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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 16, NOVEMBRO 2002

A seção “Atualidades em Química” procura apresentar assuntos que mostrem como a Química é uma ciência viva, sejacom relação a novas descobertas, seja no que diz respeito à sempre necessária revisão de conceitos.

Recebido em 31/10/02, aceito em 16/11/02

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ATUALIDADES EM QUÍMICA

Todos os seres vivos, desde víruse bactérias até seres superiorescomo plantas e animais, são

constituídos de macromoléculas res-ponsáveis pela grande maioria dassuas funções vitais. A hereditariedade,uma das principais características dosseres vivos, é transmitida de geraçãoem geração por intermédio de políme-ros de ácidos nucléicos, denominadosácido ribonucléico (RNA) e ácidodesoxirribonucléico (DNA). As informa-ções contidas nos ácidos nucléicossão operacionalizadas por meio da ex-pressão de proteínas (polímeros deaminoácidos), que têm funções de ca-talisar as mais variadas reações nossistemas biológicos, como as opera-ções de digestão dos alimentos, divi-são celular, leitura e cópia dos ácidosnucléicos, entre milhares de outras rea-ções. As proteínas também têm funçãode transporte de substâncias e elétrons(por exemplo, a hemoglobina quetransporta oxigênio e gás carbônico),função de sustentação (por exemplo,o colágeno dos tendões), função mo-tora nos músculos, função protetora doorganismo (por exemplo, os anticor-pos), entre muitas outras funções vitais.

Outras macromoléculas presentes nosseres vivos são os polímeros de açú-cares, como a celulose que dá susten-tação às plantas, o amido que é fontede reserva para as sementes e larga-mente usado na alimentação humana,entre muitos outros polissacarídeos.

Os estudos dos genomas têm le-vado ao conhecimento da composiçãodos ácidos nucléi-cos e dos genes queeles codificam. Ca-da gene pode geraruma proteína. Essesestudos estão bemavançados e váriosseres vivos já têmseus genes conheci-dos ou seqüencia-dos. O assinalamen-to dos genes se dá por intermédio daleitura do DNA, procurando os sinaisde iniciação e terminação. Dessa formadelimita-se os quadros abertos deleitura (sigla ORF, do inglês, open read-ing frames). Os ORF não necessaria-mente são expressos como proteínas.Pode ocorrer que ORF não sejam ex-pressos ou que muitos ORF juntos for-mem uma proteína, por meio de jun-

ções alternativas. Muitos genes tam-bém só são expressos durante certafase da vida ou quando o ser vivo estásujeito a estresse. Isto significa que apresença de um gene não neces-sariamente leva à produção da respec-tiva proteína. Assim, para conhecertodos os mecanismos celulares torna-se necessária a análise global de todas

as proteínas expressasem uma célula. Esseestudo é conhecido co-mo proteoma (em ana-logia ao genoma).

Uma outra importan-te área de estudo deproteínas é a determi-nação de sua estruturatridimensional, para queseja possível a correla-

ção entre a estrutura e sua função bio-lógica. As proteínas têm uma estruturatridimensional única e pequenas mu-danças estruturais podem levar à per-da ou redução de sua atividadebiológica.

Pela breve introdução acima pode-se ver que os estudos dos proteomasdas várias espécies e de como as pro-teínas funcionam são o grande desafiodo nosso tempo. Esses estudos estãotornando-se viáveis e cada vez maisrápidos graças aos métodos analíticos

Luiz Alberto Colnago, Fábio C.L. Almeida e Ana Paula Valente

O Prêmio Nobel de Química de 2002 foi outorgado ao químico John B. Fenn e ao engenheiro Koichi Tanakapelo desenvolvimento da espectrometria de massa para análise de macromoléculas biológicas e ao químico KurtWüthrich pelo desenvolvimento de aplicações da ressonância magnética nuclear (RMN) multinuclear e multidi-mensional para determinação da estrutura tridimensional de proteínas. As contribuições desses pesquisadorestornaram a Bioquímica a “grande ciência” do nosso tempo, permitindo a rápida identificação das proteínas presentesem uma amostra em solução, bem como das suas estruturas tridimensionais.

Prêmio Nobel, ressonânica magnética nuclear, espectrometria de massa, proteínas, macromoléculas biológicas

As informações contidasnos ácidos nucleicos sãooperacionalizadas pormeio da expressão de

proteínas (polímeros deaminoácidos), que têm

funções de catalisar as maisvariadas reações nossistemas biológicos

Espectrometria de massa e RMN no estudo de macromoléculas biológicas

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 16, NOVEMBRO 2002Espectrometria de massa e RMN no estudo de macromoléculas biológicas

desenvolvidos pelos pesquisadoreslaureados com o Prêmio Nobel deQuímica de 2002. A seguir é apresen-tada uma rápida revisão sobre proteí-nas para ajudar a entender a impor-tância do trabalho desses laureados.

Proteínas: da seqüência deaminoácidos à estrutura quaternária

As proteínas são compostas deunidades estruturais básicas de molé-culas orgânicas denominadas amino-ácidos. Os 20 aminoácidos mais co-muns encontrados na natureza e codifi-cados pelo DNA são: glicina (gly),alanina (ala), valina (val), leucina (leu),isoleucina (ile), metionina (met), prolina(pro), fenilalamina (phe), triptofano(trp), serina (ser), treonina (thr), aspa-ragina (asp) glutamina (gln), tirosina(tyr) cisteína (cis), lisina (lys), arginina(arg), histidina (his) ácido aspártico(asp) e ácido glutâmico (glu). Na Figura1 está a fórmula estrutural básica deum aminoácido, que é constituído deum grupo amino, em preto, um grupocarboxila, em azul, um átomo de hi-drogênio, em verde, e uma cadeia late-ral (R), que diferencia os vinte aminoá-cidos, em roxo. Esses grupos sãoligados a um carbono assimétrico (me-nos para glicina, na qual a cadeia late-ral também é um átomo de hidrogênio),conhecido como carbono-α (Cα), emvermelho.

Os aminoácidos ligam-se entre sipara formar peptídeos ou proteínas por

meio dos grupos amino e carboxila, for-mando uma ligação peptídica pela eli-minação de moléculas de água, con-forme mostrado na Figura 2.

Uma proteína é composta de deze-nas a centenas de aminoácidos e a se-qüência de ligação é determinadapelos ácidos nucléicos (ácido desoxirri-bonucléico-DNA ou ácido ribonucléico-RNA) responsáveis pela hereditarie-dade.

A estrutura das proteínas é descritaem quatro níveis de organização (Fi-gura 3):

1- Estrutura primária - seqüência deaminoácidos da cadeia polipeptídica.

2- Estrutura secundária - arranjo es-pacial básico de parte de uma cadeia

polipeptídica na forma de hélices,folhas, voltas etc.

3- Estrutura terciária - estrutura tri-dimensional de uma proteína, com adisposição espacial das unidades deestruturas secundárias e das cadeiaslaterais.

4- Estrutura quaternária - algumasproteínas são compostas de mais deuma cadeia polipeptídica (subunida-de). O arranjo espacial dessas subuni-dades é conhecido como estruturaquaternária de uma proteína. Uma pro-teína pode consistir de cadeias poli-peptídicas idênticas e não idênticas. Ahemoglobina, por exemplo, é constituí-da de cadeias polipeptídicas não idên-ticas.

Figura 1: Fórmula estrutural básica de umaminoácido, destacando os diferentescomponentes: em preto, grupo amino; emazul, grupo carboxila; em verde, átomo dehidrogênio; em roxo, cadeia lateral (R), quediferencia os vinte diferentes aminoácidos;em vermelho, carbono assimétrico (menospara glicina, na qual a cadeia lateral tam-bém é um átomo de hidrogênio), conhecidocomo carbono-α (Cα).

Figura 3: Níveis de organização das estruturas da proteínas: a) estrutura primária; b) estruturasecundária (hélice α); c) estrutura terciária da β-hemoglobina e d) estrutura quaternária dahemoglobina.

Figura 2: Reação de formação de um dipeptídeo a partir de dois aminoácidos, destacando-se a ligação peptídica em vermelho. Note que em uma das pontas do dipeptídeo há umgrupo amino livre e na outra um grupo carboxila. Portanto esse dipeptídeo pode se combinarcom outros aminoácidos, formando cadeias mais longas chamadas polipeptídeos; proteínassão polipeptídeos.

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 16, NOVEMBRO 2002Espectrometria de massa e RMN no estudo de macromoléculas biológicas

Como mostrado a seguir, os traba-lhos de Fenn e Tanaka estão relacio-nados à determinação da massa mo-lecular de proteínas e os de Wüthrichà determinação das estruturas tridi-mensionais de proteínas em solução.

Espectrometria de massa demacromoléculas biológicas

Em 1912, J. J. Thompson demons-trou que era possível separar molécu-las na fase gasosa por diferenças demassa e carga, que é o princípio defuncionamento dos espectrômetros demassa. Há vários tipos de espectrô-metros de massa, mas todos eles re-querem a gaseificação e ionização daamostra, aceleração da molécula car-regada por um campo elétrico, disper-são dos íons de acordo com a razãomassa/carga (razão m/z) e a detecçãodos íons e registro do sinal.

A espectrometria de massa (EM) éuma técnica largamente utilizada pelosquímicos na análise de moléculas pe-quenas ou de tamanho médio. O mé-todo é tão sensível que hoje é usadorotineiramente na análise de substân-cias em baixa concentração, como nocaso de doping, controle de alimentos,contaminação ambiental, entre muitasoutras áreas de aplicação.

A aplicação da EM na análise de ma-cromoléculas só começou a ter sucessona década de 70, quando se conseguiulevar macromoléculas à forma de gásionizado. O grande avanço nessa áreaocorreu com o desenvolvimento datécnica de ionização por spray eletros-tático (ESI - do inglês electrospray ioni-zation), por Fenn, e da técnica dedessorção suave por laser (SLD - doinglês soft laser desorption), por Tanaka.Com esses desenvolvimentos, a EMpassou a ser largamente usada noestudo de macromoléculas biológicas,principalmente no estudo de proteínas.

Contribuição de John B. FennO grande desafio de ionizar macro-

moléculas foi tema de estudo de mui-tos pesquisadores, mas muitas dastécnicas desenvolvidas produziramíons muito grandes ou íons difíceis deserem vaporizados sem decomposi-ção substancial. Fenn trabalhou comuma dessas técnicas, a ESI. A Figura4 apresenta o diagrama de um espec-

trômetro de massa com ESI, que con-siste em submeter a amostra a um fluxoem uma pequena agulha em um com-partimento contendo nitrogênio seco.A diferença de potencial entre a agulhae as paredes do compartimento é dequilovolts; assim, entre a saída da agu-lha e o compartimento há um enormecampo elétrico. Conseqüentemente, agotícula de solução de amostra que saidessa agulha é dispersa no comparti-mento como um spray de microgotaseletricamente carregadas, que, direcio-nadas pelo campo, seguem em dire-ção à parede do compartimento. Devi-do à geometria desse compartimento,essas microgotas se dirigem a umcompartimento a vácuo, o espectrô-metro de massa em si. O campo elé-trico é forte o suficiente para extrair íonsisolados das microgotas. O tempo (in-dicado pelo cronômetro na Figura 4)que cada íon leva para atingir o detetordepende das suas massa molecular(m) e carga (z), sendo proporcional àrazão m/z; portanto, é possível determi-nar a massa molecular do composto.

O uso da ESI permite a ionizaçãode macromoléculas que têm papeldestacado nos processos biológicos,como peptídeos, proteínas, polissaca-rídeos e ácidos nucléicos. A presençade uma grande quantidade de cargasem diferentes moléculas de um mesmotipo gera diversos picos (ver Figura 4).

Os diversos sinais do espectro inicial-mente confundiram os pesquisadores,mas Fenn usou essa complexidadepara melhorar a precisão das determi-nações de massa e desenvolveu a teo-ria de cargas múltiplas. Hoje existemprogramas de computador baseadosnessa teoria que ajudam na análisedesses gráficos e, assim, permitemque se determine a massa molecularcom grande precisão.

Contribuição de Koichi TanakaDurante a década de 80 vários gru-

pos tentaram resolver o problema davolatilização/ionização de macromolé-culas usando laser. Achava-se que erapossível vaporizar com laser uma pe-quena parte de uma amostra sólida oulíquida sem sua degradação. Em Mos-cou, V.S. Letokov demonstrou que ométodo poderia ser usado em peque-nas moléculas polares como os amino-ácidos. Em 1985, essa metodologia foiaperfeiçoada por M. Karas e F. Hillen-kamp, que demonstraram que sepoderia volatilizar moléculas pequenasusando uma matriz capaz de absorvera energia do laser.

Em 1987, em um simpósio de EM,em Osaka (Japão), Tanaka apresentouos primeiros resultados da aplicaçãoda técnica de dessorção suave por la-ser (SLD) na análise de proteínasintactas, o que foi um grande avanço

Figura 4: Diagrama de um espectrômetro de massa com ionização por spray eletrostático(ESI).

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para a área. A descoberta de Tanaka,que fez que a dessorção suave por la-ser funcionasse para macromoléculas,foi uma combinação adequada daenergia e do comprimento de onda dolaser com as propriedades de absor-ção/transferência de calor de umamatriz e a estrutura molecular do analitodepositado nessa matriz. A matrizusada por Tanaka foi glicerol contendopartículas coloidais.

Tanaka demonstrou que, ao se usarum laser de baixa energia (laser de ni-trogênio - 330 nm), íons de macromo-léculas biológicas são formados, fatoque não era esperado na época. Oprincípio da técnica de SLD é apresen-tado na Figura 5, na qual, no gráficointensidade em função de m/z, émostrada a separação de íons de umamolécula de proteína com uma e duascargas e de um agregado da mesmaproteína com uma carga. Nessa figura,também são destacados o sistema deaceleração por campo elétrico (placanegativa), a dispersão dos íons emfunção da razão m/z (resultando nosseus diferentes tempos de vôo, TOF -do inglês time of flight, indicados pelocronômetro) e o detector.

O tipo de espectrometria de massamais usado hoje em dia para análisede macromoléculas biológicas é o comdessorção/ionização por laser assisti-da por matriz - tempo de vôo, conheci-do pela sigla MALDI-TOF/MS (do in-glês, matrix-assisted laser desorption/ionization-time of flight mass spectrom-etry) e é a ferramenta básica para aanálise de proteomas.

Aplicações da espectrometria demassa

Os espectrômetros de massa revo-lucionaram o campo das ciênciasconhecido como Química de Proteínas,pois permitem a identificação de proteí-nas com relativa facilidade. Mas comose faz isto? Ao se conhecer uma massamolecular com grande precisão (1/40000), torna-se possível compará-lacom as seqüências das ORF co-nhecidas do genoma e, assim, identi-ficar qual ORF geraria proteína comaquela massa molecular. Esse procedi-mento é bastante preciso, mas nemsempre suficiente. Os equipamentoscom ESI geram fragmentos das molé-culas; assim, com o auxílio de softwaresadequados, compara-se não somente

a massa da proteína inteira, mastambém a dos fragmentos gerados.

Hoje tem-se genomas completa-mente seqüenciados. A pergunta a serentão respondida é quando e em quecondições as células expressam certasproteínas. Sabe-se que as células apre-sentam mecanismos intricados decontrole. Esse controle é normalmentefeito por proteínas que se expressamnos diferentes estágios do desenvolvi-mento de um organismo. Com a es-pectrometria de massa é possível iden-tificar as proteínas em baixa concen-tração e em poucos dias. Com os mé-todos bioquímicos tradicionais pode-se levar meses ou anos.

Espetroscopia de ressonânciamagnética nuclear (RMN)

O fenômeno da RMN foi observadoexperimentalmente pela primeira vez em1946, por F. Bloch e E. Purcell (PrêmioNobel de Física de 1952). A RMN éobservada quando se incide ondas derádio-freqüência em uma amostra quetem isótopos com spin nuclear maiorque zero (por exemplo, 1H) na presençade um campo magnético. A RMN pas-sou a ser de grande importância paraanálises químicas já na década de 50,com a descoberta de que seu sinalreflete o ambiente químico em que o nú-cleo se encontra em uma molécula. Essefenômeno, denominado deslocamentoquímico, permitiu um grande avanço naárea de determinação estrutural demoléculas pequenas e/ou de médiamassa molecular. Até o final da décadade 60, a RMN se restringia praticamenteàs análises baseadas no 1H, devido àbaixa sensibilidade da técnica. Esseproblema foi superado com a introdu-ção da técnica de pulsos e o uso datransformada de Fourier (TF), iniciadopor Ernst e Andrew, em 1966. O uso datécnica de pulso e da TF tambémpermitiu a R. Ernst o desenvolvimentodas técnicas de RMN multidimensional,pelo que recebeu o Prêmio Nobel deQuímica de 1991. Na RMN multidimen-sional, além de se obter um aumentoda resolução espectral, foram automati-zadas as medidas de vários parâmetrosde RMN, como o efeito Overhausernuclear (NOE), o acoplamento spin-spinetc. Esses desenvolvimentos e o uso deímãs supercondutores de alto campo

Figura 5: Diagrama de um espectrômetro de massa com dessorção/ionização por laser.

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permitiram a aplicação da RMN nadeterminação das estruturas de macro-moléculas biológicas, principalmenteproteínas, que foi a principal contribuiçãode Wüthrich. Na Figura 6 é apresentadaum diagrama de um espectrômetro deRMN com ímã supercondutor. A amos-tra é colocada dentro da sonda de RMNque fica no centro de uma bobina su-percondutora, resfriada por nitrogênio ehélio líquidos. Um computador central co-manda o equipamento, enviando, cap-tando e processando os sinais de RMN.

Contribuições de Kurt WüthrichA primeira estrutura tridimensional

de uma proteína (a mioglobina) com

resolução atômica foi determinada pordifração de raios X, em 1957, por M.Perutz, que dividiu com J. Kendrew oPrêmio Nobel de Química de 1962. Pa-ra essas análises, as proteínas eramcristalizadas. Embora houvesse evi-dências de que o meio cristalino tinhamuita água e algumas enzimas eramaté ativas nesse meio, alguns pesqui-sadores consideravam-no muito dis-tante do meio onde a proteína exercesua função (células).

Em 1986, Wüthrich e colaboradoresdemonstraram que a RMN multidimen-sional poderia determinar a estruturatridimensional, com resolução atômica,de uma proteína em solução, que é um

meio similar ao de uma proteína nacélula. A primeira a ser estudada foiuma pequena proteína chamada BPTI(“inibidor de tripsina pancreáticabovina”), de massa molecular aproxi-madamente 5000 u (5 ku)1. Junto coma primeira estrutura, no laboratório deWüthrich foram desenvolvidas asbases de toda a metodologia usadaaté hoje para a determinação daestrutura de proteínas. Essa metodo-logia se baseia na atribuição dos sinaisde RMN aos átomos de hidrogênio namacromolécula, na medida de grandenúmero de parâmetros espectrais rela-cionados à estrutura, como o efeitoOverhauser nuclear, e no uso demétodos computacionais que transfor-mam os dados estruturais em uma es-trutura tridimensional. O efeito Over-hauser nuclear é um parâmetro quepermite determinar distâncias interatô-micas de até cerca de 5 ångstrons.Hoje mais de 2500 proteínas (cerca de20% do total) tiveram suas estruturasdeterminadas por esse método.

Com o passar dos anos, o tamanhomáximo das estruturas de proteínasdeterminadas por RMN aumentoubastante, passando-se de massas mo-leculares de 5 ku para 20-30 ku. Paraisso foi preciso incorporar medidas de15N e 13C e, em alguns casos, 2H (deu-tério). No entanto, há um limite físicono tamanho de proteínas para a RMNmultidimensional, difícil de ser supera-do, pois o tempo de relaxação dos

Figura 6: Diagrama de um espectrômetro de RMN.

Os laureados de 2002O Prêmio Nobel de Química de 2002

foi outorgado pela Academia Real Suecade Ciências “para o desenvolvimento demétodos para identificação e análiseestrutural de macromoléculas biológicas”.Metade foi outorgada conjuntamente aJohn B. Fenn e Koichi Tanaka “pelodesenvolvimento de métodos de ioniza-ção por dessorção suave para análise demacomoléculas biológicas por espectro-metria de massa” e a outra metade paraKurt Wüthrich “pelo desenvolvimento deespectroscopia de ressonância magnéti-ca nuclear para determinação da estruturatridimensional de macromoléculas bioló-gicas em solução”.

John B. Fenn nasceu em 1917, na ci-dade de Nova Iorque, nos Estados Unidosda América. Obteve seu doutorado em1940, na Universidade Yale, da qual foi

professor titular de1967 a 1987, quan-do se aposentoucomo professoremérito. Desde1994, é professortitular de QuímicaAnalítica na Uni-versidade Comu-nidade das Na-

ções de Virgínia, em Richmond (EUA).Koichi Tanaka nasceu em 1959, na

cidade de Toyama,no Japão. Formou-se em Engenhariana UniversidadeTohoku, em 1983.Desde abril de1983 trabalha naShimadzu Corp.,sendo que atual-mente é engenhei-

ro de pesquisa e desenvolvimento na Uni-dade de Negócios em Ciências da Vida,da Divisão de Instrumentos Analíticos ede Medida, da Shimadzu, em Quioto(Japão).

Kurt Wüthrich nasceu em 1938, emAarberg, na Suí-ça. Doutorou-seem Química Inor-gânica na Univer-sidade de Basel,em 1964. Desde1980, é professortitular de BiofísicaMolecular no Ins-tituto de Biologia

e Biofísica Molecular, do Instituto FederalSuíço de Tecnologia (ETH), em Zurique(Suíça). Também é professor visitante deBiologia Estrutural no Instituto de Pes-quisas Scripps, em La Jolla, Califórnia(EUA).

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 16, NOVEMBRO 2002

Abstract: Mass Spectrometry and Multidimensional and Multinuclear NMR: Revolution in the Study of Biological Macromolecules - The Nobel Prize in Chemistry 2002 was awarded to chemist John B.Fenn and to engineer Koichi Tanaka for the development of mass spectrometry for the analysis of biological macromolecules and to chemist Kurt Wüthrich for the development of multidimensional andmultinuclear nuclear magnetic resonance (NMR) for determining the three-dimensional structure of proteins. The contributions of these researchers made Biochemistry the “great science” of our times,allowing the fast identification of proteins present in a sample in solution, as well as their three-dimensional structures.Keywords: Nobel Prize, nuclear magnetic resonance, mass spectrometry, proteins, biological macromolecules

Espectrometria de massa e RMN no estudo de macromoléculas biológicas

Para saber maisCHAPMAN, J.R. (Ed.). Mass spec-

trometry of proteins and peptides.Totowa: Humana Press, 2000.

Fundação Nobel: http://www.nobel.seWÜTHTRICH, K. NMR of proteins and

nucleic acids. Nova Iorque: John Wiley& Sons, 1986.

Figura 7: Estrutura da proteína PSD1 obtida em solução por RMN (http://cnrmn.bioqmed.ufrj.br). À esquerda, tem-se a sobreposição das diversas possíveis estruturas em soluçãoobtidas por RMN. Observe que em certas regiões a proteína apresenta várias estruturaspossíveis. Estas são provavelmente as regiões da proteína com grande flexibilidade. Todasas estruturas determinadas em solução têm regiões flexíveis e regiões rígidas. À direita, háum diagrama onde se observa a hélice α, em vermelho/amarelo, e as folhas β, em azul. Asligações de dissulfeto estão representadas em laranja.

spins nucleares vai diminuindo com oaumento do tamanho da proteína, oque dificulta a observação e a resolu-ção espectral. Proteínas grandes pas-sam a não gerar nenhum sinal nasmedidas de RMN. Esse foi um outrodesafio enfrentado por Wüthrich ecolaboradores. Em 1998, eles publica-ram um trabalho usando um efeito cha-mado de correlação cruzada entre aanisotropia do deslocamento químicoe o acoplamento dipolar. Esse efeitofaz que cada hidrogênio amídico daproteína apareça em duas freqüênciasdiferentes (dubleto), sendo que cadaum dos componentes do dupleto temrelaxação diferente: um deles relaxarapidamente, enquanto o outro maislentamente. A nova técnica, conhecidacomo espectroscopia otimizada derelaxação transversa (sigla inglesaTROSY, de transverse relaxation opti-mized spectroscopy), faz uso dessesinal de RMN que relaxa mais lenta-mente. Essa outra grande contribuiçãodo laboratório de Wüthrich possibilitouque fosse possível se trabalhar comproteínas com massa superior a 40 ku,já tendo sido determinadas estruturasde proteínas de até 100 ku.

Aplicações de RMN

Trabalhar na determinação de estru-turas de proteínas não é tarefa fácil,pois resolver a estrutura de uma pro-teína em solução pode levar de um aquatro anos, dependendo de comoesta se comporta em solução. Porémesse trabalho é recompensado. A partirda estrutura de uma proteína pode-seentender mecanismos das reaçõesbiológicas e, assim, desenvolver novasdrogas que bloqueiem processos bio-lógicos indesejáveis. Diversas drogasestão sendo desenvolvidas usando-seessa metodologia, sendo que indús-trias farmacêuticas têm investido mi-lhões de dólares montando centros deRMN para essa finalidade.

Uma outra aplicação importante datécnica é na determinação dos chama-dos proteomas estruturais. Hoje, 40%dos ORF obtidos da análise dos geno-

mente utiliza-se a unidade dalton (Da)como sinônimo da unidade de massaatômica (u). Entretanto, o dalton e seusímbolo não foram aceitos pela Con-ferência Geral de Pesos e Medidas.

Luiz Alberto Colnago ([email protected]),bacharel em Farmácia pela Faculdade de Farmácia eBioquímica do Espírito Santo, mestre em Química edoutor em Físico-Química pelo Instituto Militar deEngenharia, é pesquisador da Embrapa Instrumen-tação Agropecuária, em São Carlos - SP. Fábio C.L.Almeida ([email protected]), bacharelem Ciências Farmacêuticas e doutor em CiênciasBiológicas (Bioquímica) pela USP, é docente do De-partamento de Bioquímica Médica do Instituto de Ciên-cias Biomédicas da UFRJ (DBM/ICB/UFRJ) e pesqui-sador do Centro Nacional de Ressonância MagnéticaNuclear, na UFRJ (CNRMN/UFRJ). Ana Paula Valente([email protected]), bacharel em Farmá-cia e mestre em Ciências Biológicas (Biofísica) pelaUFRJ, doutora em Ciências Biológicas (Bioquímica)pela USP, é docente do DBM/ICB/UFRJ e pesqui-sadora do CNRMN/UFRJ.

mas são proteínas com função comple-tamente desconhecidas. A resolução daestrutura das proteínas resultantesdesses ORF tem possibilitado atribuirfunção a elas. Assim, pode-se anteverum futuro não tão longínquo em que sesaberá a função de quase 100% dasproteínas codificadas no DNA humano.Conseqüentemente, será muito maisfácil desenvolver a cura para as doençasque atualmente nos afligem.

No Brasil há uma sociedade cientí-fica que se dedica somente ao uso daRMN, a Associação de Usuários deRMN - AUREMN (http://www.auremn.org.br) - e existem dois centros que tra-balham com ressonância magnéticanuclear de proteínas em solução: oCentro Nacional de Ressonância Mag-nética Nuclear - CNRMN (http://cnrmn.bioqmed.ufrj.br) e o LaboratórioNacional de Luz Síncroton - LNLS(http://www.lnls.br). A Figura 7 mostraa estrutura tridimensional da proteínaPSD1, uma proteína com atividade anti-fúngica, a primeira estrutura de umaproteína totalmente resolvida no Brasil.

Nota 1. Na área de Bioquímica, comu-