Dissertao de Mestrado apresentada no Museu
de Arqueologia e Etnologia da Universidade de
So Paulo como parte integrante do Programa de
Ps-Graduao em Arqueologia.
Arqueologia Regional da
Provncia Crstica do Alto So Francisco:
um estudo das tradies ceramistas Una e Sapuca
Gilmar Pinheiro Henriques Jnior
Prof. Dr. Eduardo Ges Neves
Orientando
Orientador
USP
Arqueologia Regional da Provncia Crstica do Alto So Francisco:
um estudo das tradies ceramistas Una e Sapuca.
Dissertao de Mestrado apresentada no Programa de Ps-Graduao do
Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de So Paulo
MAE-USP
Orientando: Gilmar Pinheiro Henriques Jnior
Orientador:
Prof. Dr. Eduardo Ges Neves
Banca Examinadora:
(Titulares) Prof. Dr. Ondemar Dias Jr.
Profa. Dra. Mrcia Angelina Alves (Suplente)
Prof. Dr. Levy Figuti
Realizado com o apoio do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico CNPq - Brasil
Processo no.: 133015/2002-3 Bolsa de Formao de Pesquisador de Mestrado
Belo Horizonte, Maro de 2006.
Agradecimentos:
Fico muito feliz em poder afirmar que este trabalho foi feito com a ajuda sincera de um grande
nmero de pessoas, a todas elas sou grato de corao, a Alexandre Pizarro, Luclio Nativo (Celin) e
Jefferson Lus pelos primeiros conhecimentos sobre a Provncia, a Flvio Scallabrini (Boco) por ter
viabilizado a primeira visita de meu orientador regio, ao Cyro Jos pelas belas fotos e capa deste
trabalho, a Marcos E. Brito pelos mapas e topografia, a Leandro da Silva (Merrinha-2), Mrcio Walter,
Eduardo Haddad, Helena Pinto Lima, Bernardo Lacale, Pedro Teixeira (Meu Pedro Primo), Jader Oliveira,
Diego Villareal e Carlos Eduardo pela fora no campo, a Miguel Villareal (Panamenho) por toda logstica, a
Tnia Villareal pela simpatia e pela maionese do churrasco, ao Sr. Dingenis Koole pela ajuda na abertura
do campo 2003 (noite de chuva feia), ao Espeleo Grupo Pains (EPA), Fernando Gallo Frigo, Luciano Versiani, e
Robson Adriano pela acessoria espeleolgica, a Dona Ela e ao N pela estica boa vontade com os
arquelogos, ao Daniel da Faz. Engenho de Serra por todo o auxlio durante a escavao da casa
subterrnea, ao Edgar da Faz. Engenho de Serra por ter me levado a conhecer uma casa subterrnea ( um
vestgio, ou no um vestgio?), a Alexandre Robazzini, Sarah e Thiago, pela ajuda na lavagem do material, a
Charles Freitas pela fora com a cartografia, a Joo Pulier pela topografia, ao Sr. Crispim pelos timos
causos e boa janta (Essa vida boa demais...), a toda moada de Pains por todas as festanas, em especial a
Zez, Drinho, Virgulino, Felipe, Merrinha, Dbora, Bianca e Dalaile, a Marcos Campello (Punk!) pela ajuda
da MC, a Ana Leal e Geraldo Henriques pela ajuda da GPH Representaes, a Lucas e Genaro Villareal,
pela fora com as bandeirinhas, aos altiplanos da Etipia e da ndia, ao Ricardo (Moma) pelas dicas sobre as
fotos da Embrapa, ao Fernando (Rodney) e Rafael Pedotti (Garotinho) pela fora com o material cermico, ao
Clyde pela ajuda com as fotos da lupa, ao Cludio Rogrio (Tarzanzinho) que cobriu nossa retirada de campo
em 2003, ao Sr. Sidney, proprietrio da Faz. Engenho de Serra, que cordialmente acolheu nosso trabalho
no stio homnimo, ao casal Sr. Manoel e Sra. Matildes Rodrigues, proprietrios da Fazenda Engenho de
Serra, aonde se localiza o stio Man-do-Juquinha, a Vicente Lau pela escada de madeira e pelo feijo, ao
Prof. Dr. Levy Figuti pelo ponta-p inicial com o material faunstico e pelas sugestes feitas na banca de
qualificao, a Renato Kipnis por analisar o material faunstico, a Paulo Srgio e Ubaldina (IBAMA/CECAV)
pelo acompanhamento dos trabalhos, a Rafael Bartolomucci e Profa. Dra. Sabine Eggers. Trs pessoas
foram fundamentais para o planejamento e execuo deste projeto: meu orientador, Eduardo Ges Neves,
e meus colegas, Fernando Costa e Edward Koole.
Este trabalho dedicado aos meus pais Zlia e Gilmar
"Ir, por caminhos de caatinga e de Gerais, semideiros, cortar matos, queimar campos, levar gado de cristo, dizer seu nome. Pra qu? S estamos repisando o que foi do bugre. Quem picou as primeiras terras?"
Joo Guimares Rosa Uma Estria de Amor
ndice
I. Introduo.................................................................................................................................1
II. Localizao da rea de pesquisa............................................................................................1
III. Meio Ambiente..........................................................................................................................3
IV. Objetivos.................................................................................................................................10
V. Justificativa.............................................................................................................................11
V.I. Histrico das Pesquisas............................................................................................11
V.II. Histria Indgena........................................................................................................13
V.III. O Levantamento de stios arqueolgicos................................................................21
VI. Os Stios Arqueolgicos Trabalhados..................................................................................25
VI.I. Stio Arqueolgico Man do Juquinha.....................................................................25
VI.II. Trabalhos de Campo..................................................................................................29
VI.II.I. Gruta Leste Sondagem 1.............................................................................34
VI.II.II. Unidades 2, 3 e 4.............................................................................................35
VI.II.III. Unidades 5 e 6................................................................................................36
VI.II.IV. Unidades 7, 8 e 9...........................................................................................38
VI.II.V. Unidade 10......................................................................................................38
VI.II.VI. Gruta Norte Sondagem 1...........................................................................39
VI.III. Stio Arqueolgico Engenho de Serra......................................................................40
VI.IV. Trabalhos de Campo..................................................................................................43
VII. Anlise Cermica....................................................................................................................46
VII.I. Metodologia de Anlise.............................................................................................49
VII.II. Resultados..................................................................................................................52
VII.III. Reconstituies.........................................................................................................64
VIII. Dataes................................................................................................................................69
IX. Concluso...............................................................................................................................70
X. Bibliografia.............................................................................................................................75
Anexo I Ficha de Anlise Cermica
Anexo II Relatrio das dataes do stio arqueolgico Mane do Juquinha
Anexo III Relatrio das dataes dos stios arqueolgicos Engenho de Serra e Loca do Suim
RESUMO
Este projeto consiste em um estudo das ocupaes de horticultores ceramistas na Provncia
Crstica do Alto So Francisco, na poro sudoeste do Estado de Minas Gerais. Atravs de um
levantamento sistemtico de aspectos topogrficos e paisagsticos foram selecionados dois stios
arqueolgicos para sofrerem intervenes. Partindo de um estudo tcnico e estilstico dos materiais
cermicos coletados em cada um deles foi possvel levantar uma srie de fatores comuns entre as
chamadas tradies cermicas Una e Sapuca. Dataes radiocarbnicas obtidas a partir de
carves, coletados nestes stios, tambm foram importantes no sentido de situar cronologicamente
estas manifestaes culturais. Foi feito um levantamento etnohistrico para a regio a fim de
encontrar pistas dos portadores destas tradies que, porventura entraram em contato com os
exploradores europeus, visto que vrios trabalhos acadmicos, nacionais e internacionais, apontam
o Alto So Francisco como rea de domnio da temvel nao Catagu, que teria ocupado este
territrio ao longo dos sculos XVI e XVII. Com base nesta srie de dados obtidos com estas
diferentes etapas de trabalho, defendo uma unicidade entre as duas tradies ceramistas.
Palavras chave: Pr-histria, Minas Gerais, carste, horticultura, cermica.
ABSTRACT
This project makes a study about the prehistoric occupations of making pottery groups of the Upper
So Francisco Carstic Province, in the southwest portion of the Minas Gerais State. Two
archaeological sites had been selected for excavations, this selection was preceded by systematic
surveys which attempted to the topographic and landscapes aspects of each place visited. A range
of commons characters between the so called pottery traditions Una and Sapuca, emerges from a
technical and stylistic study of the potsherds collected in each one of these sites. Radiocarbon dates
gained from collected charcoals in both sites were very important in a way of situate these cultural
manifestations in a chronological scale. We made a etnohistory survey for the region, thence a
number of national and international studies presents the Upper So Francisco as an area under the
domination of the dreadful Catagu nation, which had been occupied along the XVI and XVII
centuries. I claim for a straight connection between these two pottery traditions, based on a rank of
data achieved with such different stages of investigation.
Key-words: Prehistory, Minas Gerais, carst, horticulture, pottery.
1
I. INTRODUO Esta dissertao discute as relaes tecno-tipolgicas entre os complexos
cermicos Una e Sapuca, na Provncia Crstica do Alto So Francisco, Sudoeste do
Estado de Minas Gerais. Acreditamos que a associao de materiais dessas duas
tradies cermicas, supostamente distintas, misturados na superfcie de dois stios
arqueolgicos, selecionados para o estudo desta dissertao, seria resultante da
ocupao contnua desses locais por grupos portadores de uma cultura material
comum.
Para obter elementos que possibilitassem a avaliao desses problemas,
propusemos o mapeamento, coleta de superfcie e abertura de escavaes em dois
stios arqueolgicos. Um dos stios ocupa um ambiente abrigado caracterizado por
cavernas e diclases, e est localizado na sub-bacia do rio So Miguel; o outro stio
ocupa um ambiente a cu aberto, e localiza-se na zona de transio entre as bacias do
Ribeiro dos Patos e rio So Miguel.
II. A REA DE PESQUISA A Provncia Crstica do Alto So Francisco possui aproximadamente 1500 km.
Localiza-se no Sudoeste do Estado de Minas Gerais, englobando a totalidade dos
municpios de Pains e Dorespolis, alm de partes dos municpios de Arcos, Crrego
Fundo, Formiga, Iguatama, Pimenta e Piumh (Fig. 1). A rea foi delimitada depois de
um levantamento sistemtico de stios arqueolgicos, que comeou em 1999 e perdura
at os dias de hoje. Os esforos foram centrados nas regies que compartilham
semelhanas geomorfolgicas, no caso os inmeros vales dos tributrios da margem
direita do rio So Francisco aonde se encontram exumados os macios calcrios da
supergrupo Bambu. Esta regio possui centenas de locais que guardam vestgios
arqueolgicos de culturas pr-histricas. Estes vestgios, quando analisados a partir de
uma escala regional, possuem uma srie de aspectos comuns, representada no
material ltico, na pintura rupestre e, sobretudo na cermica. Esta dissertao busca
demonstrar as semelhanas existentes neste ltimo tipo de vestgio. O mapa abaixo
traz um traado preliminar da hidrografia, bem como da delimitao dos principais
conjuntos de macios calcrios. Est assinalada a localizao de cada um dos stios
arqueolgicos com presena de material cermico pr-histrico, sendo destacados os
stios analisados nesta dissertao.
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3
III. Meio Ambiente
Porque todos os crregos aqui so misteriosos somem-se solo a dentro, de repente, em fendas de calcreo, viajando, ora lguas, nos leitos
subterrneos, e apontando, muito adiante, num arroto ou numa cascata de rasgo.
(G. Rosa, Sagarana)
A Provncia Crstica do Alto So Francisco, tambm denominada Carste de
Arcos, Pains e Dorespolis ou Provncia Carbontica Espeleolgica de Arcos, Pains e
Dorespolis, est localizada na borda Sudoeste do Crton do So Francisco sobre uma
seqncia neoproterozica metapeltica de rochas carbonticas do Grupo Bambu
(Menegasse et al 2002). Est limitada a sul e oeste por pelitos, a norte por psamo-
pelitos, a sudoeste por quartzitos e milonitos do Grupo Canastra, alm da Seqncia
Vulcano-Sedimentar de Piun- e a leste pelo embasamento Grantico-Gnissico de
Formiga-Candeias (Pizarro 1998, Pizarro et alii 2001).
Fig. 1.
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Fig. 2.
Mapa geolgico estrutural simplificado da poro Sudoeste da bacia do Alto So Francisco. As linhas onduladas indicam os traos estruturais dos dobramentos que deformaram as rochas do grupo Bambu, atingindo as reas dos municpios de Dorespolis e Pains, assinalados pelo nmero . As linhas de trao reto indicam falhas transcorrentes destrais, enquanto as setas indicam a direo da movimentao dos compartimentos. Notar que a regio a leste, onde se localiza o municpio de Lagoa da Prata, indicada pela letra
no foi afetada pelos dobramentos (Muzzi & Magalhes 1989 apud: Alkmim & Martins-Neto 2001:18).
Seo Geolgica da Provncia, cuja localizao pode ser vista no mapa . A rea estudada por nosso projeto est delimitada a oeste pela sobre a qual se assenta o municpio de Bambu, e a leste pelo Embasamento Cratnico, sobre o qual se assenta parte do municpio de Arcos. Novamente as linhas onduladas indicam as estruturas de dobramentos que deformaram os pelitos do Grupo Bambu (Muzzi & Magalhes 1989 apud: Alkmim & Martins-Neto 2001:18).
intrusiva alcalina,
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Fig.2
Quanto caracterizao geolgica, a regio estudada caracterizada pela
ocorrncia de rochas carbonticas e silto-argilosas pertencentes ao Grupo Bambu
(Proterozico Superior) no limite sudoeste da poro sul do Crton do So Francisco,
em contato com a faixa de dobramentos Braslia, desenvolvida no Ciclo Brasiliano.
4
Considerando-se os dados da estao meteorolgica mais prxima da rea de
estudo (Bambu), a classificao climtica de Kppen do tipo Cwa, clima temperado
brando com vero quente e mido e inverno seco. A temperatura mdia anual de
20,7C, sendo julho o ms mais frio, com temperatura mdia de 16,3C. A precipitao
mdia anual local de 1344mm.
O clima tropical local marcado pela sazonalidade da dinmica hdrica regional,
modificando significativamente as paisagens, visto que grande poro da regio
coberta por uma vegetao de porte arbreo. No passado a Provncia era denominada
como Mata de Pains (Vieira 2001). H um predomnio da floresta estacional
semidecidual, na base e entre os afloramentos calcrios, e a floresta estacional
decidual, abrangendo as matas secas sobre os afloramentos. A sua principal
caracterstica uma fisionomia sempre verde nos meses chuvosos, ao passo que
ganha uma aparncia de completa seca no perodo de estiagem.
A combinao dos macios calcrios com a mata fechada gera um ambiente
mido e de penumbra. Acrescente-se o fato da rea se configurar como uma
depresso limitada a oeste pela Serra da Canastra, a Leste pelo embasamento
cratnico (ver perfil geolgico acima) e a sul pelo divisor de guas das bacias do rio
Grande e So Francisco. Devido degradao ocasionada por mais de trs sculos de
agropecuria, difcil encontrar pores da mata nativa que cobria o solo da regio,
preenchendo os espaos por entre os macios calcrios. Isto s possvel naqueles
locais que possuam atributos que vedaram a passagem de maquinrios agrcolas ou a
retirada de madeira. A explorao predatria da mata de ento se exemplifica no
grande nmero de fazendas denominadas Engenho de Serra, por terem sido locais
onde estavam instalados engenhos hidrulicos que moviam grandes serras, destinadas
a um processamento em larga escala da madeira derrubada. Por coincidncia os dois
stios arqueolgicos estudados nesta dissertao esto inseridos em fazendas de
nome Engenho de Serra. A fazenda em que est localizado o stio Man do Juquinha,
ainda guarda as runas do antigo engenho, praticamente com todas as engrenagens
feitas de madeira.
Algum esboo da aparncia da paisagem regional antiga pode ser resgatado em
relatos de expedies que passaram pela regio. Como o caso da viagem organizada
pelo Mestre de Campo Igncio Correia Pamplona, que j tinha experincia
colonizadora no arquiplago dos Aores, liderando um grupo de aventureiros, tambm
egressos de Portugal e de suas colnias ultramarinas. Ele palmilhou o Alto So
5
Francisco, em fins do sculo XVIII, cata de fontes aurferas e em busca de
remanescentes de Quilombos j arrasados em expedies oficiais anteriores (Jardim
1989:202), como foi o caso do quilombo de Corumb, prximo a cidade de Arcos
(Barreto 1992:18). Outro objetivo era fundar arraiais e distribuir sesmarias, ficando a
seu critrio a escolha dos locais mais adequados para tanto. Ao descrever o local da
paragem do Salitre, nome que no sculo XIX foi usado para denominar as serras
calcrias situadas na margem direita do rio So Miguel, o escritor do dirio descreve: (...) logo ao entrar na dita parage, nos deu um cheiro mui semilhante a plvora, e entrando pela espessura vimos o terreno noticiado todo cercado de frondosas rvores mui ramalhudas e mui pretas, tendo o dito terreno [,] pouco mais de comprido que de largo, matizado por todo ele com lajens (,) uas maiores outras mais pequeninas, e em si mui mido, e para ua parte do mesmo terreno faz um barranco por donde corre em pouca quantidade as guas que do mesmo terreno imanam. (Biblioteca Nacional 1988:78)
Este trecho d indicaes de algumas feies tpicas do relevo crstico da rea,
o termo espessura foi usado para denominar uma passagem estreita, provavelmente
um pequeno corredor de diclase, o termo lajens foi usado para denominar formas
residuais do relevo crstico, que podiam ser vistas em meio floresta, hoje
denominadas de banquetas, verrugas e torres (Bigarella 1994:274-5). O autor fala
ainda de uma ressurgncia, guas imanando de um barranco, fenmeno caracterizado
pelo retorno superfcie das guas captadas em sumidouros. Via de regra, fontes de
gua como a que foi descrita acima so denominadas surgncias de gravidade cuja
gua procede de dolinas ou de outras formas de absoro, surgindo na superfcie em
funo de encontrarem uma camada mais impermevel.
Na composio de fotos Landsat apresentada abaixo, observa-se que as sedes
municipais de Arcos, Crrego Fundo, Pimenta, Piu-, Dorespolis e Iguatama formam
um crculo em torno do principal conjunto de macios calcrios, que aparecem na cor
verde-oliva justamente em funo de sua cobertura vegetal remanescente. Nota-se
ainda que grande parte da foto est coberta por manchas de cor verde clara, que
representam reas de cultivo sazonal. Fica claro que os remanescentes de mata
praticamente se restringem ao topo de macios. Esta situao trgica favoreceu, por
outro lado, a delimitao dos macios calcrios. Tal delimitao de carter preliminar,
que pode ser vista no Mapa regional (pg. 2), tornou mais exata a localizao dos stios
arqueolgicos. A rea representada naquele mapa est delimitada no mbito do
retngulo amarelo da composio de Landsat acima, nesta aparecem ainda a
6
localizao dos stios arqueolgicos escavados neste projeto, Engenho de Serra e
Man do Juquinha.
A principal funo desta foto no presente captulo demonstrar como a
presena de macios calcrios incidiu diretamente no tipo de cobertura vegetal da
regio, destacando a provncia das outras regies circundantes. A Mata de Pains,
como era conhecida, era um ambiente diverso de todo o seu entorno, marcado
principalmente por campos de cerrado.
Esta mata tinha uma amplitude maior. Saint-Hilaire, que passou pela regio em
1819, seguindo trajeto semelhante ao da atual estrada de rodagem que liga os
municpios de Formiga e Piu-i, na zona de interflvio que separa as bacias do So
Francisco e Grande (ver mapa, pg. 2), observou que da fazenda Ponte Alta, localizada
prxima cidade de Formiga, para o direo oeste, a paisagem apresentava matas
que se alternavam com campos. E apesar deste viajante ter a impresso que as matas
representavam capes isolados, os moradores da regio lhe disseram que ela se ligava
floresta de Tamandu, povoao localizada a mais de 100 km no rumo leste.
A existncia de uma mata de porte arbreo, com rvores mui ramalhudas,
combinada a uma grande quantidade de macios calcrios exumados, com paredes
com alturas oscilando entre 20 e 70 metros, eram fatores que aumentavam a umidade,
a dificuldade de acesso, e a movimentao na rea. A nosso ver, tal situao exigiria
uma atitude sistemtica de explorao da gama variada de espaos do carste local. A
julgar pela ampla faixa cronolgica delimitada pelas dataes existentes, e pela
semelhana entre os materiais cermicos de stios arqueolgicos distribudos por toda
a Provncia, acredito que o acmulo de conhecimento perpassou geraes sucessivas,
que gradativamente exploravam cada rinco do relevo crstico local, desembocando na
ocupao temporria de inmeras cavernas, escondidas atrs de vegetao e longos
corredores de diclases.
7
8
Se atentarmos para o perfil geolgico, com sentido NW/SE, apresentado no
incio deste captulo, podemos observar que a Provncia uma depresso cujo declive
vai da serra de Arcos em direo ao vale do So Francisco. Cercada de campos
cerrados a Leste, Oeste e Sul, a regio era coberta por uma mata de galeria que
ocupava zonas secas, tpicas do vale do rio So Miguel, e zonas de alagados, tpicas
da bacia do Ribeiro dos Patos. Deveria oferecer recursos de caa e pesca, alm de
refgio e proteo no mago de suas matas fechadas. No entanto os grupos pr-
histricos, principalmente os horticultores ceramistas, buscaram locais de ocupao
mais escondidos ainda, nas feies do endocarste local.
O endocarste da Provncia muito desenvolvido, apresentando inmeras
cavernas, condutos e corredores de diclases que muitas vezes formam verdadeiros
labirintos no interior dos macio que, muitas vezes, podem ser facilmente atravessados
de uma extremidade a outra. At 2001 j tinham sido registradas e mapeadas 437
cavernas. Pizarro et alii (2001) fizeram um inventrio preliminar das principais
cavidades:
a) 2 cavidades com desenvolvimentos lineares superiores a 1000 m; b) 2 cavidades com desenvolvimentos lineares superiores a 500 m; c) 110 cavidades com desenvolvimentos lineares superiores a 100 m; d) 128 cavidades com desenvolvimentos lineares superiores a 50 m; e) 103 cavidades com desenvolvimentos lineares superiores a 30 m; f) 89 cavidades com desenvolvimentos lineares superiores a 15 m.
Como veremos nos captulos que tratam do levantamento de stios feito pelo
projeto, quase 70 dos 200 stios conhecidos estavam localizados em cavernas. Alm
dos stios em cavernas, h vrios stios em abrigos diclases e tambm em locais
semelhantes ao descrito no relato de Incio Pamplona, cujo acesso se d atravs de
fissuras estreitas, caracterizando-se por amplos espaos cobertos por matas, mas
cercados por paredes.
Esta intensa ocupao do endocarste, aliado ao grande nmero de stios
localizados a cu aberto, pode ter dois significados: primeiramente os grupos
possuriam livre trnsito no mbito da Provncia e palmilhariam todas as feies de
relevo, o que desembocou na formao de registros diferenciados segundo os tipos de
locais. Nesse cenrio ocorreriam stios habitao em vertentes suaves nas zonas de
9
matas ou campos, enquanto que os stios de atividades especficas - incluindo as
rituais, e acampamentos sazonais, ocorreriam nas feies do endocarste e nas zonas
de transio entre o exocarste e endocarste, como o caso das diclases e abrigos.
Outra hiptese que as feies do endocarste s seriam ocupadas em momentos de
tenso entre grupos, fazendo com que as partes envolvidas procurassem refgio no
endocarste cujo delineamento labirntico, aliado a uma mata mida que circundava os
macios, proporcionaria um esconderijo perfeito, do qual poderia ser pressentida a
chegada de inimigos, e de onde poderia se tomar uma rota de fuga em vrias direes,
visto a disposio das redes de diclases, cujos corredores se entrelaam e
desembocam em vrios pontos exteriores aos macios.
Esta ltima hiptese se aplica ocupao histrica dos Quilombos, que
existiram na regio, chegando mesmo a expulsar colonos aorianos depois da segunda
metade do XVIII. No relato de Pamplona (Biblioteca Nacional 1988), fica evidente a
dificuldade de perseguir as povoaes esparsas de escravos fugidos. A todo o
momento a Mata e a existncia de serras escalvadas dada como justificativa do
insucesso na procura destas povoaes. Em vrios pontos do relato so descritas as
atividades de espias quilombolas que rondavam a tropa, mas que se evadiam com
facilidade, sendo que apenas um deles foi pego, ferido em tiroteio. Apesar de tais
contratempos, a campanha do Igncio Correa Pamplona, foi vista como produtiva. O
Mestre de Campo se instalou na serra do Desempenhado, em algum lugar entre os
municpios de Dorespolis e Pains, de onde empreendeu campanhas ao Serto da
Farinha Podre, o atual Tringulo Mineiro, aonde empreendeu conflitos de maior
envergadura com quilombolas e o gentio caiap. Parece que no sculo XIX, a
colonizao foi impulsionada, gerando renda e um comrcio intenso tanto com a capital
mineira quanto com o Rio de Janeiro, ento capital da Colnia, que mais tarde o seria
do Imprio. Este comrcio estava representado na produo do salitre (Eschwege
1979:34), produto utilizado na fabricao de plvora e de rao para o gado, atividade
que parece ter vingado na primeira metade do sculo XIX, e na criao de sunos
(Saint-Hilaire 1979:92) que foi uma marca da ocupao histrica regional, decaindo
somente recentemente, nas ltimas trs dcadas do sculo XX. A evoluo da
colonizao histrica da Provncia, caracterizada pelo extrativismo de lenha, minerao
incipiente e pecuria, est diretamente ligada derrubada e aniquilio da Mata de
Pains, poluio dos crregos e lagoas, enfim, a alterao radical da paisagem que
existia nos sculos anteriores.
10
IV. OBJETIVOS a) Realizar intervenes arqueolgicas em dois stios que representem dois
extremos dentro da variabilidade ecolgica, topogrfica e arqueolgica da Provncia
Crstica do Alto So Francisco. A padronizao dos dados foi buscada atravs de
procedimentos metodolgicos sistemticos, previamente elaborados sobre os estudos
topogrficos de cada nicho, no caso das cavernas, e de cada nuance do terreno, no
caso do stio a cu aberto;
b) Obter amostras para dataes por termoluminescncia e 14C, que juntamente com a anlise tecno-estilstica da cermica possibilitaro uma construo mais slida
da cronologia das ocupaes, visto que a cronologia regional para o alto So Francisco
composta apenas por duas datas de 14C, uma de 1.840 BP +- 120 e outra de 1.000
BP +- 90 (SI2.368 e SI2.369) (Dias Jr., 1975/1976:171) ambas provenientes de um
nico stio (Dias Jr. 1975). , portanto, fundamental que se possa identificar mais
contextos arqueolgicos datveis para que se estabelea uma cronologia mais
detalhada para a regio; c) Identificar os processos tecnolgicos e funcionais relativos, respectivamente,
produo e consumo dos artefatos cermicos, seguindo metodologia de anlise
sistemtica (Arnold 1971, Skibo 1992, Rye 1981, Raymond 1995, Shepard 1956,
DeBoer & Lathrap 1979, Viana 1996, Viana & Mello 1998, Robrahn-Gonzlez 1995,
Wst 2000), com o fim de compreender se o significado da variabilidade cermica no
Alto So Francisco de natureza cronolgica, possuindo assim um determinado
significado para a histria cultural da rea, ou se na verdade esta variabilidade de
natureza funcional.
Para isso importante que se realizem coletas e escavaes controladas no
campo - com o objetivo de apreenso da variabilidade na distribuio espacial das
cermicas pelos stios - bem como anlises cermicas em laboratrio que contemplem
um leque amplo de atributos para a elaborao de cronologias relativas.
Tais problemas de pesquisas no so exclusivos Bacia do Alto Francisco. De
fato, eles esto presentes em diferentes contextos e regies das terras baixas da
Amrica do Sul, tais como a Bacia Amaznia (DeBoer, Kintigh & Rostocker 1996;
Heckenberger, Petersen & Neves 1999; Meggers 2001) e o Brasil Central (Alves 1994,
1995, 1996; Robrahn Gonzalez 1996, Wst & Barreto 1999). Sendo assim, o projeto
tem um interesse que transcende o da historia cultural regional. Ele se alinha a um
debate que tem uma relevncia terica e metodolgica de maior amplitude.
11
V. JUSTIFICATIVA V.I. Histrico das Pesquisas
A principal iniciativa arqueolgica na regio se deu entre 1969 e 1974, com as
pesquisas do Instituto de Arqueologia brasileira (IAB), sediado no Rio de Janeiro e
vinculado ao Programa Nacional de Pesquisas Arqueolgicas (PRONAPA). A equipe,
coordenada pelo prof. Ondemar Dias Jr., realizou prospeces e registro de mais de 30
stios; alguns foram escavados, como as cavernas: saas (Dias Jr. 1974) e Buraco
dos Bichos (Dias Jr. & Carvalho 1982), sendo que esta forneceu dataes de 1.840 BP
+- 120 e 1.000 BP +- 90 SI 2.368 e 2.369 (Dias Jr., 1975/1976:171). Os principais
materiais resgatados foram: fragmentos de potes e fusos cermicos, machados de
pedra polida, refugos de lascamento de rochas e carves.
Dias Jr. (1976/77) props que h dois mil anos atrs, no Vale do So Francisco,
teria ocorrido o aparecimento da cermica, relacionado maior representatividade
econmica do cultivo de plantas (Dias Jr & Carvalho, 1981/82). Os vestgios destes
grupos de horticultores-ceramistas foram encontrados principalmente em abrigos e
algumas cavernas. Os fragmentos cermicos compunham vasilhames enegrecidos de
pequenas dimenses, fusos cermicos e machados de pedra polida (Anexo II
Tradio Una). Dias Jr. classificou-os como pertencentes tradio Una, descrevendo
sua variante regional para a Provncia Crstica do Alto So Francisco, denominada
Fase Pium-h (Anexo II), na qual aparecem vasos com gargalo alongado, banho de
argila nas cores branca e vermelha, alisamento e polimento de superfcie (Dias Jr.
1975a).
O segundo componente, marcado pela tradio Aratu/Sapuca, corresponderia
chegada de grupos horticultores ceramistas diferenciados. Sua cermica se
caracterizaria por vasilhames piriformes e globulares de variados tamanhos,
destacando-se grandes potes para armazenagem de lquidos e gros, urnas funerrias,
pequenas vasilhas geminadas, rodelas de fuso que atestam a fiao do algodo,
cachimbos (Anexo II-Tradio Aratu-Sapuca), alm de pratos e tigelas. Artefatos lticos
polidos como mos de pilo e machados reforariam a hiptese de uma economia
baseada no cultivo do milho e da batata-doce em roas que exigiriam a derrubada da
mata (Prous 1992, Schmitz 1991).
12
O setor de Arqueologia da UFMG, que pesquisou a regio na segunda metade
dos anos 70, encontrou inmeros stios pertencentes Tradio Sapuca e Fase
Jaragu. Segundo Prous (1992a:356), estes stios ocupam encostas ou topo de montes
suaves prximos a pequenos crregos; o fato de estes grupos no procurarem os
grandes cursos d'gua para seus locais de habitao sugere que eles se moviam
preferencialmente por via terrestre. Prous corroborou a viso de Dias Jr. de que haveria
duas tradies distintas na Provncia, apesar de os materiais coletados nos stios no
terem sido estudados.
Durante as etapas de levantamentos de stios, verificamos a dificuldade de
separar as duas tradies definidas pelo PRONAPA. De incio pensamos em uma
comunho de tcnicas de tratamentos de superfcie entre as duas tradies: assim o
polimento que d brilho e o engobo ou banho de argila nas cores branca ou vermelha,
poderiam ser vistos tanto em potes Sapuca quanto em potes Una, levando a
resultados quase idnticos, apesar da disparidade das formas e volumes. As
semelhanas entre os complexos cermicos no passaram despercebidas por Dias Jr.,
Fig. 4. Comparao entre tipos de artefatos vinculados tradio Sapuca e Una (Prous 1992, Martin 1994). Atentando-se para as respectivas escalas, percebe-se uma oposio morfolgica e volumtrica entre os conjuntos cermicos de cada uma das Tradies. Destaca-se a foto de um vasilhame encontrado no municpio de Pium-h, que passou a denominar uma variante estilstica da Tradio Una.
13
que notou que no alto So Francisco (...) o material da tradio Sapuca apresentava
caractersticas por vezes mais prximas da tradio Una do que da Aratu da Bahia.
(Prous 1992:352).
Para testar essa hiptese julguei fundamental estabelecer a priori se a
associao entre cermicas das tradies Una e Sapuca nos stios da rea de estudo
indica ou no a concomitncia de ocupao, o que busquei realizar atravs da abertura
de escavaes estratigrficas em stios previamente determinados, com vistas a obter
a seqncia cronolgica das ocupaes. Foi feita ainda uma pesquisa documental e
bibliogrfica a fim de identificar registros etnohistricos sobre os habitantes indgenas
da regio do Alto So Francisco.
V.II. Histria Indgena Foi no Tempo em que os vossos avs desciam o Tiet ao sabor das Mones ou vingavam a Serra da Mantiqueira, em busca do ouro. Reduzida escolta bandeirante ficara perdida numa regio agreste das Minas Gerais, conhecida pela grande quantidade de furnas e cavernas temerosas (...). Toda a noite, nos pousos, os forasteiros ouviam de um caboclo velho da escolta, histrias do desaparecimento misterioso de gente de bandeiras anteriores, sem que jamais se lhe pudesse encontrar o mnimo vestgio: eram vtimas decerto dos ndios vampiros chamados "tatus brancos", que, enxergando como corujas batuqueiras, na noite mais tenebrosa varejavam disparada, a horas mortas, campos e matos em procura de presa (...). Eis a se no traiu a memria, a lenda, lida em criana, da existncia de uma tribo de canibais trogloditas (...) habitantes das cavernas.
(Cmara Cascudo, A Lenda dos Tatus Brancos)
O territrio que compreende a regio do Alto So Francisco apontado em
trabalhos de memorialistas mineiros como regio habitada por grupos indgenas da
nao Catagu, supostamente contatados por bandeirantes e viajantes (Barbosa
1978; Senna 1938; Vasconcelos 1904; Jos 1948). Segundo esses estudiosos, o
domnio de tal nao se estenderia ainda para todo o sudoeste do estado de Minas
Gerais.
A existncia deste grupo indgena foi aceita sem maiores objees tanto por
historiadores quanto por arquelogos que trataram do tema, sendo veiculada em
importantes trabalhos nacionais e internacionais, pioneiros na sntese e organizao
dos dados etno-histricos e arqueolgicos levantados na Amrica do Sul at a primeira
metade do sculo XX (Nimuendaj 1983; Steward 1969). No campo da Arqueologia,
foram formuladas hipteses que apontam um vnculo entre as culturas ceramistas Una
14
e Aratu/Sapuca e os indgenas Catagus. (Dias Jr. 1974; Dias Jr. & Carvalho 1978;
Prous 1992).
Os trabalhos de Vasconcelos, Senna e Jos descrevem a migrao do grupo
Catagu a partir do nordeste do Brasil em direo sul, aproveitando o vale do rio So
Francisco. Este vale teria sido percorrido at suas cabeceiras sendo que, a partir de
seu alto curso, o grupo teria se fracionado, gerando migraes simultneas para o
oeste e sul do territrio que viria a ser o das Minas Gerais (Jos 1965: 20; Senna
1938). A primeira etapa da migrao Catagu vem de encontro a idias que atribuem
a tal grupo a fabricao da cermica Aratu, visto que no nordeste do Brasil que se
obteve a data mais antiga, situada em 400 AD (Prous 1992: 346), e onde foram
registrados grandes stios-aldeia desta Tradio (Caldern 1973, 1971; Martin 1999).
As pesquisas arqueolgicas realizadas nos ltimos cinqenta anos em reas do
sudoeste, centro e sul de Minas pautam-se por um amlgama coeso entre discurso
histrico tradicional e discurso arqueolgico. Estudos de Impacto Ambiental, at h
pouco tempo nica espcie de pesquisa arqueolgica desenvolvida na regio do Alto
So Francisco, reproduzem fielmente o discurso de Vasconcellos (1904) e Senna
(1938) adaptado por Dias Jr. (1974, 1978) e Prous (1992). Este estgio de
contemplao das fontes secundrias, compostas majoritariamente pelo trabalho de
memorialistas, s foi interrompido no final dos anos 90, com a retomada das pesquisas
acadmicas na bacia do Alto So Francisco. Foi o estudo da cermica que embasou as tentativas de sntese da pr-histria
regional (Dias Jr. 1975-76, 1974; Prous 1992). Os primeiros trabalhos de
caracterizao tecno-estilstica do material cermico da Provncia foram feitos por Dias
Jr. e a equipe do IAB-RJ, que definiu duas tradies cermicas distintas: a mais antiga
seria a Fase Pium-h, pertencente tradio Una, na qual aparecem vasos com
gargalo alongado, banho de argila nas cores branca e vermelha, alisamento e
polimento de superfcie (Dias Jr. 1969; Dias Jr. & Carvalho 1982). Posteriormente, a
regio teria sido ocupada por horticultores ceramistas vinculados tradio
Aratu/Sapuca, caracterizada por vasilhames de variados tamanhos, destacando-se
grandes potes para armazenagem de lquidos e gros, urnas funerrias, pequenas
vasilhas geminadas, rodelas de fuso, cachimbos, alm de pratos e tigelas (Dias Jr. &
Carvalho 1978; Prous 1992).
Alm de descries acerca da morfologia, dimenso e funo dos utenslios
cermicos, pouco se avanou em relao s caractersticas sociais e econmicas das
15
sociedades indgenas em questo. Foram obtidas duas dataes radiocarbnicas
provenientes do stio arqueolgico Buraco dos Bichos, uma de 1840 AP 120 (SI
2368) e outra de 1000 AP 90 (SI 2369) (Dias Jr. 1975/76: 171). Esta caverna est
localizada no interior de um vale cego, prximo ao ponto onde o crrego Grande
desgua no rio So Francisco, no extremo oeste da Provncia. As ocupaes relativas
a esta data foram posteriormente vinculadas tradio Una por Dias & Carvalho (1982:
30).
Vale dizer que as separaes culturais e cronolgicas entre os complexos
cermicos geraram dvidas em Dias Jr. Ao se estender sobre as discusses da reunio
do PRONAPA especificamente realizada para discutir a separao entre as tradies
arqueolgicas brasileiras, Prous comenta que Dias Jr.: (...) falou na reunio de Gois de 1980, que o material da [tradio] Sapuca apresentava caractersticas por vezes mais prximas da tradio Una do que da Aratu, da Bahia; no entanto, no se estendeu em pormenores sobre o assunto. Esses stios da regio sudoeste mineira costumam ser atribudos aos Catagus [grifo nosso], que resistiram demoradamente aos invasores brancos, mas no chegaram a ser estudados (1992: 352).
Os pesquisadores tentaram completar este quadro relacionando as tradies
regionais a grupos indgenas citados em textos histricos (Prous 1992), visto que a
identificao de um grupo etnohistrico especfico abre um leque de possibilidades
para que se explore traos de sua trajetria histrica e organizao social. Na
concepo de Dias Jr., as cermicas da tradio Sapuca estariam associadas aos
Catagu, uma das mais temveis naes indgenas, que dominava vasto territrio do
centro e sul de Minas e que teria imposto severa resistncia aos bandeirantes paulistas
(Dias Jr. & Carvalho 1978).
Prous, por sua vez, trilhou caminho semelhante ao de Dias Jr., ao relacionar
manifestaes da tradio Una do Alto/Mdio So Francisco aos mesmos grupos
indgenas. No seu entendimento a tradio Una: manteve-se (...) at a chegada dos europeus, como mostram um fragmento de metal encontrado em um silo na lapa da Hora (Januria) e os relatrios dos primeiros bandeirantes que relatam a expulso de Catagus [grifo nosso] caverncolas, cuja agricultura era baseada no milho (1992:338).
Como se v, tanto Prous, quanto Dias Jr. relacionam duas tradies distintas,
Una e Sapuca a um grupo etno-histrico, especificamente os Catagu. Tal contradio
fica evidente quando Dias Jr. sugere, com a concordncia de Prous, que o material
Una seria mais antigo que o Sapuca (Dias Jr. & Carvalho 1982; Prous 1992), e quando
ambos aceitam a hiptese de Senna e Vasconcelos, que postula a migrao dos
16
Catagus a partir do nordeste do Brasil, em um momento histrico marcado por grande
contingncia populacional que desembocara em fenmenos de fracionamento e
disperso.
A associao entre essas tradies cermicas e o gentio Catagu apia-se
integralmente naquelas fontes secundrias, que indicam que tal nao estaria
ocupando os sertes do sul, centro e oeste de Minas, nos sculos XVI e XVII (Barbosa
1979; Jos 1965; Senna 1938; Vasconcellos 1904). As principais fontes primrias
apontadas por tais trabalhos, propagadores da definio do gentio Catagu, so os
relatos dos primeiros cristos a adentrar o interior do atual estado de Minas Gerais,
entre os sculos XVI e XVII. A fonte mais antiga conhecida a carta do Padre
Aspicuelta de Navarro, que fala da entrada comandada por Espinosa, que partiu de
Porto Seguro em meados de 1552, subindo o rio Jequitinhonha com uma escolta de 12
homens, alcanando o alto vale do rio So Francisco, prximo confluncia com o rio
das Velhas (Capistrano de Abreu 1982: 279; Derby 1901: 245; RAPM 1901: 161). Em
sua carta, Navarro descreve o Mdio e o Alto Jequinhonha, chegando at o Alto So
Francisco, antes que tais regies sofressem o impacto da conquista (Fig. 2).
Ao falar das populaes indgenas, Navarro enfatiza seu grande nmero, sua
diversidade lingstica, seus rituais e festas, alm do estado de conflito permanente
Fig. 2. Principais expedies de apresamento e busca de metais que exploraram o Alto So Francisco
GO
SP
ES
RJ
BA
Rio Grande
Rio VerdeRio Sapuca
Rio Grande
Rio Araguari
Rio Paranaba
Rio
Para
catu
Rio
So
Fran
cisco
Rio Par
Rio ParaopebaRio das Velhas
Rio Pi
racica
ba
Rio Doce
Rio Mucuri
Rio Jequit
inhonha
Rio Pardo
Rio
Verd
e G
rand
e
Rio P
irang
a
Rio Pa
raba do
Sul
Rio Urucuia
GuaratinguetRio de Janeiro
Garganta do Emba
OC
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NO
AT L
N
T IC
O
Pouso Alto
Passa Quatro
Baependi
Ibituruna
Oliveira
TamanduPains
OuroPretoFormiga
Pitangui
Conquista
S. Joo DEl Rey
Rio Jequita
Porto Seguro
Ilhus
So Paulo
?
?
Entrada Quinhentista
e Aspiculta NavarroFrancisco Bruza de Espinosa
(1552)
Andr de Leo e Willhem Glimmer (1601)
Matias Cardoso de Almeida (1664)
Loureno Castanho Taques (1668)
Bartolomeu Bueno de SiqueiraMiguel Garcia de AlmeidaSalvador Fernandes FurtadoAntnio Dias de OliveiraManuel e Joo de CamargosPadre Joo de faria Fialho
Bandeiras Paulistas:
250 km
N
* Modificado de Resende & Moraes (1987:30)
17
entre as tribos. Em uma passagem, talvez prximo barra do rio das Velhas, ele
menciona: uma nao de gentios denominada Cathigu, em um rio mui caudal, por nome Par, que segundo os Indios informaram o rio de S. Francisco e mui largo. Da outra margem se chamam Tamoyos, inimigos delles; e todas as outras partes Tapuyas (1901: 100).
Esta carta, apesar de ser citada como indicadora da presena de ndios catagu no
serto mineiro, no faz qualquer meno a tal tribo.
Somente cinqenta anos depois de Navarro, teremos notcias de uma nova
expedio, dessa vez partindo de So Paulo em 1601 (Derby 1900: 330), comandada
por Andr Leo e que teve como escriba um certo Wilhelm Jost ten Glimmer, oriundo
dos Pases-Baixos e scio, com outro holands, de algumas fazendas em Santos
(Prezia 2000: 85). O texto menos profcuo que o relatado por Navarro, indicando que
os exploradores atravessaram a serra da Mantiqueira a partir do rio Paraba,
percorrendo o sul do atual estado de Minas Gerais (Fig. 2), onde so descritos os
pinhais de Araucrias (Almeida 1902: 234; Derby 1900: 339). Glimmer fala de inmeras
aldeias abandonadas, com suas casas em runas, e tambm de pequenas colunas de
fumaa, vistas ao longe, em meio floresta densa, atribuindo sua autoria aos nativos.
Ele conta que o grupo seguiu por um ms de caminhada no rumo nordeste sem
encontrar rio algum, chegando a uma estrada larga e trilhada e a dois rios de grandeza
diversa que, rompendo para o norte, seriam as fontes ou cabeceiras do rio So
Francisco (Almeida 1902: 235; Derby 1900: 336). Informados por nativos capturados
que alm daquelas montanhas uma tribo assaz numerosa preparava-se para atac-
los, o grupo tratou de regressar. Aparentemente o fizeram sem um grande butim, seja
de pedras preciosas ou de cativos. Mais uma vez, no se menciona nada acerca dos
Catagu.
No ano seguinte, Nicolau Barreto lidera uma bandeira composta por mais de 300
ndios, alm de auxiliares mestios, que partiu de So Paulo em setembro de 1602,
tendo estado no serto pelo prazo de dois anos com muitos gastos e mortes. Atingiu
as margens do rio das Velhas, apresando algo em torno de 3.000 ndios, entre tapuias
e terminins e sem qualquer palavra acerca de nativos Catagu (Monteiro 1992: 60,
Taunay 1924: 27).
Outra bandeira que apontada como combatente do gentio Catagu a de
Loureno Castanho Tacques, que em 1675 os teria derrotado no serto mineiro (Senna
1938). Taunay, porm, alega no haver no relato de tal bandeira nada que indique que
18
Tacques combatera catagus, mencionam-se apenas cativos da nao caet (Taunay
1948: 98). Na verdade, o termo Minas dos Cataguases aparece na carta que o infante
D. Pedro envia ao potentado paulista em fevereiro de 1673, instigando-o a explorar o
territrio a norte da Mantiqueira (Leme 1980: 129). Como se v, ao contrrio do que
afirma Prous, no h nos relatrios dos primeiros bandeirantes qualquer meno a
Catagus caverncolas (1992: 338).
A partir do sculo XVIII no teremos mais informaes sobre os grupos
indgenas originais, pois os nativos que no foram mortos ou capturados, fugiram para
regies no conquistadas, como o tringulo mineiro e o territrio de Gois. A dcada de
60 se inicia com a campanha dos primos Bartholomeu Bueno do Prado e Salvador
Jorge, que comandando uma escolta de 400 homens, por ordem do governador Gomes
Freire de Andrade, entraram no serto de Campo Grande a fim de assolar com toda a
multido de negros aquilombados pelo Andaya Bambuhy, Corumb, Santa F, Jacuy,
Rio das Abelhas, rio Grande e Rio Parnahyba (Barreto 1992: 44). Tambm os relatos
da expedio comandada por Incio Pamplona, em 1769, j no trazem qualquer
meno a indgenas, mas a quilombolas ou criminosos que se refugiavam naquela
regio (Biblioteca Nacional 1988). Alm do carter blico tal expedio tinha o objetivo
de oferecer jurisprudncia em conflitos e legislar em agrupamentos j existentes
naqueles sertes, cujos expoentes seriam os povoados de Pium-h e Santa Ana do
Bambuy (Barreto 1992: 18; Souza 1996: 193).
Apesar de as lnguas faladas pelos indgenas da regio no terem sido
registradas, os raros estudos lingsticos existentes sugerem uma afiliao ao tronco
Macro-g (Davis 1968, 1966; Urban 1998: 90). Os bandeirantes paulistas, fluentes em
lnguas pertencentes famlia tupi-guarani (especialmente o nheengat, tupi paulista
ou tupi jesutico) teriam utilizado o vocbulo catagu para designar genericamente
qualquer grupo no tupi que habitasse florestas. O termo significa: aquele que vive no
mato, sendo uma derivao de ca (campo, mato ou rvore), t (duro ou bruto) e gu
(vale) (Silveira Bueno 1998: 98).
Esta atitude de desprezar o uso de denominaes tribais dos grupos indgenas,
salvo no caso de cativos recm-introduzidos do serto, era uma prtica corriqueira
entre os paulistas dos sculos XVI e XVII (Monteiro 1999: 193). Bom exemplo a
palavra tapuia, que jamais designou uma tribo especfica, mas simplesmente grupos
diferenciados e inimigos dos grupos falantes de lnguas do tronco tupi-guarani. Os
tapuias eram, na opinio de Navarro, uma gerao de Indios bestial e feros; porque
19
andam pelos bosques, como manadas de veados, nus, com os cabellos compridos
como mulheres: a sua fala mui brbara e elles mui carniceiros...(APM 1901: 162).
Sampaio (1900: 90) demonstrou a diversidade de estrias fantasiosas que foram
criadas sobre os habitantes indgenas do serto, poca das expedies que
buscavam a Serra de Sabarabuss. Os termos Tapuia e Catagu tm muito em comum
(Lowie 1946, Silveira Bueno 1998); ambos so genricos, quase pejorativos, e no
designam nenhuma tribo especificamente, mas povos no-Tupi, brbaros habitantes
do mato.
As fontes documentais dos sculos XVI e XVII, que mencionam os grupos
indgenas habitantes do alto curso do rio So Francisco e proximidades, so totalmente
omissas em relao a uma Nao Catagu. Os primeiros exploradores da regio
sempre se referiam aos grupos que no falavam lnguas tupi-guarani, e possuam
culturas distintas daquelas conhecidas pelos colonizadores, como tapuias e nunca
Catagus.
Nessas fontes, a palavra catagu aparece sempre associada ao Serto dos
Catagus ou Minas dos Catagus e nunca a uma determinada tribo ou etnia, mas
simplesmente a vrios grupos distintos denominados genericamente como Catagus,
habitantes de sertes desconhecidos. O que era apenas uma generalizao
transformou se, nas mos de Vasconcellos (1904), Nelson de Senna (1938) e Barbosa
(1979), na denominao de uma das mais temveis naes indgenas que dominava
amplas reas dos sertes mineiros. Se tal grupo tivesse existido, da forma como
propem tais autores, no deixaria de ser notado por homens como Navarro, Glimmer,
Barreto e Tacques, que registraram a presena de Cathigus, Tamoios, Terminins e
Caets. O mito dos Catagu foi ainda perpetrado por nomes de maior envergadura, tais
como Nimuendaj (1987), que assinala a presena de Catagus no vale do So
Francisco em 1552; e Lowie (1946), que tambm os cita na obra Handbook of South
American Indians. Ele chegou at os nossos dias nos importantes textos arqueolgicos
aqui comentados, que estabeleceram uma frgil associao entre as cermicas
arqueolgicas do Alto So Francisco e uma etnia cuja existncia no encontra
sustentao nas fontes documentais dos sculos XVI e XVII.
Esta hegemonia no se deu sem resistncia. Ao longo da primeira metade do
sculo XX, Taunay (1948: 88) insistentemente chamara a ateno para vrios pontos
da obra de Vasconcellos, onde determinados eventos histricos so descritos com
riqueza de detalhes sem que sejam citadas as fontes consultadas. No entanto, a
20
despeito dos esforos desse estudioso, prevaleceram idias apoiadas em fontes
secundrias romanceadas. Os trabalhos arqueolgicos destinados elaborao de
Estudos de Impacto Ambiental, que efetivamente poderiam gerar o levantamento de
novas informaes para a histria regional, limitam-se a reproduzir o discurso
arqueolgico tradicional, no realizando sequer a acareao entre fontes histricas
secundrias e primrias, procedimento este que motivou a produo deste artigo.
0 25 50 cm
N 1005E 1006
N 1004E 1006
N 1005E 1005
N 1004E 1005
NM
NG20
Fig. 3. Stio Arqueolgico Man do Juquinha - Gruta LesteSuperfcie do interior e entorno da Sondagem 1
10 R4/1Dark redish gray
10 R4/4Weak red
7,5YR-8/0White
Fragmento de parede de vasilhame cermico
Fragmento de borda de vasilhame cermico
Concha de molusco bivalve
Osso de animalCarvo coletado Bloco calcrio
4
Foto 4
Figura 3
Foto tomada na direo Sul/Norte, mostrando o segundo salo da Gruta Leste do stio arqueolgico Man do Juquinha, onde foram escavadas 10 unidades de m. As pequenas bandeiras (11 X 9 cm) indicam a localizao dos vestgios no espao intra-stio; bandeiras claras indicam fragmentos cermicos, as escuras indicam vestgios orgnicos, cuja maior parte formada por ossos de animais e conchas de moluscos bivalves.
Um exemplo da disposio destes vestgios em torno de uma das muitas estruturas de combusto registradas no stio pode ser visto nesta planta-baixa. Os nmeros indicados no canto das quadras indicam os pontos de coordenadas estabelecidos pela topografia digitalizada realizada no stio. A linha pontilhada delimita as quadras escavadas.
Cyro Jos Soares
A anlise das fontes primrias dos sculos XVI e XVII, aliada aos recentes
dados que vm sendo levantados pelo PASF, deixa uma certeza incontestvel: mais
21
fcil crer na existncia dos Tatus Brancos de Cmara Cascudo, que nos temveis
Catagu de Diogo de Vasconcellos e seus discpulos. Bom exemplo o stio
arqueolgico Man do Juquinha (Foto 4), localizado 9 km a Sul da cidade de Pains-
MG, prximo s cabeceiras do rio So Miguel, importante tributrio da margem direita
do alto curso do rio So Francisco (Fig. 1). As datas obtidas neste stio sero discutidas
mais adiante, e reforam a possibilidade de que grupos de horticultores ceramistas
estariam utilizando cavernas para fins variados.
As datas nos permitem dizer que ocorreram ocupaes sucessivas nesta gruta,
ao longo dos sculos XIV e XV. Tais ocupaes possuem um padro comum de
formao do registro arqueolgico, que se reflete na freqncia de tipos e no padro de
disperso dos vestgios e estruturas (Fig. 3), outro reflexo deste padro a
homogeneidade tcnica e estilstica verificada no material cermico. Alm das grutas
do stio Man do Juquinha, j levantamos mais de trs dezenas de cavernas que
guardam vestgios arqueolgicos (Graf. 1), demonstrando que as feies do endocarste
nesta rea especfica foram intensamente utilizadas por tais populaes de
horticultores ceramistas.
A funo de tais stios parece variar segundo a localizao, morfologia e
delineamento das cavernas, sendo que algumas foram utilizadas como jazigos para
sepultamentos, outras foram utilizadas como habitaes temporrias e/ou para rituais.
De qualquer forma, os dados demonstram que a lenda evocada por Cmara
Cascudo pode ser um palimpsesto de uma poca onde haveria contatos espordicos
entre mamelucos paulistas e tais grupos proto-histricos da regio do Alto So
Francisco, ao longo dos sculos XVI e XVII. Trao marcante dos indgenas retratados
na lenda, alm da antropofagia, o fato de habitarem uma regio agreste das Minas
Geraes repleta de furnas e cavernas temerosas, localizada alm da Serra da
Mantiqueira.
V.III. O Levantamento de Stios Arqueolgicos O projeto "Pr-Histria da Provncia Crstica do Alto So Francisco" (PASF)
empreende h cinco anos um levantamento sistemtico de stios arqueolgicos no
mbito de uma rea de 1.500 km2, carcterizada por um relevo crstico com feies
tpicas: formao de cavidades como abrigos e cavernas, ocorrncia de dolinas, lagoas
e vales cegos (Lino 2001, Henriques 2002). A peculiaridade do relevo regional o fato
de ser marcado por intensa drenagem fluvial em superfcie, o que o diferencia do relevo
22
de outras regies crsticas que tambm fazem parte da Bacia do rio So Francisco,
como a de Lagoa Santa no centro ou a do vale do rio Peruau, no norte do Estado de
Minas Gerais. Os dados levantados tm demonstrado que os trabalhos, do Instituto de
Arqueologia Brasileira (IAB-RJ) realizado nos anos 60 e 70, e do Setor de Arqueologia
da UFMG no final dos 70, ofereceram uma amostra importante, porm pequena, do
potencial arqueolgico desta regio. Novos questionamentos surgiram luz das
pesquisas, que buscam diferentes teorias explicativas para a dinmica de
assentamento dos grupos de horticultores ceramistas que, segundo Dias Jr. & Carvalho
(1982:31), teriam chegado regio em torno do sculo II AD e ali permanecido at pelo
menos o sculo XV, a julgar pelas datas obtidas no presente projeto.
At o momento j foram identificados cerca de 140 stios arqueolgicos que,
aliados aos 70 j registrados no Cadastro Nacional de Stios Arqueolgicos do Instituto
do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (CNSA/IPHAN 2004), totalizam mais de
200 stios.
H grande ocorrncia de stios arqueolgicos a cu aberto, em vertentes suaves
beira de crregos, com centenas de fragmentos cermicos e artefatos lticos, tanto
polidos (Foto 3) quanto lascados. O mais importante at o momento registrado o stio
arqueolgico Engenho de Serra, que ocupa o topo, vertentes e sop de um monte
situado margem direita do crrego Tamboril, tributrio do Ribeiro dos Patos. Na
transio vertente/topo deste monte foram encontradas duas depresses circulares no
solo, uma com quase 20 m de dimetro maior e outra com pouco mais de 10 m. No
entorno dessas estruturas vm sendo anualmente exumadas urnas funerrias
praticamente inteiras (ver fotos abaixo), alm de centenas de fragmentos cermicos e
artefatos lticos polidos. A morfologia, localizao e disposio de tais estruturas no
espao intra-stio, foram alguns dos fatores que nos levaram a interpret-las como
casas-subterrneas.
No entanto, como o relevo crstico que caracteriza a rea rico em dolinas de
dissoluo (Lino 2002), que so depresses no solo, de feio circular, que captam as
guas pluviais drenando-as para o lenol fretico, julgamos necessrio demonstrar o
carter antrpico das estruturas registradas no stio Engenho de Serra. Escavamos
uma das estruturas a fim de expor sua estratigrafia que, estando rompida, comprovou
que tais feies foram escavadas. Outro fator que reforar esta tese ser a coleta de
refugos antrpicos ao longo da escavao, tais como carves e fragmentos cermicos.
Ressalta-se que Prous encontrou estruturas semelhantes no municpio de Arcos,
23
caracterizou-as como casas-subterrneas (1992:355) e realizou algumas
intervenes nestes stios, como escavaes pontuais e coletas de superfcie. Porm,
os resultados destes trabalhos nunca foram publicados. Caso nossos dados, que sero
apresentados na defesa da dissertao, venham a comprovar que tais estruturas foram
efetivamente produzidas por grupos pr-histricos, o stio Engenho de Serra ser uma
das manifestaes mais setentrionais das estruturas arqueolgicas denominadas
casas-subterrneas, tpicas do Sul do Brasil. Tambm ocorrem stios abrigados, alguns de difcil acesso, com vestgios
arqueolgicos em abrigos e zonas afticas de cavernas (Koole et alii 2001). Algumas
destas tm todo o piso coberto por fragmentos cermicos, como nos casos da Gruta do
Capoeiro e nas Grutas Man do Juquinha Norte e Leste. Os tipos de locais em que
ocorrem os stios arqueolgicos foram inicialmente divididos por Costa et alii (no prelo)
em trs categorias, segundo sua exposio ao ambiente externo; so elas: cavernas,
abrigos e stios a cu aberto. A despeito das rarssimas intervenes de subsuperfcie
realizadas pelo projeto, a proporo entre tais categorias foi equilibrada (Graf. 1). Isto
se deve ao alto nvel de interveno humana na regio, decorrente da alta fertilidade
dos solos e de uma agricultura de pequenas e mdias
Graf. 1. Tipos de locais dos stios arqueolgicos identificados
cavernas33%
abrigos33%
cu aberto34%
propriedades rurais, que exploram intensivamente a suave topografia dos montes, que
so praticamente destitudos de vegetao de porte. Sazonalmente estruturas
arqueolgicas so expostas pela ao do arado, e sero gradativamente fragmentadas
e carreadas com o passar dos anos, caso nada seja feito para seu resgate.
24
40 cm A. X
exu
A. X
exu
Fotos 1 e 2:
Foto 3:
A.
B.
C. D.
Urnas funerrias retiradas do stio arqueolgico , nas proximidades das
. Esto expostas na mostra permanente da Companhia Siderrgica Nacional, na cidade de Arcos-MG
Instrumentos lticos polidos provenientes de stios arqueolgicos da Provncia: Machado semi-lunar, encontrado no baixo curso do rio So Miguel, h documentos etnogrficos que atestam o uso deste tipo de artefato entre grupos de lngua g; Lmina de machado encontrada na caverna Capoeiro, parte de seu gume est coberta por espeleotema; Mo de pilo, a parte ativa a extremidade inferior; Instrumento provavelmente utilizado para triturar frutos e sementes, a julgar pelas
parte ativa (inferior).
Engenho de Serracasas subterrneas
marcas de uso na
1 2
3
3
Cyro Jos Soares
AB
CD
Mais de 85% dos stios arqueolgicos levantados pelo PASF possuem
fragmentos de vasilhames ou utenslios cermicos (Graf. 2), bacias, urnas, cachimbos
e fusos. Foi registrada uma alta taxa de variao nas formas de vasilhames, que vo
desde pequenos potes globulares de formas fechadas, muitos com gargalo, at
grandes vasilhames piriformes, tambm de forma fechada, paredes de grande
espessura e dimetro maior girando em torno de 1,3 m. H ainda inmeros vasilhames
de forma aberta, grandes potes com base piriforme, bacias com base globular,
tigelas e, em menor quantidade, pratos.
Graf. 2. Materiais presentes nos stios arqueolgicos levantados
cermicos52%
lticos13%
rupestre2%
litoceramic33%
25
VI. OS STIOS ARQUEOLGICOS TRABALHADOS VI.I. Stio Man do Juquinha
O stio arqueolgico "Man do Juquinha" est inserido em um macio calcrio
situado prximo s cabeceiras do rio So Miguel, na margem direita deste, no
municpio de Pains-MG (UTM: 431080/7740900). O stio composto de duas cavernas,
conectadas por corredores de diclases, que desembocam em amplos espaos
descobertos que, quando cobertos por sedimento terrgeno, possibilitam o crescimento
de rvores que chegam a mais de 15 m de altura. Atualmente so conhecidos dois
acessos para as cavernas, sendo que apenas um deles revelou-se adequado para o
transporte de equipamentos pesados durante os trabalhos de campo.
431000
7741000
NBase: CEMIG. Arcos - cd.: 41-10-18. 1988. Escala 1:10.000.Ortofoto
0 250 500 m
Localizao do stio Man do Juquinha
GN
GE
ParaPains
Para Faz. Da Barra
GE - Gruta Leste GN - Gruta Norte
R i o S
o
M i
g u e
l
Base de Campo
Fig. 8:
26
Foto 1. Corredor de diclase, primeiro acesso Gruta Norte.
O acesso se d na extremidade norte do macio
atravs de um corredor de diclase com orientao N/S,
com aproximadamente 50 m de comprimento e largura
oscilando entre 0,6 e 8 m. Este corredor possui
peculiaridades que destacam o stio: sua entrada no
facilmente visvel, estreita e impede a entrada do gado
salvando os vestgios arqueolgicos do pisoteio, seu piso
fica inundado em funo das chuvas, obstruindo o acesso
ao stio entre os meses de janeiro e abril. Na outra
extremidade do corredor, que pode ser vista na Foto 1,
encontram-se em superfcie mais de uma dezena de
fragmentos cermicos. Todo o stio marcado por uma
grande quantidade de fragmentos de potes cermicos e
refugos alimentares que cobrem a superfcie de duas cavernas e dos corredores de
diclases.
Medio: A. Pizarro Desenho.: M. E. Brito
Obs.: A lona da rea de peneiragem foi retiradadiariamente ao trmino dos trabalhos.
~ 5
m
~ 7 m
AA
'
BB
'
~ 2,
5 m
~ 9 m
CORTE A-A' CORTE B-B'
PLANTA
~ 7 m
Fragmento cermico
Bloco de calcrio
Sedimento
Calcrio
Localizao da escavao arqueolgica
LEGENDA
STIO ARQUEOLGICO DO MAN JUQUINHA - GRUTA NORTE(CROQUIS)
27
Foto 3. Corredor de diclase que d acesso Gruta Leste.
Ao final deste corredor, encontra-se a caverna denominada "Gruta Norte",
pequena caverna com pouco mais de 50 m de desenvolvimento e orientao E/W. As
zonas planas da caverna so muito restritas (Fig. 3), no entanto h dezenas de
fragmentos de vasilhames cermicos sobre a superfcie, juntamente com conchas e
ossos de animais. Nos locais planos jazem relativamente conservadas estruturas de
combusto com forma circular, suas cores vo do cinza ao branco, em seu interior
foram encontradas conchas de moluscos bivalves, ossos
calcinados de pequenos mamferos e pssaros. A entrada
desta gruta orientada para Oeste, voltada para a pequena
passagem que leva em direo Gruta Leste.
Nesta passagem tambm se encontram fragmentos em
reas sazonalmente inundveis, como exemplificado na foto
ao lado. A partir deste ponto o caminho se abre em um amplo
espao, interno ao macio calcrio, aonde crescem rvores
de porte. Percorre-se este caminho por quase 20 m na
direo Sul, e sob o "tapete" de matria orgnica que cobre o
solo possvel ver grandes fragmentos cermicos; A
trilha aberta acaba em um paredo calcrio com
pouco mais de 3 m de altura. Galgado este obstculo
chega-se a uma ampla diclase de orientao E/W,
onde se amontoam imensos blocos calcrios (Foto 3),
jazem em alguns nichos fragmentos de vasilhames
cermicos e conchas de bivalves. Este o principal
acesso maior das cavernas, a Gruta Leste.
Gruta Leste possui mais de 100 m de
desenvolvimento, o acesso se d atravs de um
grande corredor de diclase, sua entrada est voltada
para Oeste e seu delineamento semelhante forma
de um "Z" (croquis). Esta gruta possui clarabias em
seu teto, o que possibilita a entrada da luz em
determinada parte do dia (entre 12 e 13h de outubro a
dezembro) sendo possvel caminhar em seu interior
sem o auxlio de luz artificial. Diversas reas planas,
28
inclusive as que esto debaixo destas clarabias, oferecem timas condies para a
acomodao de grande nmero de pessoas.
Em quase todos os locais, com exceo da extremidade aftica da gruta, viam-
se inmeros fragmentos de vasilhames cermicos, conchas de bivalves, ossos de
mamferos, aves e peixes, alm de estruturas de combusto visveis em superfcie. As
estruturas de combusto apresentam em seu interior os mesmos vestgios acima
citados, com o detalhe de estarem calcinados. Os vasilhames cermicos, cujos restos
encontramos nestes stios, eram das mais variadas formas e volumes, pequenos vasos
globulares de gargalo curto, bordas extrovertidas e paredes de 0,4 cm; grandes vasos
d
d dd
ddd
U10
Clarabia
Raiz
~ 7 m ~ 7 m
~ 7
m
A
A'
CORTE A-A' PLANTA
STIO ARQUEOLGICO DO MAN DO JUQUINHA - GRUTA LESTE(CROQUIS)
U7
U9
U8
U5U6
S1
U3U4
U2
1m
Fragmento cermico
Concha de molusco bivalve
Sedimento
Calcrio
Localizao das escavaes arqueolgicas
LEGENDA
29
piriformes de formas fechadas, bordas diretas e paredes oscilando entre 1,5 e 3 cm;
vasilhas de formas abertas, bases globulares, bordas diretas e paredes oscilando entre
0,5 e 1,8 cm. Praticamente todos os vasilhames sofreram algum tipo de tratamento de
superfcie, como alisamento ou polimento, outra tcnica recorrente foi o banho de
argila, vermelho na maior parte, seguido de cores creme e branco em raros casos.
Este conjunto de diclases e cavernas foi considerado
como um nico stio em funo do padro semelhante de disperso e tipos de
vestgios. A maior parte dos fragmentos cermicos encontrados no stio possui
atributos semelhantes no tocante ao estilo, tendo como elo o tratamento de superfcie e
as formas. Prospeces realizadas com espeleolgos revelaram que o percurso acima
descrito o nico que ofereceria condies razoveis para a entrada no stio, sendo
possvel sair deste espao interno por outras vias somente a custo de certo esforo,
implicando em escaladas para o topo do macio ou passagem por estreitos condutos
subterrneos, que no permitiriam a passagem de grandes vasilhames cermicos.
Mesmo o acesso vivel oferece certas dificuldades. Durante os levantamentos orais
ficou claro que todos os moradores das adjacncias conheciam apenas a Gruta Norte,
no fazendo qualquer referncia em seus discursos Gruta Leste.
A dificuldade de acesso ajudou a preservar parte dos vestgios arqueolgicos
contidos neste stio. Muitos dos vasilhames pareciam ter sido quebrados nos locais em
que jaziam seus fragmentos, sendo possvel remonta-los com facilidade. As estruturas
de combusto mantinham sua forma circular e guardavam inmeros ossos, conchas e
carves.
Em funo de suas dimenses, suas caractersticas topogrficas e
geomorfolgicas especiais, alm da aparente preservao das estruturas
arqueolgicas, o stio arqueolgico Man do Juquinha foi escolhido para iniciar os
trabalhos de campo deste projeto. O que ocorreu entre 09/10 e 23/12 de 2003. Os
trabalhos foram divididos nas seguintes etapas: instalao de equipamentos de
trabalhos e segurana, sinalizao dos vestgios, mapeamento da caverna, coleta de
superfcie e escavaes.
VI.II. Trabalhos de Campo Inicialmente procedemos a instalao de duas escadas para acesso a diclase
que leva Gruta Leste (Foto 3). Cordas foram colocadas a partir deste ponto, passando
pela diclase at a entrada da gruta, com a finalidade de oferecer apoio aos
30
pesquisadores. Faixas tigradas (ou zebradas) foram colocadas em pontos estratgicos,
tanto ao longo das diclases quanto no interior das cavernas, a fim de minimizar o
impacto do pisoteio sobre o sedimento arqueolgico.
A iluminao artificial foi obtida com o uso de lampies a gs, medida que se
revelou mais econmica e evitou a poluio sonora decorrente do motor de geradores
a gasolina. Foram instalados 3 botijes de 13k na Gruta Leste e um botijo na Gruta
Norte. A rea de peneiramento foi locada entrada de cada uma das grutas, de forma
a se aproveitar a luz natural para tal atividade e minimizar seu impacto sobre o micro-
ambiente da caverna. Sinalizao dos vestgios arqueolgicos na
Gruta LesteA
B
C D
A B. C.
D.
. Vista do segundo salo da caverna, tomada de Norte para Sul (ver croquis). Vista do primeiro salo com clarabia ao fundo tomada do segundo salo de Sudoeste para Nordeste. rea das unidades U2, U3 e U4, em primeiro plano vem-se as estruturas de combusto que ocupam as unidades U3 e U4. Concentrao de fragmentos cermicos e algumas conchas de moluscos bivalves no segundo salo da gruta, sob clarabia, imediatamente a oeste de U4.
Para facilitar a visualizao da disperso dos vestgios arqueolgicos e
dinamizar a coleta de superfcie sinalizamos os vestgios arqueolgicos que se
encontravam sobre a superfcie de todo o stio. Utilizamos pequenas bandeiras com
hastes de 40 cm de comprimento e 2 mm de espessura e bandeirolas de 10X20 cm,
que eram colocadas ao lado de cada vestgio. Bandeiras amarelas sinalizavam
vestgios inorgnicos, cuja maioria absoluta eram fragmentos cermicos, enquanto
31
bandeiras vermelhas sinalizavam vestgios orgnicos, cuja maior parte era formada por
conchas de moluscos bivalves e, em menor parte, ossos de mamferos e pssaros.
Lanamos mo de uma Estao Total para a coleta de vestgios e mapeamento
das cavernas. Cada pea ou conjunto recebeu um nmero de controle que, por sua
vez, correspondia a determinada coordenada registrada na Estao Total. A
metodologia utilizada, j descrita em Henriques et alii (no prelo), permite uma
localizao precisa de cada vestgio coletado, o que enriquecer as discusses sobre
os padres de disperso de vestgios e eventos de transporte horizontal de vestgios
ocorridos no stio arqueolgico.
Uma ficha numerada foi embalada juntamente com cada vestgio ou
concentrao de vestgios coletados. Cada ficha embalada possui um similar guardado
em fichrio, sistematizando o controle quantitativo e qualitativo dos vestgios coletados
no stio arqueolgico. A ficha carrega informaes sobre o tipo de vestgio, sua
localizao horizontal e vertical, o nome do coletor e data da coleta. A elaborao da
ficha seguiu os princpios h muito em uso pelo Setor de Arqueologia do Museu de
Histria Natural da Universidade Ferderal de Minas Gerais, sob a coordenao do Prof.
Dr. Andr Prous.
Foram sistematicamente coletados todos os vestgios encontrados na Gruta
Leste do stio arqueolgico Man do Juquinha. Os trabalhos foram paralisados em
funo das chuvas que acabaram por inundar os acessos a partir do dia 06/01/2004,
paralisando os trabalhos de campo, que foram retomados em pequenas etapas
realizadas ao longo de 2004 e 2005.
32
Com base na observao da disposio e padronizao dos vestgios decidimos
realizar intervenes no centro ou zonas perifricas das estruturas de combusto, em
torno das quais pareciam estar dispostos os demais vestgios. Na Gruta Leste foram
escavadas nove unidades de m e na Gruta Norte uma unidade. Para o delineamento
das quadras foi projetada uma malha virtual de pontos com intervalos de um metro
sobre toda a superfcie da Gruta Leste, atravs de medies realizadas com a estao
total de topografia. Tal malha tem como ponto de partida o ponto zero de topografia,
convencionado em N1000/E1000, os dois eixos da malha baseiam-se no Norte Geogrfico, para o qual foi calculada a declinao com auxlio de bssola Suunto. O
objetivo de tal esmero a futura integrao dos dados grficos das diversas
intervenes arqueolgicas executadas pelo PASF, tais como levantamentos,
prospeces, escavaes e coletas, em um Sistema de Informao Geogrfica
(SIG), que contar no s com as cartas topogrficas e hidrogrficas do IBGE, mas
tambm com fotos areas e mapas de menor escala.
Cada quadra de m foi designada segundo a coordenada formada pelo ponto de
interseco de seu vrtice Nordeste, assim a Sondagem-1 da Gruta Leste, situada 5 m a norte e 6 m a leste do Ponto 0 da topografia, tambm designada como quadra N1005/E1006. Esta forma de designao das quadras deixa aberta a possibilidade de estender este quadriculamento, se necessrio, at a parte externa do macio.
Seguido ao delineamento de cada quadra registrou-se a disposio dos
vestgios de seu interior e entorno em papel milimetrado na escala 1:10. Feita a coleta
dos mesmos, iniciava-se as escavaes, ficando sempre um ou dois pesquisadores
concentrados na escavao de cada quadra. A quadra S-1, devido a seu carter prospectivo, foi escavada atravs de nveis arbitrrios de 10 cm de espessura, a superfcie de cada um deles foi sistematicamente fotografada. Informaes como
textura e cor do sedimento, disposio, natureza e quantidade de vestgios coletados,
foram registradas em fichas para cada nvel, que contavam ainda com um espao para
a descrio livre do pesquisador. A utilizao de fichas padronizadas facilita o trabalho
de comparao entre unidades e reduz a subjetividade dos pesquisadores na descrio
dos registros arqueolgicos.
33
Finalizada a escavao de S-1, estendemos as escavaes na direo Norte do
segundo salo da gruta (Fig. 4) que, a julgar pela concentrao de estruturas de
combusto, fragmentos cermicos e restos faunsticos, foi o mais ocupado da caverna.
As escavaes das demais quadras foram executadas atravs do mtodo de
decapagem de nveis naturais, tal deciso foi tomada com base no perfil de S-1 e na aparente padronizao das estruturas arqueolgicas em superfcie. Retirou-se em cada
quadra o sedimento cinza, seco, fino e pulverulento que dava forma s estruturas de
combusto. A remoo deste sedimento se deu em duas etapas: primeiro foi feito a
decapagem da periferia das estruturas, a saber, o sedimento de cor cinza escura que
ordinariamente revelava carves centimtricos, poucas conchas e, vez ou outra,
fragmentos cermicos; esta etapa resultava na exposio do centro da estrutura,
composto por sedimento de cor cinza clara a branca contrastante com a periferia, sua
remoo at a exposio da camada "vermelha", sedimento mineralizado e
arqueologicamente estril, geralmente no expunha nenhum vestgio. O sedimento
arqueolgico de todas as quadras variou entre os 5 e 10 centmetros de espessura, tal
medida foi ultrapassada em casos de depresses no solo. Uma etapa intermediria de
decapagem de uma estrutura de combusto pode ser vista na Foto 5.
Foto 4: Delinamento de U-2, U-3 e U-4. Notar a cor cinza das estruturas e a disperso dos tipos de vestgios sinalizadas pelas bandeiras vermelhas (fauna) e amarelas (cermica).
34
VI.II.I. Gruta Leste - Sondagem 1 (N1005/E1006)
O espao onde foi delineada a quadra da Sondagem 1 abrigava a periferia de uma estrutura de combusto, em torno da qual se encontravam inmeras conchas de
bivalves, alm de ossos de animais, fragmentos cermicos e blocos centimtricos de
calcrio, como se v na foto abaixo.
No pacote compreendido entre 0 e 10 cm de profundidade, foram coletadas
algumas conchas, pequenos ossos de animais e fragmentos cermicos. A quadra ficou
Foto 6: Superfcie de S-1, notar concentrao de conchas de moluscos bivalves no centro da quadra. O sedimento cinza na parte oeste a periferia de uma estrutura de combusto.
Foto 5: Decapagem de estrutura de combusto de U-5. Os palitos marcam carves que ocorrem na periferia da estrutura.
35
dividida entre uma lente cinza, registrada atravs de tabela de cores Munsell como
10R4/1 (Dark Redish Gray), e um sedimento vermelho 10R4/4 (Weak Red). Na base
do nvel a lente cinza foi quase que totalmente retirada.
No nvel seguinte, compreendido entre os 10 e 20 cm de profundidade, foram
confirmadas as expectativas sobre a esterilidade arqueolgica do sedimento vermelho,
cuja cor fica mais acentuada (2,5YR/5/6 Red). Nenhum registro ocorre que seja digno
de nota, a no ser a ocorrncia de ossos e tocas desabadas de pequenos animais e a
exposio gradativa de um paleopiso que desabara em poca remota. Seus
fragmentos comearam a aparecer por volta da cota de 5 centmetros de profundidade.
A escavao seguiu at os 50 cm de profundidade, at que os fragmentos do
paleopiso foram exumados. Apenas coletaram-se por volta desta profundidade uma ou
outra plaqueta de tatu (Dasypus) e um fragmento milimtrico de cristal de quartzo. A
escavao de S-1 pode ser sintetizada no desenho de seu perfil Norte, que segue abaixo:
VI.II.II. Unidade-2 (N1005/E1005), Unidade-3 (N1006/E1005) e Unidade-4 (N1006/E1004) Estas quadras contguas foram escavadas simultaneamente por 3 arquelogos.
A superfcie sobre a qual foram delineadas pode ser vista na Fig. 5-C, bem como as estruturas de combusto que determinaram sua escavao. O sedimento cinza que
ocupava a metade leste de S-1 (perfil da Fig. 7) se estendia para U-2; em U-3 e U-4 as
Fig. 7:
36
estruturas possuam uma delimita
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