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As práticas
de Restauro
nas Belas-Artes
Al i c e Nogue i ra Alv e s
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Poucos meses depois da instituição da Academia das Belas Artes
de Lisboa, em 1836, era ordenada a entrega para catalogação,
retoque e cópia das pinturas de maior valia existentes no espólio
recolhido pela Comissão do Depósito das Livrarias dos Extintos
conventos1
para puderem ser admiradas as maiores obras de arte portugue-
sas na área da pintura. Mais tarde, o atraso na instituição destes
espaços, levou à criação de uma Galeria na própria Academia
onde as classes estudantis aprenderiam esta arte através da ob-
servação dos mais belos exemplares.
No século seguinte, o desenvolvimento da disciplina da História
da Arte levou à caracterização destas colecções como casos de
estudo, ilustrando os vários passos da evolução da pintura portu-
guesa, especialmente, quando os grandes estudiosos começaram
a procurar provar a existência da escola dos chamados “primi-
tivos” portugueses.
A manutenção do estado de conservação desta colecção, inicial-
mente com cerca de 540 exemplares2 -
-
ro a trabalhar no mesmo edifício até 1946, quando se mudou
de Arte Antiga3.
Foi entre as paredes do edifício da Academia que se desenvol-
veram os primeiros trabalhos de restauro destas pinturas, de
uma forma sistemática, observando o vetusto Convento de São
Francisco o aparecimento de uma consciência sobre a obra de
depois das colecções de pintura ali albergadas serem transferidas
até 1911.
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Por estas razões, não admira serem facilmente localizáveis na
-
rios e modos de intervir4, no princípio a cargo dos professores,
secundados pelos artistas agregados, mas também, num período
posterior, com o apoio de técnicos vindos de fora, seguindo-se
uma prática já antiga no nosso país, lutando sempre contra di-
políticas culturais.
Freire veio revolucionar o panorama da prática do restauro no
nosso país. Tendo iniciado a sua formação nesta Escola, onde
mais tarde leccionou, aqui realizou as suas experiências iniciais
que o tornaram o primeiro Restaurador de pintura com uma
atenção e cuidado baseados em conhecimentos adquiridos no
estudo do próprio objecto artístico. Lutando contra as opiniões
desfavoráveis dos seus críticos e chegando a ser acusado de re-
pintar os painéis de Nuno Gonçalves, devido à luminosidade das
cores originais reaparecidas depois de séculos de obscuridade
sob repintes e vernizes alterados, este restaurador não hesitou
em aplicar na prática as suas ideias e princípios, seguindo me-
todologias até então impensáveis no nosso contexto artístico e
social. Actualmente, é difícil imaginar qual terá sido o choque da
opinião pública ao deparar-se com o triunfo da cor nas pinturas
do século XV e XVI até aí amarelecidas e escurecidas.
Um longo caminho tinha sido percorrido desde os primeiro tra-
balhos orientados pelo Professor António Manuel da Fonseca,
passando pelas discussões em plena sessão académica onde, em
1859, o Professor Metrass defendia a conservação em vez do
restauro5, até se chegar ao espírito inicialmente curioso, rapi-
Luciano Freire, que trocou a sua liberdade criativa da pintura,
pela salvação e recuperação das imagens deixadas pelos grandes
mestres da arte portuguesa.
baseadas no respeito pela obra original e na procura da intenção
do seu autor, num total receio de destruir vestígios importantes,
cuja perda seria irremediável para a História da Arte. O seu
discípulo Fernando Mardel foi mais longe, apoiado pelos novos
métodos de exame e análise aplicados ao restauro da pintura,
permitindo uma maior segurança de intervenção.
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Desde 1946 até 2010 muitos foram os trabalhos de restauro rea-
lizados nos vários espólios da Faculdade e da Academia Nacio-
nal de Belas-Artes, mas só agora vemos instalar-se novamente
um laboratório de restauro neste edifício (deixamos fora destas
considerações as questões relacionadas com o Museu Nacional
de Arte Contemporânea).
O REGRESSO
Inserida num enquadramento formativo muito semelhante ao
existente em várias Universidades europeias, volta a surgir a prá-
tica do restauro no seio das Belas-Artes de Lisboa, numa sim-
biose entre o centro da criação e o restauro que se torna muito
-
cados no meio artístico.
Para possibilitar o início de uma formação na área da Conserva-
ção e Restauro, a licenciatura em Ciências da Arte e do Patrimó-
de Práticas de Restauro. Aqui são leccionadas matérias com o
objectivo de os sensibilizar para as várias questões em torno des-
ta área, trabalhando em objectos maioritariamente pertencentes
ao espólio da Faculdade de Belas-Artes, e contando com a dispo-
para apoiarem e acompanharem esta formação.
Os objectivos desta disciplina pretendem facultar a capacidade
de realização de um diagnóstico, a análise das condições am-
bientais, o encaminhamento e acompanhamento informado
de uma intervenção de Conservação e Restauro, apoiados em
matérias leccionadas noutras disciplinas como as Práticas La-
boratoriais de Diagnóstico e Teoria do Restauro I e II, a cargo
de docentes da Faculdade de Ciências, regidas pela Professora
-
mo módulo a nosso cargo. Por outro lado, caso os alunos estejam
interessados em seguir a sua formação nesta área a nível dos 2.º
e 3.º ciclos, terão um conjunto de conhecimentos essenciais para
conseguir alcançar este objectivo.
No ano lectivo de 2010/2011 deram-se início a estes trabalhos,
começando o primeiro semestre por uma formação generalista,
mais vocacionada para o diagnóstico, abrangendo vários tipos
de materiais, com o apoio de Conservadores Restauradores es-
pecializados em diferentes áreas, como Maria José Francisco,
Adriana Batista Ferreira e Lina Falcão, contando-se igualmente
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com a realização de duas palestras por Nazaré Tojal e Joaquim
destes assuntos em visitas realizadas a Museus e Monumentos.
No segundo semestre os alunos foram direccionados para deter-
minadas áreas da sua preferência: a pintura, sob a orientação
de Maria José Francisco, a cerâmica arqueológica, a pedido da
aluna Andreia Braz, tendo a preciosa cedência de peças da co-
lecção particular de Luís Lyster Franco tornado possível a sua
concretização, e na área da pedra, representada pela primeira
fase da limpeza de um sarcófago existente na Faculdade, de ori-
gem desconhecida.
Como todos os processos que se iniciam, este foi apenas o pri-
meiro ano de participação activa no contexto académico, onde
se realizou o contacto com as várias colecções, numa aborda-
gem preambular ao imenso espólio existente e à análise do seu
estado de conservação e necessidades de intervenção. No futuro,
prevê-se a abertura a novas áreas, com o apoio de pessoas expe-
rientes nestas colecções e dos responsáveis pelos vários acervos.
Pretende-se ainda alcançar uma capacidade de resposta às ne-
cessidades da Faculdade, nomeadamente, no apoio a projectos
de investigação, e da Reitoria da Universidade de Lisboa, acom-
panhando intervenções mais abrangentes, não sendo ainda de
descurar o mercado exterior, caso se venha a proporcionar este
tipo de situação.
Esperamos ter recomeçado uma linha digna dos nossos anteces-
sores, enquadrada agora no contexto contemporâneo.
Não podemos terminar este texto sem louvar e agradecer o
apoio de todos aqueles que possibilitaram e facilitaram este
processo na Faculdade de Belas-Artes, nomeadamente ao seu
Director, o Professor Doutor Luís Jorge Gonçalves, ao Profes-
sor Doutor Fernando António Baptista Pereira, coordenador
da Licenciatura e Director do CIEBA, ao Luís Lyster Franco, à
recursos humanos, e, especialmente, aos nossos alunos por terem
tornado esta experiência uma troca de conhecimentos enrique-
cedora, tanto para eles como para nós.
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1 Sobre este processo, aconselha-se a consulta da Documentação existente no arquivo de Secretaria da
Academia Nacional de Belas Artes de Lisboa, referente a este período.2 Academia Nacional de Belas
Artes, Livro 1-A-SEC.007, Actas de 1838 e 1839, n.º 112, pp. 161-179.
2 Parte deste espólio acabou por se dispersar por várias razões, entre as quais se encontra o regresso de
peças à sua localização original.
3 -
blicada no Boletim do Museu Nacional de Arte Antiga, Vol. I, fasc. 3, Jan-Dez 1946, pp.
171-172.
4 Veja-se como exemplo a documentação publicada em: NETO, Maria João Baptista, “A propósito da
descoberta dos Painéis de São Vicente de Fora – Contributo para o estudo e salvaguarda da pintura
gothica em Artis
n.º 2, Braga, 2003, pp. 219-260. Tivemos também a oportunidade de tratar alguma informação relacio-
nada com este tema em: ALVES, Alice Nogueira, 2009, Ramalho Ortigão e o Culto dos Monumentos
Nacionais no Século XIX
na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, exemplar policopiado, Lisboa.
5 NETO, Maria João Baptista, “A propósito da descoberta…, pp. 232 e 239.
Notas
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