ASPECTOS DAS RELAES ENTRE O
MOSAICO E A ARQUITECTURA NO MUNDO
ROMANO.
ICONOGRAFIA E ICONOLOGIA DO TEMA
DA MURALHA NO MOSAICO ROMANO
Francine Alves
___________________________________________________
Tese de Doutoramento em Histria da Arte da Antiguidade
JULHO/2010
ASPECTOS DAS RELAES ENTRE O
MOSAICO E A ARQUITECTURA NO MUNDO
ROMANO.
ICONOGRAFIA E ICONOLOGIA DO TEMA
DA MURALHA NO MOSAICO ROMANO
Francine Alves
___________________________________________________
Tese de Doutoramento em Histria da Arte da Antiguidade
JULHO/2010
AGRADECIMENTO
Expresso o meu reconhecimento ao Professor Manuel Justino Maciel, pela orientao cientfica, pela disponibilidade e pelo incentivo na
feitura deste trabalho.
RESUMO
Esta investigao, no mbito das relaes entre o mosaico e a
arquitectura no mundo romano, tem por objecto a representao do
tema da muralha no mosaico pavimental.
Desenvolvido em trs partes, o trabalho incide em factos
histricos, analisa a gnese do tema e a sua transposio para o
mosaico.
Os objectivos do trabalho so a identificao da expresso
iconogrfica e apreenso do contedo iconolgico da representao do
tema em romano more.
Palavras-chave: muro, torre, porta.
ABSTRACT
This research about relations between the mosaic and
architecture in the Roman world, aims to analyze the crenellated
borders in mosaic pavements.
Developed in three parts, the work focuses on historical facts,
analyzes the genesis of the theme and its transposition into the floor
mosaic.
The objectives of the study are the identification of iconographic
expression and the apprehension of iconological content of the images.
Key-Words: battlement, tower, gate.
NDICE
Introduo..............................................................................
1
Parte I - Actium: a convergncia de duas vises do mundo
1.O muro de Roma, o mos maiorum e o legado etrusco...........
6
2.A divergncia nos focos de viso: politai ou res publica........
23
3.A mobilidade espiritual dos Gregos......................................
28
4.A mobilidade territorial dos Romanos.................................. 45
Parte II - A gnese do tema e a transposio para o mosaico
1.Uma ddiva divina e um ornatus arquitectural....................
61
2.Um retrato musivo da transposio helenstica....................
81
3.O motivo pyrgotos e a pintura funerria.............................
91
4.Ilici: a convivncia das consuetudines graeca e romana........
100
Parte III - A representao romana do tema da muralha
1.As imagens da defensio e o mosaico romano.......................
113
2.A representao em romano more........................................
132
3.O valor icnico acrescido.....................................................
160
4.A metamorfose do tema urbano e a crise da cidade.............
165
Concluso..............................................................................
192
Bibliografia.............................................................................
201
Ilustraes.............................................................................
Lxico musivo.........................................................................
218
232
1
INTRODUO
Este estudo tem por objecto uma das mais significativas
expresses das relaes entre o Mosaico e a Arquitectura no mundo
romano: a representao de imagens de muros, torres e portas tema
da muralha na musivria pavimental.
Incidindo sobre os mosaicos romanos, mormente os de contexto
hispano, tem como objectivos a identificao da expresso iconogrfica
e a apreenso do contedo iconolgico da representao do tema
arquitectnico em romano more.
O tema da muralha apareceu, no mosaico, em perodo helenstico
e percorreu os pavimentos at finais do sculo III d.C.; este longo lapso
temporal abarca duas linguagens iconogrficas distintas que apontam
para diferentes vises do mundo, para diferentes contextos histricos.
Procuramos ter em conta tais contextos em estudo naturalmente
vinculado arte com histria; e luz deles procuramos atingir o nosso
escopo, apreender os valores iconolgicos subjacentes s expresses
iconogrficas.
Assim, a primeira parte do nosso trabalho incide sobre factos
histricos; a segunda dedicada gnese do tema da muralha e sua
transposio para o mosaico; a terceira parte tem por foco a consuetudo
italica no tratamento daquele tema arquitectnico.
Socorremo-nos da analstica da Antiguidade, cabendo relevar
nomeadamente, o olhar de Pausnias para uma peregrinao Grcia,
o discurso de Vitrvio para o entendimento da arquitectura da
Antiguidade e a pergunta mtica plasmada nos Fasti de Ovdio: e por
que que a cabea (de Cbele) est carregada com uma coroa de torres
(At cur turrifera caput est onerata corona?).1
1 OVDIO, Fastos, 4, 219.
2
Encontramos na representao do tema arquitectnico duas
mundivises distintas, opostas, plasmadas em dois lapsos de tempo
espaados: o momento helenstico e o momento romano com incio
augustano e termo severiano.
As duas mundivises assentavam na dimenso do religioso que
molda o contexto mental da Antiguidade2, mas viso do mundo em
compartimentos (poleis) contrapunha-se a viso do mundo como um
continuum (imprio).
Tal divergncia apontava para duas distintas idiossincrasias, por
isso, comeamos pela anlise dos respectivos percursos histricos; aqui
encontramos os distintos eixos antagnicos espiritual e material
que suportaram, orientaram e diferenciaram a mobilidade grega da
mobilidade romana.
Tendo como metodologia a apreciao de factos histricos
enquanto determinantes da produo artstica, deu-se relevo
fundao de Roma e ao mos maiorum que formatou eticamente a
romanidade.
Atentou-se na dominao etrusca enquanto primeira e mediada
influncia do helenismo e em dois sistemas polticos vimos projectadas
as duas contrastantes vises do mundo.
Para o confronto entre ambas, destacamos momentos artsticos
(perodos clssico e helenstico) do percurso espiritual grego bem como
momentos da expanso territorial romana.
Em suma, constatamos a helnica mobilidade espiritual de uma
viso do mundo compartimentado em poleis, contraposta mobilidade
territorial, expansionista determinada por uma viso do mundo como
um imprio.
2 Entendido o sculo VI a.C. como termo da Alta Antiguidade, os finais do sculo III d.C.(dinastia dos
Severos) como termo da Antiguidade e o sculo VIII como termo da Antiguidade Tardia.
3
O encontro, convergncia e fuso de tais mundivises ocorre, em
contexto romano, ao tempo em que o modelo poltico republicano,
longamente posto em crise, se dilui em apaziguador e monrquico
sistema poltico. Este encontro, em tal tempo, vai viabilizar, na
produo artstica, nomeadamente, na musivria pavimental, a
expresso plstica de um modus cogitandi a sntese em romano
more: a arte romana.
O momento formal daquele encontro, da convergncia dos
diferentes modos de olhar e de ver, a batalha de Actium, porque vem
dar novo contexto, nova estrutura poltica, ao mundo alexandrino e vem
dar unidade fase artstica greco-romana, pondo termo arte do
perodo helenstico.
Em Actium e com Augusto, comea o perodo romano, o tempo da
maturada sntese artstica latina, da emergncia de uma arte expurgada
de uestigia ruris pela influncia e emulao da arte greco-helenstica.3
este o perodo visado neste estudo. Por isso, do confronto entre
duas vises do mundo, plasmadas em dois percursos histricos,
seguimos em busca da gnese do tema, recuando remota arquitectura
oriental; avanamos para o perodo helenstico e no mundo alexandrino
encontramos as primeiras transposies do tema da arquitectura para o
mosaico.
Movendo-nos no tempo e na geografia, encontramos ainda a
consuetudo graeca em um mosaico da Hispania de finais da Repblica,
e, na bordadura torreada desse mesmo mosaico ilicitano, encontramos
o desabrochar da arte romana. No contexto hispnico, prosseguimos a
busca da consuetudo italica no tratamento plstico do tema da muralha
e do valor icnico que lhe est subjacente.
3 HORCIO, Epstolas, 2, 156,160 .
4
At cur turrifera caput est onerata corona?
Cbele
(Museu Arqueolgico de Istambul)
5
PARTE I
Actium: a convergncia de duas vises do mundo
6
1. O muro de Roma, o mos maiorum e o legado etrusco
Augustus Caesar, Diui genus, aurea condet saecula...
(Eneida, 6, 793 )
Roma, finais do sculo I a.C.
Comea o perodo que d a matriz, o enquadramento do valor
semntico das imagens da antiga musivria pavimental romana que
motivam este estudo: um tempo novo, tempo de mudanas que do
resposta e solues conflitualidade social que crescendo, com menor
ou maior rudo, culminou na crise da Repblica.
Tal resposta, tais solues surgem por uma via polticamente
orientada para a paz (pax romana) e espiritualmente orientada para a
recuperao de perdidos valores morais ancestrais (mos maiorum); via
guiada pelo Augusto que, sob a sua autoridade (imperium), recebeu um
mundo de discrdias.4
4Mos maiorum todo um referente comportamental assente em costumes ancestrais ancorados em
exigentes padres ticos. Tais costumes, que remontam aos longnquos tempos da formao de Roma
(perodo monrquico), transitaram para o perodo republicano, onde se esvaram com o correr dos
sculos. Perante os conturbados tempos dos finais da Repblica, o mundo romano sente a falta dos
referentes comportamentais, desse mos maiorum que evoca pelo nome de tica republicana. Esta
redutora designao tinha em vista todo o quadro de ancestrais valores morais, formatado em perodo
fundacional, monrquico, e baseado na uirtus, ou seja, na rectido que tinha, entre os seus corolrios, a
pietas e a fides, princpios orientadores das relaes dos homens com os deuses e dos homens entre si.
7
Discrdias entre o patriciado e a plebe, indiciadoras do
desajustamento de uma ordem poltica concebida para a especfica
realidade de uma cidade-Estado, tinham-se agravado paulatinamente e
foram dando sinais de alerta como o da revolta dos Gracos, em 132
a.C.5.
As discrdias prosseguiram bem como as derivas do modelo
republicano: variava o nmero de magistraturas supremas (republica-
namente fixado em duas) e variava a tendncia das reformulaes
constitucionais, ora conservadoras, ora reformadoras, como foi o caso
das reformas do senador Sula, em 82 a.C., em favor dos patrcios
(faco dos optimates) e a respectiva derrogao, em 70 a.C., por
Pompeio Magno e Marco Licnio Crasso, defensores da plebe (faco dos
populares).6
O sinal vermelho foi dado ao vencedor de cinco triunfos, porque
aceitou honras excessivas, tais como vrios consulados, uns aps os
outros, a ditadura e o cargo de censor perptuo, sem contar o ttulo de
Imperator, o cognome de Pai da Ptria, uma esttua entre as dos reis
(...) e deu o nome a um ms do ano; demais, no houve magistratura
que ele no tivesse e no concedesse a seu talante.7
5 Na sua origem, a organizao da sociedade romana tinha por base a gens, conjunto de famlias com um
ancestral comum e sujeito poderosa tutela do pater familias. Na famlia, todos esto submetidos ao seu
poder absoluto, a patria potestas que, desde a origem, incluia o direito de vida e de morte. A gens tinha
um culto e uma sepultura em comum, no acontecendo o mesmo com a posse da terra.
Da gentlica organizao estava excluda a plebs (multido), porque gens non habere (LVIO, Ab urbe
condita, 8, 9), mas a seu contento e por iniciativa do rei etrusco Srvio Tlio, seria dividida, por critrio
econmico, em 5 classes. Infra classem ficavam os que s tinham descendncia (proles) e mais nada
possuam (proletarii) e supra classem estavam os patrcios, os detentores exclusivos de uma panplia de
direitos. Tal diferenciao gerou o antagonismo entre patrcios e plebeus; o antagonismo assumiria
concretas formas de conflito nos primeiros anos da Repblica, momento em que a plebe procura a
igualdade em matria de direitos at ento reservados ao patriciado. O direito de acesso a magistraturas -
lhe reconhecido em 494 a.C. (tribuno da plebe; em rigor, no era uma magistratura porque no tinha
poderes magisteriais, i., maior potestas, mas tinha o direito de veto (ius intercessionis), derivado da
sacrossantidade do cargo; o acesso ao consulado e o direito explorao do ager publicus sero
estabelecidos pelas leis Licnias em 367 a.C., que consubstanciam um pacto social vertido na expresso
SENATVS POPVLVSQVE ROMANVS e cujas siglas formariam o selo de Roma. A luta pela explorao
do ager publicus, em 133 a.C., custaria a vida ao tribuno da plebe Tibrio Semprnio Graco. 6 A luta entre optimates e populares mais no do que a continuao, por forma organizada em faces,
do conflito patrcio/plebeu. Aps a 2 guerra pnica, o patriciado seria dividido em ordo senatorius
(amplissima ordo) e em ordo equester. Em tempo imperial, a estas ordines juntar-se-ia a ordo
decurionum, para contemplar as elites locais da administrao das comunidades urbanas. 7 Jlio Csar, LXXVI, em Os doze Csares-Suetnio, trad. de Joo GASPAR SIMES, p.43.
8
Nestes termos, SUETNIO dirige uma crtica ao homem que
vinculou o juliano nome reformulao solar do calendrio8 que ainda
hoje subsiste em grande parte do mundo contemporneo, com
gregoriana correco no sculo XVI; SUETNIO critica a governao e a
apetncia monrquica de Jlio Csar manifesta pela colocao da sua
esttua entre as dos reis.9
A vontade de ser rei, censurvel em perodo republicano, seria a
verdadeira causa da sua morte diz PLUTARCO e explica que os que
queriam elev-lo realeza difundiram um rumor segundo o qual um
dos Oracula Sibyllina teria profetizado que os Partos s seriam submeti-
dos pelo exrcito romano se este fosse comandado por um rex10.
E que melhor rex seno o comandante, o general aclamado
imperator11 pelos soldados pelas vitrias da Glia, Alexandria, Ponto,
frica e Hispnia?12
A sorte de Csar seria determinada no ano 49 a.C., no momento
em que decidiu consciente da violao da legalidade republicana que
impunha a entrada em Itlia sem armas atravessar com as suas
legies o fronteirio Rubico; tal facto deu incio guerra civil,
optimates contra populares, contando estes ltimos com o apoio de
Csar e este com o do seu exrcito.
Iacta alea est para o Csar que, no triunfo do Ponto, exibira a
inscrio ueni, uidi, uinci : nos idos de Maro de 44 a.C., no Senado, o
punhal de um Bruto (Marco Jnio) e de outros mais matam Jlio Csar
8 Jlio Csar adopta o ano solar (365 dias) e para compensar o excedente horrio no contabilizado
naquela anuidade, acrescentado, quadrienalmente, 1 dia ao 6 dia (sextus dies) antes das calendas de
Maro, formando-se assim, um ano bissextus. 9 PLINIO refere que erigir esttuas de si e para si prprios era um costume dos reis (NH,34,13).
10 PLUTARCO, Vida de Csar,60,2.
11 O conceito de imperator tem contexto militar e dimenso religiosa: a saudao dos soldados ao seu
general pelas vitrias obtidas, vitrias devidas ao poder divino. 12
Assim escreve SUETNIO:Primum et excellentissimum triumphum egit Gallicum, sequentem
Alexandrinum, deinde Ponticum, huic proximum Africanum, nouissimum Hispaniensem, diuerso quemque
apparatu et instrumento (Jlio Csar, XXXVII).
As grandes vitrias militares eram reconhecidas pela concesso do triunfo, um desfile de chefes militares,
soldados, magistrados, prisioneiros de guerra acompanhados dos animais a sacrificar e dos despojos da
campanha que entrava em Roma pela Porta Triumphalis rumo ao templo de Jpiter, no Capitlio, onde
o general oferecia ao deus a sua coroa de louro.
9
e ferem de morte as derivas de um sistema poltico que um outro
Bruto13 instaurara em 509 a.C..14
Assim anunciado, o ponto de viragem surge em 31 a.C., momento
em que a crescente dimenso objectiva e subjectiva do domnio de
Roma (com proporcional desajustamento do modelo de governao e
correspondente crescimento da conflitualidade social) atinge uma
amplitude significativa pela incluso sob a alada de Roma na esfera
das provncias romanas do domnio dos Ptolomeus, essa parcela
tomada pelos Lgidas da imperial herana do grande e fugaz Alexandre
da Macednia: o Egipto.15
a viragem para um tempo novo, o tempo em que Augusto Csar,
nascido de um deus, fundara um sculo de ouro (Augustus Caesar, Diui
genus, aurea condet saecula)16.
13
A patronmica coincidncia revela a estabilidade do estrato de uma ordo (senatorial) que seria abalada
pela restruturao do Senado levada a cabo por Csar: aumentou o nmero de senadores (de 600 para
900) criando novos patrcios (Senatum suppleuit, patricios adlegit, SUETNIO, Jlio Csar, XLI). 14
A deciso de atravessar o Rubico, pequeno rio entre a Itlia e a Glia Cisalpina, sustentada
segundo o relato de Suetnio em uma viso que merece relevo pela dimenso augural, auspiciosa, em
suma, religiosa (na coerncia da mentalidade antiga) que lhe est subjacente: chegado quele limite
fluvial de Roma, Jlio Csar hesita perante o dever de depor as armas e licenciar os seus soldados para
entrar em Roma. Nesse momento de hesitao, v-se um belo homem, sentado e a tocar flauta; atrados
pela msica, os soldados aproximam-se e o tocador de flauta agarra na corneta de um dos soldados, atira-
se ao rio e, com toques enrgicos de corneta, chega outra margem. Perante esta viso, Csar ter dito:
Vamos para onde os sinais dos deuses e a injustia dos homens nos chamam: a sorte est lanada
(Eatur ... quo deorum ostenta et inimicorum iniquitas uocat. Iacta alea est), SUETNIO, Jlio Csar,
XXXII). 15
As parcelas em que se fragmentou o imprio macednio do conta da amplitude do seu mbito
geogrfico: sem ter indicado sucessor, Alexandre morre em 323 a.C., com 33 anos por febres acidentais
ou manipuladas e o seu imprio foi longamente disputado pelos seus generais, sucessores (diadochoi );
a paz s foi alcanada em 281 a.C., com a fragmentao do imprio em diferentes reinos e dinastias
helensticas: os Lgidas no Egipto, os Selucidas na Sria, os Antignidas na Macednia e os Atlidas em
Prgamo. 16
Este o verso de VIRGLIO: Hic uir, hic, est, tibi quem promitti saepius audis, // Augustus Caesar,
Diui genus, aurea condet // saecula qui rursus Latio regnata per arua // Saturno quondam ... (Este o
homem que tanta vez ouviste como prometido / o Augusto Csar, filho do Deus, que fundara // o sculo
de ouro, segunda vez, no Lcio nos campos // onde Saturno ...), Eneida, 6, 793.
10
A vitria de Octaviano na batalha de Actium, em 31 a.C., no s
configura a consolidao17 de uma tutela poltica como consubstancia
notvel redimensionamento territorial e populacional que vai muscular
a metamorfose de uma cidade-Estado (Roma) em capital de um imprio.
Tal metamorfose tem, necessariamente, repercusses no mundo
da arte: as concepes artsticas greco-helensticas so anexadas
latina mundiviso do vencedor, produzindo-se o sincretismo entre a
arte grega ou greco-helenstica e as concepes artsticas que
enformam a romanidade.18
Por tanto, acompanha-se o entendimento dos autores que vem
em 31 a.C. o termo do perodo helenstico19. Tal baliza temporal
formal que no exclui supervenientes produes artsticas de
carcter helenstico mas, aclara que elas tm um novo contexto
(romano), nelas necessariamente reflexvel (por opo consciente ou
no) e nelas reflectido (por modo expresso ou tcito) atravs de
expresses plsticas que carreiam aceitao ou indiferena, adeso ou
reaco mundiviso romana.
A mundiviso romana perpassa no projecto augustano, na
formulao da imperial ordem poltica: em 27 a.C., o vencedor de
Actium, adopta o nome de Augusto, derruba a Repblica e, com o ttulo
de Princeps, recebe um mundo de discrdias sob a sua autoridade.20
17
At ento, e desde 47 a.C., o Egipto tinha sido, de facto, um protectorado romano, por obra de Jlio
Csar. 18
A consensual data do incio do periodo helenstico reporta-se morte de Alexandre (323 a.C.); tal
perodo tem por essncia a lngua e cultura gregas em contexto de assimilao pelo imprio macednio-
alexandrino e tem por grandes centros culturais, entre outros, Alexandria, Antioquia, Prgamo e Rodes. 19
SCHEFOLD entende que a destruio de Cartago (146 a.C.) o termo da fase helenstica; afirma que a
expedio de Alexandre determinou mais o fim do que o incio da irradiao helenstica para leste e
acrescenta que a sntese dos elementos gregos e orientais s se operou verdadeiramente na poca
romana. Secundamos o entendimento de que a sntese dos elementos gregos e orientais se operou na
poca romana, e, mais concretamente, em tempo imperial, facto constatvel, p.ex., no tratamento romano
do tema da muralha na musivria pavimental. Cfr. Grcia Clssica, Karl SCHEFOLD, p.10. 20
Diz TCITO: arma in Augustum cessere, qui cuncta discordiis ciuilibus fessa nomine principis sub
imperium accepit ( Anais, 1,1,1).
11
Estas palavras de TCITO traduzem uma nova frmula poltica
que mais no do que a sntese de contedos e forma de modelos de
governao anteriores.
A expresso sub imperium accepit, em razo do conjunto de
poderes que integra o conceito imperium21, consubstancia uma
recuperao do modelo de magistratura suprema singular, unipessoal
(o rex latino ou o monarchos grego); contudo, tal recuperao
formalmente metamorfoseada por via da consciente rejeio da
designao rex em favor de outra designao, cujo significado est
vinculado ao princpio da colegialidade (princeps Senatus) 22.
Em suma, pode dizer-se que sob a inovadora frmula augustana
de principado, reaparece a monarquia, porque Roma, no seu incio,
teve reis.
Vrbem Romam a principio reges habuere.23
E boa memria deixaram os primeiros reis de Roma, latino-
sabinos, cabendo destacar o que lhe deu o corpo e o que lhe deu a
alma, essa tica formatao da romanitas assente em ancestrais regras
comportamentais (mos maiorum), entre as quais a iustitia, a fides e a
clementia como uirtutes24 fundamentais da poltica romana.
A memria do fundador do organizado espao de vida colectiva
dos Romanos levaria Octaviano a ponderar tomar-lhe o nome em sede
21
Imperium o mais alto poder executivo, civil e militar. 22
O Princeps senatus era o lder do Senado romano, o primeiro entre pares, um poltico respeitado pelos
seus pares, escolhido pelos censores de entre os senadores patrcios com estatuto consular, ou seja, ex-
cnsules; cargo sem natureza vitalcia, atribudo por 5 anos, passveis de renovao. Depois da queda da
Repblica Romana, o princeps senatus ou princeps passou a ser um cargo exclusivo do imperador. 23
No incio, a cidade de Roma teve reis ( TCITO, Anais, 1,1,1). 24
Segundo LUCLIO (sc. II a.C.), uirtus saber o que para o homem recto, o que til, honesto, o
que bom, como o que mau, o que intil, feio, desonesto, in ROMANA.Antologia da cultura latina,
Maria Helena da Rocha PEREIRA, p. 17.
12
de uma hesitao onomstica, que por si mesma reveladora do eixo
urbanstico em que assentaria o projecto poltico do primeiro Princeps.
Mas reservado ficou pela Fortuna pela sorte, sorte feita deusa
que carrega na cabea esculpido tema da muralha o nome de Rmulo
para o ltimo imperador do Ocidente25, porque Octaviano escolheu o
nome alternativo, tambm vinculado ao acto fundacional.
Um augusto augrio orientou a fundao de Roma e assim o
confirmam os versos de NIO: Septingenti sunt paulo plus aut minus
anni / Augusto augurio postquam inclita condita Roma est 26.
A cronologia da fundao de Roma enquadra-se no dinmico
movimento de criao de cidades, verificado no Ocidente, a partir do
sculo IX a.C., onde brilha, no Norte de frica, a fundao fencia de
Cartago, em 814 a.C., ou as sucessivas fundaes gregas, como a da
ilha de schia, entrada do golfo de Npoles, em 770 a.C., ou a
fundao de Cumas, por volta de 750 a.C., ambas promovidas pelos
gregos da ilha de Eubeia.
Cumas ficaria famosa no s por ser a primeira colnia grega em
itlica terra firme, mas tambm porque no enorme flanco da rocha
eubica existe um antro com cem largos acessos, cem portas, tantas
quantas as vozes que da surgem, respostas da Sibila 27.
Entre outros, tambm o povo etrusco acorreria a ouvir as
respostas da Sibila, implantado que estava em regio da Itlia Central
(actual Toscana), onde criou as cidades que serviriam de modelo urbe
dos Romanos.
25
O ltimo Imperador Romano do Ocidente foi Romulus Augustulus, um jovem nascido em Ravena; este,
sucessor do imperador Jlio Nepote, foi forado a abdicar em 476 a.C., aps um ano de governao, por
imposio de Odoacro, chefe dos hrulos. Coroando-se rei de Itlia, Odoacro tomou a iniciativa de se
submeter autoridade de Constantinopla, autoridade de Zeno, imperador romano do Oriente. 26
QUINTVS ENNIVS (239-169 a.C.), Anais,18,409. 27
VIRGLIO, Eneida, 6, 41,43.
13
A fundao de cidades tinha em vista, muitas vezes, colmatar
problemas de sobrepopulao, como se extrai claramente de uma
tradio de inspirao grega, a tradio sabina do Ver Sacrum: as
crianas nascidas na Primavera (uer) seguinte a um ano de fome ou de
epidemia ficavam obrigadas, na sua maioridade, a partir para fundar
uma colnia .28
Sem problemas de sobrepopulao e com vontade de fundar uma
cidade, Rmulo procurou o conselho dos deuses recorrendo ao
caracterstico rito fundacional, o auguraculum.
O augusto augrio foi o prodigioso nmero de doze abutres,
auspiciosa resposta dos deuses augural consulta de Rmulo sobre a
oportunidade, a bondade da edificao de uma cidade no monte
Palatino; para trs ficou, com seis abutres, o projecto fundacional de
Remo no monte Aventino...
Rmulo delineou o territrio de Roma com uma charrua, lavrando
um sulco onde iria implantar um muro que distinguiria o espao de
vida, espao sagrado (fanum) espao de vida da comunidade (romana),
o espao onde se podia consultar os deuses sobre qualquer questo,
dvida, conselho do outro espao, no sagrado (profanum), o post-
murum, o pomoerium.
Diz Justino MACIEL: quando no mundo indo-europeu se define o
pomoerium ou espao sagrado dos povoados, tal acarreta a ideia de que
h um fora e um dentro, com espaos organizados e funcionais de um
lado e de outro lado.29
28
Conta ESTRABO que os Sabinos, aps ganharem a guerra contra os Umbros cumpriram o voto para
tanto feito: imolaram animais e ofereceram produtos agrcolas (tal como os Gregos costumavam fazer em
semelhantes circunstncias, explica o gegrafo). Contudo, o ano seguinte foi um ano de fome, por isso
foram aconselhados a consagrar divindade, tambm, as crianas recm-nascidas. Assim, todas as
crianas que nasceram naquela Primavera foram dedicadas a Marte e quando cresceram foram enviadas
para longe, para, em conjunto, fundar uma colnia; um touro serviu-lhes de guia e quando arranjaram
lugar para se estabelecer imolaram o touro a Marte.(Geografia, 5, 4,12). 29
Em Imagens de Arquitecturas: Quadrata, Lacus e Laculi nos santurios rupestres do perodo romano
em Portugal, p.25.
14
essa distino entre o espao sagrado dos povoados e o que lhe
exterior que materializada pelo muro, pela muralha que, feita limite
sagrado, carreia em si mesma um valor religioso que no colide com
inerente valor honorfico (estatuto de cidade) nem colide com o expresso
valor defensivo, majorado pelas suas torres e pela proteco das
divindades que encimavam as suas portas...
A dimenso do sagrado que preside fundao da Vrbs e que
percorre a lenda da sua fundao (como de qualquer cidade antiga)
igualmente sugerida (na fixao da inviolabilidade do mural limite
sagrado) no lendrio motivo que vinculou Rmulo, directa ou
indirectamente30, provocada morte do irmo.
Conta LVIO que Remo, num gesto de burla e desafio saltou o
sulco, o imaginrio muro e Rmulo matou-o dizendo: Morra de igual
modo todo aquele que franqueie as minhas muralhas (sic deinde,
quicumque alius transiliet moenia mea interfectum)31.
Sobre o nome da nova cidade, LVIO afirma, com razo ou sem
ela32, que Roma tomou o nome do seu fundador (condita urbs conditoris
nomine appellata 33) . No sendo lquido que o nome da cidade provenha
do nome do fundador, certo que, para o povoamento da nova cidade,
Rmulo criou um refgio, um asylum34, onde escravos ou homens
livres, todos os que estimulam o amor pela mudana se foram refugiar;
30
Segundo FLORO, Remo foi morto e admite-se que tenha sido por ordem do irmo e acrescenta com
segurana, pelo menos ele foi a primeira vitima que consagrou com o seu sangue as muralhas da nova
cidade (prima certe uictima fuit munitionemque urbis nouae sanguine suo consecrauit), in Epitome, 1,1. 31
LVIO, Ab urbe..., 1,7,2. 32
Sobre a origem do nome de Roma, Mireille CBEILLAC-GERVASONI observa: Varron, I.I.V 33,
voulait faire, tort, de Romulus le fondateur ponyme de Rome. L tymologie du nom est trs complexe,
on pense qu il s agit d une trs ancienne origine italique qui pourrait driver de ruma, la mamelle,
dsignation image de la colline ou de Rumon, premier nom du Tibre, em Histoire romaine, de Jean-
Pierre MARTIN, Alain CHAUVOT e Mireille CBEILLAC-GERVASONI, 2001, p.10.
Para Gza ALFOLDY o nome de Roma provem de ruma, uma linhagem etrusca. V. A historia social de
Roma, p.19. 33
Ab urbe..., 1,7,3. 34
Na Antiguidade, o mbito do exerccio do direito de asilo circunscrevia-se aos lugares sagrados e,
segundo ESTRABO, o direito de asilo permaneceu intacto tal como era antigamente mas observa que
os limites geogrficos da sua aplicao tiveram vrias ampliaes: Alexandre estendeu-os a um raio
equivalente a um estdio, Mitrdates aumentou-os um pouco mais, estendendo-os at ao local ao
alcance de uma flecha lanada de um dos 4 ngulos do terrao superior de um templo e, Antnio
duplicou-os de modo a compreender um bairro; contudo, reconhecendo os inconvenientes duma medida
que sujeitava a cidade a toda a espcie de malfeitores, Csar Augusto revogou-a.(Geografia, 14,1,23).
15
LVIO, historiador de cronologia e ideologia augustanas, remata a sua
afirmao com ironia: Este foi o primeiro suporte da nossa grandeza
nascente 35.
De facto, a boa hospitalidade que ser tanta vez expressa em
simblica linguagem, tesseladamente vertida nos pavimentos romanos
foi o primeiro suporte da grandeza de Roma pela vertente moral (fides)
que lhe est subjacente: ela estabilizaria relaes sociais como a do
patronus-cliens ou motivaria a adeso de vrios povos ao projecto
imperial contido no programa poltico augustano (pax romana).
Contudo, a hospitaleira perspectiva no anula o facto de Roma ter
sido fundada pela violncia e pelas armas como se extrai do retrato de
Rmulo feito, no sculo V d.C., pelo historiador ORSIO: E assim,
depois de ter morto primeiramente o av Numiter e, mais tarde, o seu
irmo Remo, Rmulo apoderou-se do poder e estabeleceu Roma.
Consagrou o poder com o sangue do av, as muralhas com o sangue do
irmo, o templo com o sangue do sogro. Reuniu um bando de
criminosos com a promessa de impunidade36.
Vrbe condita, caberia a Numa Pomplio dar-lhe a alma: pautado
pela justia e pela piedade, governou Roma de modo a que a violncia e
as armas que presidiram sua fundao fossem substitudas pela
justia, pela lei e pela integridade dos costumes. 37
Tambm FLORO faz meno piedade de Numa afirmando que
criou os pontfices, os ugures, os Slios e os outros sacerdcios.38
35
Ab urbe.., 1,8,5. 36
Itaque Romulus, interfecto primum auo Numitore dehinc Remo fratre, arripuit imperium Vrbemque
constituit; regnum aui, muros fratris, templum soceri sanguini dedicauit; sceleratorum manum promissa
inpunitate collegit, in Orosio, Histria Apologtica, trad. de Paulo FARMHOUSE ALBERTO e Rodrigo
FURTADO, Lisboa, 2000, pp.56-57. 37
LVIO, Ab urbe...,1,18,19:qui regno ita potitus urbem nouam, conditam ui et armis, iure eam
legibusque ac moribus de integro parat. 38
ille pontifices, augures, Salios ceteraque sacerdotia creauit, FLORO, Epitome, 1, 2.
16
Numa ergueu um templo ao romano deus Ianus, o deus que tinha
duas faces para ver, em simultneo, o passado e o futuro, o deus
protector de todas as portas, reais ou imaginrias, deus das partidas e
dos regressos, deus dos comeos; nesse templo, Numa colocou uma
esttua de Jano como deus da idade, deus do tempo, figurado que foi a
praticar a indigitatio, a indicar com os dedos (em convencionadas
posies) o nmero de dias do ano (365). 39
As portas do templo de Jano40 assinalavam a paz e a guerra
(indicem pacis bellique)41: em tempo de guerra, mantinham-se abertas
como sinal de chamada dos cidados s armas e fechavam-se para
anunciar que a paz reinava entre todos os povos circundantes .42
Numa no esqueceu o deus bifronte quando reformulou o
calendrio segundo o curso da Lua, dando o nome divino a um dos doze
meses (Janeiro) como tambm no esqueceu a fixao no calendrio dos
dias fastos e nefastos.43
Muitos mais deveriam ter sido os dias nefastos dias em que se
suspendia a actividade poltica porque, depois do reinado de Numa, o
templo de Ianus foi fechado duas vezes; segundo LVIO, a primeira
ocorreu aps a 2 Guerra Pnica e a segunda, aps a batalha de
Actium, quando Augusto estabeleceu a paz na terra e no mar 44.
39
Assim diz PLNIO :Ianus geminus a Numa rege dicatus, ... digitis ita figuratis, ut CCCLXV dierum
nota (aut per significationem anni temporis) et aeui esse deum indicent , in NH, 34,16,33. 40
Entre as vrias hipteses da origem etimolgica do termo Ianus h a que a vincula ao termo latino
ianua, i., porta; da a chave apresentar-se como um dos atributos de Jano. 41
LVIO, Ab urbe..., 1,19,2. 42
Apertus ut in armis esse ciuitatem, clausus pacatos circa omnes populos significaret (Ab urbe.., 1,
19,2). 43
Idem nefastos dies fastosque fecit, quia aliquando nihil cum populo agi utile futuram erat (Ab urbe...,
1, 19,7).
Segundo GRIMAL,Fastos, na origem, eram os dias do calendrio religioso, estabelecido pelos
Pontfices, em que o pretor podia desempenhar funes judiciais. Inicialmente, mantida secreta pelos
patrcios, a lista destes dias foi publicada em 304. Este termo designa ainda as listas oficiais respeitantes
aos actos pblicos de actividades romanas (Estado, municpios, colgios) e conservados por inscries
(fastos triunfais, consulares, etc. ), in A Civilizao Romana, p.299. 44
post bellum Actiacum ab imperatore Caesare Augusto pace terra marique parta (Ab urbe..., 1,19,3).
17
Mas boa memria de Numa Pomplio e dos outros reis latino-
sabinos, sobreps-se outra, bem contrria e dirigida aos reis seguintes,
aos que vieram com a dominao etrusca.45
O mbito temporal da regncia etrusca, em Roma, integra-se no
perodo de florescimento da civilizao daquele povo do mar, entre finais
do sculo VIII e o sculo VI a.C., perodo antecedido de uma fase que
abarcou a reformulao, a renovao do contexto vilanoviano em que
estava implantada (sculos IX e VIII a.C.).
No mundo romano, vincada marca deixaram os Etruscos por uma
caracterstica bem especial, assinalada por LVIO nestes termos:
preocupavam-se mais que todos os outros povos com a observao dos
ritos religiosos46.
Da profunda preocupao na observncia dos ritos cultuais
resultou o acentuado gosto de formulrios. Este gosto seria transmitido
aos Romanos que o plasmariam, por exemplo, no mosaico: no
padronizado e linear esquema compositivo da representao do tema da
muralha .
O respeito etrusco pelos ritos religiosos assumia uma dimenso
de receio, vertida na mxima amplitude das prticas supersticiosas.
Sendo certo que a superstio percorre a Antiguidade como percorre
todos os perodos histricos da vida humana, enquanto espontnea
expresso da conscincia da finitude certo tambm que, no contexto
etrusco, ela traduz uma mundiviso acentuadamente fatalista.
Tal mundiviso manifestava-se no facto de recorrerem, como eixo
condutor do comportamento humano, a prticas de interpretao de
fenmenos naturais; encarados como um prodigium, um ostentum, um
45
Sobre a cronologia do incio da dominao etrusca ver M.CBEILLAC-GERVASONI (2001), p.27. 46
Ab urbe condita, 5, 1,6.
18
miraculum, um portentum, neles viam o sinal de uma conduta a seguir,
de um facto extraordinrio ou a predico do futuro.
A esta preocupao de antecipar o futuro respondia o panteo
etrusco com Culsans47, o deus que tinha duas faces para ver o futuro e
o passado, o deus das portas e das passagens, o deus que teve
homlogo no mundo romano: Ianus.
A vontade de ver o futuro ter motivado a compilao das
profecias sibilinas promovida pelo rei Tarqunio Prisco; e motivou as
actividades do etrusco Vulcacius que previu o fim dos Etruscos aps o
decurso de dez sculos48. De facto, nos finais do sculo I a.C., o
desastre de Perugia, em 40 a.C., consolidou a dissoluo dos Etruscos
no mundo romano.
Por sua vez, a vontade de olhar o passado vincou-se no
tratamento que o mundo etrusco deu aos seus mortos, tratamento no
determinado por feitos especiais ou hericos mas sim, por laos de
afecto, vertidos em retratos funerrios que cobriam, por exemplo, os
sarcfagos em klin .
47
Observa Daniele F.MARAS: Come il latino Ianus, anche l omologo dio etrusco Culsans ha due facce,
ma dimostra una natura ctonia e funeraria pi spiccata e si pone all interno di una serie di divinit che
gli Etruschi immaginavano poste a tutela di porte reali e immagineri, I due volti di Culsans in
Archeo.Attualit del passato, n 292, Giugno 2009, Milano, pp.64 -71. 48
Esses sculos no eram como ns hoje os conhecemos, cada qual com a durao de cem anos, mas
saecula, eras que chegavam ao fim aps a morte do mais velho membro sobrevivente de uma gerao.
Cada ano que morria era assinalado com um prego espetado no muro da parede do templo Volsinii; cada
gerao que passava tinha como epitfio um cu carregado de troves, lido por adivinhadores etruscos,
mestres em entranhas e relmpagos. A sibila Begia, que havia revelado a arte da interpretao e da
invocao dos relmpagos, tinha estabelecido regras para a marcao de fronteiras s quais os Etruscos
atribuiam grande significado. Como as suas fronteiras territoriais na Itlia setentrional foram atravessadas
pelos Romanos durante os sculos V e IV a.C., parece que os Etruscos tero comeado uma contagem
decrescente at ltima das suas fronteiras temporais....Os que esculpiram sarcfagos e cmaras
funerrias de uma calma reflectiva, mesmo alegre, pintavam agora nos seus tmulos demnios e deidades
do submundo com rostos violentos, ameaadores. (...) mas j em 44 a.C., impressionado por um
flamejante cometa (Halley), o adivinhador Vulccio anunciou em Roma o fim de um nono, penltimo
saeculum. Previu um dcimo e derradeiro saeculum a que nenhum etrusco escaparia, excepto os prprios
adivinhadores, que sobreviveram o suficiente sua civilizao extinta, para invocar os relmpagos sobre
os Visigodos sculos depois, durante a queda de Roma, em Os Finais de Sculo Lenda. Mito. Histria
de 990 ao ano 2000, de Hillel SCHWARTZ, pp.35-36.
19
O culto dos antepassados que motivou o gosto etrusco pela
retratstica e contagiou o gosto romano pelo retrato determinou o
florescimento da pintura funerria, da projeco plstica da crena na
vida para alm da morte.
Para o mundo funerrio, a decorao pictrica foi buscar os
temas ao mundo grego como a foi buscar o estilo estrutural para
reproduzir imagens da arquitectura, v.g., a falsa porta, smbolo de
passagem; na figurao, recorreu s tcnicas linear e da oposio de
cores para manifestar a predileco pelo tratamento plano,
bidimensional e transmiti-la ao mundo romano que a verteu no
musivrio tratamento plano do tema da muralha.
Eram as marcas, era a expresso artstica de um povo (cujas
origens so uexatae quaestiones: itlicas? orientais?) que se transmitia
aos Romanos do mesmo modo como lhes transmitiu as elevadas
capacidades tcnicas. Capacidades manifestas, por exemplo, na
excelncia da tcnica de granulao da requintada arte da ourivesaria
etrusca ou na clebre tcnica de fabricao de cermica negra, dita
bucchero; esta e outras de produo ou inspirao grega, moldavam os
recipientes para exportao do trigo, azeite, vinho ou sal.
A qualidade dos produtos de apurada tcnica agrcola foi
memorizada na lenda que atribui a invaso cltica das terras etruscas
ao gosto dos Galos pelo doce sabor dos frutos de Itlia e sobretudo do
seu vinho, prazer que lhes era ainda desconhecido49.
49
LVIO, Ab urbe...,5, 33,2: Este povo, diz a tradio, seduzido pelo doce sabor dos frutos (de Itlia) e
sobretudo do vinho, um prazer novo, transps os Alpes e apoderou-se das terras antes cultivadas pelos
Etruscos (Eam gentem traditur fama dulcedine frugum maximeque uini noua tum uoluptate captam
Alpes transisse agrosque ab Etruscis ante cultos possedisse).
20
Tambm a aptido para as tcnicas militares foi transmitida aos
Romanos que dela fariam empenhado uso blico; e dariam melhor e
mais belo uso s tcnicas construtivas, ao arco e abbada que os
Etruscos foram buscar ao Oriente para dar a espaciosidade
naturalmente vedada ao sistema construtivo arquitravado grego.
Na edilcia, os reis etruscos deixaram notvel obra pblica em
Roma, como a drenagem do Forum promovida por Tarqunio-o-Antigo,
ou a grande muralha que Seruius Tullius construiu no contorno do
pomoerium, ou a cloaca mxima feita por Tarqunio-o-Soberbo para unir
todos os canais de esgotos. 50
E com a edilcia honraram os seus deuses, como fez esse rei que
governou com tanta habilidade um reino adquirido pela manha, que
parecia t-lo obtido legitimamente51. De facto, Seruius Tullius dedicou
um templo deusa romana Fortuna, deusa esta que semelhana da
homloga grega Tyche filha do Oceano e de Ttis na teogonia
hesiodaca apresenta como atributo uma coroa mural.
O rei Tarqunio-o-Soberbo dedicou um templo a Jpiter onde
guardou os Libri Sibyllini, compilao dos orculos que a Sibila de
Cumas anotou em folhas de palma; esta planta era tida em to grande
apreo pelos povos da Antiguidade que das suas folhas fizeram motivos
artsticos como os que ocupam os cantos das bordaduras de mosaicos
helensticos preenchidas com o tema da muralha.
50
Diz Mireille CEBEILLAC-GERVASONI : Le mur dit de Seruius en gros blocs de tuf de la carrire de Grotta Oscura est dat du IVe s. Le mur de Seruius tait un haut mur de terre (agger) bord dun
foss, des morceaux de muraille en grosses dalles() Tarquin l Ancien commena faire asscher le
Frum avec l installation d un rseau de petits gouts, ce qui permit une meilleure communication entre
les diffrentes collines. La cloaca maxima de Tarquin le Superbe, en rseau souterrain, unifia tous les
gouts, bneficiant, selon Tite-Live, de la matrise des techniques hydrauliques apportes par les
ingnieurs trusques , op.cit, pp.21-22. 51
Esta afirmao regnum dolo partum sic egit industriae, ut iure adeptus uideretur parte de um facto
narrado pelo autor. Conta FLORO que Seruius Tullius, filho de uma escrava, foi educado por Tanaquil,
mulher de Tarqunio; um dia, ela viu uma chama volta da cabea de Seruius e entendeu-a como um
pressgio de um futuro ilustre (et clarum fore uisa circa caput flamma promiserat), Epitoma Flori, 1,1,6.
21
Assim, no templo de Jpiter, guardada ficou pelo ltimo
Tarqunio a sibilina compilao feita pelo primeiro Tarqunio, o rei que
aliava o gnio grego ao itlico talento(graecum ingenium Italicis artibus
miscuisset)52...
Mais tarde, nas escavaes das fundaes desse templo, os
Romanos encontrariam uma cabea humana que encarariam como um
prodgio anunciador do futuro de Roma:imperii sedem caputque
terrarum53.
memria da notvel regncia etrusca, a promissiva sede de um
imprio e cabea do universo sobreps a memria da governao do rei
cujos costumes lhe dariam o cognome de Soberbo54. Aqui radica a
resistncia romana no s aos reis etruscos e ao regime monrquico
mas tambm prpria designao rex.
Bem mais tarde, por tal designao morreria Jlio Csar;
contudo, e pouco depois, Augusto, metamorfoseando tal designao,
seria a cabea e Roma a sede de um Imprio.
Em 509 a.C., o soberbo rex foi simplesmente expulso. Sob o
pretexto da violao de Lucrcia pelo filho de Tarqunio-o-Soberbo, o
patrcio Lucius Iunus Brutus lidera a conjura que depe o rgio
governante: afasta a dominao etrusca e instaura o regime que
libertatem et consulatum instituit 55.
Deste modo, um Bruto instaura um regime que, em finais do
sculo I a.C., ser ferido de morte por outro Bruto...
52
Graecum ingenium Italicis artibus miscuisset a bela expresso de FLORO para caracterizar o
primeiro rei etrusco, Lucius Tarquinius Priscus, Tarqunio-o-Velho, oriundo de Corinto e que governou
Roma entre 616-579 a.C., in Epitoma Flori, 1,1,5.
53 nec dubitauere cuncti monstrum pulcherrimum imperii sedem caputque terrarum promittere, in
Epitoma Flori, 1,1,6 .
54 cui cognomen Superbo ex moribus datum, ibidem. 55
TCITO, Anais, 1,1,1.
22
Para o mundo etrusco o incio do desvanecente percurso
previsto por Vulccio; para a talassocracia etrusca o ponto de viragem
da roda da Fortuna ocorre sobre guas, guas de Cumas, no ano 474
a.C, em vitorioso combate dos Siracusanos.
Para Roma, a nova ordem poltica o limiar do prodigioso ou
prometido percurso que a transformar em caput imperii .
Tal ordem a resposta nsia de liberdade que percorria o
mundo antigo, mormente o universo das cidades-Estado, na transio
do sculo VI a.c. para o sculo V: um tempo de profundas mudanas
sociais motivadas por razes, entre as quais, o aparecimento da moeda
tem papel relevante.
23
2. A divergncia nos focos de viso: politai ou res publica
uirtus in usu sui tota posita est;
usus autem eius est maximus ciuitatis gubernatio
(Ccero, De Respublica, 1,2)
Os finais do sculo VI, princpios do sculo V a.C. apresentam-se
como tempos de mudanas econmicas e sociais que levam busca do
melhor ou adequado sistema poltico, da politeia.
Este o termo usado por ARISTTELES para abarcar o conceito
de constituio, entendendo-o como o normativo da organizao das
magistraturas, repartio dos poderes, atribuio da soberania, i., a
determinao do fim especial de cada associao poltica.56
Tal busca incide no universo das cidades-Estado, nomeadamente
as do universo mediterrnico, destacadamente no mundo romano e no
mundo grego.
A procura do sistema poltico adequado realidade de cada
contexto encarada como a busca da liberdade, a libertao das derivas
de regimes polticos, como a desptica governao de Tarqunio-o-
Soberbo em Roma ou a governao tirnica de Pisstrato em uma
cidade-Estado grega, Atenas.
56
Poltica, 4,1,5. Em ARISTTELES, o termo politeia apresenta vrias gradaes semnticas, todas
subsumveis em um mesmo conceito: sistema poltico.
24
Roma encontra a liberdade na instituio do Consulado
(libertatem et consulatum instituit), magistratura suprema em sistema
poltico a que d o nome de Respublica57; por sua vez e em tempo
prximo, em 510 a.C., Atenas encontra a liberdade na rejeio do desvio
(Tirania) do modelo de governao de uma magistratura suprema
(monarchos) para adoptar o sistema poltico a que ARISTTELES d o
nome de politeia.58
Da soluo romana (respublica) destaca-se o nuclear vector, a
atribuio dos poderes governativos (imperium) a dois magistrados
(cnsules), por prazo limitado (um ano).
Nesta delimitao temporal do exerccio da autoridade consular e
na imposio da regra da alternncia dos seus titulares assentava a
noo de liberdade: os poderes governativos no eram diminudos
(omnia iura, omnia insignia primi consules tenere) mas era acautelada a
viso do terror em duplicado caso os dois magistrados tivessem, em
simultneo, poderes governativos (id modo cautum est, ne, si ambos
fasces haberent, duplicatus terror uideretur)...59
57
A expresso res publica pode significar negcios que respeitam ao Estado ou o prprio Estado ou a
constituio do Estado. 58
Poltica,4,2:1. No nosso primeiro estudo sobre as constituies, reconhecemos trs espcies de
constituies puras: a realeza, a aristocracia, a politeia; e trs outras espcies, desvios das primeiras: a
tirania para a realeza, a oligarquia para a aristocracia, a democracia para a politeia. 2. (...) Enfim a
democracia o mais suportvel dos maus governos. 3. Um escritor, antes de ns, tratou do mesmo
assunto; mas o seu ponto de vista era diferente do nosso: admitindo que todos estes governos eram
regulares e que assim a oligarquia podia ser to boa como os outros, ele declarou que a democracia o
menos bom dos bons governos e o melhor dos maus. 4. Ns, ao contrrio, declaramos radicalmente maus
estes trs tipos de governos; e livramo-nos de dizer que tal oligarquia melhor que a outra; dizemos
somente que ela menos m.
Afirma Paul DEMON que Constata-se que a democracia aqui uma forma de regime desviado, onde o
povo governa no seu prprio interesse, por meio de decretos que ele toma em toda ocasio, um anulando
outro, sem leis estveis visando o interesse comum do Estado. (La querelle du meilleur rgime, in Hors-
srie Nouvel Observateur, 69, juillet-aot 2008, Paris, pp.52-55). 59
Tito LIVIO: Libertatis autem originem inde magis, quia annum imperium consulare factum est, quam
quod deminutum quicquam sit ex regia potestate, numeres. Omnia iura, omnia insignia primi consules
tenuere; id modo cautum est, ne, si ambos fasces haberent, duplicatus terror uideretur (Ab urbe ...,
2,1,7,8).
25
Da soluo poltica ateniense (politeia) destaca-se o vector nuclear
ou princpio da igualdade, resumidamente definvel nos quatro iotas:
isogonia (todos nascem iguais), isopoliteia (todos so iguais dentro da
cidade), isonomia (todos so iguais perante a lei) e isigoria (igualdade de
expresso); visando cidados livres, excludos estavam de tanta
igualdade as mulheres, crianas e estrangeiros.
A substancial divergncia entre as duas solues polticas assenta
nas contrastantes mundivises, reflectidas nas denominaes que
encorporam diferenciados pontos de mira, contrastantes focos de viso:
a res publica (coisa pblica) e os politai (cidados).
No que respeita soluo tica importa realar que as
aristotlicas gradaes semnticas do termo politeia (lato sensu como
constituio e stricto sensu como especfico sistema poltico) apontam
todas para o cidado (polites) como o foco do pensamento poltico do
mundo grego, ideia visvel, por exemplo, em PLATO que, sua obra
conhecida por Repblica deu o ttulo de Politeia.
A amplitude da significao do termo politeia dada por
ARISTTELES quando refere trs tipos de constituies puras
() que identifica por realeza (), aristocracia
() e politeia (); ou quando aponta as derivas
daquelas constituies, mencionando a tirania como desvio da realeza
( ), a oligarquia da aristocracia (
) e a democracia como desvio da politeia (
). (Poltica,4, 2,1).
A soluo poltica ateniense, consolidada por Clstenes com a
expulso dos Tiranos, plasma na prpria denominao, uma viso
circunscrita ao universo da polis, dos politai.
26
Inserido no contexto da cidade (polis), cuja organizao poltica
est definida numa constituio (politeia), o ser humano um animal
gregrio, um animal poltico (zoon politikon), porque est obrigado a ter
uma participao cvica, i., a exercer a cidadania (politeia) 60.
De entre os vrios tipos de politeuma (constituies) que
percorrem o mundo grego (v.g., a realeza em Esparta), Atenas adopta a
que se denomina politeia, sistema poltico baseado na igualdade de
todos os cidados e na participao directa com subsidirio recurso
ao instituto da representao nas decises respeitantes vida
poltica, vida em comunidade.
Sobre a soluo romana, releva-se aqui o entendimento expresso,
bem mais tarde, j nos finais da Respublica, por CCERO: na
monarquia todos os restantes cidados esto margem da
participao jurdica e deliberativa; sob o domnio da aristocracia, a
multido escassamente tem acesso liberdade, uma vez que est
privada de todo o poder deliberativo; e, quando tudo governado pelo
povo, ainda que justo e moderado, contudo a prpria equabilidade
desigual, uma vez que no tem nenhuns graus para distinguir o
mrito61.
E mais diria: das trs espcies principais de constituio, de
longe a melhor, em minha opinio, a monarquia, mas mesmo
monarquia se sobrepe uma outra, que seja harmonizada e temperada
com elementos das trs principais formas de governao. Pois o que me
60
Dire, comme le fait Aristote, que l homme est un zoon politikon, nest pas faire de l tre humain,
comme on traduit d ordinaire, un animal politique, c est en faire un tre vivant l intrieur de la cit.
Aristote ajoute du reste aussitt: Celui qui, par nature et non par hasard, est sans cit (apolis) est moins
ou plus qu un homme (in Politique I, 1253 a 4). Mais il n y a pas que le barbare toucher l animal
(ou excepcionnellement au dieu). C est la totalit du monde sociale qui pourrait tre integre un vaste
tableau, conu la manire qui tait celle des Pythagoriciens, mais o, du ct droit, on ne trouverait
que le Grec adulte, citoyen, n exerant aucun mtier vil , tandis que gauche on placerait le barbare,
l enfant, la femme, l artisan, l esclave. In La Grce Ancienne, vol.3.Rites de passage et transgressions,
de Jean-Pierre VERNANT et Pierre VIDAL-NAQUET, p.23. 61
Da Repblica, traduo de Helena Rocha PEREIRA, in ROMANA.Antologia da cultura latina, p.34.
27
agrada que haja na coisa pblica algo de superior e de rgio, que haja
algo de atribudo e submetido autoridade dos cidados de primeira
qualidade, e que haja certos assuntos reservados ao juzo e vontade da
multido. Esta constituio possui, em primeiro lugar, uma certa
equabilidade.
Remata-se a longa citao com o conclusivo entendimento do
citado: pois as formas primitivas facilmente deslizam para defeitos
opostos, de o rei se converter em tirano, os aristocratas (optimates) em
faco, o povo em confusa turbamulta (...). Isto no sucede nesta
constituio mista (permixta constitutio) da repblica.62
Este o entendimento sobre ordem poltica instaurada, em Roma,
no final do sculo VI a.C., entendimento vertido no sculo I a.C. por
quem afirmou que a virtude est toda inteira nas obras e o maior
emprego da virtude o governo dos Estados (uirtus in usu sui tota
posita est; usus autem eius est maximus ciuitatis gubernatio).
Deste confronto entre dois sistemas polticos emergem os focos
contrastantes de duas vises a matria/coisa uersus o homem/esprito
que vo moldar, dar substncia e dar contraste aos pertinentes
percursos histricos e s respectivas produes artsticas.
62
Helena Rocha PEREIRA, in ROMANA.Antologia da cultura latina, pp. 35-36.
28
3. A mobilidade espiritual dos Gregos
Graecia capta ferum uictorem cepit
(Horcio, Epstolas, 2,156)
O percurso histrico de Atenas prende-se com uma mundiviso
circunscrita dimenso da polis63 como claramente se extrai da ratio da
colonizao grega, caracterizada em modo bem preciso por PICARD:
arrastava para longe dum pas, superpovoado, grupos numerosos de
emigrantes que, instalando-se, sem tencionarem regressar, numa nova
ptria, trabalhavam para recriar a imediatamente a feio antiga.64
esta caracterstica de recriar a feio antiga em novo contexto
de natureza autrcica que molda a viso do mundo como um conjunto
de compartimentos, de organizados ncleos populacionais (poleis) e
assim se plasma na musivria pavimental, no padronizado esquema
compositivo feito de bandas decorativas que correm em torno de um
painel central.
63
Polis era o modelo das antigas cidades gregas desde o perodo arcaico at ao helenstico e
caracterizava-se por ser uma comunidade autnoma de cidados (politai ou astoi) eventualmente
acompanhada de estrangeiros (xenoi ou metoikoi); na sua configurao espacial sobressaia a zona central
pblica (agora) e a reserva da parte alta aos templos. 64
A vida quotidiana em Cartago no tempo de Anbal Sculo III antes de Cristo, Gilbert e Colette
CHARLES-PICARD, p.25.
29
Fig.1: O esquema compositivo grego em mosaico de seixos rolados (Corinto)
Neste mosaico das Termas do Centauro em Corinto, de finais do
sculo V a.C., o esquema compositivo desenvolve-se a partir de um
painel central; este est ocupado por quadrantes de crculo em branco e
negro e est moldurado por faixas circulares de tringulos, de
meandros e de vagas.
a mundiviso helnica que configura o privilegiado esquema
compositivo, vertida que a essncia da helenidade (a feio antiga, a
metropolis ou essncia, alma grega) na centralidade de um painel,
enquanto a mutabilidade as circunstncias, o movimento sugerida
nas bandas que correm em torno do centrado painel.
Tal esquema apresenta-se como uma linguagem artstica comum,
uma koine, que exprime a idiossincrasia dos Helenos; por isso, percorre
no s o contexto ateniense mas todo o universo grego e, mais tarde,
percorrer arte bizantina65.
a expresso artstica de uma viso do mundo partilhada por
todos os Helenos, porque no obstante a diversidade nos grupos
tnicos ou na implantao geogrfica, determinante de diferenas como
65
V.Andr CHASTEL, LItalie et Byzance.
30
a j mencionada em matria de sistemas polticos 66 todos tinham o
mesmo sangue (homaimon), os mesmos costumes (homoethes), a mesma
lngua (homoglosson) e a mesma religio (homothrskon).67
Na coerncia deste helnico contexto, Atenas, vinculada a uma
viso do mundo no como um continuum, um imprio, faz tal como o
seu mundo grego um percurso despojado de escopos materialmente
expansionistas: segue a via da mobilidade espiritual.
Assim, por volta de 500 a.C., quando um filsofo grego da escola
jnica, Heraclito de feso (576-480 a.C.), defende que o movimento a
essncia do ser, em resposta, a arte grega procura uma nova esttica
dando incio a um movimentado percurso plstico, manifesto na
estaturia e escultura68, artes derivadas da antiga arte de moldar em
argila a que os Gregos davam o nome de plasticen (NH,34,35).69
A rigidez da arte arcaica entra em tenso na busca do movimento
que ir dar substncia plstica do Classicismo (clssico primitivo); em
contraposto, o corpo humano anima-se e, por isso, perde o sorriso
(estilo severo70); dominada a nova tectnica da figura em movimento, a
plstica das arrojadas poses que expem as figuras a todos os ngulos
de viso d o apogeu ao Classicismo.
66
Esparta acolheu o regime monrquico e Mgara, p.ex., rejeitou tal modelo. Conta PAUSNIAS que os
Megarianos depois de terem matado o rei Hiperon, em razo da sua insolncia e cupidez, optaram por um
regime de magistrados eleitos, para cada um governar sua vez; consultado o orculo de Delfos sobre os
meios de fazer prosperar a sua cidade a resposta foi que os Megarianos seriam felizes na medida em
que eles deliberassem com o maior nmero; pareceu-lhes que este orculo indicava os mortos, j que so
em maior nmero que os vivos, e por isso, os Megarianos construiram o Senado no lugar onde estavam os
tmulos dos heris... (Periegese, 1,43).
Antes deste relato j PAUSNIAS tinha feito meno ingenuidade dos Megarianos (Perieg, 1,41). 67
HERDOTO, 8,144,2. 68
PLNIO afirma que a escultura to antiga quanto a pintura ou a estaturia: non omittendum hanc
artem (marmoris sculpendum) tanto uetustiorem fuisse quam picturam aut statuariam, em NH, 36, 15.
Sobre plastes e ratio plastica ver VITRVIO (1,1, 13) e notas de J. MACIEL, Vitrvio Tratado de
Arquitectura, p.35. 69
PLNIO atribui a inveno da tcnica de moldar em argila (plasticen) ao pintor de cermica sicinio,
Butades de Corinto (NH,35,43); a soldagem com ferro atribuda a Glauchus de Chios, sc.VII a.C., por
PAUSNIAS (Perieg.,10,16) ; este autor (Perieg.,8,14, 8) atribui as primeiras esttuas em bronze, de 508
a.C.,a Rhoecus e Theodorus, dois escultores e arquitectos que construram o Heraion de Samos,
relacionado com o labirinto de Lemnos (v. nota 247, p.161). 70
A designao estilo severo est conceptualmente ligada escultura grega e cobre, grosso modo, os
primeiros 50 anos do perodo clssico.
31
Os temas artsticos do perodo arcaico (700-500 a.C.), todos
relacionados com a imortalidade, transitam para o perodo clssico71,
onde se sujeitam a novo tratamento estilstico.
Uma nova esttica molda as imagens dos deuses imortais
(simulacra deorum) ou as imagens dos heris, i., dos que adquiriram a
imortalidade por terem sido gerados em misto conbio, divino e terreno;
e molda tambm, as imagens dos homens que mereceram a
perpetuidade por alguma causa ilustre (illustri causa perpetuitatem
merentium)72.
Entre as causas ilustres, todas de carcter religioso, PLNIO
destaca, como a primeira, a vitria nos jogos sagrados. Tal vitria,
sendo triplicada, conferia o excepcional direito representao dos
traos individuais do autor da proeza (effigies hominum), representao
essa que, pela expressa semelhana se enquadrava no gnero das
imagens chamadas icnicas (iconicas uocant), ou seja, no gnero do
retrato.
Tal era o modo de garantir a imortalidade dos retratados,
memorizando-se a sua individualidade e memorizando os seus feitos em
inscries no pedestal das suas esttuas e no apenas nos seus
tmulos73.
Esta reserva do retrato excepcionalidade da conduta humana
vai diluir-se, subtil e paulatinamente, ao longo do perodo clssico, na
esteira de um percurso esttico que na coerncia do pensamento
71 No perodo clssico, as figuras passam a descrever o movimento, distanciando-se, por isso, da mera insinuao do movimento, contida na rgida estabilidade, monumentalidade, que caracterizou o estilo
arcaico (700-500 a.C.), estilo que sucedera ao perodo da organizao geomtrica da figurao, o
denominado estilo geomtrico (1000-700 a.C.).
Segundo K.SCHEFOLD, a primeira fase do classicismo,clssico primitivo(500-450), caracteriza-se pela
tenso entre imobilidade e movimento vertida em modelos arcaicos, e nela distingue a fase subarcaica
(500-480) e o momento inovador do estilo severo (480-450), que introduz um novo sistema de formas de
amplas superfies e eixos slidos a suportar a imagem. A segunda fase, apogeu do classicismo (450-425),
caracteriza-se pelo equilibrio harmonioso das tenses; segue-se o estilo rico (425-380) que SCHEFOLD
caracteriza pela ausncia daquele equilibrio e pelo privilgio da aparncia e no da essncia, o momento
mais do que a regra. A ltima e quarta fase, a do classicismo tardio (380-325), vem compensar esse
predomnio do temporal, integrando pela 1 vez o espao no esquema da composio, na medida em que
se desenvolveu em redor da forma plstica. In Grcia Clssica, pp.15-16. 72
PLNIO, NH, 34,9. 73
Ibidem.
32
filosfico do sculo V a.C., do sofista entendimento do homem como
medida de todas as coisas74 desce do mundo do Olimpo para o
mundo do Homem.
O Classicismo, ao demarcar-se do estilo arcaico pela introduo (e
no mera insinuao) do sentido do movimento nas representaes
artsticas, consubstancia um caminho na direco do pujante
naturalismo do periodo helenstico, tempo em que o ideal dar lugar ao
real, o genrico ao particular, a essncia da condio humana
especificidade do indivduo.
Trata-se de uma busca do Homem, do Homem na sua
envolvncia, na Natureza, suficientemente atestada pelas artes
derivadas do plasticen.
todo um percurso esttico que, vislumbrado pelo arcaico
escultor da escola argiva, Ageladas, e iniciado por Fdias, atinge o seu
termo no ltimo tero do sculo IV a.C., ao tempo em que Lsipo
plasma, com um novo cnone, a marca de um novo perodo artstico.
No perodo Clssico, a rgida monumentalidade que caracterizou a
tectnica arcaica substituda por novas e cannicas frmulas das
propores da figura humana, orientadas para a sua humanizao,
para o realismo da representao. Deste modo, abalado o idealismo
que enformou o estilo arcaico e foi vertido na frontalidade de rgidos
corpos, como os dos Kouroi e Korai de estereotipado sorriso, imagens
de uma etapa humana (juventude) usadas como oferendas votivas ou
marcos de sepulturas.
A transio da esttica arcaica para a do Classicismo manifesta-
se na brnzea esttua da deusa Atena, obra encomendada pelos colonos
de Lemnos e executada por escultor da escola tica que teve o seu
apogeu na 83 Olimpada e deixou a sua marca no programa
construtivo iniciado por Pricles, nomeadamente, no Parteno.
74
Comentado por PLATO em Teeteto. Traduo de Adriana Manuela NOGUEIRA e Marcelo BOERI.
Prefcio de Jos TRINDADE SANTOS, Lisboa: Servio de Educao e Bolsas, Fundao Calouste
Gulbenkian, 2005, p. 205 [ 152 a].
33
Daquela esttua de Fdias (498-432 a.C.), a obra mais notvel do
escultor no entender de PAUSNIAS75, merece relevo a articulao da
tectnica arcaica com a plstica clssica. (ESTAMPA I)
De uma estrutura potente, pesada, arcaica, a imagem da Atena
Lmnia, solidamente assente nos ps separados, ergue-se por entre as
rgidas pregas que distanciam o seu peplo dos lisos peplos arcaicos;
assim anunciada, a nova esttica plasma-se no movimento da cabea
que foge regra da frontalidade, e no movimento dos braos que
rejeitam a inerte pendncia ao longo dos corpos arcaicos.
Com a cabea de perfil, a deusa Atena a protectora dos
Atenienses, porque para eles inventou a oliveira 76 dirige o olhar vago
para o capacete que Fdias lhe colocou na mo direita para imprimir
sentido de movimento figura; a este movimento descendente, Fdias
contrape, bem harmoniosamente, o sentido do erguido brao esquerdo
que se apoia na lana desta deusa que nasceu de capacete no devido
lugar e armadamente equipada da cabea de Zeus.
A mitolgica sugesto das magnficas dimenses divinas
sugerida na obra do escultor e deu-lhe celebridade porque, segundo
QUINTILIANO, adequou natureza divina a grandeza da sua obra
(maiestas operis deum aequaeuit)77.
Tal facto manifesto na esttua criselefantina de Zeus que Fdias
fez para o templo de Elis: as dimenses colossais do deus sentado,
levariam ESTRABO a comentar que se o deus se erguesse arrastaria a
cobertura do templo com a cabea...78
75
Periegese, 1,28,2. 76
Na disputa de Atena e Posdon pela proteco de Atenas: Segundo o mito, Posdon chegou primeiro e,
tocando com o tridente no solo, fez brotar uma fonte de gua salgada na Acrpole. Depois veio Atena e
rebentou uma oliveira. Este momento est representado no fronto ocidental do Prtenon, simbolizando o
triunfo de Atena. Ccrops atribuiu a cidade deusa, em Herdoto. Histrias. Livro VIII, Jos RIBEIRO
FERREIRA, Carmen LEAL SOARES, p. 66 e nota n. 110. V. PAUSNIAS, Perieg., 1,24. 77
QUINTILIANO, 10, 9. 78
Geografia, 7, 3,30.
34
Antes de se atentar nesta observao de ESTRABO, no
despiciendo ter-se em conta o contedo semntico atribudo pela
analstica da Antiguidade representao de Zeus sentado.
Conta EUSBIO de Cesareia com base em PORFRIO (232-304),
filsofo da escola de Alexandria e discpulo de PLOTINO que Zeus est
sentado porque esta atitude exprime a imobilidade do seu poder.
Merece acentuado relevo, pela aclarao de contedos
iconolgicos da Antiguidade, a continuada explicao sobre a
iconografia de Zeus: as suas partes superiores esto nuas, porque ele
manifesta-se nas substncias intelectuais e nos corpos celestes; as suas
partes inferiores esto cobertas porque ele invisvel nas coisas que
contm os abismos do mundo. Na mo esquerda leva um ceptro, porque
este o lado do corao, o orgo que tem o primeiro lugar entre todas
as partes do corpo, pela faculdade da inteligncia e da razo: ora, pela
sua inteligncia criadora que ele governa o mundo. Na (mo) direita tem
uma guia para indicar que domina os deuses do cu, como a guia
domina as aves do ar ou um emblema da vitria como vencedor de
todos os obstculos...79.
Quanto esttua de Zeus feita por Fdias, o reparo de ESTRABO
aponta para o cnone das propores da figura humana criado pelo
escultor que obteve o 1 lugar em certame de esttuas de Amazonas;
participado pelos mais clebres artistas de diversos grupos etrios, o
concurso deu a Fdias o 2 lugar e deu a feso as melhores esttuas
para o templo de rtemis.
Sobre este certame de esttuas das lendrias mulheres guerreiras
que queimavam o seio direito para melhor atirar o arco, conta PLNIO
que a avaliao das obras postas a concurso foi cometida aos prpios
concorrentes. A acuidade que presidiu escolha dos avaliadores
79
Preparao Evanglica, 3, 9.
35
presidiu leitura dos resultados da avaliao: cada um dos avaliadores-
concorrentes indicou, primeiramente, o seu prprio nome e, todos
indicaram, em segundo lugar, o mesmo nome: Policleto.80
Policleto de Scion (480-420 a.C.), escultor da escola argiva, foi o
autor de um cnone para a representao das figuras, magistralmente
vertido na mais clebre esttua da sua prolfica e brnzea obra, o
Dorforo. (ESTAMPA II)
Esta representao de um jovem cheio de vigor que cuida o seu
corpo no se enquadra, em bom rigor, no temtico e tradicional elenco
de deuses, heris e vencedores, nem apresenta qualquer conotao
imortalidade como a contida, pela sua finalidade (votiva ou tumular),
nas arcaicas representaes de kouroi ou korai.
To pouco se encaixa no gnero dito retrato de atleta, gnero
iniciado em perodo arcaico e que tem entre os primeiros exemplares o
retrato do pancriatista Arrhachion (c. 564 a.C). Sobre este retrato regista
PAUSNIAS o estilo arcaico, especialmente na atitude, porque, os ps
no esto separados e as mos pendem sobre os lados at s coxas81.
Neste gnero se inscreve a esttua feita por Ageladas ao vencedor da
66 Olimpada (516 a.C), Clestenes o Epidamniense, retratado no seu
carro, com a sua equipa e com inscries dos nomes dos cavalos
(Phoinix, Korax, Knakias e Samos), inscries essas que evocam o tema
dos cavalos vencedores que seria vertido em mosaico de contexto
domstico, do sculo IV d.C., em Torre de Palma na Lusitnia (Fig.66).
O Dorforo de Policleto no visa retratar um concreto vencedor,
no visa preservar a memria de um sagrado feito, v.g., a vitria nos
jogos sagrados.
80
NH, 34,19. 81
Conta PAUSNIAS que a 3 vitria de Arrhachion (na 54 Olimpiada, em 564 a.C.) ficou clebre
tanto pela deciso do jri como pela coragem do atleta na luta com o ltimo dos seus adversrios
porque, enquanto estava a ser estrangulado, Arrachion parte o p do adversrio; este, dorido, perde a
disputa por uma coroa de oliveira e o vencedor, Arrhachion, d o ltimo suspiro e ... coroado depois de
morto. (Perieg. 8, 40).
36
uma imagem que projecta, no um homem concreto, mas um
ideal, um tipo, uma remisso para os valores da paideia,
nomeadamente, a efebia, esse principal instrumento da educao grega
que, at ao perodo helenstico, se caracterizou pela primazia dada
educao fsica.
Nesta obra de Policleto, a ausncia de relao com a imortalidade
articulada com a sugesto de valor educacional, reflecte o evolutivo
percurso esttico clssico em direco ao mundo humano, em direco
ao antropocentrismo; o Porta-Lana a expresso plstica da mudana,
da reformulao do pensamento humano, em deslocao do mundo dos
imortais, do Olimpo, para o mundo finito, concreto, do homem.
No lado direito da figura, o brao pende ao longo do corpo sem
tocar a perna que sustenta a estrutura leve da figura e se sustenta no
p pousado; no outro lado, o brao esquerdo, flectido, equilibra as
tenses enquanto, de joelho dobrado, a recuada perna mal deixa aflorar
o p no cho; o rosto foge frontalidade e rejeita a emoo com a ajuda
do olhar vago.
Esta esttua exemplar do cnone das propores do corpo
humano, representando uma figura sem a rigidez mas com a juventude
e a nudez dos kouroi. A flexibilidade da representao resulta da
modelao da figura em pose de contraposto, modo que levou PLNIO a
dizer que foi Policleto quem inventou a sustentao das esttuas sobre
uma nica perna82.
Mas carga de louvores obra do escultor argivo, PLNIO junta a
crtica de VARRO forma padronizada e quadrada das esttuas de
Policleto.
82
uno crure ut insiterent signa excogitasse, NH, 34 ,19.
37
O reparo varroniano, ao visar a dimenso de idealismo presente
na feitura padronizada da obra de Policleto, aponta para a direco do
naturalismo vincada, por exemplo, na obra de Mron (n.480)83, o
escultor que parece ter sido o primeiro a ter variado a verdade dos
tipos84.
O seu Discbulo apresenta maior realismo na representao do
corpo humano e plasma a continuidade, no perodo clssico, do
princpio arcaico da aret (excelncia) impresso na modelada figura
animada por acentuado sentido de movimento. (ESTAMPA III)
O corpo do atleta curva-se para lanar o disco que sustenta na
mo de um brao recuadamente levantado; por sua vez, o brao
esquerdo desce diagonalmente e em suave curva para pousar a mo na
dobrada perna direita que sustenta a figura enquanto o p esquerdo,
em perna flectida e recuada, aflora o cho. todo um jogo de tenses
com harmonia, de formas curvas e de movimentos que materializam o
instante, o momento, numa figura que quer ser vista por todos os
ngulos da viso.
Contudo, a obra de Mron suscitaria o reparo de PLNIO no
sentido de que no representou as emoes.85
As emoes, a expresso dos sentimentos, a adefectus
exprimentia seriam plasmadas, por Praxteles (390-335 a.C.), na
estaturia e, magistralmente, na arte que o tornou clebre a
escultura86 porque, com consumada arte informou as suas figuras de
mrmore com as paixes da alma.
Moldou em bronze e esculpiu no mrmore sentimentos como a
alegria ou a tristeza87 e, na mais bela das suas obras, a Afrodite de
Cnido, a humanizao da imagem divina perpassa no conjunto plstico
83
Com apogeu artstico entre 480-440 a.C.. 84
NH, 34,19. 85
animi sensus non exprimissi, NH, 34,19. 86
marmore felicior, ideo et clarior fuit, ibidem. 87
duo signa eius diuersus adfectus exprimentia flentis matronae et meretricis gaudentis, NH, 34,19.
38
exposto a todos os ngulos de viso: as modeladas formas do tronco e
membros harmonizam-se com a doura das linhas do rosto virado para
o lado, enquanto a mo esquerda segura com firmeza o vu que se abre
em suaves pregas que descem at ao cho e a mo direita aflora a coxa
esquerda do corpo desnudo. (ESTAMPA IV)
Deste modo, Praxteles produz mais uma representao de um ser
imortal, ao produzir uma imagem da deusa nascida da espuma do mar,
deusa do amor e me do mtico heri troiano a quem a Sibila de Cumas
profetizou a fundao de um imprio eterno: o heri Eneias que seria
propagandeado por Augusto na Ara Pacis e pelo seu pico na Eneida
como o natural ascendente da famlia dos Iulii...
A Afrodite de Cnido acusa, tal como toda a obra de Praxteles, a
evoluo artstica verificada ao longo do perodo clssico,
nomeadamente no tratamento plstico e no alargado mbito dos temas
das representaes artsticas.
O princpio da excluso da representao dos traos individuais
dos seres que no se notabilizaram por qualquer feito, dos seres
comuns, est afastado neste tempo de Praxteles, como testemunha a
esttua dourada que aquele escultor fez da sua amada e que ela, Frine,
dedicou a Apolo.88
E para Mgara89, para o templo de uma deusa que tem a coroa
mural como atributo do seu numen, Praxteles fez um simulacrum : uma
esttua de Thyche, a deusa que ter culto revigorado em tempo
helenstico, pela vinculao do seu poder protectivo sorte de cada
indivduo; aqui radica a distino de deusas como Reia ou Cbele que
apresentam idntico atributo arquitectnico mas tem os numina
vinculados sorte de uma comunidade, uma cidade (polis).
88
PAUSNIAS, Perieg., 10,15. 89
Perieg.,1,43,6.
39
A mencionada feitura de retratos de homens comuns, bem como a
apontada especializao do numen da Sorte ou Fortuna reflectem a
centralizao do pensamento filosfico no indivduo; configura-se um
percurso plstico que ruma do contexto clssico para o helenstico, que
desce do mundo dos imortais para o mundo dos mortais; o rumo de
uma produo artstica que se encara a si mesma como LUCIANO
encarou o escultor Demtrio de Alpece: fazedor no de deuses mas de
homens 90.
A temtica artstica no mais se reduz ao campo da imortalidade;
assim, a dimenso de idealismo vertida nos simulacra deorum ou nas
esttuas dos que mereceram a perpetuidade vai, suavemente, dar lugar
expresso realista do ser terreno, mortal.
Surge o retrato de filsofo, gnero que junta ao realismo
estilstico a revalorao da dimenso intelectual humana, em manifesto
paralelismo com a evoluo da paideia grega.
idealizada representao de figuras como o Discbulo ou o
Dorforo, sobrepe-se a representao do homem real, decaindo os
valores que presidiram esttica arcaica e que atravessaram o
Classicismo: o autodomnio (sofrosyne) e o equlibrio entre as
qualidades fsicas e morais (kalokagatia).
a reformulao do conceito de excelncia (aret) que passa a dar
primazia ao vector intelectual em detrimento do vector fsico,
acompanhando assim, a evoluo do instituto da efebia que passa a
privilegiar a oratria e filosofia e a passar para segundo plano a
disciplina fsica e militar.91
90
LUCIANO, Philopseudes, 20. 91
V. Arnold HAUSER, Histria Social da Arte e da Literatura, pp.69-71.
40
No ltimo tero do sculo IV, surge um inovador cnone da
figurao plasmado na brnzea obra de Lisipo (370-318 a.C), nos seus
mltiplos retratos que revelam o incio de novo ciclo esttico e que
traduzem o fim do ciclo clssico por ter alcanado o seu escopo: o
homem.
No ano 338 a.C., Atenas e o grego mundo encontram Alexandre
em Queroneia.
O desastre de Queroneia foi o comeo de todos os males da
Grcia mesmo para aqueles que no quiseram tomar partido perante o
perigo comum e aqueles que se colocaram ao lado dos Macednios.92
Esta afirmao de PAUSNIAS d a dimenso do desaire, da
perda de liberdade que resultaria da batalha de Queroneia, porque o
apreo pela indepndencia, sobretudo poltica, da sua cidade, uma
caracterstica do homem grego93.
O mundo grego, um mundo que sempre ansiou pela autonomia
fica sob tutela de Filipe II da Macednia e a arte helnica expande a
emoo: na musivria pavimental, o compositivo esquema grego de
painel central aumenta o numero de bandas de enquadramento, numa
sugesto do synoikismos, esse processo de fuso por motivos defensivos
de pequenas comunidades que se identificam com um centro, a
metropolis.
92
PAUSANIAS, Perieg., 1,25. 93
Cfr. Herdoto.Histrias. Livro VIII, de Jos Ribeiro FERREIRA, Carmen Leal SOARES, p. 52, nota
52.
41
Fig.2: O esquema compositivo grego em Delos, mosaico de finais sc. II a.C.
Na Fig.2, uma composio base de semicrculos forma um floro
que ocupa o painel central deste mosaico de Delos, de finais do sculo
II, princpios do sculo I; o painel enquadrado por cinco faixas sem
decorao e duas faixas com o motivo das vagas, clara manifestao da
tendncia nova para aumentar o nmero de faixas de enquadramento.
O Classicismo esvaiu-se e as helenas poleis vo-se dissolvendo;
tem razo HATZFELD94 ao afirmar que o fim de uma poca; mas ,
tambm e sobretudo, a passagem do helenismo imortalidade, porque
aqui comea a difuso da paideia grega, porque aqui se d o
surgimento do mundo globalizado do Helenismo95.
O Estratego do imprio Macednio, Filipe II, morre em 336 a.C. e
Alexandre continua a poltica expansionista. Estende o seu imprio
Fencia, Sria, Egipto, Gaugamela na Mesopotmia, Susa no Kurdisto,
a Perspolis; ocupa a Bactriana onde funda uma cidade a que d o
nome de Alexandria Extrema, para assinalar a extenso do imprio at
India; em 326, no vale do Gange, os soldados revoltam-se. Retrocede.
94
A batalha da Queroneia marca o fim de uma poca, e a extraordinria difuso da civilizao grega que
dela resulta no deve fazer-nos esquecer que est em vias de desaparecer esta primeira forma de
helenismo, restrita, mas muito perfeita, que tinha por base cidades livres e prsperas, in Histria da
Grcia Antiga, Jean HATZFELD, p.250. 95
Antnio Pedro MESQUITA, Introduo ao Estudo da Filosofia, p.109.
42
Em 323 a.C., quando preparava uma espedio naval s costas
da Arbia, morre de febres na Babilnia.
Inserida na vastido deste contexto civilizacional, a arte dos
Helenos ser conhecida pelo nome de helenstica, por sugesto de
DROYSEN(1808-1884)96. um contexto de assimilao ao imprio
alexandrino, onde vai dar e receber influncias, projectando o ethos e o
pathos humanos, plasmando o quotid
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