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  • Com a clula, a biologia descobriu seu tomo... Dessa forma, para caracterizar a vida, essencial estudar a clula e analisar sua estrutura: escolher os denominadores comuns necessrios para a vida de cada clula, assim como identificar diferenas associadas com o desempenho de funes especiais.

    Franois Jacob, La logique du vivant: une histoire de lhrdit(A Lgica da Vida: Uma Histria da Hereditariedade), 1970

    1.1 Fundamentos celulares 2

    1.2 Fundamentos qumicos 11

    1.3 Fundamentos fsicos 19

    1.4 Fundamentos genticos 27

    1.5 Fundamentos evolutivos 29

    Cerca de quinze bilhes de anos atrs, o universo surgiu como uma erupo cataclsmica de partculas subat-micas quentes e ricas em energia. Os elementos mais simples (hidrognio e hlio) se formaram em segundos. medida que o universo se expandia e esfriava, o material condensava sob a influncia da gravidade para formar es-trelas. Algumas estrelas se tornaram enormes e explodiram como supernovas, liberando a energia necessria para a fu-so de ncleos atmicos mais simples em elementos mais complexos. Desta maneira foram produzidos, no decurso de bilhes de anos, a prpria Terra e os elementos qumicos en-contrados nela hoje. Cerca de quatro bilhes de anos atrs, surgiu a vida micro-organismos simples com a capacida-de de extrair energia de compostos qumicos e, mais tarde, da luz solar, que era usada por eles para produzir um vasto conjunto de biomolculas mais complexas a partir dos ele-mentos simples e compostos encontrados na superfcie da Terra.

    A bioqumica questiona como as extraordinrias pro-priedades dos organismos vivos se originaram a partir de milhares de biomolculas diferentes. Quando estas molcu-las so isoladas e examinadas individualmente, elas esto de acordo com todas as leis fsicas e qumicas que descrevem o comportamento da matria inanimada assim como todos os processos que ocorrem nos organismos vivos. O estudo da bioqumica mostra como o conjunto de molculas ina-nimadas que constitui os organismos vivos interage para manter e perpetuar a vida exclusivamente pelas leis fsicas e qumicas que regem o universo inanimado.

    Os organismos, no entanto, possuem atributos extra-ordinrios, propriedades que os distinguem de outros con-juntos de matria. Quais so estas caractersticas peculiares dos organismos vivos?

    Um alto grau de complexidade qumica e organi-zao microscpica. Milhares de molculas diferen-tes formam as intrincadas estruturas celulares internas

    (Fig. 1-1a). Elas incluem polmeros muito longos, cada um com sua sequncia caracterstica de subunidades, sua estrutura tridimensional nica e sua seleo alta-mente especfica de parceiros de interao na clula.

    Sistemas para extrair, transformar e utilizar a energia do ambiente (Fig. 1-1b), permitindo aos orga-nismos construir e manter suas intrincadas estruturas, assim como realizar trabalho mecnico, qumico, osm-tico e eltrico, o que neutraliza a tendncia de toda a matria de decair para um estado mais desorganizado, entrando assim em equilbrio com seu ambiente.

    Funes definidas para cada um dos componen-tes de um organismo e interaes reguladas en-tre eles. Isto vlido no somente para as estruturas macroscpicas, como as folhas e os ramos ou coraes e pulmes, mas tambm para estruturas intracelulares microscpicas e compostos qumicos individuais. A interao entre os componentes qumicos de um orga-nismo vivo dinmica; mudanas em um componen-te causam mudanas coordenadas ou compensatrias em outro, com o todo manifestando uma caracterstica alm daquelas de suas partes individuais. O conjunto de molculas realiza um programa, cujo resultado final a reproduo e a autopreservao do conjunto de mol-culas em resumo, vida.

    Mecanismos para sentir e responder s altera-es no seu ambiente, com ajustes constantes a es-sas mudanas por adaptaes de sua qumica interna ou sua localizao no ambiente.

    Capacidade de autorreplicao e automontagem precisas (Fig. 1-1c). Uma clula bacteriana isolada co-locada em um meio nutritivo estril pode dar origem, em 24 horas, a um bilho de filhas idnticas. Cada clula contm milhares de molculas diferentes, mui-tas extremamente complexas; mas cada bactria uma cpia fiel da original, sendo sua construo totalmente direcionada a partir da informao contida no material gentico da clula original.

    Capacidade de se alterar ao longo do tempo por evoluo gradual. Os organismos alteram suas es-tratgias de vida herdadas, em graus muito pequenos, para sobreviver em condies novas. O resultado de eras de evoluo uma enorme variedade de formas de vida, muito diferentes superficialmente (Fig. 1-2), mas

    Fundamentos da Bioqumica

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    fundamentalmente relacionadas por sua ancestralidade compartilhada. Esta unidade fundamental dos organis-mos vivos se reflete na similaridade das sequncias g-nicas e nas estruturas proteicas.

    Apesar dessas propriedades comuns, e da unidade fun-damental da vida que elas mostram, difcil fazer generali-zaes sobre os organismos vivos. A Terra tem uma enorme diversidade de organismos. A variao de habitats, das fon-tes termais tundra do rtico, dos intestinos animais aos dormitrios das universidades, se combina com uma ampla variao de adaptaes bioqumicas especficas, alcanadas dentro de uma estrutura qumica comum. Neste livro, para uma maior clareza s vezes so feitas determinadas genera-lizaes, as quais, embora no perfeitas, se mostram teis; tambm com frequncia so apresentadas excees, as quais podem se mostrar esclarecedoras.

    A bioqumica descreve em termos moleculares as estru-turas, os mecanismos e os processos qumicos compartilha-dos por todos os organismos e estabelece princpios de or-ganizao que so a base da vida em todas as suas diversas formas, princpios esses referidos como a lgica molecular da vida. Embora a bioqumica proporcione importantes in-formaes e aplicaes prticas na medicina, na agricultura, na nutrio e na indstria, sua preocupao final com o milagre da vida em si.

    Neste captulo introdutrio feito um resumo dos co-nhecimentos celulares, qumicos, fsicos e genticos para a bioqumica e o importante princpio da evoluo o de-senvolvimento das propriedades das clulas vivas ao longo das geraes. medida que voc avanar na leitura do livro, perceber a utilidade de retornar a este captulo de tempos em tempos, para refrescar sua memria sobre esses conhe-cimentos bsicos.

    1.1 Fundamentos celularesA unidade e a diversidade dos organismos se tornam apa-rentes mesmo no nvel celular. Os menores organismos con-sistem em clulas isoladas e so microscpicos. Os organis-mos multicelulares maiores possuem muitos tipos celulares diferentes, os quais variam em tamanho, forma e funo es-pecializada. Apesar dessas diferenas bvias, todas as clu-las dos organismos, desde o mais simples ao mais complexo, compartilham determinadas propriedades fundamentais, que podem ser vistas no nvel bioqumico.

    As clulas so as unidades estruturais e funcionais de todos os organismos vivosTodos os tipos de clulas compartilham determinadas ca-ractersticas estruturais (Fig. 1-3). A membrana plasm-tica define o contorno da clula, separando seu contedo do ambiente. Ela composta por molculas de lipdeos e protenas que formam uma barreira fina, resistente, flexvel

    (a) (b)

    (c)

    FIGURA 1-1 Algumas caractersticas da matria viva. (a) A com-plexidade microscpica e a organizao so aparentes nesse corte colorido de tecido muscular de vertebrado, visto ao microscpio eletrnico. (b) Um falco da campina capta nutrientes consumindo uma ave menor. (c) A reproduo biolgica ocorre com uma fide-lidade quase perfeita.

    FIGURA 1-2 Diferentes organismos vivos compartilham caracte-rsticas qumicas comuns. Aves, animais selvagens, plantas e mi-cro-organismos do solo compartilham com os humanos as mesmas unidades estruturais bsicas (clulas) e os mesmos tipos de macro-molculas (DNA, RNA, protenas) compostas dos mesmos tipos de subunidades monomricas (nucleotdeos, aminocidos). Eles uti-lizam as mesmas vias para a sntese dos componentes celulares, compartilham o mesmo cdigo gentico, e provm dos mesmos ancestrais evolutivos. Na figura mostrado um detalhe do Jardim do den, por Jan van Kessel Junior (1626-1679).

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    e hidrofbica ao redor da clula. A membrana uma barrei-ra para a passagem livre de ons inorgnicos e para a maioria de outros compostos carregados ou polares. Protenas de transporte na membrana plasmtica permitem a passagem de determinados ons e molculas; protenas receptoras transmitem sinais para o interior da clula; e enzimas de membrana participam em algumas reaes. Como os lip-deos individuais e as protenas da membrana no esto co-valentemente ligados, toda a estrutura extraordinariamen-te flexvel, permitindo mudanas na forma e no tamanho da clula. medida que a clula cresce, novas molculas de protenas e de lipdeos so inseridas na membrana plasm-tica; a diviso celular produz duas clulas, cada uma com sua prpria membrana. O crescimento e a diviso celular (fisso) ocorrem sem perda da integridade da membrana.

    O volume interno envolto pela membrana plasmtica, o citoplasma (Fig. 1-3), composto por uma soluo aquosa, o citosol, e uma grande variedade de partculas em sus-penso com funes especficas. O citosol uma soluo altamente concentrada que contm enzimas e as molculas de RNA que as codificam; os componentes (aminocidos e nucleotdeos) que formam estas macromolculas; centenas de molculas orgnicas pequenas chamadas de metabli-tos, intermedirios em rotas biossintticas e degradativas; coenzimas, compostos essenciais em muitas reaes catali-sadas por enzimas; ons inorgnicos; e estruturas macromo-leculares como os ribossomos, stios de sntese proteica, e os proteassomos, que degradam protenas que a clula no necessita mais.

    Todas as clulas possuem, pelo menos em alguma par-te de sua vida, ou um ncleo ou um nucleoide, onde o genoma o conjunto completo de genes composto por DNA armazenado e replicado. O nucleoide, em bac-trias e em arquibactrias, no separado do citoplasma por uma membrana; o ncleo, nos eucariotos, consiste no material nuclear envolto por uma membrana dupla, o envelope nuclear. As clulas com envelope nuclear com-pem o grande grupo dos Eukarya (do grego eu,verdade, e karyon, ncleo). Os micro-organismos sem envelope nuclear, antigamente agrupados como procariotos (do grego pro, antes), so agora reconhecidos como perten-centes a dois grupos muito diferentes, Bacteria e Archaea, descritos a seguir.

    As dimenses celulares so determinadas pela difusoA maioria das clulas microscpica, invisvel a olho nu. As clulas dos animais e das plantas tm um dimetro de 50 a 100 m, e muitos micro-organismos tm comprimento de 1 a 2 m (veja no verso da capa as informaes sobre as unidades e suas abreviaturas). O que limita as dimenses de uma clula? O limite inferior provavelmente determinado pelo nmero mnimo de cada tipo de biomolcula requerido pela clula. As menores clulas, certas bactrias conhecidas como micoplasmas, tm dimetro de 300 nm e um volume de cerca de 10-14 mL. Um nico ribossomo bacteriano possui 20 nm na sua dimenso mais longa, de forma que poucos ribossomos ocupam uma frao substancial do volume de uma clula de micoplasma.

    O limite superior de tamanho celular provavelmente determinado pela taxa de difuso das molculas de soluto nos sistemas aquosos. Por exemplo, uma clula bacteria-na que depende de reaes de consumo de oxignio para produo de energia deve obter oxignio molecular, por difuso, a partir do meio ambiente atravs de sua mem-brana plasmtica. A clula to pequena, e a relao en-tre sua rea de superfcie e seu volume to grande, que cada parte do seu citoplasma facilmente alcanada pelo O2 que se difunde para dentro dela. Com o aumento do tamanho celular, no entanto, a relao superfcie-volume diminui, at que o metabolismo consuma O2 mais rapida-mente do que o que pode ser suprido por difuso. Assim, o metabolismo que requer O2 torna-se impossvel quando o tamanho da clula aumenta alm de um determinado pon-to, estabelecendo um limite superior terico para o tama-nho das clulas.

    Ncleo (eucariotos) ou nucleoide(bactrias, arquibactrias)Contm material gentico DNA eprotenas associadas. O ncleo circundado por uma membrana.

    Bicamada lipdica resistente,flexvel. Seletivamente permevel

    a substncias polares. Incluiprotenas de membrana que

    atuam no transporte,na recepo de sinal

    e como enzimas.

    CitoplasmaContedo celular aquosoe partculas e organelasem suspenso.

    Sobrenadante: citosolSoluo concentradade enzimas, RNA,subunidades monomricas,metablitos, onsinorgnicos.

    Sedimento: partculas e organelasRibossomos, grnulos dearmazenamento, mitocndrias,cloroplastos, lisossomos, retculoendoplasmtico.

    centrifugao a 150.000 g

    Membrana plasmtica

    FIGURA 1-3 As caractersticas universais das clulas vivas. Todas as clulas tm um ncleo ou nucleoide, uma membrana plasmtica e o citoplasma. O citosol definido como sendo a parte do cito-plasma que permanece no sobrenadante aps rompimento suave da membrana plasmtica e centrifugao do extrato resultante a 150.000 g por 1 hora.

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    Existem trs domnios distintos de vidaTodos os organismos vivos se incluem em trs grandes gru-pos (domnios) que definem trs ramos evolutivos a partir de um ancestral comum (Fig. 1-4). Dois grandes grupos de micro-organismos unicelulares podem ser distinguidos em bases genticas e bioqumicas: Bacteria e Archaea. As bactrias habitam o solo, as guas de superfcie e os tecidos de organismos vivos ou em decomposio. Muitas das arqui-bactrias, reconhecidas na dcada de 1980 por Carl Woese como um domnio distinto, habitam ambientes extremos

    lagos salgados, fontes termais, pntanos altamente cidos e as profundezas ocenicas. As evidncias disponveis suge-rem que Bacteria e Archaea divergiram cedo na evoluo. Todos os organismos eucariticos, que formam o terceiro domnio, Eukarya, evoluram a partir do mesmo ramo que deu origem s Archaea; por isso, os eucariotos so mais re-lacionados s arquibactrias do que s bactrias.

    Dentro dos domnios Archaea e Bacteria existem sub-grupos identificados por seus habitats. No habitat aerbico com suprimento pleno de oxignio, alguns organismos re-

    FIGURA 1-4 Filogenia dos trs domnios da vida. As relaes filo-genticas so frequentemente ilustradas por uma rvore geneal-gica deste tipo. A base para esta rvore a similaridade na sequn-cia nucleotdica dos RNAs ribossomais de cada grupo; a distncia entre os ramos representa o grau de diferena entre duas sequn-cias, sendo que, quanto mais similar for a sequncia, mais prxima a localizao dos ramos. As rvores filogenticas tambm podem

    ser construdas a partir de similaridades na sequncia de amino-cidos de uma nica protena entre as espcies. Por exemplo, as sequncias da protena GroEL (uma protena bacteriana que atua no dobramento proteico) so comparadas para gerar a rvore da Fig. 3-32. A rvore da Figura 3-33 uma rvore consenso, que usa vrias comparaes como essas para fazer a melhor estimativa do relacionamento evolutivo de um grupo de organismos.

    Protobactrias(bactrias prpura)

    CianobactriasFlavobactrias

    Thermotogales

    Pyrodictium

    ThermoproteusThermococcus

    celer

    Methanococcus

    Methanosarcina

    Halfilos

    Microspordeos

    Flagelados

    Tricomonados

    PlantasCiliados

    Fungos

    Diplomonados

    Animais

    MusgosEntamebas

    Archaea

    Bactriasgram-

    positivas

    Bacteria

    Eukarya

    Bactriasverdes nosulfurosas

    Methanobacterium

    Fonte deenergia

    Fonte decarbono

    Exemplos

    CianobactriasPlantas vasculares

    Bactrias prpuraBactrias verdes

    Bactrias sulfurosasBactrias hidrognicas

    A maioria das bactriasTodos os eucariotos

    no fototrficos

    Combustvelreduzido

    Combustveloxidado

    Todos os organismos

    Fototrficos(energia da luz)

    Quimiotrficos(energia da oxidao de combustveis qumicos)

    Litotrficos(combustveisinorgnicos)

    Organotrficos(combustveis

    orgnicos)

    Autotrficos(carbono do CO2)

    Heterotrficos(carbono de

    compostos orgnicos)

    FIGURA 1-5 Os organismos podem ser classificados de acordo com a fonte de energia (luz solar ou compostos qumicos oxidveis) e a fonte de carbono usadas para a sntese do material celular.

  • Princpios de Bioqumica de Lehninger 5

    sidentes obtm energia pela transferncia de eltrons das molculas de combustvel para o oxignio. Outros ambien-tes so anaerbios, praticamente desprovidos de oxignio, e os micro-organismos adaptados a esses ambientes obtm energia pela transferncia de eltrons para o nitrato (for-mando N2), o sulfato (formando H2S) ou o CO2 (formando CH4). Muitos organismos que evoluram em ambientes ana-erbios so anaerbios obrigatrios: eles morrem quando expostos ao oxignio. Outros so anaerbios facultativos, capazes de viver com ou sem oxignio.

    Podemos classificar os organismos de acordo com a maneira como obtm a energia e o carbono que necessi-tam para sintetizar o material celular (conforme resumido na Fig. 1-5). Existem duas amplas categorias com base nas fontes de energia: fototrficos (do grego trofe, nu-trio), que captam e usam a luz solar, e quimiotrfi-cos, que obtm sua energia pela oxidao do combustvel qumico. Alguns quimiotrficos, os litotrficos, oxidam os combustveis inorgnicos por exemplo, HS a S0 (en-xofre elementar), S0 a SO4, NO

    2 a NO

    3, ou Fe

    2 a Fe3. Os organotrficos oxidam uma ampla gama de compostos orgnicos disponveis em seu ambiente. Os fototrficos e os quimiotrficos tambm podem ser divididos naqueles que obtm todo o carbono necessrio do CO2 (autotr-ficos) e nos que requerem nutrientes orgnicos (hete-rotrficos).

    A Escherichia coli a bactria melhor estudadaAs clulas bacterianas compartilham determinadas caracte-rsticas estruturais comuns, mas tambm mostram especia-lizaes grupo-especficas (Fig. 1-6). E. coli usualmente um habitante inofensivo do trato intestinal humano. A clu-la de E. coli tem 2 m de comprimento e um pouco menos de 1 m de dimetro, possuindo uma membrana externa protetora e uma membrana plasmtica interna que envol-ve o citoplasma e o nucleoide. Entre a membrana interna e a externa existe uma fina, mas resistente, camada de um polmero (peptidoglicano) que confere clula sua forma e rigidez. A membrana plasmtica e as camadas externas a ela constituem o envelope celular. Pode ser notado aqui que, nas arquibactrias, a rigidez conferida por um tipo diferente de polmero (pseudopeptidoglicano). A membra-na plasmtica das bactrias consiste em uma bicamada fina de molculas lipdicas impregnadas de protenas. As mem-branas das arquibactrias tm uma arquitetura semelhante, mas os lipdeos so surpreendentemente diferentes daque-les das bactrias (veja a Fig. 10-12).

    O citoplasma da E. coli contm cerca de 15.000 ribos-somos, nmeros variados de cpias (de 10 a milhares) de 1.000 diferentes enzimas, talvez 1.000 compostos orgni-

    cos de massa molecular menor do que 1.000 (metablitos e cofatores), e uma grande variedade de ons inorgnicos.

    Ribossomos Os ribossomos bacterianos so menoresdo que os eucariticos, mas tm a mesma funo sntese proteica a partir de uma mensagem de RNA.

    Nucleoide Contm umanica molcula de DNA,simples, longa e circular.

    Pili Produzpontos deadeso superfcie deoutras clulas.

    FlagelosPropulsionama clula noseu ambiente.

    Envelope celularA estrutura variacom o tipo debactria.

    Bactrias gram-negativasMembrana externa;camada de peptidoglicanos

    Membrana externaCamada depeptidoglicanos

    Membrana internaMembrana internaMembrana interna

    Bactrias gram-positivasSem membrana externa;camada de peptidoglicanosmais espessa

    CianobactriasGram-negativas; camadade peptidoglicanos maisrgida; extenso sistemade membranas internascom pigmentosfotossintticos

    ArquibactriasSem membrana externa;camada de peptidoglicanosdo lado de fora damembrana plasmtica

    Camada depeptidoglicanos

    Membrana interna

    FIGURA 1-6 Caractersticas estruturais comuns das clulas bacte-rianas. Devido a diferenas na estrutura do envelope celular, algu-mas bactrias (gram-positivas) retm o corante de Gram (introdu-zido por Hans Christian Gram em 1882), e outras (gram-negativas) no. E. coli gram-negativa. As cianobactrias so distinguidas por seu extenso sistema de membranas internas, onde se localizam os pigmentos fotossintticos. Embora os envelopes das arquibactrias e das bactrias gram-positivas paream semelhantes ao microsc-pio eletrnico, a estrutura dos lipdeos de membrana e dos polissa-cardeos muito diferente (veja a Fig. 10-12).

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    O nucleoide contm uma nica molcula de DNA circular, e o citoplasma (como na maioria das bactrias) contm seg-mentos circulares de DNA chamados de plasmdios. Na natureza, alguns plasmdios conferem resistncia a toxinas

    e antibiticos ambientais. No laboratrio, estes segmentos de DNA so sensveis manipulao experimental e so ferramentas poderosas para a engenharia gentica (veja o Captulo 9).

    Os ribossomos so mquinasde sintetizar protenas

    O peroxissomo oxida cidos graxos

    O lisossomo degrada restos intracelulares

    O transporte de vesculas faz otrnsito de protenas e lipdeosentre o RE, o complexo de Golgie a membrana plasmtica

    O complexo de Golgi processa,empacota e envia protenas paraoutras organelas ou para exportao

    O retculo endoplasmtico liso(REL) o local de sntese delipdeos e de metabolismode drogas

    O ncleo contm osgenes (cromatina)

    RibossomosEnvelopenuclear Citoesqueleto

    O citoesqueleto sustenta as clulas eauxilia no movimento das organelas

    Complexode Golgi

    O nuclolo o local de sntesede RNA ribossomal

    O retculo endoplasmticorugoso (RER) o local de muitasntese proteica

    A mitocndria oxida oscombustveis para produzir ATP

    A membrana plasmtica separa aclula do meio e regula o movimentodos materiais para dentro e parafora da clula

    O cloroplasto absorve a luz solar e produz ATP e carboidratos

    Os grnulos de amido armazenamtemporariamente os carboidratosproduzidos na fotossntese

    As tilacoides so locais desntese de ATP movida pela luz

    A parede celular d forma erigidez, protegendo a clula da intumescncia osmtica

    Parede celular declulas adjacentesO plasmodesma permitea comunicao entre duas

    clulas vegetais

    O envelope nuclear separa acromatina (DNA protena)do citoplasma

    O vacolo degrada e reciclamacromolculas e armazenametablitos

    (a) Clula animal

    (b) Clula vegetal

    O glioxissomo contm enzimasdo ciclo do glioxilato

    FIGURA 17 Estrutura da clula eucaritica. Ilustraes esquem-ticas dos dois principais tipos de clula eucaritica: (a) uma clula animal representativa e (b) uma clula vegetal representativa. As clulas vegetais geralmente tm um dimetro de 10 a 100 m maiores do que as clulas animais, que variam entre 5 e 30 m.

    As estruturas marcadas em vermelho so exclusivas das clulas animais ou vegetais. Os micro-organismos eucariticos (como pro-tistas e fungos) tm estruturas semelhantes s das clulas animais e vegetais, mas muitos tambm possuem organelas especializadas, no ilustradas aqui.

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    A maioria das bactrias (incluindo E. coli) existe como clulas individuais, mas as clulas de algumas espcies bacte-rianas (p.ex., as mixobactrias) mostram um comportamento social simples, formando agregados multicelulares.

    As clulas eucariticas possuem uma grande variedade de organelas membranares, que podem ser isoladas para estudoAs clulas eucariticas tpicas (Fig. 1-7) so muito maiores do que as bactrias em geral de 5 a 100 m de dimetro, com um volume de mil a um milho de vezes maior do que o das bactrias. As caractersticas que distinguem os euca-riotos so o ncleo e uma grande variedade de organelas en-voltas por membranas com funes especficas: mitocndria, retculo endoplasmtico, complexo de Golgi, peroxissomos e lisossomos. Alm dessas organelas, as clulas vegetais tam-

    bm possuem vacolos e cloroplastos (Fig. 1-7). No citoplas-ma de muitas clulas esto presentes tambm grnulos ou gotculas contendo nutrientes armazenados como amido e gordura.

    Em um avano importante na bioqumica, Albert Claude, Christian de Duve e George Palade desenvolveram mtodos para separar as organelas do citosol e umas das outras uma etapa essencial na investigao de suas estru-turas e funes. Em um processo de fragmentao tpico (Fig. 1-8), as clulas ou os tecidos em soluo so suave-mente rompidos por cisalhamento fsico. Este tratamento rompe a membrana plasmtica, mas deixa intacta a maioria das organelas. O homogeneizado ento centrifugado; or-ganelas como ncleo, mitocndria e lisossomos diferem em tamanho e por isso sedimentam em velocidades diferentes.

    A centrifugao diferencial resulta em um fracionamen-to preliminar do contedo citoplasmtico, que pode ser pos-

    Centrifugao a baixa velocidade(1.000 g, 10 min)

    Sobrenadante centrifugadoa velocidade mdia(20.000 g, 20 min)

    Sobrenadantecentrifugado avelocidade alta(80.000 g, 1 h)

    Sobrenadantecentrifugadoa velocidademuito alta(150.000 g, 3 h)

    Centrifugaodiferencial

    Homogeneizaodo tecido

    Homogeneizadode tecido

    Sedimentocontm

    mitocndrias,lisossomos,

    peroxissomos

    Sedimentocontm

    microssomos(fragmentos de RE),

    pequenasvesculas

    Sedimento contmribossomos, macromol-

    culas grandes

    Sedimento contmclulas inteiras,

    ncleos,citoesqueleto,

    membranaplasmtica

    Sobrenadantecontmprotenassolveis

    (a)

    Centrifugao isopcnica (emdensidade de sacarose)

    (b)

    Centrifugao

    Fracionamento

    Amostra

    Componentemenos denso

    Componentemais denso

    Gradientede sacarose

    8 7 6 5 34 2 1

    FIGURA 1-8 Fracionamento subcelular de tecidos. Um tecido como o heptico homogeneizado mecanicamente para romper as clulas e dispersar seu contedo em um tampo aquoso. O meio com sacarose tem uma presso osmtica semelhante das organelas, equilibrando assim a difuso da gua para dentro e para fora das organelas, as quais intumesceriam e estourariam em uma soluo de osmolaridade mais baixa (veja a Fig. 2-12). (a) As partculas grandes e pequenas em suspenso podem ser separadas por centrifugao em diferentes velocidades, ou (b) as partculas de diferentes densidades podem ser separadas por cen-trifugao isopcnica, na qual se enche o tubo de centrfuga com uma soluo cuja densidade aumenta do topo para o fundo; um soluto como a sacarose dissolvido em diferentes concentraes para produzir o gradiente de densidade. Quando uma mistura de organelas for colocada no topo do gradiente de densidade e o tubo for centrifugado a alta velocidade, as organelas sedimen-tam at que sua densidade de flutuao se iguale do gradiente. Cada camada pode ser coletada separadamente.

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    teriormente purificado por centrifugao isopcnica (mesma densidade). Neste procedimento, as organelas com diferen-tes densidades de flutuao (resultantes de razes diferentes entre lipdeo e protena em cada tipo de organela) so sepa-radas por centrifugao por meio de uma coluna de solven-te com gradiente de densidade. Pela remoo cuidadosa do material de cada regio do gradiente e observao ao micros-cpio, o bioqumico pode estabelecer a posio de sedimen-tao de cada organela e obter organelas purificadas para estudo posterior. Esses mtodos foram utilizados para esta-belecer, por exemplo, que os lisossomos contm enzimas de-gradativas, as mitocndrias contm enzimas oxidativas, e os cloroplastos contm pigmentos fotossintticos. O isolamento de uma organela enriquecida em determinada enzima com frequncia a primeira etapa na purificao dessa enzima.

    O citoplasma organizado pelo citoesqueleto e altamente dinmicoA microscopia de fluorescncia revela vrios tipos de fi-lamentos proteicos atravessando a clula eucaritica em vrias direes, formando uma rede tridimensional inter-ligada, o citoesqueleto. Existem trs tipos gerais de fila-mentos citoplasmticos filamentos de actina, microtbu-los e filamentos intermedirios (Fig. 1-9) que diferem em largura (de 6 a 22 nm), composio, e funo especfica. To-dos os tipos conferem estrutura e organizao ao citoplasma

    e forma clula. Os filamentos de actina e os microtbulos tambm auxiliam na produo de movimento das organelas e da clula inteira.

    Cada tipo de componente do citoesqueleto compos-to por subunidades proteicas simples que se associam de forma no covalente para formar filamentos de espessura uniforme. Estes filamentos no so estruturas permanentes, sendo submetidos a constante desmontagem em suas subu-nidades e remontagem novamente em filamentos. Sua loca-lizao na clula no fixa, podendo mudar drasticamen-te com a mitose, a citocinese, o movimento ameboide ou mudanas na forma celular. A montagem, a desmontagem e a localizao de todos os tipos de filamentos so reguladas por outras protenas, as quais servem para ligar ou reunir os filamentos ou para mover as organelas citoplasmticas ao longo deles. O quadro que emerge desta breve viso da estrutura da clula eucaritica o de uma clula com uma trama de fibras estruturais e um sistema complexo de com-partimentos envoltos por membranas (Fig. 1-7). Os filamen-tos se desmontam e se remontam em outro lugar. As vescu-las membranares brotam de uma organela e se fundem com outra. As organelas se movem pelo citoplasma ao longo de filamentos proteicos, e seu movimento impulsionado por protenas motoras dependentes de energia. O sistema de endomembranas segrega processos metablicos especfi-cos e prov superfcies sobre as quais ocorrem determina-das reaes catalisadas por enzimas. A exocitose e a endo-

    FIGURA 1-9 Os trs tipos de filamentos do citoesqueleto: fila-mentos de actina, microtbulos e filamentos intermedirios. As estruturas celulares podem ser marcadas com um anticorpo (que reconhea uma determinada protena) covalentemente ligado a um composto fluorescente. As estruturas marcadas so visveis quan-do a clula observada sob um microscpio de fluorescncia. (a) Clulas endoteliais da artria pulmonar bovina. Feixes de filamen-tos de actina denominados fibras de estresse esto marcados em

    vermelho; os microtbulos, irradiando a partir do centro da clu-la, esto marcados em verde; e os cromossomos (no ncleo) esto marcados em azul. (b) Uma clula de pulmo de salamandra em mitose. Os microtbulos (em verde) ligados a estruturas chamadas de cinetcoros (em amarelo) sobre os cromossomos condensados (em azul) puxam os cromossomos para polos opostos, ou centros-somos (em magenta), da clula. Os filamentos intermedirios, for-mados de queratina (em vermelho), mantm a estrutura da clula.

    (a) (b)

  • Princpios de Bioqumica de Lehninger 9

    citose, mecanismos de transporte (para fora e para dentro da clula, respectivamente) que envolvem fuso e fisso de membranas, produzem vias entre o citoplasma e o meio cir-cundante, permitindo a secreo de substncias produzidas na clula e a captao de materiais extracelulares.

    Esta organizao do citoplasma, embora complexa, est longe de ser aleatria. O movimento e o posicionamento das organelas e dos elementos do citoesqueleto esto sob uma regulao firme, e uma clula eucaritica submetida, em determinados estgios da vida, a reorganizaes dramti-cas conduzidas com exatido, como nos eventos da mitose.

    As interaes entre o citoesqueleto e as organelas so no covalentes, reversveis e sujeitas regulao em resposta a vrios sinais intra e extracelulares.

    As clulas constroem estruturas supramolecularesAs macromolculas e suas subunidades monomricas di-ferem muito em tamanho (Fig. 1-10). Uma molcula de alanina tem menos de 0,5 nm de comprimento. Uma mol-cula de hemoglobina, a protena transportadora de oxignio dos eritrcitos (clulas vermelhas do sangue), consiste em subunidades contendo cerca de 600 resduos de aminoci-dos em quatro longas cadeias, dobradas em forma globular e associadas em uma estrutura de 5,5 nm de dimetro. As protenas, por sua vez, so muito menores do que os ribos-somos (cerca de 20 nm de dimetro), os quais, por sua vez, so menores do que organelas como as mitocndrias, que tm 1.000 nm de dimetro. um grande salto das biomol-culas simples s estruturas celulares que podem ser vistas ao microscpio ptico. A Figura 1-11 ilustra a hierarquia estrutural na organizao celular.

    As subunidades monomricas das protenas, dos ci-dos nucleicos e dos polissacardeos so unidas por ligaes

    FIGURA 1-10 Os compostos orgnicos a partir dos quais formada a maior parte dos materiais celulares: o ABC da bioqumica. Esto mostrados aqui (a) seis dos 20 aminocidos que formam todas as protenas (as cadeias laterais esto sombreadas em cor-de-rosa); (b) as cinco bases nitrogenadas, os dois acares de cinco carbonos e os ons fosfato que formam os cidos nucleicos; (c) os cinco compo-nentes dos lipdeos de membrana; e (d) D-glicose, o acar simples que origina a maioria dos carboidratos. Observe que o fosfato um componente dos cidos nucleicos e dos lipdeos de membrana.

    H3

    N

    H3

    N H3

    NH3

    N

    C

    COO

    COO COO

    COO

    H3

    N

    COO

    H3

    N

    COO

    COOCH3

    H C

    CH2OH

    H C

    CH2

    H

    Alanina Serina

    Aspartato

    C

    C

    SH

    H2

    H

    CistenaHistidina

    C

    C H

    H2

    OH

    Tirosina

    C

    CH2

    H

    C H

    CHHC

    N

    NH

    (a) Alguns dos aminocidos das protenas

    Uracil Timina

    -D-Ribose 2-desoxi--D-ribose

    O

    H

    OH

    NH2

    HOCH2

    Citosina

    H

    HHOH

    H

    O

    H

    OH

    HOCH2 H

    HHOH

    OH

    Adenina Guanina

    COO

    Oleato

    Palmitato

    H

    CH2OHO

    HOOH

    -D-Glicose

    H HH

    OH

    OH

    H

    (b) Os componentes dos cidos nucleicos (c) Alguns componentes dos lipdios

    (d) O acar de origem

    HO P

    O

    O

    OH

    Fosfato

    N

    Colina

    CH2CH2OH

    CH3

    CH3

    CH3

    Glicerol

    CH2OH

    CHOH

    CH2OH

    CH2

    CH3

    CH2

    CH2

    CH2

    CH2

    CH2

    CH2

    CH2

    CH2 CH2

    CH2 CH3

    CH2

    CH2

    CH2

    CH2

    CH2

    CH2

    COO

    CH2

    CH2

    CH2

    CH2

    CH2

    CH2

    CH2

    CH2

    CH2

    CH2

    CH2

    CH

    CH

    C

    NH2

    C

    CCH

    HC

    N

    N NH

    N C

    O

    C

    CCH

    C

    HN

    N NH

    N

    C

    O

    OCH

    CH

    C

    HN

    NH

    OCH

    CH

    C

    N

    NH

    C

    O

    OCH

    C

    C

    HN

    NH

    H2N

    CH3

    Bases nitrogenadas

    Acares de cinco carbonos

  • 10 David L. Nelson & Michael M. Cox

    covalentes. Nos complexos supramoleculares, contudo, as macromolculas so unidas por interaes no covalentes individualmente muito mais fracas do que as covalentes. Entre estas interaes esto as ligaes de hidrognio (en-tre grupos polares), as interaes inicas (entre grupos car-regados), as interaes hidrofbicas (entre grupos apolares em soluo aquosa) e as interaes de van der Waals (foras de London) todas elas com energia muito menor do que as ligaes covalentes. Essas interaes so descritas no Cap-tulo 2. O grande nmero de interaes fracas entre as ma-cromolculas em complexos supramoleculares estabilizam essas agregaes, gerando suas estruturas singulares.

    Estudos in vitro podem omitir interaes importantes entre molculasUma abordagem para o entendimento de um processo biol-gico o estudo in vitro de molculas purificadas (no vidro no tubo de ensaio), sem a interferncia de outras molcu-las presentes na clula intacta isto , in vivo (no vivo). Embora esta abordagem seja muito esclarecedora, deve-se considerar que o interior de uma clula totalmente diferen-te do interior de um tubo de ensaio. Os componentes inter-ferentes eliminados na purificao podem ser crticos para a funo biolgica ou para a regulao da molcula purificada. Por exemplo, estudos in vitro de enzimas puras so comu-mente realizados com concentraes muito baixas da enzima em solues aquosas sob agitao. Na clula, uma enzima est dissolvida ou suspensa em um citosol com consistncia gelatinosa junto com milhares de outras protenas, sendo que algumas delas se ligam enzima e influenciam sua atividade. Algumas enzimas so componentes de complexos multienzi-mticos nos quais os reagentes passam de uma enzima para a outra, sem interagir com o solvente. A difuso dificultada no citosol gelatinoso, e a composio citoslica varia ao lon-

    go da clula. Em resumo, uma dada molcula pode ter um comportamento muito diferente na clula e in vitro. Um de-safio central na bioqumica entender as influncias da orga-nizao celular e das associaes macromoleculares sobre a funo das enzimas individuais e outras biomolculas para entender a funo in vivo assim como in vitro.

    RESUMO 1.1 Fundamentos celulares Todas as clulas so delimitadas por uma membrana

    plasmtica, tendo um citosol contendo metablitos, co-enzimas, ons inorgnicos e enzimas, possuindo um con-junto de genes contidos dentro de um nucleoide (bact-rias e arquibactrias) ou de um ncleo (eucariotos).

    Os fototrficos usam a luz do sol para realizar trabalho; os quimiotrficos oxidam combustveis, transferindo eltrons para bons aceptores: compostos inorgnicos, compostos orgnicos ou oxignio molecular.

    As clulas de bactrias e de arquibactrias contm cito-sol, um nucleoide e plasmdeos. As clulas eucariticas tm um ncleo e so multicompartimentalizadas, com determinados processos segregados em organelas es-pecficas; as organelas podem ser separadas e estuda-das isoladamente.

    As protenas do citoesqueleto se organizam em longos filamentos que do forma e rigidez s clulas e servem como trilhos ao longo dos quais as organelas celulares se deslocam por toda a clula.

    Complexos supramoleculares so mantidos unidos por interaes no covalentes e formam uma hierarquia de estruturas, algumas delas visveis ao microscpio ptico. Quando molculas individuais so removidas destes complexos para serem estudadas in vitro, al-gumas interaes, importantes na clula viva, podem ser perdidas.

    Nvel 4:A clula e

    suas organelas

    Nvel 3:Complexos

    supramoleculares

    Nvel 2:Macromolculas

    Nvel 1:Unidades

    monomricas

    Nucleotdeos

    Aminocidos

    Protena

    Celulose

    Membranaplasmtica

    Cromatina

    Parede celularAcares

    DNA

    O

    CH2OHH

    O

    PO O OO

    CH2

    NH2

    H H

    N

    N

    H

    HOH

    HO

    H

    CH3N COO

    CH3

    H

    O H

    OH

    CH2OH

    H

    HO OH

    OH

    H

    FIGURA 1-11 Hierarquia estrutural na organizao molecular das clulas. O ncleo desta clula vegetal uma organela que contm vrios tipos de complexos supramoleculares, incluindo cromatina. A cromatina consiste em dois tipos de macromolculas, DNA e muitas protenas diferentes, sendo cada uma delas formada por subunidades simples.

  • Princpios de Bioqumica de Lehninger 11

    1.2 Fundamentos qumicosA bioqumica tenta explicar as formas e as funes biol-gicas em termos qumicos. No final do sculo XVIII, os qu-micos concluram que a composio da matria viva im-pressionantemente diferente daquela do mundo inanimado. Antoine-Laurent Lavoisier (1743-1794) percebeu a relativa simplicidade do mundo mineral e contrastou-a com a com-plexidade dos mundos animal e vegetal. Estes ltimos ele sabia serem constitudos de compostos ricos nos elementos carbono, oxignio, nitrognio e fsforo.

    Durante a primeira metade do sculo XX, investigaes bioqumicas conduzidas em paralelo sobre a oxidao da gli-cose em leveduras e clulas de msculo animal revelaram similaridades qumicas marcantes nestes dois tipos celulares aparentemente muito distintos, indicando que a queima da glicose em leveduras e clulas musculares envolve os mesmos 10 intermedirios qumicos e as mesmas 10 enzimas. Estudos subsequentes de muitos outros processos qumicos em dife-rentes organismos confirmaram a generalidade desta observa-o, resumida em 1954 por Jacques Monod: O que vale para a E. coli tambm vale para um elefante. A atual compreenso de que todos os organismos tm uma origem evolutiva comum tem como base em parte esta observao, de que todos parti-cipam dos mesmos processos e intermedirios qumicos, o que muitas vezes denominado unidade bioqumica.

    Menos de 30 entre os mais de 90 elementos qumicos de ocorrncia natural so essenciais para os organismos. A maioria dos elementos da matria viva tem um nmero at-mico relativamente baixo; somente dois possuem nmeros atmicos maiores que o selnio, 34 (Fig. 1-12). Os quatro elementos qumicos mais abundantes nos organismos vivos, em termos de porcentagem do total de nmero de tomos,

    so hidrognio, oxignio, nitrognio e carbono, que juntos constituem mais de 99% da massa das clulas. Eles so os elementos mais leves capazes de formar eficientemente uma, duas, trs e quatro ligaes; em geral, os elementos mais fracos formam as ligaes mais fortes. Os elemen-tos-trao (Fig. 1-12) representam uma frao minscula do peso do corpo humano, mas todos so essenciais vida, geralmente por serem essenciais para a funo de prote-nas especficas, incluindo muitas enzimas. A capacidade de transporte de oxignio da hemoglobina, por exemplo, to-talmente dependente de quatro ons de ferro, que somados representam somente 0,3% da massa total.

    Biomolculas so compostos de carbono com uma grande variedade de grupos funcionaisA qumica dos organismos vivos est organizada em torno do carbono, que contribui em mais da metade do peso seco das clulas. O carbono pode formar ligaes simples com tomos de hidrognio, assim como ligaes simples e duplas com tomos de oxignio e nitrognio (Fig. 1-13). A capaci-dade dos tomos de carbono de formar ligaes simples es-tveis com at quatro outros tomos de carbono de grande importncia na biologia. Dois tomos de carbono tambm podem compartilhar dois (ou trs) pares de eltrons, for-mando assim ligaes duplas (ou triplas).

    As quatro ligaes simples que podem ser formadas pelo tomo de carbono se projetam a partir do ncleo for-mando os quatro vrtices de um tetraedro (Fig. 1-14), com um ngulo de aproximadamente 109,5 entre duas ligaes quaisquer e tendo um comprimento mdio de ligao de 0,154 nm. A rotao livre em torno de cada ligao sim-ples, a menos que grupos muito grandes ou altamente car-

    FIGURA 1-12 Elementos essenciais para a vida e a sade animal. Os elementos princi-pais (em laranja) so componentes estruturais das clulas e dos tecidos e so requeridos na dieta em uma quantidade de vrios gramas por dia. Para os elementos-trao (em amarelo brilhante) as quantidades requeridas so mui-to menores: para humanos, alguns miligramas por dia de ferro, cobre e zinco so suficientes, e quantidades ainda menores dos demais ele-mentos. As necessidades mnimas para plan-tas e micro-organismos so similares s mos-tradas aqui; o que varia so as maneiras pelas quais eles adquirem estes elementos.

    1 2

    3 4 5 6 7 8 9 10

    11 12 13 14 15 16 17 18

    19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36

    37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53 54

    55 56 72 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 83 84 85 86

    87 88

    H He

    Li Be B C N O F Ne

    Na Mg Al Si P S Cl Ar

    K Ca Sc Ti V Cr Mn Fe Co Ni Cu Zn Ga Ge As Se Br Kr

    Rb Sr Y Zr Nb Mo Tc Ru Rh Pd Ag Cd In Sn Sb Te I Xe

    Cs Ba Hf Ta W Re Os Ir Pt Au Hg Tl Pb Bi Po At Rn

    Fr RaLantandeos

    Actindeos

    Elementos principaisElementos-trao

    C NC N C N

    H C HH HCC

    O C OC COO

    C OC OO OC

    C C CCC C

    CC C CC C

    NC N C N C

    C C CC C C

    FIGURA 1-13 A versatilidade do carbono em formar ligaes. O carbono pode formar ligaes co-valentes simples, duplas e triplas (indicadas em vermelho), particu-larmente com outros tomos de carbono. Ligaes triplas so raras em biomolculas.

  • 12 David L. Nelson & Michael M. Cox

    FIGURA 1-14 Geometria da ligao do carbono. (a) Os tomos de carbono tm um arranjo tetradrico bem caracterstico para suas quatro ligaes simples. (b) A ligao simples carbono-carbono tem liberdade de rotao, como mostrado para o composto etano

    (CH3CH3). (c) Ligaes duplas so mais curtas e no permitem rotao. Os dois carbonos ligados por ligao dupla e os tomos designados por A, B, X e Y esto todos no mesmo plano rgido.

    (a) (b)

    109,5

    109,5

    CC

    C

    (c)

    120X

    CC

    A

    B

    Y

    Metil R C

    H

    H

    H ter R1 O R2

    N

    Guanidina R N

    H

    C NH

    H

    HH

    Etil R C

    H

    H

    C

    H

    H

    H ster R1 C

    O

    O R2 Imidazol R

    N:

    CHC

    HN

    H

    C

    Fenil R C HC

    CH

    HC

    C

    C

    H

    H

    O

    O H

    C HCAcetil R

    H

    Sulfidril R S H

    Carbonil(aldedo)

    R C

    O

    H Anidrido R1 C

    O O

    C R2

    (dois cidoscarboxlicos)

    O Dissulfeto R S S R21

    Carbonil(cetona)

    R C

    O

    R21

    (protonado)NAmino R

    H

    H

    H Tioster R1 C

    O

    S R2

    Carboxil R C

    O

    O Amida R C

    O

    N

    H

    H

    O

    Fosforil R O P

    O

    OH

    Hidroxil R O H(lcool)

    R R21Imina

    N

    H

    C

    O O

    Fosfoanidrido R1

    O

    R2O P

    O

    PO RO

    Enol R C

    H

    H

    C

    HO

    HR R21

    Imina N- substituda (base de Schiff)

    N

    C

    R3

    (de cido carboxlicoe cido fosfrico;tambm chamadode acil-fosfato)

    Anidrido misto R C O

    O

    OH

    O

    O

    P

    FIGURA 1-15 Alguns grupos funcionais comuns de biomolcu-las. Nesta figura e em todo o livro, ser usado R para representar qualquer substituinte. Ele pode ser to simples como um tomo

    de hidrognio, mas tipicamente ser um grupo contendo carbono. Quando dois ou mais substituintes so mostrados em uma molcu-la, sero designados como R1, R2 e assim por diante.

  • Princpios de Bioqumica de Lehninger 13

    regados estejam ligados aos tomos de carbono. Neste caso, a rotao pode ser limitada. J a ligao dupla mais curta (cerca de 0,134 nm) e rgida, permitindo somente uma rota-o limitada em torno do seu eixo.

    tomos de carbono covalentemente ligados em bio-molculas podem formar cadeias lineares, ramificadas e estruturas cclicas. Aparentemente a versatilidade de liga-o do carbono, consigo mesmo e com outros elementos, foi o principal fator na seleo dos compostos de carbono para a maquinaria molecular das clulas durante a origem e a evoluo dos organismos vivos. Nenhum outro elemento qumico consegue formar molculas com tanta diversidade de tamanhos, formas e composio.

    A maioria das biomolculas pode ser considerada como derivada dos hidrocarbonetos, tendo tomos de hidrognio substitudos por uma grande variedade de grupos funcionais que conferem propriedades qumicas especficas molcula, formando vrias famlias de compostos orgnicos. Exemplos tpicos destas biomolculas so os lcoois, que tm um ou mais grupos hidroxil; aminas, com grupos amina; aldedos e cetonas, com grupos carbonil; e cidos carboxlicos, com grupos carboxil (Fig. 1-15). Muitas biomolculas so poli-funcionais, contendo dois ou mais tipos de grupos funcionais (Fig. 1-16), cada qual com suas caractersticas qumicas e de reao. A personalidade qumica de um composto de-terminada pela qumica de seu grupo funcional e pela sua disposio no espao tridimensional.

    As clulas contm um conjunto de pequenas molculasExiste uma coleo de aproximadamente mil molculas orgnicas diferentes (Mr ~100 a ~500) dissolvidas na fase

    aquosa (citosol) das clulas, que so os metablitos centrais das rotas metablicas principais que ocorrem em quase to-das as clulas isto , os metablitos e as rotas que foram conservados durante o curso da evoluo (veja o Quadro 1-1 para uma explicao das vrias maneiras de se referir ao peso molecular). Esta coleo de molculas inclui os amino-cidos comuns, nucleotdeos, acares e seus derivados fos-forilados e cidos mono, di e tricarboxlicos. As molculas so polares ou carregadas, solveis em gua e presentes em concentraes de micromolar a milimolar. Elas esto apri-sionadas no interior das clulas porque a membrana plas-mtica impermevel a elas embora transportadores de membrana especficos possam catalisar o deslocamento de algumas molculas para dentro e para fora da clula ou en-tre compartimentos nas clulas eucariticas. A ocorrncia universal dos mesmos conjuntos de compostos nas clulas vivas reflete a conservao evolutiva das rotas metablicas que se desenvolveram nas clulas primitivas.

    Existem outras biomolculas pequenas, especficas para certos tipos de clulas ou organismos. Por exemplo, plantas vasculares contm, alm dos conjuntos comuns, mo-lculas pequenas chamadas de metablitos secundrios, que exercem papis especficos para a vida da planta. Estes metablitos incluem compostos que conferem s plantas seus aromas caractersticos e compostos como a morfina, a quinina, a nicotina e a cafena, que so importantes devido aos seus efeitos fisiolgicos em humanos, mas usados para outras finalidades nas plantas.

    O conjunto de pequenas molculas em uma dada clula tem sido chamado de metaboloma da clula, em analogia ao termo genoma (definido anteriormente e explicado na Seo 1-5).

    FIGURA 1-16 Vrios grupos funcionais comuns em uma nica biomolcula. Acetil-coenzima A (frequentemente abreviada como acetil-CoA) uma carreadora de grupos acetil em algumas reaes enzimticas. Os grupos funcionais so mostrados na frmula es-trutural. Como ser visto no Captulo 2, alguns destes grupos fun-

    cionais podem existir nas formas protonadas ou no protonadas, dependendo do pH. No modelo de volume atmico, N azul, C preto, P laranja, O vermelho e H branco. O tomo amarelo no lado esquerdo o enxofre da ligao tioster, que importante na mediao entre a parte acetil e coenzima A.

    SOCH2OCH2ONHOCBO

    OCH2OCH2ONHOCBO

    BO

    OCAH

    AOH

    O CACH3

    ACH3

    CH2OOCH3O OC OPAO

    BO

    OOOP

    A

    BO

    OOOCH2

    O

    HNK

    CH BCE

    ANH2

    N

    N

    A

    OOP

    OH

    PO

    tipo imidazol

    amino

    fosfoanidrido

    Acetil-coenzima A

    H

    NN

    C

    H

    C

    HC

    O

    O

    Hhidroxil

    amidaamidatioster

    fosforil

    CC

    C

    H

    C

    H

    A

    AO

    O O

  • 14 David L. Nelson & Michael M. Cox

    As macromolculas so os principais constituintes das clulasMuitas molculas biolgicas so macromolculas, polme-ros com peso molecular acima de ~5.000, que so montadas a partir de precursores relativamente simples. Polmeros mais curtos so chamados de oligmeros (oligos do grego, pou-cos). Protenas, cidos nucleicos e polissacardeos so ma-cromolculas feitas de monmeros cujos pesos moleculares so 500 ou menos. A sntese de macromolculas a atividade que mais consome energia nas clulas. As macromolculas podem ainda sofrer processamentos adicionais que resultam em complexos supramoleculares, formando unidades funcio-nais como os ribossomos. A Tabela 1-1 mostra as principais classes de biomolculas em uma clula de E. coli.

    As protenas, que so polmeros longos de aminoci-dos, constituem a maior frao (alm da gua) da clula. Algumas protenas possuem atividade cataltica e funcio-nam como enzimas; outras servem como elementos estrutu-rais, receptores de sinal, ou transportadores que carregam substncias especficas para dentro ou para fora das clulas. As protenas so talvez as mais versteis de todas as bio-

    molculas; um catlogo de suas mais variadas funes seria bem extenso. O conjunto das protenas em funcionamento em uma dada clula chamado de proteoma da clula. Os cidos nucleicos, DNA e RNA, so polmeros de nucleot-deos. Eles armazenam e transmitem a informao gentica, e algumas molculas de RNA apresentam tambm funo estrutural e cataltica em complexos supramoleculares. Os polissacardeos, polmeros de acares simples como a glicose, apresentam trs funes principais: reservatrios de combustvel de alto contedo energtico, componentes estruturais rgidos da parede celular (em plantas e bact-rias) e elementos no reconhecimento extracelular que se ligam a protenas de outras clulas. Polmeros mais curtos de acares (oligossacardeos) ligados a protenas ou lip-deos na superfcie da clula servem como sinais celulares especficos. Os lipdeos, derivados de hidrocarbonetos in-solveis em gua, servem como componentes estruturais das membranas, depsitos de combustvel de alto contedo energtico, pigmentos e sinais intracelulares.

    Protenas, polinucleotdeos e polissacardeos apresen-tam um grande nmero de subunidades monomricas e como consequncia alto peso molecular na faixa de 5.000 at mais de 1 milho para protenas, at vrios bilhes para cidos nucleicos e milhes para polissacardeos como o ami-do. Molculas de lipdeos individuais so muito menores (Mr entre 750 e 1.500) e no so classificadas como macromol-culas, mas podem associar-se no covalentemente forman-do estruturas muito grandes. Membranas celulares so for-madas por grandes agregados no covalentes de molculas de lipdeos e protenas.

    Dadas as suas sequncias caractersticas de subunida-des ricas em informao, protenas e cidos nucleicos so muitas vezes referidos como macromolculas informa-cionais. Alguns oligossacardeos, como observado anterior-mente, tambm servem como molculas informacionais.

    A estrutura tridimensional descrita pela configurao e pela conformaoAs ligaes covalentes e os grupos funcionais das biomol-culas so, obviamente, essenciais para o seu funcionamento, como tambm o arranjo dos constituintes atmicos das molculas no espao tridimensional isto , sua estereo-qumica. Um composto contendo carbono normalmente

    H duas maneiras comuns (e equivalentes) para descrever mas-sa molecular, e ambas so usadas neste texto. A primeira peso molecular, ou massa molecular relativa, denominada Mr. O peso molecular da substncia definido como a relao da mas-sa da molcula da substncia para um-duodcimo da massa do carbono-12 (12C). Visto que Mr uma razo, ela adimensional no tem unidades associadas. A segunda a massa molecu-lar, denotada por m, que simplesmente a massa da molcu-la, ou a massa molar, dividida pelo nmero de Avogadro. Esta massa molecular, m, expressa em dltons (abreviado Da). Um dlton equivalente a um-duodcimo da massa do carbono-12; um kilodlton (kDa) 1.000 dltons; um megadlton (MDa) um milho de dltons.

    Considere, por exemplo, uma molcula com uma massa de 1.000 vezes a da gua. Pode-se dizer que esta molcula possui Mr 18.000 ou m 18.000 dltons. Pode-se tambm descre-v-la como uma molcula com 18 kDa. Entretanto, a expres-so Mr 18.000 dltons incorreta.

    Outra unidade conveniente para descrever a massa de um nico tomo ou molcula a unidade de massa atmica (an-teriormente denominada u.m.a., agora geralmente descrita como u). Uma unidade de massa atmica (1 u) definida como um-duodcimo da massa do tomo do carbono-12. Experimen-talmente, a medida da massa de um tomo de carbono-12 1,9926 1023 g, ento 1 u 1,6606 1024 g. A unidade de massa atmica conveniente para descrever a massa do pico ob-servado em espectrometria de massas (veja o Quadro 3-2).

    QUADRO 11 Peso molecular, massa molecular e suas unidades corretas

    TABELA 1-1 Componentes moleculares de uma clula de E. coli

    Porcentagem do peso total

    de clula

    Nmero aproximado de espcies moleculares diferentes

    gua 70 1

    Protenas 15 3.000

    cidos nucleicosDNARNA

    16

    1-4> 3.000

    Polissacardeos 3 10

    Lipdeos 2 20

    Subunidades monomri-cas e intermedirias

    2 500

    ons inorgnicos 1 20

  • Princpios de Bioqumica de Lehninger 15

    CG

    H

    DHOOC

    PCD

    H

    GCOOH

    cido maleico (cis)

    CH3

    OJ

    C

    11-cis-Retinal

    luz

    CG

    HOOC

    DH

    PCD

    H

    GCOOH

    cido fumrico (trans)

    Retinal todo trans

    H3

    CH3

    G

    C

    H

    9

    1210

    11H3

    CH3

    C9

    1210

    11H3C

    CJ

    OG

    H

    CH3CH3GD

    (b)

    (a)

    CH3CH3GD

    FIGURA 118 Configurao de ismeros geomtricos. (a) Isme-ros como o cido maleico (maleato em pH 7) e o cido fumrico (fumarato) no podem ser interconvertidos sem quebrar ligaes covalentes, o que requer o gasto de muito mais energia do que a mdia da energia cintica das molculas a temperaturas fisiol-gicas. (b) Na retina dos vertebrados, o evento inicial na deteco de luz a absoro da luz visvel pelo 11-cis-retinal. A energia da luz absorvida (em torno de 250 kJ/mol) converte 11-cis-retinal em retinal todo trans, provocando mudanas na clula da retina, o que desencadeia o impulso nervoso. (Note que os tomos de hidrog-nio so omitidos nos modelos de esfera e vareta.)

    existe como estereoismeros, molculas com as mesmas ligaes qumicas, mas com diferentes configuraes. In-teraes entre biomolculas so invariavelmente estereo-especficas, requerendo configuraes especficas nas in-teraes moleculares.

    A Figura 1-17 mostra trs maneiras de ilustrar a este-reoqumica, ou configurao, das molculas simples. O dia-grama em perspectiva especifica a estereoqumica de forma inequvoca, mas o ngulo das ligaes e os comprimentos das ligaes centro-a-centro so melhor representados pe-los modelos de esfera e vareta. No modelo de volume at-mico, o raio de cada tomo proporcional ao seu raio de van der Waals, e os contornos do modelo definem o espao ocupado pela molcula (o volume do espao no qual os to-mos das outras molculas esto excludos).

    A configurao conferida pela presena de (1) liga-es duplas, em torno das quais no h liberdade de rota-o, ou pela presena de (2) centros quirais, em torno dos quais grupos substituintes so arranjados em uma orien-tao especfica. A caracterstica que permite identificar estereoismeros o fato de no poderem ser interconver-tidos sem quebrar temporariamente uma ou mais ligaes covalentes. A Figura 1-18a mostra a configurao do cido maleico e seu ismero, cido fumrico. Estes compostos so ismeros geomtricos, ou ismeros cis-trans, que di-ferem no arranjo de seus grupos substituintes com respei-to ligao dupla rgida (no rotante) (do latim cis, neste

    lado grupos com mesmo lado de ligaes duplas; trans, atravs de grupos em lados opostos). O cido maleico (malato no pH neutro do citoplasma) o ismero cis, e o cido fumrico (fumarato), o ismero trans; cada um dos compostos bem definido e eles podem ser separados um do outro, cada um possuindo propriedades qumicas nicas. Um stio de ligao (em uma enzima, p.ex.) que comple-mentar a uma destas molculas no ser complementar

    H3N

    C

    C

    O

    H C

    H

    H

    H

    (a) (c)(b)

    O

    FIGURA 117 Representaes de molculas. Trs maneiras para representar a estrutura do aminocido alanina (mostrado na forma inica encontrada em pH neutro). (a) Frmula estrutural em pers-pectiva: uma cunha slida ( ) representa uma ligao na qual o tomo se projeta para fora do plano do papel, na direo do lei-tor; a cunha tracejada ( ) representa a ligao estendida para trs do plano do papel. (b) o modelo de esfera e vareta, mostrando os comprimentos relativos das ligaes e os ngulos das ligaes. (c) modelo de volume atmico, no qual cada tomo mostrado com seu raio de van der Waals relativo correto.

  • 16 David L. Nelson & Michael M. Cox

    outra, o que explica por que esses dois compostos tm pa-pis biolgicos distintos apesar de sua qumica similar.

    No segundo tipo de estereoismero, quatro diferentes substituintes ligados a um tomo de carbono tetradrico podem ser arranjados em duas formas espaciais diferentes isto , possuem duas configuraes (Fig. 1-19) pro-duzindo dois estereoismeros com propriedades qumicas similares ou idnticas, porm diferindo em certas proprie-dades fsicas e biolgicas. Um tomo de carbono com qua-tro substituintes diferentes considerado assimtrico, e carbonos assimtricos so chamados de centros quirais (do grego chiros, mo; alguns estereoismeros esto es-truturalmente relacionados da mesma forma que a mo di-

    reita est relacionada com a esquerda). Uma molcula com somente um carbono quiral pode ter dois estereoismeros; quando dois ou mais (n) carbonos quirais esto presentes, ento podem existir 2n estereoismeros. Estereoismeros que so imagens especulares um do outro so chamados de enantimeros (Fig. 1-19). Pares de estereoismeros que no so imagens especulares um do outro so chamados de diastereoismeros (Fig. 1-20).

    Como Louis Pasteur observou pela primeira vez em 1848 (Quadro 1-2), os enantimeros tm propriedades qua-se idnticas, mas diferem em uma propriedade fsica bem caracterstica: sua interao com a luz polarizada. Em so-lues separadas, dois enantimeros giram o plano da luz

    FIGURA 1-19 Assimetria molecular: molculas quirais e no qui-rais. (a) Quando um tomo de carbono tem quatro grupos substi-tuintes diferentes (A, B, X, Y), estes podem estar arranjados de duas maneiras, que representam imagens especulares no superponveis (enantimeros). O tomo de carbono assimtrico chamado de to-mo quiral ou centro quiral. (b) Quando um carbono tetradrico tem

    somente trs grupos diferentes (isto , o mesmo grupo ocorre duas vezes), somente uma configurao possvel e a molcula simtri-ca ou no quiral. Neste caso, a molcula tem sua imagem superposta na imagem especular: a molcula do lado esquerdo pode girar no sentido anti-horrio (quando vista de cima para baixo na direo da ligao de A com C) para formar a molcula vista no espelho.

    Y

    Y

    C

    B

    (a)

    A

    Y

    A

    CX B

    A

    C

    B

    X

    X

    Imagemespecular

    da molculaoriginal

    Molculaquiral: amolcularotada nopode sersuperposta sua imagemespecular

    Molculaoriginal

    Molculano quiral:a molcularotada podeser superposta sua imagemespecular

    Imagemespecular

    da molculaoriginal

    Molculaoriginal

    X

    A

    CX

    B

    X

    A

    C

    X B

    (b)

    X

    A

    C

    X

    B

    C

    CH3

    CH3

    H

    C H

    X

    Y

    C

    CH3

    CH3

    X

    C Y

    H

    H

    C

    CH3

    CH3

    H

    C Y

    X

    H Y

    C

    CH3

    CH3

    H

    C

    X

    H

    Diastereoismeros (imagens no especulares)

    Enantimeros (imagens especulares) Enantimeros (imagens especulares)

    FIGURA 1-20 Dois tipos de estereoismeros. Existem quatro di-ferentes 2,3-butanos dissubstitudos (n 2 carbonos assimtricos, consequentemente 2n 4 estereoismeros). Cada um mostrado em um retngulo com a frmula em perspectiva e o modelo de

    esfera e vareta, que foi rotado para a visualizao de todos os gru-pos. Dois pares de estereoismeros so imagens especulares um do outro, ou enantimeros. Outros pares no so imagens especulares, sendo diastereoismeros.

  • Princpios de Bioqumica de Lehninger 17

    polarizada em direes opostas, mas uma soluo contendo concentraes equimolares de cada enantimero (uma mis-tura racmica) mostra atividade rotatria nula. Compos-tos sem centros quirais no causam a rotao do plano da luz polarizada.

    CONVENO-CHAVE: Dada a importncia da estereoqumica nas reaes entre biomolculas (veja a seguir), os bioqu-micos so obrigados a dar nome e representar a estrutura de cada biomolcula de forma que sua estereoqumica seja inequvoca. Para compostos com mais de um centro quiral, a nomenclatura mais usada a do sistema RS. Neste siste-ma, a cada grupo funcional ligado a um carbono quiral de-signada uma escala de prioridade. As prioridades de alguns substituintes comuns so:

    Para nomeao no sistema RS, o tomo quiral visto como o grupo de mais baixa prioridade (4 no segmento do diagrama) apontando para trs da pgina a partir do obser-vador. Se a prioridade dos outros trs grupos (1 a 3) de-cresce no sentido horrio, ento a configurao (R) (do latim rectus, direito); se cresce no sentido anti-horrio, ento a configurao (S) (do latim sinister, esquerdo). Desta maneira, cada carbono quiral designado como (R) ou (S), e a incluso destas designaes no nome do compos-to fornece descrio inequvoca da estereoqumica de cada centro quiral.

    14

    32

    Sentido anti-horrio(S)

    14

    3 2

    Sentido horrio(R)

    Um outro sistema de nomenclatura para estereoisme-ros, o sistema D e L, descrito no Captulo 3. A molcula com um centro quiral nico (dois ismeros de gliceraldedo, p. ex.) pode ser nomeada por qualquer um dos sistemas.

    CH2OH CH2OH

    CHOCHO

    H HCHO OH

    L-Gliceraldedo (S)-Gliceraldedo

    (2)

    (1)(4)

    (3)

    Diferente da configurao a conformao molecular, o arranjo espacial dos grupos substituintes que, sem que-brar nenhuma ligao, livre para assumir diferentes posi-es no espao por causa da liberdade de rotao em torno das ligaes simples. Em hidrocarbonetos simples como o etano, por exemplo, h quase completa liberdade de rotao em torno da ligao CC. Muitas conformaes diferentes

    Louis Pasteur descobriu o fenmeno da ativi-dade ptica em 1843, durante sua investigao dos sedimentos cristalinos que acumulavam nos barris de vinho (uma forma de cido tart-rico chamado de cido paratartrico tambm chamado de cido racmico, do latim racemus, cacho de uvas). Ele usou pinas finas para se-parar dois tipos de cristais idnticos em forma, mas com imagem especular um do outro. Am-bos os tipos provaram ter todas as propriedades qumicas do cido tartrico, mas em soluo um tipo gira a luz plano-polarizada para a esquerda (levorrotatrio) e o outro para a direita (des-trorrotatrio). Posteriormente, Pasteur descre-veu o experimento e sua interpretao:

    Em corpos isomricos, os elementos e as propores nas quais eles so combinados so os mesmos, somente o ar-ranjo dos tomos diferente... Sabemos, por um lado, que os arranjos moleculares dos dois cidos tartricos so assi-mtricos, e, por outro lado, que estes arranjos so absolu-tamente idnticos, exceto que eles exibem assimetria em direes opostas. Estariam os tomos do cido destro agru-pados em forma de espiral dextrgira? Ou estariam eles co-locados nas arestas de um tetraedro irregular? Ou estariam eles dispostos em um ou outro arranjo assimtrico citado? Ns no sabemos. *

    Agora ns sabemos. Estudos de cristalografia por raios X em 1951 confirmaram que as formas le-vorrotatria e destrorrotatria do cido tartrico so imagens especulares uma da outra no nvel molecular e estabeleceram a configurao abso-luta de cada um (Fig. Q.1). A mesma abordagem foi usada para demonstrar que, embora o amino-cido alanina tenha duas formas estereoisomricas (designadas D e L), nas protenas a alanina existe exclusivamente em uma forma (o ismero L; veja o Captulo 3).

    CHOOC1

    H

    2C3

    C4 OOH

    OH

    CHOOC1

    HO

    2C3

    C4 O

    OHH

    (2R,3R)-cido tartrico(destrorrotatrio)

    (2S,3S)-cido tartrico(levorrotatrio)

    OHH

    OH

    H

    FIGURA Q.1 Pasteur separou cristais de dois estereoismeros de cido tartrico e mostrou que solues separadas de cada uma das formas fazem girar luz polarizada na mesma magnitude, porm em direes opostas. Estas formas destrorrotatria e levorrotatria foram mais tarde demonstradas como sendo os ismeros (R,R) e (S,S) representados aqui. O sistema RS de nomenclatura explicado no texto.

    *Extrado da palestra de Pasteur para a Socit Chimique de Paris em 1883, citado em DuBos, R. (1976) Louis Pasteur: Free Lance of Science, p. 95, Charles Scribners Sons, New York.

    QUADRO 12 Louis Pasteur e atividade ptica: In Vino, Veritas

    Louis Pasteur1822-1895

  • 18 David L. Nelson & Michael M. Cox

    e interconversveis de etano so possveis, dependendo do grau de rotao (Fig. 1-21). Duas conformaes so de es-pecial interesse: a escalonada, que mais estvel do que todas as outras e portanto predominante, e a eclipsada, que a menos estvel. Estas duas formas conformacionais no podem ser isoladas uma da outra, pois so facilmente inter-conversveis. Entretanto, a substituio de um ou mais to-mos de hidrognio em cada carbono por um grupo funcional que seja muito grande ou carregado eletricamente restringe a liberdade de rotao em torno da ligao CC. Isto limita o nmero de conformaes estveis do derivado do etano.

    As interaes entre as biomolculas so estereoespecficasQuando biomolculas interagem, o encaixe entre elas estereoquimicamente correto. A estrutura tridimensional de biomolculas grandes e pequenas a combinao de configurao e conformao de mxima importncia nas suas interaes biolgicas: reagente com sua enzima, hor-mnio com seu receptor na superfcie da clula, antgeno com seu anticorpo especfico, por exemplo (Fig. 1-22). O estudo da estereoqumica biomolecular, com mtodos fsi-cos precisos, uma parte importante da pesquisa moderna da estrutura celular e da funo bioqumica.

    Nos organismos vivos, as molculas quirais normal-mente esto presentes em somente uma de suas formas quirais. Por exemplo, nas protenas os aminocidos ocor-rem somente como ismeros L e a glicose ocorre somente como ismero D. (As convenes para a denominao de estereoismeros de aminocidos esto descritas no Captu-lo 3, e para acares, no Captulo 7; o sistema RS, descrito anteriormente, mais usado para algumas biomolculas.) Em contraste, quando um composto com um tomo de car-bono assimtrico quimicamente sintetizado em laborat-

    rio, ento a reao em geral produz todas as formas quirais possveis: uma mistura de formas D e L, por exemplo. Clu-las vivas produzem somente uma forma quiral de uma dada biomolcula, porque as enzimas que a sintetizam tambm so quirais.

    Estereoespecificidade, a capacidade de distinguir en-tre estereoismeros, uma propriedade das enzimas e de outras protenas, sendo um aspecto caracterstico da lgi-ca molecular das clulas vivas. Se o stio de ligao de uma protena complementar a um ismero do composto quiral, ento ele no ser complementar ao outro ismero, da mes-ma forma que a luva para a mo esquerda no se ajusta na mo direita. Alguns exemplos marcantes da capacidade dos sistemas biolgicos de distinguir estereoismeros so mos-trados na Figura 1-23.

    As classes comuns de reaes, qumicas encontradas na bioqumica esto descritas no Captulo 13, como uma intro-duo s reaes do metabolismo.

    RESUMO 1.2 Fundamentos qumicos Devido a sua versatilidade de ligao, o carbono pode

    produzir amplas colees de estruturas carbono-car-bono com uma grande variedade de grupos funcionais; estes grupos conferem s biomolculas as suas proprie-dades qumicas e biolgicas.

    Um conjunto universal de aproximadamente algumas centenas de pequenas molculas encontrado em clulas vivas; a interconverso destas molculas nas rotas metablicas centrais se conservou ao longo da evoluo.

    Protenas e cidos nucleicos so polmeros lineares feitos de subunidades monomricas simples; suas se-quncias contm as informaes que fornecem a cada

    0 60 120 180 240 300 360

    0

    4

    8

    12

    Ene

    rgia

    pot

    enci

    al (k

    J/m

    ol)

    ngulo de toro (graus)

    12,1kJ/mol

    FIGURA 1-21 Conformaes. Muitas conformaes do etano so possveis devido liberdade de rotao em torno da ligao CC. No modelo de esfera e vareta, quando o tomo de carbono frontal (sob o ponto de vista do leitor) girado com seus trs hidrognios em relao ao tomo de carbono de trs, ento a energia potencial da molcula aumenta a um mximo na forma completamente eclip-sada (nos ngulos de 0o, 120o, etc.), e ento diminui ao mnimo na forma totalmente escalonada (ngulos de toro de 60o, 180o, etc.). Devido ao fato de as diferenas de energia serem suficientemente pequenas, para permitir uma interconverso muito rpida entre as duas formas (milhes de vezes por segundo), as formas eclipsada e escalonada no podem ser isoladas uma da outra.

    FIGURA 1-22 Encaixe complementar entre a macromolcula e uma molcula pequena. O segmento de RNA de uma regio re-gulatria, conhecida como TAR, do genoma do vrus da imunodefi-cincia humana (em cinza) com uma molcula argininamida ligada (em colorido); a argininamida usada para representar um resduo de aminocido de uma protena que se liga regio do TAR. A argininamida encaixa na cavidade da superfcie do RNA, sendo mantida nesta orientao por vrias interaes no covalentes com o RNA. Esta representao da molcula de RNA produzida com o auxlio de um software que pode calcular a forma de superfcie externa da macromolcula, definida pelo raio de van der Waals de todos os tomos da molcula ou pelo volume de excluso do sol-vente, o volume que uma molcula de gua no pode penetrar.

  • Princpios de Bioqumica de Lehninger 19

    molcula sua estrutura tridimensional e suas funes biolgicas.

    A configurao molecular pode ser alterada somente mediante quebra de ligaes covalentes. Para um to-mo de carbono com quatro substituintes diferentes (um carbono quiral), os grupos substituintes podem ser arranjados em duas diferentes formas, gerando este-reoismeros com propriedades distintas. Somente um dos estereoismeros biologicamente ativo. A confor-mao molecular a disposio dos tomos no espao que pode ser mudada por rotao em torno de ligaes simples, sem quebrar ligaes covalentes.

    Interaes entre molculas biolgicas so quase in-variavelmente estereoespecficas: elas requerem um exato pareamento complementar entre as molculas interagentes.

    1.3 Fundamentos fsicosClulas e organismos vivos tm que realizar trabalho para se manter vivos e se reproduzir. As reaes de sntese que ocorrem dentro das clulas, como algum processo de sn-

    tese em uma fbrica, exigem a entrada de energia. Ener-gia tambm consumida no movimento de uma bactria ou de um velocista olmpico, no piscar de um vaga-lume ou na descarga eltrica de uma enguia. O armazenamento e a expresso de informao requerem energia, sem a qual estruturas ricas em informao inevitavelmente se tornam desordenadas e sem sentido.

    No curso da evoluo, as clulas desenvolveram meca-nismos altamente eficientes para aproveitar a energia, ob-tida da luz solar ou de combustveis, em vrios processos consumidores de energia que precisam ser realizados. Um dos objetivos da bioqumica compreender, em termos qu-micos e quantitativos, os meios pelos quais a energia ex-trada, canalizada e consumida nas clulas vivas. As conver-ses de energia celular como todas as outras converses de energia podem ser estudadas no contexto das leis da termodinmica.

    Os organismos vivos existem em um estado estacionrio dinmico e nunca em equilbrio com o seu meioAs molculas e os ons contidos nos organismos vivos dife-rem em tipo e concentrao daqueles existentes no meio

    FIGURA 1-23 Estereoismeros tm di-ferentes efeitos em humanos. (a) Dois estereoismeros de carvona: (R)-carvona (isolado do leo de hortel) tem o cheiro caracterstico da hortel; (S)-carvona (isola-do do leo de sementes de cominho) tem o cheiro de cominho. (b) O aspartame, um adoante artificial, facilmente distingu-vel, pelos receptores de gosto, do seu es-tereoismero de gosto amargo, apesar de os dois diferirem apenas pela configurao de um dos seus dois carbonos quirais. (c) O medicamento antidepressivo citalopram (nome comercial Celexa), um inibidor se-letivo da recaptao da serotonina, uma mistura racmica dos dois estereoismeros, mas somente (S)-citalopram tem o efeito teraputico. A preparao estereoquimica-mente pura de (S)-citalopram (oxalato de citalopram) vendida sob o nome comer-cial de Lexapro. Como se pode prever, a dose efetiva de Lexapro a metade da dose efetiva de Celexa.

    (a)

    H2CC

    CH3 C

    CH2

    H

    CH2

    CO C

    CH3

    CH

    H2CC

    H C

    CH3

    CH2

    CH2

    CO C

    CH3

    CH

    (R)Carvona (hortel) (S)-Carvona(cominho)

    (b)

    COOCCH2

    C

    NH3

    C

    O

    N H

    CH

    CO

    OCH3

    OOCCH2

    C

    H3

    C

    O

    NH

    CH

    CO

    OCH3

    HCCH

    CH

    HCC

    CH2

    CH

    N

    HCCH

    CH

    HCC

    CH2

    CH

    HH

    L-Aspartil-L-fenilalanina metil ster(aspartame) (doce)

    L-Aspartil-D-fenilalanina metil ster(amargo)

    O

    F

    NC

    NC

    N

    (S)-Citalopram

    O

    F

    N

    (R)-Citalopram(c)

  • 20 David L. Nelson & Michael M. Cox

    circundante. Um paramcio em uma lagoa, um tubaro no oceano, uma bactria no solo, uma macieira no pomar to-dos so diferentes na composio se comparados com seu meio, e uma vez atingida a sua maturidade, eles mantm uma composio aproximadamente constante, apesar das constantes alteraes no meio onde se encontram.

    Apesar de a composio caracterstica de um orga-nismo mudar relativamente pouco ao longo do tempo, a populao de molculas dentro do organismo est muito longe do equilbrio esttico. Pequenas molculas, macro-molculas e complexos supramoleculares so continua-mente sintetizados e degradados em reaes qumicas que envolvem um constante fluxo de massa e energia atravs do sistema. As molculas de hemoglobina que carregam oxignio dos seus pulmes para o seu crebro neste mo-mento foram sintetizadas no decorrer do ltimo ms; no decorrer do prximo ms, elas sero todas degradadas e completamente substitudas por novas molculas de he-moglobina. A glicose que voc ingeriu na sua ltima refei-o est agora circulando na sua corrente sangunea; an-tes do final do dia estas molculas de glicose em particular estaro todas convertidas em algo diferente dixido de carbono ou gordura, talvez sendo substitudas por um novo suprimento de glicose, de forma que a concentrao de glicose sangunea mais ou menos constante ao longo de todo o dia. As quantidades de hemoglobina e glicose no sangue permanecem quase constantes porque a taxa de sntese ou ingesto de cada uma contrabalana a sua taxa de degradao, consumo ou converso em algum outro produto. A constncia da concentrao o resultado do estado estacionrio dinmico, um estado estacionrio que est fora do equilbrio. A manuteno deste estado requer o investimento constante de energia; quando a clula no consegue mais gerar energia, ela morre e comea a decair para o estado de equilbrio com o seu meio. A seguir ser discutido o significado exato de estado estacionrio e equilbrio.

    Organismos transformam energia e matria de seu meioPara as reaes qumicas que ocorrem em soluo, pode-se definir o sistema como sendo todos os reagentes e produ-tos, o solvente que os contm e a atmosfera imediata em resumo, tudo dentro de uma regio definida do espao. O sistema e o seu meio juntos constituem o universo. Se o sistema no troca nem matria e nem energia com seu meio, ento dito isolado. Se o sistema troca energia, mas no troca matria com seu meio, ento dito fechado; se ele troca energia e matria com seu meio, ento um sistema aberto.

    Um organismo vivo um sistema aberto, ele troca tanto matria quanto energia com seu meio. Organismos obtm energia do meio de duas formas: (1) consomem combust-veis qumicos (como glicose) do seu meio e extraem energia pela oxidao (veja o Quadro 1-3, Caso 2), ou (2) absorvem energia da luz solar.

    A primeira lei da termodinmica descreve o princpio da converso de energia: em qualquer mudana fsica ou qumica, a quantidade total de energia no universo permanece constante, contudo a forma da energia pode mudar. As clulas contm sofisticados processos converso-

    res de energia, capazes de interconverter energia qumica, eletromagntica, mecnica e osmtica com alta eficincia (Fig. 1-24).

    O fluxo de eltrons prov energia aos organismosPraticamente todos os organismos vivos obtm sua energia, direta ou indiretamente, da energia radiante da luz solar. A ruptura da molcula da gua promovida pela luz durante a

    (a)

    (b)

    (c)

    (d)

    (e)

    Transformaesde energiarealizamtrabalho

    Energia potencial

    Calor

    Desordem (entropia)aumentada no meio

    O metabolismo produzcompostos mais simples do queas molculas combustveisiniciais: CO2, NH3, H2O, HPO42

    Desordem (entropia)diminuda no sistema

    Compostos simples polimerizampara formar macromolculasricas em informao: DNA,RNA, protenas

    Nutrientes do meio(molculas complexas como acares e gorduras)

    Luz solar

    Transformaes qumicasdentro das clulas

    Trabalho celular:sntese qumicatrabalho mecnicogradientes eltrico e osmticoproduo de luztransferncia de informaogentica

    FIGURA 1-24 Algumas interconverses de energia em organis-mos vivos. Durante a transduo de energia metablica, o grau de desordem do sistema mais o do meio (expresso quantitativamente como entropia) cresce medida que a energia potencial das mo-lculas nutrientes complexas decresce. (a) Organismos vivos ex-traem energia do seu meio; (b) convertem parte dela em formas de energia utilizveis para produzir trabalho; (c) devolvem parte da energia ao meio na forma de calor; e (d) liberam, como produto final, molculas que so menos organizadas do que o combustvel de partida, aumentando a entropia do universo. Um efeito de todas essas transformaes (e) o aumento de ordem (aleatoriedade di-minuda) do sistema na forma de macromolculas complexas. O tratamento quantitativo da entropia ser retomado no Captulo 13.

  • Princpios de Bioqumica de Lehninger 21

    O termo entropia, que literalmente significa mudana em seu interior, foi usado pela primeira vez em 1851 por Rudolf Clau-sius, um dos formuladores da segunda lei da termodinmica. Uma definio quantitativa rigorosa de entropia envolve consi-deraes probabilsticas e estatsticas. Entretanto, sua natureza pode ser ilustrada qualitativamente por trs exemplos simples, cada um demonstrando um aspecto da entropia. A chave para a descrio de entropia a aleatoriedade e a desordem, mani-festadas de diferentes maneiras.

    Caso 1: A chaleira e a dissipao do calorSabemos que o vapor gerado na gua em ebulio pode reali-zar trabalho til. Contudo, suponha que apaguemos a chama sob a chaleira cheia de gua a 100oC (sistema) na cozinha (o meio) e deixemos esfriar. Na medida em que ela esfria nenhum trabalho feito, mas o calor passa da chaleira para o meio, au-mentando a temperatura do meio (cozinha) por uma quanti-dade infinitesimal at que o equilbrio completo alcanado. Neste momento, todas as partes da chaleira e da cozinha esto precisamente na mesma temperatura. A energia livre que esta-va concentrada na chaleira com gua a 100oC, potencialmente capaz de realizar trabalho, desapareceu. O seu equivalente de energia calorfica continua presente na chaleira cozinha (isto , universo), mas tornou-se completamente aleatrio. Esta energia no est mais disponvel para realizar trabalho porque no existem mais diferenas de temperatura dentro da cozinha. Alm disto, o aumento da entropia da cozinha (o meio) ir-reversvel. Sabemos pela experincia do cotidiano que o calor nunca passa espontaneamente da cozinha de volta para a cha-leira para aumentar novamente a temperatura da gua a 100oC.

    Caso 2: A oxidao da glicoseEntropia um estado no somente da energia, mas da matria. Organismos aerbicos (heterotrficos) extraem energia livre da glicose obtida do meio pela oxidao da glicose com O2, que tambm obtido do meio. Os produtos finais deste metabolis-mo oxidativo, CO2 e H2O, retornam ao meio. Neste processo o meio sofre um aumento de entropia, enquanto o organismo per-manece em estado estacionrio e no sofre mudanas em sua ordem interna. Apesar de alguma entropia surgir da dissipao do calor, a entropia resulta tambm de um outro tipo de desor-dem, ilustrado pela equao da oxidao da glicose:

    C6H12O6 6O2 6CO2 6H2O

    Pode-se representar isto esquematicamente como

    7 molculas

    CO2(um gs)

    H2O(um lquido)

    Glicose(um slido)

    O2(um gs)

    12 molculas

    Os tomos contidos em 1 molcula de glicose mais 6 mo-lculas de oxignio, um total de 7 molculas, passam a ficar

    dispersos de forma mais aleatria aps a reao de oxidao, passando para um total de 12 molculas (6CO2 6H2O).

    Sempre que uma reao qumica resultar no aumento do nmero de molculas ou quando uma substncia slida con-vertida em produtos lquidos ou gasosos, que permitem maior liberdade de movimentao molecular que os slidos a desor-dem molecular aumenta e, em consequncia, a entropia tam-bm aumenta.

    Caso 3: Informao e entropiaA seguinte passagem de Jlio Cesar ato IV, Cena 3, falada por Brutus, quando ele percebe que precisa enfrentar o exrcito de Marco Antnio. Ela um arranjo no aleatrio e rico em infor-maes feito de 125 letras do alfabeto ingls:

    There is a tide in the affairs of men,Which, taken at the flood, leads on to fortune;Omitted, all the voyage of their lifeIs bound in shallows and in miseries.

    Alm do que esta passagem afirma abertamente, ela possui muitos significados ocultos, no somente refletindo uma com-plexa sequncia de eventos na pea, mas tambm ecoando as ideias da pea sobre conflito, ambio e a demanda por lide-rana. Permeada com a compreenso de Shakespeare sobre a natureza humana, ela muito rica em informao.

    Contudo, se essas 125 letras que fazem essa citao forem distribudas em um padro completamente aleatrio e catico, como mostrado no quadro abaixo, ela no ter qualquer signi-ficado.

    a

    b

    cde

    f

    g

    h

    i

    I

    k

    l

    m

    n

    o

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    r

    a

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    in

    oa

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    i

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    e

    e

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    t

    T

    uv

    w

    W

    y

    u

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    s

    t

    s

    t

    s

    t

    st

    t

    t

    t

    Nesta forma, as 125 letras possuiro pouca ou nenhuma in-formao, mas so muito ricas em entropia. Tais consideraes levaram concluso de que a informao uma forma de ener-gia, tendo sido denominada entropia negativa. De fato, o ramo da matemtica denominado teoria da informao, que bsico para a programao lgica de computadores, est intimamen-te relacionado teoria termodinmica. Organismos vivos so estruturas altamente organizadas, no aleatrias, imensamente ricas em informao e, portanto, pobres em entropia.

    QUADRO 13 Entropia: as vantagens de ser desorganizado

  • 22 David L. Nelson & Michael M. Cox

    fotossntese libera seus eltrons para a reduo do CO2 e a liberao de oxignio na atmosfera:

    Luz

    (reduo de CO2 mediada pela luz)6CO2 6H2O C6H12O6 6O2

    Clulas e organismos no fotossintticos obtm a ener-gia que necessitam da oxidao de produtos ricos em ener-gia resultantes da fotossntese, passando ento os eltrons adquiridos ao O2 atmosfrico para formar gua, CO2 e ou-tros produtos finais, que so reciclados no meio ambiente.

    C6H12O6 O2 6CO2 6H2O energia(oxidao da glicose produtora de energia)

    Portanto, auttrofos e hetertrofos participam do ciclo global de O2 e CO2, propulsionado em ltima instncia pela luz solar, tornando interdependentes esses dois grandes grupos de organismos. Praticamente toda a transduo de energia nas clulas se resume a esse fluxo de eltrons de uma molcula outra, em um fluxo descendente de energia potencial eletroqumica, de forma anloga ao fluxo de el-trons em um circuito eltrico acionado por uma pilha. Todas essas reaes envolvidas no fluxo de eltrons so reaes de oxi-reduo: um reagente oxidado (perda de el-trons) enquanto outro reduzido (ganho de eltrons).

    A criao e a manuteno de ordem requerem trabalho e energiaComo notado, DNA, RNA e protenas so macromolculas de informao; a sequncia precisa de suas subunidades monomricas contm informao, exatamente como as le-tras desta frase. Alm de usar energia qumica para formar ligaes covalentes entre estas subunidades, as clulas pre-cisam investir energia para ordenar as subunidades em sua sequncia correta. extremamente improvvel que amino-cidos em uma mistura venham a se condensar espontanea-mente em um nico tipo de protena, com uma sequncia nica.

    Isto representa aumento da ordem em uma populao de molculas; contudo, de acordo com a segunda lei da ter-modinmica, a tendncia na natureza mover-se no sentido oposto, sempre de maior desordem no universo: a entropia total do universo est continuamente aumentando. Para sintetizar macromolculas a partir de suas u