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GRINKER, Roy Richard. 2010. Autismo: um mundo obscuro e conturbado. Traduo de Catharina Pinheiro. So Paulo: Larrousse do Brasil. 320pp.
Soraya Fleischer Departamento de Antropologia, Universidade
de Braslia
Em 1994, o diagnstico estimativo era de que havia trs crianas autistas em cada 10.000 crianas. Em 2004, apenas uma dcada depois, essa estimativa era de 60
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casos para 10.000 crianas. com este dado estatstico que Roy Richard Grinker, antroplogo da George Washington University, inicia seu livro, Autismo: um mundo obscuro e conturbado,traduzido e lanado no Brasil em 2010. O aumento surpreendeu o pblico americano, segun-do o autor, a ponto de o Congresso Ameri-cano, poca, anunciar que se tratava de uma epidemia de autismo que estava devastando as famlias (:11).
Grinker nos pergunta: Por que esse diagnstico maior na Europa e nos EUA? Estamos diante de novas frmulas para definir as estatsticas? As estatsti-cas do incio dos anos 1990 eram pouco realistas? Ou estamos lidando, agora, com diagnsticos mais precisos e atua-lizados? Por que chamar de epidemia uma doena que no contagiosa? O autor aceita o desafio de pensar esses crescentes nmeros e, com o apoio da pesquisa antropolgica e comparativa, chega importante concluso de que no podemos afirmar que houve um aumento da incidncia do autismo (:15), e sugere que esses novos nmeros refli-tam uma mudana na forma como nossa cultura percebe uma condio especfica de sade e doena (:13).
Grinker analisa as ferramentas diag-nsticas da psiquiatria ao longo de sua histria. Volta ao sculo XIX, com o mdico austraco Leo Kanner (1894-1981), que comeou trabalhando com psiquiatria em asilos nos EUA (:47) e logo se tornou expoente crtico do confi-namento, da impreciso dos diagnsticos e dos rtulos desumanizadores (:51). Foi ele quem descreveu o autismo e mudou o quadro de sintoma para sndrome. Depois, outro austraco, Hans Asperger (1906-1980), passou a usar o termo autis-mo para um espectro de distrbios, no qual tambm estaria includo o distrbio de Asperger. Desde o incio, Asperger estava convencido de que o autismo era
resultado de uma relao entre fatores biolgicos genticos e fatores ambien-tais. A predisposio ele escreveu no um destino, mas um destino possvel (:68). O primeiro foi o pai do autismo como distrbio diagnosticvel, enquanto o segundo, o pai do autismo como espec-tro de diferentes estados (:70). Mas, na opinio de Grinker, a grande contribuio no foi terem descoberto, mas sim descri-to o autismo, pois afinal este no era um distrbio novo (:76).
J em meados do sculo XX, pais au-sentes e mes ms passam a ser razes para o autismo, segundo a psicanlise de Bruno Bettelheim. Embora, como Kanner e Asperger, psiquiatras e psicanalistas da segunda metade do sculo XX tenham chegado a um razovel consenso de que o autismo tanto biolgico como ambiental, as mes frias demais (a hi-ptese da me geladeira) ou apegadas demais ainda reforam, no final do sculo XX, a crena de que as experincias da primeira infncia dominam a vida adulta do indivduo (:98), especialmente em pases como a Frana e a Argentina, em que a psicanlise teve papel importante na sociedade.
De um subtipo de esquizofrenia, o autismo transformou-se em um produto de pais negligentes e, depois, em uma anomalia neural. Contriburam para essa transio o surgimento de trata-mentos biolgicos (como lobotomias, eletrochoques, medicamentos etc.) para doenas psiquitricas nos anos 1940 e a padronizao diagnstica atravs dos sucessivos DSMs (Manual Diagnstico e Estatstico de Transtornos Mentais). Embora este compndio enciclopdico de diagnsticos parea definir melhor as especificidades de distrbios psquicos, o autor nos lembra como ainda h falta de mtodo, impreciso e sensacionalismo, inclusive no caso do autismo. Pior, o DSM tornou-se uma bblia, deixando
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pouco espao para o prprio terapeuta, que trabalha diretamente com a criana, chegar s suas concluses. E a pretensa certeza universalizante, proposta pelo DSM, torna-se autoritria e improvvel porque, como lembra Grinker, os genes relacionados s doenas geralmente constituem apenas fatores de risco e no causas diretas. As predisposies genti-cas interagem com a vida que levamos e essas interaes podem afetar a manifes-tao da doena. [...] Os distrbios do es-pectro do autismo so mais complicados ainda, j que anomalias de quase todos os cromossomos j foram associadas a esses distrbios (:130-1).
E, mais importante, a psiquiatria no uma cincia 100% gentica (ainda).
Segundo Grinker, o diagnstico nessas reas psi sempre subjetivo, sobretudo no caso do autismo, que no possvel observar pela anlise microscpica, mas sim por meio do comportamento e do contexto do indivduo. As revises dos DSMs tm includo e ao mesmo tempo excludo elementos para o diagnstico do autismo. E o autor nos lembra como essas mudanas repercutem na elaborao das estatsticas.
Assim, Grinker concorda que o autis-mo um distrbio cerebral que pode afetar pessoas de qualquer cultura (:21). Por um lado, a doena pode ser biolgi-ca, mas nunca somente biolgica (:24) e, por outro, culturalmente definida, j que, muitas sociedades, por exemplo, sequer possuem uma palavra para deno-minar o autismo, enquanto em outras os sintomas do autismo no so considera-dos anmalos, ou so vistos como divinos e espirituais (:13). A partir da, ele define sua posio: Este livro trata da forma como a cultura afeta a nossa viso sobre o autismo. Ele analisa o autismo como fenmeno global e o observa no apenas como um distrbio biolgico, mas como um grupo de sintomas que se tornam
especialmente expressivos em determi-nadas pocas e lugares (:21-2).
O livro, dividido em duas partes, trata primeiro do processo pelo qual o autismo tornou-se um distrbio ampla-mente diagnosticado nos EUA (:22) ao rever a histria recente das reas psi e, segundo, apresenta os resultados de pesquisa etnogrfica realizada em trs pases ndia, Coreia do Sul e frica do Sul. A expectativa foi de que outros contextos culturais diversificassem os entendimentos sobre o autismo para, ao mesmo tempo, refletir sobre como os EUA, seu pas de origem, tem lidado com a questo. Na ndia, o indivduo autista tido como retardado mental ou lou-co. H poucos psiquiatras e o autismo mantido como segredo de famlia. S em 1999 o governo indiano reconheceu o autismo como um diagnstico. Grinker notou o que chamou de disjuno entre mdicos desatualizados e pais cada vez mais bem informados e empoderados, sobretudo pela internet e pelas redes sociais virtuais. Contudo, no h uma presso coletiva por servios e educao especializada. O estigma, e muitas vezes a misoginia, leva sobretudo as mes a procurarem ajuda para seu filho indivi-dualmente.
Na Coreia do Sul h muita vergonha: Muitas vezes os autistas so escondidos e com isso acabam ficando sem tratamen-to e raramente so integrados na vida comunitria (:246). H pouca poltica educacional e uma grande expectativa de que as mes possam controlar seus filhos. No deixa de ser paradoxal que o pas, com uma altssima exigncia em relao ao sucesso intelectual dos fi-lhos, no tenha desenvolvido programas educacionais apropriados para crianas diferentes. Ao contrrio, essa nfase no sucesso s acirra a discriminao em relao diferena. J na frica do Sul, uma criana fisicamente normal mas com
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algum comportamento estranho pode passar despercebida e ser classificada como indisciplinada ou possuda por um esprito mau, mas frequentemente no so vistas apenas como deficientes (:266). Ali, o autismo uma doena invisvel.
A etnografia nos trs pases foi quase toda realizada com mulheres. Sejam sul-coreanas, sul-africanas, indianas ou estadunidenses so as mulheres que se responsabilizam pelo cuidado com as crianas e os adultos autistas. E no difcil chegar concluso de Grinker: Quando essas mulheres se abriram comigo, tornou-se claro que na maior parte do tempo sentiam-se como mes solteiras (:269).
Entretanto, a inflao dos casos e os respectivos nmeros no podem ser unicamente vistos como pnico co-letivo em relao diferena. Grinker muito feliz ao mostrar no livro como esse aumento de casos e tambm de diagnsticos mais especficos oportuno para se alcanar mais visibilidade sobre o autismo e, como consequncia, a ela-borao de polticas pblicas, pesquisas, aceitao social e assistncia adequada, principalmente em termos de educao e atendimento de sade. Em suma, essa pseudoepidemia pouco a pouco ajuda a dirimir o estigma.
No foi rpido ou simples escrever este livro. No foi mais uma pesquisa de campo em trs pases distantes. Roy Grinker tem uma filha autista e s depois de muitos anos de aprendizado como pai de uma criana autista que ele perce-beu que seria capaz de escrever sobre essa realidade. Por muito tempo ele e a esposa peregrinaram por consultrios de pediatras, psiquiatras, fonoaudilogos, linguistas, advogados, juzes, diretores de escola e secretrios municipais de Educao. Entender as especificidades da filha, Isabel, tornou-se uma prioridade
naqueles primeiros anos da dcada de 1990. Se ela tivesse nascido antes disso, provavelmente, nos conta o autor, teria recebido um rtulo de esquizofrnica ou de retardada mental e possivelmente seria uma doena a ser escondida (:44). Se tivesse nascido depois disso, teria sido mais fcil, talvez, definir o problema e encontrar solues em termos de me-dicao, escolas e apoio. Ao menos no incio dos 90 foi-lhes oferecido o termo autista como um comportamento a ser tolerado (:44).
corajoso e generoso como o autor nos apresenta sua experincia como pai-pesquisador, revelando detalhes do coti-diano da famlia Grinker, os seus dilemas e a solido. Em suma, defender o filho parece um trabalho em tempo integral: requer escrever cartas, fazer telefonemas, comparecer a reunies e compilar dados com seus mdicos ou terapeutas a fim de compor um caso para exigir aquilo que voc acredita que o seu filho preci-sa (:276). Vale lembrar, por fim, que foi fcil e um pouco emocionante encontrar no You Tube um pequeno filme em que Isabel Grinker aparece proferindo seu discurso como oradora da formatura no ensino mdio.
Como bom etngrafo, o autor nos apre-senta inmeras passagens de relaes cotidianas nas famlias e vizinhanas, de preconceito e at abjeo e desespero. Contudo, grande parte do livro se dedica a observar como acontece a incluso de meninas e meninos no espectro do autismo nos quatro pases, sobretudo na educao formal. E por isso, ao final, o autor conclui que indiscutvel que o autismo, como qualquer condio mdi-ca, faz parte de uma complexa estrutura de relaes entre profissionais e pautas polticas (:286). E, nesse sentido, se uma maior preciso diagnstica tende a aumentar o nmero de casos (resultando na sensao de epidemia [sic, como
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diria Grinker]), tambm pode contribuir para uma maior visibilidade desses dis-trbios, acabar com a vergonha, o silncio e a solido e permitir dar incio a um processo de integrao dos autistas e de outros deficientes e diferentes em nossa sociedade (:300).
O livro, feito a partir da reflexo e da pesquisa antropolgica, visa a um pblico mais amplo, o que timo. Mas peca por no ter introduzido ao p da pgina ou ao final dos captulos a biblio-grafia que foi apenas citada livremente. Isto dificulta que estudiosos e tambm familiares de autistas encontrem litera-tura complementar. E os autores, que s eventualmente aparecem ao longo do texto, se reduzem antropologia mdica estadunidense. Talvez pelo fato de ter sido traduzido e lanado no Brasil por uma editora voltada para temas de autoajuda o livro demore um pouco mais para che-gar aos antroplogos. Ainda assim, sem dvida, o estudo de Roy Grinker poder ser bem acolhido entre os estudiosos da antropologia da sade, do corpo, da ao, das polticas pblicas de sade e tambm da infncia e educao.
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