eventos71
.
68 http://www.hrionline.ac.uk/onlinefroissart/apparatus.jsp?type=intros&intro=f.intros.PFA-Froissart. Último acesso em 15/11/11. 69 http://www.hrionline.ac.uk/onlinefroissart/browsey.jsp?AbsDiv=ms.f.transl.BookIII-
Translation&AbsPb=BookIII-Translation_201r. Último acesso em 15/11/11. 70ALLMAND, Christopher. The War in the Fourteenth Century. Disponível em
http://www.hrionline.ac.uk/onlinefroissart/apparatus.jsp?type=intros&intro=f.intros.CA-War. Último acesso em
14/12/11.
71 http://www.hrionline.ac.uk/onlinefroissart/apparatus.jsp?type=intros&intro=f.intros.PFA-Froissart. Último
acesso em 15/11/11.
21
Froissart mudou seus textos “inspirado” pelas tendências de seus senhores, mas
também depois de ter acesso a outras fontes, sobretudo cavaleiros que nas diversas
cortes que visitou lhe revelaram oralmente os segredos das lutas, nos banquetes,
entre a apresentação performativa de um jogral, marcado tanto pelo vinho quanto
pelas cicatrizes deixadas pelos embates72
.
Mas a quem Froissart creditava mais confiança eram os arautos. Estes eram em
sua época considerados as fontes mais confiáveis e imparciais que detinham informações
sobre os combates da cavalaria.73
2.5 - A sociedade para Jean Froissart
O que era a sociedade para Froissart? Ora, sendo a cavalaria a principal ordem para
ele, temos uma sociedade regulamentada pela nobreza, e sendo essencialmente estática, a
mudança era indesejável. A sociedade era inteiramente dominada pelo passado, pela herança
nobiliárquica, pelos grandes feitos que deixavam seus vestígios no presente, pelos exemplos
dos ancestrais que seriam modelos a serem seguidos. “Se por suas ações eles mudaram a
natureza da monarquia, é através do passado que se transforma o espírito ‘reformador’ do
século XIV”74
Na opinião de Froissart, o conflito anglo-francês não se tratava de um conflito
“nacionalista”. Era o embate entre dois senhores em que um não reconhecia a vassalidade do
outro. Mas eram esses reis os encarregados dos exemplos a serem seguidos pela cavalaria,
uma vez que eram eles o espelho desta. Assim, o rei vinha acima da sociedade75
.
Mas temos ainda uma outra questão: embora Froissart tenha escrito que a sociedade
era estática, ele reconhece que havia um meio de traspô-la – através dos grandes feitos, pela
proeza, extremamente relevada pelo nosso cronista. Dessa forma, os oportunistas, aspirantes e
figuras que não se enquadravam na casta cavalheiresca poderiam ascender, pois havia vários
na sociedade que já haviam ascendido “mais pela proeza do que pela linhagem”76
.
Por outro lado, as pessoas das “castas” inferiores geralmente eram retratadas em
grupos, e principalmente quando estes tinham alguma importância, como no caso da
jacquerie. Mas o cronista também lembra da presença dos arqueiros, dos componentes das
72 GUIMARÃES, Marcella Lopes. “Aljubarrota e as vozes... Op Cit. p. 10 73 http://www.hrionline.ac.uk/onlinefroissart/apparatus.jsp?type=intros&intro=f.intros.PFA-Froissart. Último
acesso em 15/11/11. 74 P.S. Lewis, La France à la fin du Moyen Age (Paris, 1977), 42-3. A citação é uma tradução do francês livre
feita por Guilherme Floriani Saccomori. 75
http://www.hrionline.ac.uk/onlinefroissart/apparatus.jsp?type=intros&intro=f.intros.PFA-Froissart. Último
acesso em 15/11/11. 76 Idem.
22
infantarias, mineiros que acompanhavam os exércitos. Seus relatos sempre tinham a nobreza
em primeiro plano, mas nunca esqueceu completamente da sociedade que a cercava.
2.6 - As características das crônicas de Jean Froissart
Com sua imaginação, Froissart dava características verossímeis (embora não se
tratassem necessariamente da realidade dos fatos, como no caso dos diálogos) à narrativa.
Suas descrições de diálogos revelam o que para o cronista poderia ter sido dito dentro de um
encontro dramático. Ele nos narra os acontecimentos como se pudéssemos visualizar o que
está nos contando, utilizando-se, para isso, de vários recursos. Um deles é seu entendimento
pelo desgaste físico empreendido nas caminhadas dentro de uma campanha, ou do cansaço
causado por uma batalha, e até mesmo passando para o leitor a energia envolvida em um
cenário de conflito.
Froissart se interessava muito pelas relações sociais, fossem elas com cortesia, ódio
ou raiva. Mas era dentro de cenários de batalha que podemos detectar as expressivas
descrições de sentimentos, fossem de medo de ser atingido por uma lança, medo do avanço do
inimigo; sentimentos de bravura, da sede de sangue, da raiva por ver um companheiro morto.
Cristopher Allmand faz um comentário interessante a respeito do sentimento que os ingleses
apresentaram na crônica de Froissart ao fim da batalha de Crécy “[a] alegria e alívio na
vitória conquistada em Crécy devem ter sido paralelas à experienciada pelo jogador de
futebol dos dias de hoje que tem uma vitória inesperada na final de um campeonato”77
Seu texto ainda é dotado de vários efeitos simbólicos interessantes, como descrição
detalhística do terreno, a sensação de se passar por ele, efeitos sonoros que percorriam os
cenários e eventos, movimentos de um protagonista, levando ao leitor ou ouvinte a criar esses
ambientes dentro de sua mente, tornando a narração atrativa, emotiva e marcante. Para
Michael Zink, esse tipo de narrativa, bem como as que retratavam histórias como as do rei
Arthur “... habituou os homens dessa época a refletir sobre o jogo dos acontecimentos
humanos.”78
e era dessa forma que se descreviam as angústias, paixões e afrontamentos do
ser no mundo.79
Assim, Froissart pode ser definido como um cronista pré-arturiano.80
77 ALLMAND, Christopher. The War in the Fourteenth Century… Op. Cit. 78 Tradução do Francês feita por Guilherme Floriani Saccomori de Zink, Froissart et le temps, 53 79
Idem, Ibidem. 80 http://www.hrionline.ac.uk/onlinefroissart/apparatus.jsp?type=intros&intro=f.intros.PFA-Froissart. Último
acesso em 15/11/11
23
Sobretudo, a escrita de Jean Froissart teria mais que um simples sentido, como
detectado por Zink:
Enquanto Froissart anuncia que vai lembrar os grandes feitos cavalheirescos de seu
tempo, ele não pretende fazer um elogio cego ou servil à cavalaria, mas demonstrar
os problemas da época e o sentido da história – sua significação, não sua direção –
através das peripécias da instituição sendo ela mesma a mais dotada de sentido
graças à literatura.81
Froissart tem uma narrativa caracterizada pela presença da guerra, o que dota seu
texto de impetuosidade e unidade ao mesmo tempo, e são as diferentes formas que esses
conflitos se manifestam que interessam a Froissart.82
Independente do que ele está
descrevendo, ele frequentemente dá destaque aos papeis que a força e a violência têm, seja
nos conflitos flamengos, nas incursões inglesas na França ou nos conflitos ibéricos. Ainda que
descreva a guerra como uma atividade muito difícil e perigosa, nos mostra todos os detalhes
que propiciam os acontecimentos desses conflitos – as intermináveis caminhadas, as
travessias de rios, os saques a pequenas vilas e os assaltos sofridos pelos exércitos, bem como
a movimentação de alimentos dentro do exército.
Nosso cronista tem um prazer imenso em dar nomes àqueles cujas proezas ele se
dedica a relatar, e lhes descreve as titulações geralmente em ordem decrescente, quando está
fazendo referência aos presentes numa hoste combatente. Mas também faz menção àqueles
guerreiros mais inferiores que lutaram bravamente e conseguiram feitos exemplares.
Os grandes feitos não necessariamente precisariam ser em terra – sobre a batalha de
Sluys narrada pelo cronista, ele faz menção aos muitos feitos de armas empreendidos pelos
combatentes na difícil circunstância que era combater sobre o mar. Contudo, a cavalaria
sempre foi sua categoria social preferida – todos que lutavam a ela se assemelhavam ou então
não se enquadravam. Ou estavam dentro ou fora. E não escondia sua preferência pela
cavalaria francesa, La fleur de France.83
Ao falar dos arqueiros ingleses, no entanto, Froissart não os desmerece, muito pelo
contrário, reconhece o profissionalismo desse grupo de indivíduos anônimos às suas páginas
que trouxeram enorme sucesso e incontáveis vitórias à Inglaterra. Aprecia sua organização,
coragem e obediência às ordens, numa época em que não era incomum a desorganização de
um ataque de cavalaria. Mas ao mesmo tempo, devia ser duro para Froissart escrever que sua
tão amada e nobre cavalaria sucumbia às flechas dos arqueiros. É curioso ver como ao invés
81
Tradução do francês. Idem, Ibidem 82 ALLMAND, Christopher. The War in the Fourteenth Century… Op. Cit. 83 Idem
24
de odiar os arqueiros ingleses por vencerem a cavalaria de forma não honrosa para ele, ele os
admira por suas qualidades.
2.7 – Um exemplo de crítica a Froissart
Não nos atenhamos apenas àqueles que falam das características boas de Froissart,
pois para termos uma melhor compreensão de nosso cronista, precisamos ver tanto elogios
como críticas. Victor Deodato da Silva84
deixa explícito em vários momentos que não o
considera uma fonte confiável, apontando defeitos de precisão sobre os números que Froissart
coloca nos cálculos dos exércitos. Mas é irônico como, criticando-o, ainda assim baseia
grandes conclusões em cima desta fonte.
Aqui [batalha de Aljubarrota] Froissart somente merece ser levado em consideração
para certos detalhes. Seja pela falta de familiaridade com o contexto ibérico, seja por
problemas de comunicação com os informantes de que dispôs [...] seja por ter feito
anotações não na hora, mas posteriormente aos contatos e daí terem resultado falhas
de memória, o fato é que sua narração é insegura e seus deslizes incomparavelmente
mais numerosos do que os dados comprovados ou, ao menos, verossímeis.85
Mas como já descrevemos anteriormente, Froissart construiu o relato após recolher
testemunhos de pelo menos 3 participantes da batalha, inclusive reescrevendo-o
posteriormente. Mas também, às vezes, comprovadamente, aumentava os números dos
exércitos, isso possivelmente dado sua confiança em alguns arautos que poderiam aumentar o
número dos exércitos inimigos para engrandecer uma vitória.
O momento que ele leva sua crítica mais a fundo é quando fala sobre os números
relacionados na batalha de Aljubarrota. Embora diga que o cronista português Fernão Lopes
falou certa quantidade, o simples fato de Froissart tê-lo dito, faz com que a informação seja
descreditada. A isso dá a entender que tudo o que Froissart diz sobre números é uma falácia:
“Todavia, os 6000 homens indicados por Froissart devem merecer o mesmo crédito que
outras cifras similares por ele fornecidas, isto é, nenhum.”86
Percebemos que Victor Deodato da Silva possui uma opinião em relação à Froissart
– não levá-lo em consideração. Ora, isso aconteceria com qualquer escritor da época, todos
estão sujeitos ao deslizes e imprecisões, uma vez que é complicado lidar com números das
84 SILVA, Victor Deodato da. Cavalaria e nobreza no fim da Idade Media. Belo Horizonte; São Paulo: Ed.
Itatiaia: EDUSP, 1990. 85Idem, p. 162 86 Idem, p.167
25
fontes medievais. E mesmo que o fosse não desmereceria a obra de nosso cronista, o autor é
tido como um grande, se não o mais importante, cronista medieval dentro da França, da
Europa como um todo, e muitos especialistas da batalha de Aljubarrota hoje em dia
reconhecem o valor de suas crônicas.
Seu estilo apaixonado pelo que descrevia estabelecia relações com o leitor, seus
sentimentos demonstram o amor e admiração pela cavalaria medieval, mesmo que ele próprio
estivesse vivenciando sua crise. Essa admiração consegue ser compreendida. Se Froissart
modificou a veracidade em algum trecho, não se deve a distorcer os fatos simplesmente por
objetivos políticos, mas pelo simples fato de atingir o objetivo de escrever uma crônica dotada
de emoção. Ainda assim, está longe de seus relatos serem apenas coisas de sua cabeça, sua
idéia é transmitir às gerações futuras os grandes feitos e sintomas da cavalaria.
26
CAPÍTULO 3
OS SINTOMAS DA CRISE DA CAVALARIA EM JEAN FROISSART:
CRÉCY (1346) E ALJUBARROTA (1385)
3.1 – Os arqueiros em Crécy por Jean Froissart
... então os arqueiros ingleses deram um passo
a frente e deixaram voar suas flechas tão juntas e tão
próximas, que parecia neve - Jean Froissart (1337-
1405)
Em primeiro lugar passaremos à análise da batalha de Crécy, ocorrida em solo
francês, na região da Normandia. O cronista nos relata, na versão A do seu Livro I que nos
utilizaremos para a análise, a campanha – desde a chegada dos ingleses à região, até a tomada
da cidade de Calais, um importante entreposto da região. Nessa incursão, mais da metade da
hoste inglesa era composta por arqueiros, já que a tática empregada contra os escoceses seria
agora utilizada contra os franceses – e testada contra a fleur de France.
A batalha de Crécy é narrada tendo os ingleses como foco, e mesmo assim, Froissart
não deixa os franceses de lado. Esse fator é demonstrado em várias passagens, mas durante a
marcha para Crécy temos essa característica essencial para nosso estudo – durante a batalha
de Caen87
, “e dos arqueiros, que eles não estavam acostumados a ver, tiveram tanto medo e
fugiram em direção da cidade sem qualquer ordem ou direção”88
. A esse ponto o cronista já
demonstra o choque que os franceses tiveram ao ver a quantidade enorme de arqueiros junto
dos ingleses. Não que estes fossem estranhos aos franceses, pois o mesmo Froissart escreveu
sobre outros encontros anteriores como a batalha naval de Sluys entre os franceses e ingleses,
os quais já haviam incorporado vários grupos de arqueiros sob o comando real. Mas dentro do
continente, mesmo que soubessem dessa característica da hoste inglesa, os franceses se
87 Cidade no curso para onde ocorreu a batalha de Crécy. 88
FROISSART, Jean. Chroniques (tradução de John Bourchier, Lord Berners) New York: The Harvard Classics,
1924. P 96. Todas as citações desse livro foram traduzidas do inglês livremente por Guilherme Floriani
Saccomori.
27
amedrontaram frente aos arqueiros ingleses. Com certeza não o medo pelo desconhecimento
dessas tropas, mas medo da morte.
Enquanto os ingleses marchavam de volta para o norte, os franceses já com uma
hoste grande e que aumentava a cada dia89
, marchavam tentando atravessar o Rio Somme e
tentando evitar uma batalha que cada vez mais se apresentava inevitável. Ao atravessarem o
rio Somme houve um prévio conflito conhecido como “Batalha de Blanche-Tache”, em que
os franceses tentaram bloquear a passagem inglesa pelo rio com um grupo de besteiros
genoveses. Desse confronto, Froissart escreve que ““Os Genoveses fizeram um grande
estrago com seus besteiros, por outro lado os arqueiros da Inglaterra atiraram tão
integralmente juntos, que os franceses foram obrigados a ceder para os ingleses.”90
Após o
conflito, o ingleses atravessaram o rio, mas uma batalha de grandes proporções contra os
franceses ainda era inevitável já que os franceses seguiam em seus calcanhares – dessa forma,
escolheram o terreno mais propício para suas táticas e lá esperaram os franceses. Nas
crônicas, Froissart nos apresenta, em discurso direto, a fala do rei inglês demonstrando sua
intenção de dar batalha e pôr um fim na questão de direito às terras francesas:
Vamos achar aqui um pedaço de terra, já que não iremos mais longe até vermos
nossos inimigos. Eu tenho uma boa causa aqui em resistir, uma vez que tenho o
direito de herança pela rainha minha mãe, cuja terra foi dada a ela em casamento: eu
por ela desafiarei meu adversário Felipe de Valois.91
Dessa forma, organizou sua hoste da mesma forma que já havia feito na batalhas com
os escoceses: três batalhões desmontados92
, o primeiro dos batalhões comandado pelo
Príncipe Negro93
, o segundo pelo conde de Northampton e o terceiro pelo rei. Este,
“caminhou para frente e para trás pelas fileiras, gritando e encorajando os condes, barões e
lordes para proteger sua honra e defender seus direitos”94
. Jean Froissart nos apresenta os
89 Idem, P. 99. 90Idem P. 100 91 Idem, p. 101 92 Eduardo III passou a utilizar o combate a pé como uma tática mais estável para defender o território. Mas isso
não significa que abandonaria o combate montado, pois a cavalaria no exército era indispensável principalmente para se socorrer um batalhão que estivesse sofrendo grandes perdas, como se verificou em combates posteriores
a exemplo de Poitiers (1356). No caso da batalha de Crécy, Froissart não relata que os ingleses se utilizaram da
cavalaria. Idem, Ibidem. 93 Froissart segue a relação de todos os nobres que também estavam dentro de cada batalhão. Nesse estudo
estabeleceremos apenas o que ficou reconhecido como comandante dos batalhões e sua composição. 94 He then rode back and forth through the ranks, urging and entreating the earls, barons and knights to protect
his honour and defend his rights. Disponível em:
http://www.hrionline.ac.uk/onlinefroissart/browsey.jsp?pb0=BookI-
Translation_136v&img0=&GlobalMode=facsimile&img0=&pb0=BookI-
28
números da hoste inglesa: no primeiro batalhão - 800 homens de armas95
, 2.000 arqueiros e
outros 1.000 destes sob o comando dos galeses; no segundo batalhão – 800 homens de armas
e 1.200 arqueiros; e o terceiro – 700 homens de armas e 2.000 arqueiros. Visivelmente a
quantidade de arqueiros era superior em qualquer um dos três batalhões.
Froissart relata que o batalhão do Príncipe de Gales se dipôs em herse, ou “formato
de cunha”, com os arqueiros nas laterais. Dessa forma teríamos uma figura desse batalhão
parecida com a seguinte:
onde as laterais seriam preenchidas por arqueiros e o centro com homens de armas. O
que esse tipo de tática poderia fazer dentro de um combate? Primeiramente, os arqueiros
atacariam o flanco inimigo, impelindo-o para o centro. Dessa forma, no momento do choque,
teriam de lutar com os homens de armas e lidar com os ataques dos arqueiros pelos lados. O
formato em herse serviria então para direcionar o inimigo e posteriormente assassiná-lo. E
temos outro fator lembrado por Froissart – os arqueiros estavam protegidos atrás de estacas e
buracos que dificultavam o acesso da cavalaria. Dessa forma, o inimigo a cavalo somente
poderia se dirigir para o centro do batalhão inglês para combater, e ser alvejado sem piedade
pelos flancos. Apenas com um ataque de infantaria é que os arqueiros poderiam ser
confrontados, no entanto, estes colocariam seus arcos de lado e combateriam como uma
infantaria leve e ágil.
Tendo em mente essa característica, passemos ao que aconteceu na batalha relatado
por Froissart. O cronista relata que ao ver os ingleses, “seu sangue mudou” e comandou a seus
marechais que mandassem os besteiros genoveses atacar os ingleses. O ataque de besteiros
Translation_136r&GlobalWord=0&div0=ms.f.transl.BookI-Translation&disp0=pb&GlobalShf=&panes=1.
Último acesso em 15/11/11. 95 Cavaleiros, escudeiros, ou nobres de menor origem social munidos de espadas, lanças, escudos, clavas ou
maças.
29
visava desestruturar a linha inglesa além de trazer perdas aos arqueiros ingleses, bem como
causar pânico. Contudo, relata que os besteiros reclamaram que estavam cansados de marchar
e precisavam descansar mais.
Diagrama da Batalha de Crécy: Extraído de SILVA, Victor Deodato. Cavalaria e
Nobreza no fim da Idade Média. São Paulo: Edusp, 1990. p. 127.
A chuva que então caía parou, e o sol apareceu de frente aos olhos franceses e nas
costas dos ingleses, dificultando ainda mais a visão dos cavaleiros da flor-de-lis. Essa chuva
que caiu anteriormente também teria uma importância considerável, pois as cordas das bestas
dos genoveses ficariam encharcada, enquanto os arqueiros ingleses de alguma forma
guardaram suas cordas durante a chuva, e na hora do combate as retiraram, secas. Com as
cordas molhadas, os besteiros genoveses perderam eficácia e alcance de seus disparos.
À provocação e xingamentos genoveses, Froissart demonstra a disciplina dos
arqueiros ingleses – não mexeram um único pé96
. Essa disciplina foi crucial, pois se fosse
desobedecida seguir-se-ia a desestruturação das linhas e da tática de batalha. Bom para os
96 FROISSART, Jean. Chroniques... op Cit. p. 103.
30
ingleses, já que os arqueiros mantiveram a disciplina ao longo de todo o combate. Quando os
genoveses entraram então na linha de tiro, “... então os arqueiros ingleses deram um passo a
frente e deixaram voar suas flechas tão juntas e tão próximas, que parecia neve”97
. Esse
ataque dos ingleses deve ter sido terrível, pois se imagina que pelo menos 7.200 arqueiros
estivessem combatendo, e que após 3 ou 4 ataques sincronizados seguir-se-ia o famoso “fire
as will”98
. Com toda essa quantidade de flechas, seria praticamente impossível não ser
atingido, mesmo que por uma flechada não-mortal.
Ao pânico e à fuga dos genoveses, seguiu-se o ataque irado dos franceses contra seus
mercenários italianos ao mesmo tempo que partiam em direção dos ingleses, sendo os
genoveses atropelados e pisoteados. Mas esse massacre dos mercenários destruiu qualquer
linha que havia entre os cavaleiros franceses, que ao chegarem na linha de tiro inglesa, fora
massacrados. Aqueles que chegavam às linhas inglesas eram vencidos pelos lanceiros e
homens de armas. “as afiadas flechas corriam entre os homens de armas e seus cavalos, e
muitos caíam, cavalo e homem, entre os genoveses”99
. Alguns dos ingleses se atreveram até a
ir até os moribundos e matá-los.
Muitos dos nobres franceses e seus aliados foram mortos nessa investida da cavalaria
enraivecida. Os outros ataques franceses tiveram o mesmo destino – muitos pereciam no
caminho de encontro ao inimigo pelas flechas inglesas, os que chegavam tinham de encarar
tropas bem posicionadas e prontas para matar, já que não se objetivava fazer prisioneiros
“Pois não houve nenhum tomado por misericórdia ou resgate, pois os ingleses estavam
determinados.”100
. O resultado não poderia ser outro – vitória inglesa.
Froissart não poderia relatar esse episódio de outra forma: uma chacina de franceses,
mais uma derrota marcante para a cavalaria francesa desde Courtrai. E ainda destaca bem que
os nobres eram mortos por flechas.
Nesse Sábado os ingleses nunca saíram de seus batalhões para perseguir nenhum
homem, mas mantiveram seu campo, e sempre defenderam a si mesmos contra
qualquer um que tentasse assaltá-los. Essa batalha terminou em torno da hora da
reza da tarde101
.
97 Idem, Ibidem. 98 A expressão fire para significar “atirar” veio somente após a introdução das armas de fogo. Mas a expressão
para exemplificarmos é a mais próxima. Nessa época, a provável expressão para significar “atirar” deveria ser
loose. 99
Idem, Ibidem. 100 Idem, p. 104. 101 Idem, p. 105
31
Para Chritopher Allmand, Froissart deixa bem claro porque os ingleses venceram a
batalha. Ele faria isso indiretamente ao mostrar as divisões fatais no comando francês, a falta
de uma liderança dentro da batalha, uma vez que os cavaleiros estavam lutando apenas para
vencer e conseguir honra, gerando uma situação confusa no que diz respeito a comandos e
manobras de batalha. Por outro lado, a disciplina inglesa foi exemplar como apontada em
vários trechos vistos anteriormente. Ainda, a preparação do terreno, a posição defensiva
inglesa e a evidência de que cada um sabia o que fazer na hora do combate fez a
diferença.102
Contrastando com isso, temos os franceses teimosos para combater e derrotar os
invasores de uma vez, ignorando esperar por uma posição favorável ao ataque. A
conseqüência disso foi, para Froissart, a habilidade que os arqueiros ingleses tiveram em
romper com qualquer organização francesa.
Para Victor Deodato da Silva, Froissart, que se propunha em suas crônicas a narrar
os grandes feitos da cavalaria, se mostra perturbado quanto à ação dos arqueiros em meios tão
pouco cavalheirescos, citando o momento do massacre dos genoveses tanto pelos arqueiros
ingleses quando pela cavalaria francesa, e a consecutiva chacina da cavalaria francesa que se
seguiu pelas flechas inglesas.103
3.2 - Os arqueiros em Aljubarrota por Jean Froissart
Vou relatar a você o mais maravilhoso e
afortunado triunfo que um rei de Portugal teve durante
duzentos anos – Jean Froissart (1337-1405)
A batalha de Aljubarrota foi narrada por 4 cronistas: o espanhol Pero Lopez Ayala, o
português Fernão Lopes, um autor anônimo da “Crônica do Condestabre” e pelo francês Jean
Froissart. Aqui, não iremos comparar uma crônica à outra ou nos utilizarmos delas neste
momento, pois nos ateremos ao relato de Jean Froissart para abordar qual foi sua visão sobre a
batalha. Dentro do Livro III104
, os capítulos narrados por Jean Froissart a respeito de
Aljubarrota são o 19, 20 e 21. No entanto, a partir de uma entrevista posterior com Laurenço
Fogaça, tem-se a transcrição do diálogo deste ao contar ao duque inglês de Lancaster sobre a
102 ALLMAND, Christopher. The War in the Fourteenth Century… Op. Cit. 103 SILVA, Victor Deodato da. Cavalaria e nobreza no fim da Idade Media. Belo Horizonte; São Paulo: Ed.
Itatiaia: EDUSP, 1990. pp 129-30. 104
Disponível em http://www.hrionline.ac.uk/onlinefroissart/index.jsp. As citações extraídas desse sítio foram
traduzidas do inglês livremente por Guilherme Floriani Saccomori. As citações foram organizadas a partir das
folios do site, sendo r a primeira página da folio, e v a segunda.
32
batalha, no capítulo 32, no qual faz praticamente nenhuma menção aos arqueiros – a não ser a
de que eles estavam presentes lá.
Seguindo a análise da fonte, temos que o então rei português, D. João, anteriormente
mestre de Avis, estava empreendendo uma campanha pelo norte de Portugal para fazer frente
às tropas castelhanas que não reconheciam sua recente entronização. Antes de Aljubarrota,
houve uma refrega conhecida como “Batalha de Trancoso”, de pequenas proporções, mas
onde os lusos haviam vencido 300 ginetes castelhanos integrantes da alta nobreza, o que
significava perdas de muitos capitães para Castela105
.
Como bem nos relata João Gouveia Monteiro, posteriormente o rei português D.
João I, a fim de se chocar contra os castelhanos, escolheu um terreno propício para combater e
ali esperou que seus inimigos viessem enfrentá-lo. Com isso, uma batalha de grandes
proporções que daria fim de uma vez ao conflito, mesmo que arriscado, que se estabeleceu a
partir de sua entronização. Ao se ganhar a batalha não se ganharia a guerra, mas impactaria de
tal forma que seus inimigos estariam extremamente enfraquecidos (ou Portugal perderia suas
principais tropas e estaria aberto à campanha castelhana, caso os lusos perdessem).106
Alguns
trechos das crônicas de Froissart reforçam essa teoria, como o discurso do rei de Portugal:
“(...) Eu te digo, Sir Gomez, ordene a nossos homens que se preparem pois iremos cavalgar
em breve e enfrentar nossos inimigos, e dessa vez ou nós iremos ganhar tudo ou perder
tudo.”107
. Já para os castelhanos, a mesma ideia de se batalhar e dar fim a esse impasse se
verifica nas crônicas:
Esses lisboetas são homens bravos por virem e lutarem conosco. Vamos
rapidamente rumar para os campos e cercá-los antes de voltarem para sua cidade, se
formos capazes. Se isso der certo, eles nunca colocarão os pés em Lisboa
novamente108
.
Froissart lança um comentário honroso sobre a decisão dos portugueses: “(…) seria
preferível invadir [a cidade de Santarém] e dar batalha a eles [castelhanos] do que deixar
que seus inimigos caíssem sobre eles”109
.Mas principalmente, um ponto que se destaca em
nosso estudo é a análise que o cronista faz a partir dos outros conflitos entre franceses e
ingleses, presentes ao lado dos castelhanos e portugueses, respectivamente:
105 SILVA, Victor Deodato da. Cavalaria e nobreza no fim da Idade Media. Belo Horizonte; São Paulo: Ed.
Itatiaia: EDUSP, 1990. Pp 159-60. 106 MONTEIRO, João Gouveia. Entre Romanos, Cruzados e Ordens Militares. Coimbra: Ed. Salamanca, 2010. 107
235v 108 236v 109 236r
33
Em quase todas as vitórias em que os ingleses tiveram na França sobre os franceses,
os ingleses saíram à procura de batalha, porque uma hoste é naturalmente mais forte
e mais motivada quando atacando do que quando defendendo.110
Mas anteriormente a isso, tratemos do foco de nossa discussão – a presença dos
arqueiros na batalha. Ora, no início do capítulo 19, há o relato de que o rei espanhol soube da
chegada de 3 enormes embarcações carregando arqueiros ingleses haviam desembarcado no
porto de Lisboa, que recém havia se livrado de um cerco prolongado. Esses arqueiros eram
em torno de 500 no total, geralmente em busca de aventuras em algum local que pudesse
pagá-los, e encontraram chances de lutar sob o comando português. Um detalhe curioso é que
esse grupo de arqueiros não havia sido demandado por ninguém, e que segundo Froissart, eles
mesmo resolveram ir para Lisboa: “Vamos sair atrás de aventura em Portugal. Lá vamos
encontrar alguém que tope e nos contrate”111
. Para os portugueses, foi motivo de alegria,
tanto que o rei João I “estava encantado e ansioso por vê-los”112
O rei português, sob conselhos daqueles que o haviam ajudado a pôr a coroa de
Portugal, partiu para Santarém com uma hoste, como dito anteriormente, a fim de dar batalha.
Froissart relata que os arqueiros ingleses ficaram empolgados, e cada um arrumou suas armas
e provisões para partir113
.
Até aqui já é possível observar como os arqueiros ingleses ganharam uma
característica personificadora, mesmo sendo um grupo. Froissart sabia da importância que
estes tiveram nas batalhas anteriores contra os franceses, bem como teriam em Aljubarrota,
mas agora esse grupo de ingleses teria emoções, ações importantes a serem relatadas, mesmo
sendo mercenários estrangeiros e, vejam só, não sendo cavaleiros!
Podemos imaginar o que causaria essa mudança nos planos de Jean Froissart – relatar
os grandes feitos de armas da cavalaria – seria este um sintoma de que mais alguma coisa
havia mudado em sua forma de pensar os combates de sua época? Froissart conhecia a
importância dos arqueiros nas batalhas, talvez por isso tenha dado uma característica de
personagem nessa sua crônica. Os arqueiros não eram mais meros participantes ou simples
mercenários – eles influíam no curso da ação militar.
110 Idem, Ibidem. 111
235r 112 Idem, Ibidem. 113 236v
34
Voltando à crônica, ao chegar à região próxima do planalto de São Jorge, o rei pediu
conselhos aos ingleses – o que eles recomendariam, já que se tratava de um conflito em que
estariam em desvantagem de 4 para 1. Ao que Froissart narra a resposta dos ingleses:
Uma vez que a batalha é agora inevitável e eles são mais numerosos que nós, será
um combate desigual. Então nós podemos apenas vencer o dia estabelecendo algum
tipo de vantagem. Se tu sabes de algum lugar próximo daqui onde haja uma
vantagem de cercas-viva ou arbustos, leve-nos lá. Uma vez lá nós devemos nos
fortificar de uma maneira a qual tu verás, e não será tão fácil para eles nos
alcançarem como se fosse em campo aberto.114
Essa estratégia foi a mesma utilizada em Poitiers (1356) e era a maneira de combate
recorrente das tropas inglesas durante essa época – a construção de buracos, posicionamento
atrás de cercas-viva e estacas no chão, construção de pequenos diques, tudo para dificultar o
acesso da cavalaria.
Então eles cortaram árvores à beira dos campos e, viradas para o inimigo,
colocaram-nas transversais de maneira que não pudessem atravessá-la diretamente,
deixando um espaço para se passar que, contudo, não tivesse uma entrada muito
grande. Eles posicionaram os arqueiros e besteiros que havia nas alas desse
caminho. Os homens de armas foram comandados a desmontar no campo. 115
O primeiro ataque da hoste franco-castelhana foi da vanguarda francesa, que
impacientemente correu à frente das tropas de Castela e atacou isoladamente os portugueses.
Mas, caíram na armadilha – foram atacar justamente o local que os ingleses haviam protegido,
e com isso as tropas portuguesas vieram socorrer as alas enquanto arqueiros e besteiros
massacravam os cavaleiros encurralados116
.
Não se pode dizer que os cavaleiros da França, Bretanha, Borgonha e Béam não
lutaram com a maior das coragens, mas seu primeiro avanço foi suprimido, graças
ao conselho adotado dos ingleses em fortificar o local.117
Já os castelhanos, longe e sem poderem ver o que havia acontecido, decidiram atacar
para ter parte da glória em vencer os portugueses. Também julgaram que encontrariam os
lusos cansados do prévio combate com a vanguarda francesa. Quando os portugueses
souberam do avanço castelhano, acabaram tendo de assassinar os prisioneiros, já que, como
114 237r 115
237v 116 238v 117 240v
35
Froissart relata – era melhor matar do que ser morto.118
“Um homem não deve jamais confiar
em seu inimigo” 119
.
Com os castelhanos se sucedeu a mesma tática – caíram na armadilha dos ingleses, e
apenas com uma primeira saraivada de flechas, muitos foram mortos. E nem entenderam
muito bem o que aconteceu – muitos não sabiam nem onde havia ido parar a vanguarda
francesa que atacara anteriormente.
Por fim, Castela estava derrotada após apenas duas horas de combate, juntamente
com a fleur da cavalaria francesa, derrotada e parte assassinada. Ao fim de tudo, a análise que
Froissart atribui ao sucesso e à salvação das tropas portuguesas é que ela só foi possível
graças à estratégia inglesa de colocar entraves ao inimigo e enquanto o mesmo tentava
entender o que acontecia, atacá-lo de todas as formas possíveis, com flechas, espadas, maças e
lanças.
118
Esse fator se repetiu na batalha de Agincourt, em 1415, de assassinato de prisioneiros para que esses não se
juntassem aos novos atacantes e derrotassem os captores por dentro das linhas. 119 241r
36
CONCLUSÃO
O período conhecido como Baixa Idade Média, lembrado por profundas mudanças
econômicas, sociais e culturais, também foi palco de importantes transformações nas maneiras
de se guerrear. Dentro de nosso estudo, conseguimos abordar diversas questões que
demonstrassem a importância que o arco-longo inglês – longbow – teve dentro dessas
alterações.
Ao apontar o caráter militar inglês desde Eduardo I de Inglaterra (1272-1307) até o
reinado de Henrique V (1413-1422), verificamos o surgimento desse novo modo de batalha,
baseado no maciço uso dos longbowmen, até seu ápice, que nesse estudo entendemos como
sendo até a campanha e batalha de Agincourt (1415). Ainda, o entendimento da estruturação e
organização, perpassando pelas principais batalhas do fim do XIII, século XIV e início do
XV, nos deu um bom panorama para verificar a importância da utilização dos arqueiros pelo
exército inglês. Dessa forma, conseguimos relacionar esse panorama militar com nossa fonte,
as crônicas de Jean Froissart.
Foi possível perceber os efeitos que teve esse novo modo de batalha inglês sobre
seus inimigos – principalmente efeitos morais. Primeiramente pela ameaça ao antigo sistema
de batalha cavalheiresco que se via intimidado pelo recrutamento maciço de um corpo militar
que, até então, era apenas auxiliar dentro dos combates. Também, verificamos o efeito
amedrontador que o ataque em massa dos arqueiros tinha, em que, como visto nas fontes, uma
chuva de flechas lançada tão densamente sobre seus inimigos fazia com que poucos
conseguissem escapar dela, mesmo que não fossem atingidos mortalmente.
Dessa forma, as contramedidas por parte dos inimigos – principalmente os franceses
– foram reforçar as armaduras pessoais e dos cavalos, para que estes não fossem atingidos a
caminho do choque entre as hostes. Mas essas novas armaduras eram extremamente pesadas,
e mais uma vez os arqueiros, com quase nenhuma proteção corporal a não ser coletes de
couro, tinham vantagem na agilidade para matar seus inimigos com facas, maças e porretes
para amassar os capacetes. Portanto, assim como a introdução de arqueiros dentro de um
37
corpo militar foi uma ação contra o modo cavalheiresco de combate, utilizar armaduras mais
pesadas e impenetráveis foi uma reação para tentar nulificar a penetração das flechas.
Com isso, percebemos que os ingleses romperam com o modo de batalha feudal,
baseado na cavalaria. Fundamentando nossa pesquisa nos conceitos de guerre guérreable e
guerre mortelle120
que extraímos de Victor Deodato da Silva, podemos demonstrar que a
batalha feudal, baseada no combate entre iguais que visavam conseguir grandes feitos através
da proeza, sofreu alterações ao se abordar um tipo de guerra que visava mais o resultado da
batalha do que a forma de se atingi-la. Isso ocorreu principalmente porque a maior parte
daqueles que guerreavam agora não eram mais os nobres, e sim mercenários ou peões,
pessoas que não seriam capturadas para serem trocadas por um resgate – logo, se seriam
mortas, defendiam-se de forma a matar o inimigo também.
Ainda, num combate em que os ingleses trouxessem uma quantidade enorme de
arqueiros, uma chuva de flechas não distinguia alvos ou calculava para não feri-los
mortalmente, logo, morrer era uma possibilidade muito grande. De uma guerre guérreable
que não visava matar o inimigo e sim capturá-lo, transita-se para a guerre mortelle, em que se
busca a vitória de qualquer forma. A partir disso, os combates cavalheirescos vão se tornando
cada vez mais raros, até entrarem em decadência dada a criação de exércitos nacionais. A
nobreza deixa de lutar, pois a guerra passa a ser arriscada demais.
Junto dessa decadência do combate montado, dá-se a introdução da pólvora nos
combates, com canhões e posteriormente com fuzis. E isso não ocorreu apenas porque a
pólvora chegou ao Ocidente, pois aí já estava há muito tempo, é que ela não era bem vista
como uma arma de guerra dentro de um combate entre os cavaleiros. Uma vez que se perdeu
o código de cavalaria para se lutar, é que se poderia dar o início da frase: “no amor e na guerra
vale tudo”. Valia tudo para vencer.
Podemos dizer que os arqueiros foram a ponte entre a guerra medieval e a guerra
moderna, uma vez que foram os eles quem barraram os cavaleiros de continuar sua busca
pelos grandes feitos dentro das mais importantes batalhas do contexto da Guerra dos Cem
Anos. Esses mesmos arqueiros, que seriam posteriormente substituídos pelas armas de fogo.
Mas algumas perguntas ainda permanecem. Uma vez que estudamos e analisamos os
relatos de batalha de Jean Froissart a respeito das batalhas de Crécy e Aljubarrota onde houve
um espaço de tempo relativamente grande (39 anos) para que ocorressem essas
transformações no comportamento militar dos guerreiros medievais, bem como do próprio
120 SILVA, Victor Deodato da. Cavalaria e nobreza no fim da Idade Media. Op. Cit... P. 185.
38
Froissart, seria interessante que verificássemos outras batalhas desse transcurso, como Poitiers
(1356) e Nájera (1367), para entendermos como, aos poucos, o cronista foi verificando essas
mudanças e mudando seus próprios conceitos no que diz respeito às batalhas. Até porque, o
espaço de tempo em que Froissart escreveu o Livro I, de Crécy, e o Livro III, de Aljubarrota,
foi de 18 anos.121
A respeito disso, vimos que de Crécy para Aljubarrota, Froissart já apresenta certas
mudanças: dá características de um personagem - diálogos, pensamentos e sentimentos aos
arqueiros. Sua visão a respeito desses guerreiros sofre uma mudança muito importante, pois,
se ele mesmo se propõe em seu prólogo a relatar os grandes feitos, qual a importância que a
presença dos arqueiros teria dentro das guerras que mereceu ser relatada? Houve uma inflexão
então na forma de ver a guerra para Jean Froissart?
A partir de um estudo que não visava estudar uma história militar por si mesma,
podemos detectar várias características que marcam esse período. Seja pela rivalidade franco-
inglesa, também luso-castelhana, foi um estudo que demonstrou como a guerra estava
intimamente ligada a todos os setores dentro da sociedade da Baixa Idade Média, e que ao se
alterar uma forma de combate, se alterariam outros aspectos dessa sociedade.
121 1373 a 1391.
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-http://www.hrionline.ac.uk/onlinefroissart/index.jsp (site dedicado a estudos sobre Jean
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