MOACIR GADOTTI
BONITEZA DE UM SONHO Ensinar-e-aprender com sentido
So Paulo GRUBHAS
2003
SUMRIO 1 Por que ser professor? ............................................................. 3 2 Crise de identidade, crise de sentido ....................................... 10 3 Formao continuada do professor ..........................................17 4 Ser professor na sociedade aprendente .................................. 22 5 Aprender com emoo, ensinar com alegria ........................... 28 6 Educar para uma vida sustentvel .......................................... 37 7 Ser professor, ser educador .................................................... 42 Bibliografia ..................................................................................... 50 Sobre o autor ................................................................................. 52
1
Por que ser professor?
A beleza existe em todo lugar. Depende do nosso olhar, da nossa
sensibilidade; depende da nossa conscincia, do nosso trabalho e do nosso
cuidado. A beleza existe porque o ser humano capaz de sonhar.
Inspirei-me em Paulo Freire para escrever esse livro. Paulo Freire nos
fala em sua Pedagogia da autonomia da boniteza de ser gente1, da boniteza
de ser professor: ensinar e aprender no podem dar-se fora da procura, fora
da boniteza e da alegria2. Paulo Freire chama a ateno para a
essencialidade do componente esttico da formao do educador. Coloquei
um ttulo que fala de sonho e de sentido que querem dizer a mesma coisa.
Sentido quer dizer caminho no percorrido mas que se deseja percorrer,
portanto, significa projeto, sonho, utopia. Aprender e ensinar com sentido
aprender e ensinar com um sonho na mente. A pedagogia serve de guia para
realizar esse sonho.
Paulo Freire, em 1980, logo aps voltar de 16 anos de exlio, reuniu-se
com um grande nmero de professores em Belo Horizonte, Estado de Minas
Gerais. Falou-lhes de esperana, de sonho possvel, temendo por aqueles e
aquelas que pararem com a sua capacidade de sonhar, de inventar a sua
coragem de denunciar e de anunciar, aqueles e aquelas que, em lugar de
visitar de vez em quando o amanh, o futuro, pelo profundo engajamento com
o hoje, com o aqui e com o agora, que em lugar desta viagem constante ao
amanh, se atrelem a um passado de explorao e de rotina3.
1 Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessrios prtica educativa. So Paulo, Paz e
Terra, 1997, p. 67. 2 Idem, ibidem, p. 160.
3 Paulo Freire, in Carlos R. Brando (org.), O educador: vida e morte escritos sobre uma espcie
em perigo. So Paulo, Brasiliense, 1982, p. 101.
Dezessete anos depois, em 1997, em seu ltimo livro, lanado trs
semanas antes de falecer, ele se mantinha fiel mesma linha de pensamento,
reafirmando o sonho e a utopia diante da malvadez neoliberal, diante do
cinismo de sua ideologia fatalista e a sua recusa inflexvel ao sonho e
utopia4. Denncia de um lado, anncio de outro: a sua pedagogia da
autonomia frente pedagogia neoliberal.
Lembrando os cinco anos da morte de Freire, nesse pequeno livro5,
quero retomar o que ele disse e entender o seu significado no contexto de
hoje. Paulo Freire nos falava da boniteza do sonho de ser professor de
tantos jovens desse planeta. Se o sonho puder ser sonhado por muitos6
deixar de ser um sonho e se tornar realidade.
A realidade, contudo, muitas vezes bem diferente do sonho. Muitos
de meus alunos e alunas, seja na Pedagogia, seja na Licenciatura, no
pensam em se dedicar s salas de aula. Muito revelam desinteresse em
seguir a carreira do magistrio, mesmo estando num curso de formao de
professores. Pesam muito nesse deciso as condies concretas do exerccio
da profisso. Preparam-se para ser professor e iro exercer outra profisso.
O brasileiro desvaloriza o professor. o que se poderia deduzir de um
dito que se tornou popular nas ltimas dcadas no Brasil: Quem sabe faz,
quem no sabe ensina. sinistro. Essa destruio da imagem do professor
custar muito caro, dizia j em 1989, o jornalista Leonardo Trevisan7: Todos
dizem que gostam muito dos professores, mas no chegam a incomodar-se
4 Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessrios prtica educativa. So Paulo, Paz e
Terra, 1997, p. 15. 5 Estou tornando pblicos os direitos autorais deste livro para que ele possa ser reproduzido parcial
ou integralmente e impresso em qualquer formato, por qualquer pessoa ou instituio. Gostaria que ele fosse distribudo gratuitamente. Se no for possvel, que seja vendido ao preo de custo. O ideal seria cobrar, no mximo, um real, para que o maior nmero de professores e de professoras possam ter acesso. Aproveito a oportunidade para agradecer aos companheiros Paulo Roberto Padilha e ngela Antunes pelas preciosas sugestes que me ofereceram na reviso do texto original deste livro. 6 E somos muitos professores no mundo: 50 milhes. Somos organizados e alguma coisa podemos
fazer para mudar a ordem das coisas. Segundo a UNESCO (In Jacques Delors (org.), Educao: um tesouro a descobrir Relatrio para a UNESCO da Comisso Internacional sobre Educao para o Sculo XXI. So Paulo, Cortez, 1998, p. 156),a profisso de professor uma das mais fortemente organizadas do mundo e as organizaes de professores podem desempenhar e desempenham um papel muito influente em vrios domnios. A maior parte dos cerca de cinqenta milhes de professores que h no mundo esto sindicalizados ou julgam-se representados por sindicatos. 7 Leonardo Trevisan, in O Estado de S. Paulo, 1 de julho de 1989, p. 2.
muito com o fato de que h tempos eles recebem um salrio de fome. O
salrio a parte mais visvel de uma condio da qual decorre um papel
social que se descaracterizou por completo... S quem no quer ver no
percebe o sentimento de cansao, de esgotamento de expectativas de quem
encarava com dignidade o seu desempenho profissional.
A situao vem se arrastando h anos. Tenho 41 anos de magistrio e
no tenho visto grandes melhorias. Ao contrrio, tenho ouvido muitas
promessas. As melhorias existem aqui e acol, mas so pontuais e
localizadas servem apenas de exemplo so conjunturais e no estruturais,
so provisrias, passageiras e no permanentes. Correspondem a uma
poltica de governo e no a uma poltica pblica de estado.
Por isso continuo me perguntando: Por que sou professor? uma
pergunta que ouo com freqncia tambm entre meus pares.
A resposta talvez possa ser encontrada numa mensagem deixada por
um prisioneiro de campo de concentrao nazista na qual, depois de viver
todos os horrores da Guerra8 crianas envenenadas por mdicos
diplomados; recm-nascidos mortos por enfermeiras treinadas; mulheres e
bebs fuzilados e queimados por graduados de colgios e universidades
ele pede aos professores que ajudem seus alunos a tornarem-se humanos,
simplesmente humanos. E termina: ler, escrever e aritmtica s so
importantes para fazer nossas crianas mais humanas.
Talvez esteja a a chave para entender a crise que vivemos: perdemos
o sentido do que fazemos, lutamos por salrio e melhores condies de
trabalho sem esclarecer a sociedade sobre a finalidade de nossa profisso,
sem justificar porque estamos lutando.
O que me leva agora a escrever esse pequeno livro justamente esse
imperativo histrico e existencial que me obriga a colocar a questo do
sentido do que estou fazendo. Qual o papel do educador, da escola, da
8 Essa mensagem est, na ntegra, na abertura de um pequeno e denso livro do educador e
economista Ladislau Dowbor, Tecnologias do conhecimento: os desafios da educao. Petrpolis, Vozes, 2001.
educao? O que um professor pode fazer, o que ele deve fazer, o que
possvel fazer?
Em inmeras conferncias que tenho feito a professores, professoras,
por este pas e fora dele, alm de constatar um grande mal-estar entre os
docentes, misturado a decepes, irritao, impacincia, ceticismo,
perplexidade, paradoxalmente, existe ainda muita esperana. A esperana
ainda alimenta essa difcil profisso. H uma nsia por entender melhor
porque est to difcil educar hoje, fazer aprender, ensinar, nsia para saber o
que fazer quando todas as receitas governamentais j no conseguem
responder. A maioria dessas professoras - elas so a quase totalidade - com
a diminuio drstica dos salrios, com a desvalorizao da profisso e a
progressiva deteriorao das escolas muitas delas tm hoje cara de presdio
- procuram cada vez mais cursos e conferncias, para buscar uma resposta
que no encontraram nem na sua formao inicial e nem na sua prtica atual.
Poucas so as vezes em que encontram resposta nesses cursos. Na
sua maioria, ou encontram receitas tecnocrticas que causam ainda maior
frustrao, ou encontram profissionais da pedagogia da ajuda que encantam
com suas belas e sedutoras palavras, fazem rir enormes platias numa
catarse coletiva. E voltam vazios como entraram depois de assistirem ao
show desses falsos pregadores da palavra. Voltam com a mesma pergunta:
O que estou fazendo aqui? Por qu no procuro outro trabalho? Para
que sofrer tanto? Por qu, para que ser professor?.
Se, de um lado, a transformao nas condies objetivas das nossas
escolas no depende apenas da nossa atuao como profissionais da
educao, de outro lado, creio que sem uma mudana na prpria concepo
da nossa profisso ela no ocorrer to cedo. Enquanto no construirmos um
novo sentido para a nossa profisso, sentido esse que est ligado prpria
funo da escola na sociedade aprendente, esse vazio, essa perplexidade,
essa crise, devero continuar.
Em sua essncia, ser professor hoje, no nem mais difcil nem mais
fcil do que era h algumas dcadas atrs. diferente. Diante da velocidade
com que a informao se desloca, envelhece e morre, diante de um mundo
em constante mudana, seu papel vem mudando, seno na essencial tarefa
de educar, pelo menos na tarefa de ensinar, de conduzir a aprendizagem e na
sua prpria formao que se tornou permanentemente necessria.
As novas tecnologias criaram novos espaos do conhecimento.
Agora, alm da escola, tambm a empresa, o espao domiciliar e o espao
social tornaram-se educativos. Cada dia mais pessoas estudam em casa pois
podem, de l, acessar o ciberespao da formao e da aprendizagem a
distncia, buscar fora a informao disponvel nas redes de
computadores interligados servios que respondem s suas demandas de
conhecimento. Por outro lado, a sociedade civil (ONGs, associaes,
sindicatos, igrejas...) est se fortalecendo, no apenas como espao de
trabalho, mas tambm como espao de difuso e de reconstruo de
conhecimentos.
Na formao continuada necessita-se de maior integrao entre os
espaos sociais (domiciliar, escolar, empresarial...) visando a preparar o aluno
para viver melhor na sociedade do conhecimento. Como previa Herbert
McLuhan, na dcada de 609, o planeta tornou-se a nossa sala de aula e o
nosso endereo. O ciberespao rompeu com a idia de tempo prprio para a
aprendizagem. O espao da aprendizagem aqui, em qualquer lugar; o
tempo de aprender hoje e sempre.
Hoje vale tudo para aprender. Isso vai alm da reciclagem e da
atualizao de conhecimentos e muito mais alm da assimilao de
conhecimentos. A sociedade do conhecimento uma sociedade de mltiplas
oportunidades de aprendizagem. As conseqncias para a escola, para o
professor e para a educao em geral so enormes: ensinar a pensar; saber
comunicar-se; saber pesquisar; ter raciocnio lgico; fazer snteses e
elaboraes tericas; saber organizar o seu prprio trabalho; ter disciplina
9 Herbert M. McLuhan, Os meios de comunicao como extenses do homem. So Paulo, Cultrix,
1974.
para o trabalho; ser independente e autnomo; saber articular o conhecimento
com a prtica; ser aprendiz autnomo e a distncia.
Nesse contexto, o professor muito mais um mediador do
conhecimento, diante do aluno que o sujeito do sua prpria formao. O
aluno precisa construir e reconstruir conhecimento a partir do que faz. Para
isso o professor tambm precisa ser curioso, buscar sentido para o que faz e
apontar novos sentidos para o quefazer dos seus alunos. Ele deixar de ser
um lecionador10 para ser um organizador do conhecimento e da
aprendizagem.
Em resumo, poderamos dizer que o professor se tornou um aprendiz
permanente, um construtor de sentidos, um cooperador, e, sobretudo, um
organizador da aprendizagem. Se falamos do professor de adultos e do
professor de cursos a distncia, esses papis so ainda mais relevantes. De
nada adiantar ensinar, se os alunos no conseguirem organizar o seu
trabalho, serem sujeitos ativos da aprendizagem, auto-disciplinados,
motivados.
Ser professor, no ser um ofcio em risco de extino, pergunta-se
Luiza Corteso11. Um certo professor est em risco de extino. O funcionrio
da eficcia e da competitividade pode existir mas ter se demitido da sua
funo de professor. Diz ela que h hoje uma evidente contradio entre o
professor em branco e preto, o professor monocultural, bem formado,
seguro, claro, paciente, trabalhador e distribuidor de saberes, eficiente,
exigente e o professor intermulticultural que no um daltnico cultural,
que d-se conta da heterogeneidade, capaz de investigar, de ser flexvel e de
recriar contedos e mtodos, capaz de identificar e analisar problemas de
aprendizagem e de elaborar respostas s diferentes situaes educativas. Um
no se pergunta porque ser professor. Simplesmente cumpre ordens,
currculos, programas, pedagogias. Outro questiona-se sobre seu papel. Um
10
Ladislau Dowbor, A reproduo social: propostas para uma gesto descentralizada. Petrpolis, Vozes, 1998. 11
Luiza Coreso, Ser professor: um ofcio em risco de extino. So Paulo, Cortez/IPF, 2002.
est centrado nos contedos curriculares e outro no sentido do seu ofcio.
Sim, um certo professor est em risco de extino. E isso muito bom.
- O que ser professor hoje?
- Ser professor hoje viver intensamente o seu tempo com
conscincia e sensibilidade. No se pode imaginar um futuro para a
humanidade sem educadores. Os educadores, numa viso emancipadora,
no s transformam a informao em conhecimento e em conscincia crtica,
mas tambm formam pessoas. Diante dos falsos pregadores da palavra, dos
marqueteiros, eles so os verdadeiros amantes da sabedoria, os filsofos de
que nos falava Scrates. Eles fazem fluir o saber - no o dado, a informao,
o puro conhecimento - porque constrem sentido para a vida das pessoas e
para a humanidade e buscam, juntos, um mundo mais justo, mais produtivo e
mais saudvel para todos. Por isso eles so imprescindveis.
2
Crise de identidade, crise de sentido
O ofcio de professor est, realmente, em risco de extino?
Um velho professor est realmente desaparecendo e espero que nesse
velho professor esteja nascendo um novo professor. No a profisso que
est morrendo. uma profisso que est renascendo. O professor no est
morrendo, sua funo no est desaparecendo, mas ela est se
transformando profundamente, adquirindo uma nova identidade. E isso no
nada novo, pois cada gerao de professores constitui sua prpria identidade
docente no contexto em que vive. Hoje o contexto o prprio mundo
globalizado. O professor precisa hoje adequar sua funo, ensinar, educar no
mundo globalizado12, at para transformar profundamente o modelo de
globalizao dominante, essencialmente perverso e excludente.
Ccero traduziu paidia (formao integral do homem) por humanitas
(formao da/para a humanidade). No h civilizao sem professores. No
haver uma nova civilizao sem uma nova formao dos professores. No
h nao sem professores.
Escolher a profisso de professor no escolher uma profisso
qualquer. Na maioria das vezes essa escolha se d por intuio. Muitas
professoras, quando perguntadas porque escolheram essa profisso
respondem: porque gosto de criana. uma resposta correta e significativa,
mas ela no levada em conta no seu processo de formao. Essa
motivao e pouco trabalhada. Em geral, a sua formao limita-se a aspectos
tcnico-pedaggicos e no tico-polticos, que seriam mais afinados com os
motivos da sua escolha. Alm disso, o aspecto profissional tem sido
12
Ver ngela Antunes, A leitura do mundo no contexto da planetarizao: por uma pedagogia da sustentabilidade. So Paulo, FE-USP, 2002 (Tese de doutorado).
descuidado por causa da confuso que ainda freqentemente feita entre o
papel de me e de professora, sobretudo na educao infantil13.
A docncia, como aprendizagem da relao, est ligada a um
profissional especial, um profissional do sentido, numa era em que aprender
conviver com a incerteza. Da a necessidade de se refletir hoje sobre o novo
papel do professor, as novas exigncias da profisso docente, principalmente
da formao continuada do professor, da professora.
Antes de mais nada, para entender a crise de identidade dessa
profisso preciso colocar em evidncia as caractersticas atuais da
profisso docente. Estamos diante de uma profisso massificada, o que
reala o grande alcance dessa profisso e sua importncia estratgica. Como
o conhecimento da humanidade duplica em curto espao de tempo, ele
obsolece rapidamente, extremamente mutvel. Por isso, hoje no tem mais
sentido a existncia de um profissional que se limita a reproduzir o
conhecimento e a cultura que outros desenvolveram. O professor hoje precisa
ser um profissional capaz de criar conhecimento.
Estamos tambm diante de uma profisso genrica (poltica). No
um ofcio especfico pois o professor precisa lutar contra a excluso social, ser
animador de grupos, organizar o trabalho e a aprendizagem dele e dos
alunos; sua profisso tem relao com as estruturas sociais, com a
comunidade... enfim, ele um profissional que precisa ter muita autonomia e
exercer muita liderana. Existem caractersticas comuns a qualquer docente
independentemente da matria que leciona, o que torna essa profisso muito
homognea, no importando o grau de ensino onde esteja trabalhando. A
competncia genrica da profisso est sobretudo em seu saber poltico-
pedaggico.
Por isso, preciso ter cuidado especial quando se fala em especialista
na educao. claro que existem saberes e competncias especficas, mas
separ-las burocraticamente um equvoco que tem custado caro aos
13
Ver Paulo Freire, Professora sim, tia no: cartas a quem ousa ensinar. So Paulo, Olho Dgua, 1993.
sistemas educacionais, tornando-os inflexveis, apesar das declaraes em
contrrio. Como diz Mrio Osrio Marques14, a especificidade da formao do
pedagogo exige no se confunda ela com a formao de um especialista a
mais, como se a questo fosse simplesmente a da diviso do trabalho e no,
muito mais, a da articulao da ao comunitativa/coletiva. Mas, por outra
parte, no se requer um generalista ou superpedagogo a ser colocado num
pedestal de autoridade, ou em posio de mando, nem mesmo na situao de
simples assessoria tcnica. No se trata de algum detentor de um saber
hierrquico.
Uma terceira caracterstica marcante dessa profisso: ela constituda
predominantemente de mulheres. Uma grande fora numa poca em que a
mulher est exercendo um papel cada vez mais protagonista, inserido-se
cada vez mais na vida social, poltica e econmica das sociedades mais
avanadas. A participao da mulher na sociedade indicador de avano
social e de desenvolvimento humano.
Finalmente, no h como negar: somos profissionais de baixa renda.
Perdemos com isso. Mas, pensando numa civilizao do oprimido, como
costuma nos dizer Jos Eustquio Romo, esse profissional pode ter, por
essa caracterstica, um potencial revolucionrio que outras profisses no
tm, j que uma profisso voltada para a emancipao das pessoas. A
mudana vem dos debaixo, como sustentava Florestan Fernandes. Os
debaixo, s tem a ganhar com a transformao. Por isso, tm uma grande
capacidade para gestar a transformao.
Uma pesquisa de Eurize Caldas Pessanha15 mostra que a professora
primria era uma categoria profissional filiada s camadas mdias da
populao. Ela foi um nicho ideal para as mulheres dos estratos mais altos
das camadas mdias urbanas por ser uma profisso situada do lado do
trabalho no-manual na diviso social do trabalho. No entanto, atualmente
esses estratos parecem ter outras aspiraes, e so os estratos mais baixos
14
Mrio Osrio Marques, A formao do profissional da educao, Iju, Editora UNIJU, 1992, p. 113. 15
Eurize Caldas Pessanha, Ascenso e queda do professor, So Paulo, Cortez, 1994.
que desejam ter professores primrios na famlia, diz a professora Marli
Andr, na apresentao do livro de Eurize Caldas Pessanha. Para Eurize
Caldas Pessanha16, o trabalho de professor, na forma em que se apresenta
hoje, um trabalho no-manual, assalariado, num setor no-produtivo,
embora socialmente til, da atividade humana. Sendo necessrio tambm
lembrar o fato de ser assalariado, funcionrio do Estado ou de um servio
que, embora mantido por empresas privadas, considerado um servio
pblico. esse servio pblico que coloca o professor em p de igualdade,
esteja ele no ensino superior ou no fundamental, no setor pblico ou no setor
privado.
Parece que todos hoje esto de acordo quando se trata da necessidade
de mudana. A maioria afirma que a profisso docente deve mudar -
sobretudo em funo da complexidade da nova sociedade - mas no se diz
como, nem porque e para onde devemos mudar. Da, como diz Francisco
Imbernn17, no de admirar que nos ltimos tempos no apenas o
professor, mas tambm as instituies educacionais passem uma sensao
de desorientao que faz parte da confuso que envolve o futuro da escola e
do grupo profissional. Onde h desorientao h falta de sentido. As
respostas crise so sempre na direo da mudana, ou melhor, da
formao para a mudana. Mas esse no um discurso novo18.
H consenso quando se afirma que nossa profisso deve abandonar a
concepo predominante no sculo XIX de mera transmisso do saber
escolar. O professor no pode ser um mero executor do currculo oficial e a
educao j no mais propriedade da escola, mas de toda a comunidade. O
professor, a professora precisam assumir uma postura mais relacional,
dialgica, cultural, contextual e comunitria. Durante muito tempo a formao
do professor era baseada em contedos objetivos. Hoje o domnio dos
16
Idem, p. 28. 17 Francisco Imbernn. Formao docente e profissional: formar-se para a mudana e a incerteza. So Paulo, Cortez, 2000, p. 109. O autor professor da Universidade de Barcelona. 18
Veja-se o livro do grande discpulo de John Dewey, William Heard Kilpatrick (1876-1965) Educao para uma civilizao em mudana.
contedos de um saber especfico (cientfico e pedaggico) considerado to
importante quanto as atitudes (contedos atitudinais ou procedimentais).
A educao do futuro dever se aproximar mais dos aspectos ticos,
coletivos, comunicativos, comportamentais, emocionais... todos eles
necessrios para se alcanar uma educao democrtica dos futuros
cidados19. Isso implica novos saberes20, entre eles, saber planejar, saber
organizar o currculo, saber pesquisa, estabelecer estratgias para formar
grupos, para resolver problemas, relacionar-se com a comunidade, exercer
atividades scio-antropolgicas, etc.
Como a mudana nas pessoas muito lenta, o novo profissional que
recebeu uma formao atrasada, centrada no saber escolar, tentado a
desistir. Antes, a transmisso do conhecimento era facilmente medida. Agora,
como o professor no foi preparado para trabalhar com contedos atitudinais,
ele desiste.
Essas mudanas essenciais para a formao inicial e continuada da(o)
professora(r) supem uma nova cultura profissional. O maior desafio desta
profisso est na mudana de mentalidade que precisa ocorrer tanto no
profissional da educao quanto na sociedade e, principalmente, nos
sistemas de ensino. A noo de qualidade precisa mudar profundamente: a
competncia profissional deve ser medida muito mais pela capacidade do
docente estabelecer relaes com seus alunos e seus pares, pelo exerccio
da liderana profissional e pela atuao comunitria, do que na sua
capacidade de passar contedos.
E uma nova cultura profissional implica uma redefinio dos sistemas
de ensino e das instituies escolares. Mas essa redefinio no vir de
cima, do prprio sistema. Ele , por essncia, conservador. A mudana do
sistema deve partir do professor e de uma nova concepo do seu papel. Da
a importncia estratgica de discutir hoje o novo papel do professor. Da a
19
Francisco Imbernn. Formao docente e profissional: formar-se para a mudana e a incerteza. So Paulo, Cortez, 2000, p. 11. 20
Veja-se Paulo Freire (Pedagogia da autonomia: saberes necessrios prtica educativa), Jacques Delors, org. (Educao, um tesouro a descobrir) e Edgar Morin (Sete saberes necessrios educao do futuro).
importncia de uma redefinio da profisso docente, de uma nova
concepo do papel do professor.
Nesse sentido, no contexto atual, podemos identificar e confrontar duas
concepes opostas da profisso docente: a concepo neoliberal e a
concepo emancipadora. A primeira, amplamente dominante hoje, concebe
o professor como um profissional lecionador, avaliado individualmente e
isolado na profisso (viso individualista); a segunda considera o docente
como um profissional do sentido, um organizador da aprendizagem (viso
social), uma liderana, um sujeito poltico.
- Por que falamos de uma concepo emancipadora?
- Porque o papel da educao, na concepo que defendemos,
emancipar as pessoas, ou, como diz Francisco Imbernn, o objetivo da
educao ajudar a tornar as pessoas mais livres, menos dependentes do
poder econmico, poltico e social. A profisso de ensinar tem essa obrigao
intrnseca21.
Numa concepo emancipadora da educao, a profisso docente tem
um componente tico essencial. Sua especificidade est no compromisso
tico com a emancipao das pessoas. No uma profisso meramente
tcnica. A competncia do professor no se mede pela sua capacidade de
ensinar muito menos lecionar mas pelas possibilidades que constri para
que as pessoas possam aprender, conviver e viverem melhor.
Para mim, Paulo Freire foi o prottipo desse professor emancipador.
Basta dar uma olhada nas mensagens recebidas no Instituto Paulo Freire, em
So Paulo, logo depois de sua morte, dia 2 de maio de 19997. Ali se fala se
esperana, de projeto comum, de mundo melhor, de emoo, de
solidariedade. apaixonante reler essas mensagens. Ser educador
despertar isso nas pessoas. Paulo Freire conseguiu tocar a alma das
pessoas. Suas idias podero ter despertado controvrsias, mas no a sua
pessoa. Muitas dessas mensagens dizem textualmente: minha vida no
21
Francisco Imbernn. Formao docente e profissional: formar-se para a mudana e a incerteza. So Paulo, Cortez, 2000, p. 27.
seria a mesma se eu no tivesse lido a obra de Paulo Freire. O que ele
escreveu ficar no meu corao e na minha mente. Essa relao entre o
cognitivo e o afetivo muito forte na prxis de Paulo Freire e tambm
naqueles que foram influenciados por ele. Essa relao era muito forte
tambm na sua obra. Ele no envolvia as pessoas emocionalmente s
atravs de suas to encantadoras falas, mas tambm atravs de seus
escritos.
As mensagens recebidas logo depois de sua morte revelavam o
impacto terico e afetivo sobre a vida de tantos seres humanos de todas as
partes do mundo. Essas manifestaes terminavam sempre com o desejo de
unir-se a outras pessoas e instituies para dar continuidade ao seu legado,
ao seu compromisso, no o compromisso com os oprimidos deste ou daquele
lugar, mas com os oprimidos de todo o mundo.
3
Formao continuada do professor
A formao do profissional da educao est diretamente relacionada
com o enfoque, a perspectiva, a concepo mesma que se tem da sua
formao e de suas funes atuais. Para ns, a formao continuada do
professor deve ser concebida como reflexo, pesquisa, ao, descoberta,
organizao, fundamentao, reviso e construo terica e no como mera
aprendizagem de novas tcnicas, atualizao em novas receitas pedaggicas
ou aprendizagem das ltimas inovaes tecnolgicas.
A nova formao permanente, segundo essa concepo, inicia-se pela
reflexo crtica sobre a prtica. Examinar as teorias implcitas, estilos
cognitivos, preconceitos (hierarquia, sexismo, machismo, individualismo,
intolerncia, excluso...). Como diz Paulo Freire na formao permanente
dos professores, o momento fundamental o da reflexo crtica sobre a
prtica22. E essa reflexo crtica no se limita ao seu cotidiano na sala de
aula pois, como diz Francisco Imbernn a sua reflexo atravessa as paredes
da instituio para analisar todo tipo de interesses subjacentes educao,
realidade social, com o objetivo concreto de obter a emancipao das
pessoas23.
Nesse sentido, deve-se realar a importncia da troca de experincias
entre pares, atravs de relatos de experincias, oficinas, grupos de trabalho:
Quando os professores aprendem juntos, cada um pode aprender com o
outro. Isso os leva a compartilhar evidncias, informao e a buscar solues.
22
Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessrios prtica educativa, So Paulo, Paz e Terra, 1997, p. 43. 23
Francisco Imbernn. Formao docente e profissional: formar-se para a mudana e a incerteza. So Paulo, Cortez, 2000, p. 40.
A partir daqui os problemas importantes das escolas comeam a ser
enfrentados com a colaborao entre todos24.
Na formao continuada do professor, outro eixo importante o da
discusso do projeto poltico-pedaggico da escola25, a elaborao de
projetos comuns de trabalho de cada rea de interesse do professor, frente a
desafios, problemas e necessidades de sua prtica. preciso formar-se para
a cooperao. Como diz Francisco Imbernon26 a colaborao, mais que uma
estratgia de gesto, uma filosofia de trabalho. Os sistemas de ensino
investem na formao individual (individualista?) e competitiva do professor,
quando o mais importante a formao para um projeto comum de trabalho,
a formao poltica do professor. Mais do que uma formao tcnica, a
funo do professor necessita de uma formao poltica para exercer com
competncia a sua profisso.
Em sntese, a nova formao do professor deve estar centrada na
escola sem ser unicamente escolar, sobre as prticas escolares dos
professores, desenvolver na prtica um paradigma colaborativo e
cooperativo entre os profissionais da educao. A nova formao do professor
deve basear-se no dilogo e visar redefinio de suas funes e papis,
redefinio do sistema de ensino e construo continuada do projeto
poltico-pedaggica da escola. O prprio professor precisa construir tambm o
seu projeto poltico-pedaggico.
Muito sofrimento da professora, do professor, poderia ser evitado se a
sua formao inicial e continuada fosse outra, se aprendesse menos tcnicas
e mais atitudes, hbitos, valores. Antes de se perguntar o que deve saber
para ensinar, a professora deve se perguntar porque ensinar e como deve
ser para ensinar. Muita dor poderia ser evitada se o professor, a professora,
aprendessem a organizar melhor o seu trabalho e o de seus alunos e alunas,
se aprendessem a sistematizar e avaliar mais dialogicamente, se tivessem
24
Idem, p. 78. 25
Veja-se Paulo Roberto Padilha, Planejamento dialgico: como construir o projeto poltico-pdaggico da escola (So Paulo, Cortez/IP, 2001) e ngela Antunes, Aceita um conselho? Como organizar o colegiado escolar (So Paulo, Cortez/IPF, 2002). 26
Op. cit., p 81.
aprendido a aprender de forma cooperativa: o individualismo da profisso
mata de ansiedade e angstia, leva ao sofrimento e at ao martrio do
professor compromissado e desistncia daquele que perdeu a esperana.
Para evitar o martrio e a desistncia que os sistemas escolares e as
escolas necessitam de uma ajuda externa, de uma assessoria pedaggica.
No para fazer o trabalho delas. Minha experincia me mostrou que a
assessoria deve apenas ajudar a escola a inovar. Ns no devemos
implantar inovaes de fora, por melhores e mais bem intencionados que
sejam os amigos da escola. A escola que deve ser protagonista e no os
assessores. Toda inovao que vem de fora est fadada ao fracasso. Vejam-
se os numerosos exemplos de implantao de inovaes feitas pelos
sistemas de ensino, mera determinao exterior, artificial e separada dos
contextos pessoais e institucionais em que trabalham os profissionais da
educao nas escolas.
A experincia do Instituto Paulo Freire nos mostrou, por exemplo, que o
seu Projeto da Escola Cidad, iniciado por Paulo Freire logo depois de haver
deixado a Secretaria Municipal de Educao de So Paulo, em 1991, no
pode ser implantado sob pena de fracassar27. Todo professor e deve ser,
necessariamente, um mau implantador de idias dos outros. E timo que
assim seja, porque ele deve ser autnomo, ele precisa assumir, construir e
conquistar sua autonomia profissional. O que a assessoria externa pode fazer
propor uma colaborao na identificao das necessidades e construir, com
eles, as respostas a essas necessidades. Para isso, precisamos dispor de
estratgias. Envolver a comunidade interna e externa da escola essencial
para qualquer inovao.
O agente protagonista o profissional da escola. O assessor, como
guia e mediador entre iguais, amigo crtico, deveria intervir a partir das
demandas dos professores ou das instituies educacionais com objetivo de
auxiliar no processo de resolver os problemas ou situaes problemticas
27
Para maiores informaes sobre os projetos do Instituto Paulo Freire veja-se o site www.paulofreire.org.
profissionais que lhes so prprios28. Por isso, a comunicao, o
conhecimento da prtica, a capacidade de negociao, o conhecimento de
tcnicas de diagnstico, de anlise de necessidades, o favorecimento da
tomada de decises e o conhecimento da informao, so temas-chave na
assessoria29.
Pela legislao brasileira, hoje a formao continuada do professor em
servio um direito. Contudo, para que esse direito seja exercido na prtica,
de fato, creio que so necessrias algumas pr-condies ou exigncias
mnimas; entre elas:
1 direito a pelo menos 4 horas semanais de estudo com os colegas,
no s com especialistas de fora, para refletirem sobre a sua prpria prtica,
dividirem dvidas e resultados obtidos;
2 possibilidade de freqentar cursos seqenciais aprofundados em
estudos regulares, sobretudo sobre o ensino das disciplinas ou campos do
conhecimento de cada professor;
3 acesso bibliografia atualizada;
4 possibilidade de sistematizar sua experincia e escrever sobre ela;
5 possibilidade de participar e expor sua experincia em congressos
educacionais;
6 possibilidade de publicar a experincia sistematizada;
7 enfim, no s sistematizar e publicar suas reflexes, mas tambm
colocar em rede essas reflexes, o que cada professor, cada professora,
cada escola est fazendo, por exemplo, atravs de uma site da secretaria de
educao ou da prpria escola.
A professora, o professor, podem ter um papel mais decisivo na
construo de um novo paradigma civilizatrio se entenderem de outra
forma o seu papel na sociedade do conhecimento e educarem para a
humanidade. Eles e elas podem ter um poder como nunca tiveram na
sociedade. E como o poder nunca doado, mas conquistado, as entidades
28
Francisco Imbernn. Formao docente e profissional: formar-se para a mudana e a incerteza. So Paulo, Cortez, 2000, p. 88. 29
Idem, p. 94.
de professores tm uma enorme responsabilidade nesse processo de nova
formao inicial e continuada dos profissionais da educao.
O mundo hoje favorvel s mudanas sonhadas por educadores como
Antonio Gramsci, que entendia o educador como um intelectual organizador
da cultura, Paulo Freire, que defendia o dilogo crtico como essncia da
educao e Florestan Fernandes, que sustentava que a emancipao s
poderia vir a partir da organizao dos debaixo. A nova pedagogia para a
educao da humanidade no apenas uma pedagogia da resistncia, mas,
sobretudo, uma pedagogia da esperana e da possibilidade.
4
Ser professor na sociedade aprendente
Em 2001 fiz uma enquete com os meus alunos da Licenciatura da
Faculdade de Educao da USP perguntando quais seriam os saberes
necessrios profisso docente hoje. Eis o que eles me responderam. Para
ser professor necessrio: ter uma concepo de educao; ter uma
formao poltica, tica, isto , ter compromisso; respeitar as diferenas; ter
uma formao continuada; ser tolerante diante de atitudes, posturas e
conhecimentos diferentes; preparar-se para o erro e a incerteza; ter
autonomia didtico-pedaggica; ter domnio do saber especfico que leciona;
ser reflexivo e crtico; saber relacionar-se com os alunos; ter uma formao
geral, polivalente e transversal. Enfim... fazer da profisso um projeto de vida.
Recentemente tem-se realado o carter reflexivo da funo docente
como algo muito novo. Todavia, no existe nenhuma teoria da educao que
no defenda expressamente a necessidade da reflexo na prtica do
professor. Por isso, falar de professor reflexivo30, pode ser considerado
como redundncia. Para o educador no basta ser reflexivo. preciso que ele
d sentido reflexo. A reflexo meio, instrumento para a melhoria do que
especfico de sua profisso que construir sentido, impregnar de sentido
cada ato da vida cotidiana, como a prpria palavra latina insignare (marcar
com um sinal), significa.
A reflexo deve, portanto, ser crtica. O professor no pode ser reduzido
a isto ou quilo. Seu saber profissional, de experincia feito, de reflexo, de
pesquisa, de interveno, deve ser visto numa certa totalidade e no reduzido
a certas competncias tcnico-profissionais. Educar tambm arte, cincia,
prxis. Realar o carter reflexivo do quefazer educativo do professor, pode
30
Donald Schn. Educando o profissional reflexivo. Porto Alegre, ArtMed, 1998.
ser relevante, na medida em que se contrape corrente do pensamento
pedaggico pragmatista e instrumental, mas pode ser limitativo, se esse
carter no for compreendido numa certa totalidade de saberes necessrios
prtica educativa.
Fala tambm muito hoje de competncias profissionais do professor.
Fala-se menos de saberes. Virou moda falar de novas competncias31 ou
do enfoque por competncias, que lembra um pouco o debate da dcada de
80 entre competncia tcnica e compromisso poltico.
Como em toda moda, em toda ideologia, ela tem um fundamento. Por
isso, preciso buscar, nesse senso comum, o bom senso, como queria
Antonio Gramsci. preciso reconhecer que o contexto atual coloca novos
desafios para a escola, para o ensino, o professor, o aluno, etc32. O professor
precisa saber organizar o seu trabalho e orientar o do aluno a organizar o seu,
saber trabalhar em equipe, participar da gesto da escola, envolver os pais,
utilizar novas tecnologias, ser tico, continuar sua formao... mas esses
saberes no foram desde sempre os saberes necessrios prtica
educativa?
Paulo Freire preferia falar de saberes e no de competncias, uma
palavra associada tradio utilitarista, tecnocrtica, ao mundo da empresa,
economia, competitividade (ao mundo do trabalho neoliberal), eficincia,
racionalizao, avaliao... Por isso ele fala de saberes necessrios
prtica educativa em seu ltimo livro33.
As profisses que dependem inteiramente da tecnologia (o torneiro
mecnico, por exemplo) esto vendo suas competncias e habilidades se
transformarem rapidamente. O professor, para o exerccio das suas funes
no depende exclusivamente da tecnologia. Nem tudo muda para ele
mudando a tecnologia que utilizar. No novo contexto de impregnao da
informao ele precisa continuar sua formao ao longo de toda a vida e
31
Philippe Perrenoud, Construir as competncias desde a escola, Posto Alegre, Artmed, 2002. Traduo do francs Construire des comptences ds lcole. Paris, ESF, 1997. 32
Moacir Gadotti, Perspectivas atuais da educao. Porto Alegre, Armed, 2000. 33
Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessrios prtica educativa. So Paulo, Paz e Terra, 1997.
saber ser, saber aprender, saber conviver, saber fazer, como diz a
UNESCO34. Mas precisa continuar, como sempre, saber porque est
ensinando e o que est ensinando, precisa saber pensar35, necessita
associar ensino, pesquisa e envolvimento comunitrio. Pesquisar faz parte da
prpria natureza da prtica docente, como diz Paulo Freire: Fala-se hoje,
com insistncia, diz ele, no professor pesquisador. No meu entender o que
h de pesquisador no professor no uma qualidade ou uma forma de ser ou
de atuar que se acrescente de ensinar. Faz parte da natureza da prtica
docente a indagao, a busca, a pesquisa. O de que se precisa que, em sua
formao permanente, o professor se perceba e se assuma, porque
professor, como pesquisador36.
Alguns confundem competncia com habilidade, mas competncia no
habilidade: o professor pode ser competente, ter conhecimentos profundos
de uma determinada disciplina e no ter habilidades prticas para o ensino,
no saber ensinar. A educao no s cincia, mas tambm arte. O ato
de educar complexo. O xito do ensino no depende tanto do conhecimento
do professor, mas da sua capacidade de criar espaos de aprendizagem, vale
dizer, fazer aprender e de seu projeto de vida de continuar aprendendo.
Nesse contexto devemos destacar as competncias de vida ou os
saberes de experincia feitos, como costumava dizer Freire. As
competncias de vida que no se enquadram nas competncias dos campos
profissionais especficos. A questo das competncias est ligada ao tema
como aprendemos. Aprendemos atuando, empreendendo, agindo. A ao
gera saber, habilidade, conhecimento. Agindo, por exemplo, aprendemos
tcnicas e mtodos sobre como fazer. E, muitas vezes, por no termos sido
formados para reconhecer essas competncias, no sabemos ensinar como
fazemos, como chegamos a ter xito no que fazemos.
34
Jacques Delors (org.), Educao: um tesouro a descobrir Relatrio para a UNESCO da Comisso Internacional sobre Educao para o Sculo XXI. So Paulo, Cortez, 1998. 35
Pedro Demo, Saber pensar. So Paulo, Cortez/Instituto Paulo Freire, 2000. 36
Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessrios prtica educativa. So Paulo, Paz e Terra, 1997, p. 32.
Paulo Freire foi um mestre do respeito desse saber, dessas
competncia de vida. Para ele aprender era conhecer melhor o que j se sabe
para poder ter acesso a novos conhecimentos. Essa no era apenas uma
tcnica pedaggica mas um ato pedaggico e uma concepo de vida que
parte do acolhimento, com respeito, de um ser que conhece e quer aprender
mais.
H um movimento, sobretudo na Europa, para reconhecer (certificar) as
competncias das pessoas (sobretudo adultas) que no passaram pela
certificao da escola. Qual o sentido do reconhecimento das competncias
de vida das pessoas?
Creio que essa certificao s faz sentido se no for burocrtica, isto ,
se valorizar a capacidade de aprender das pessoas. Reconhecer uma
competncia ou habilidade estimula e motiva as pessoas a continuar
aprendendo, a pensar a sua prtica para transform-la, como queria Freire.
O surgimento desse debate em torno da certificao de todas as
competncias das pessoas no deve ser invalidado pela possibilidade de
controle social que traz em si mesmo. Este debate tambm traz algo positivo,
na medida em que encarna o surgimento de uma nova sociedade, de uma
sociedade essencialmente aprendente.
A sociedade contempornea est marcada pela questo do
conhecimento. E no por acaso. O conhecimento tornou-se pea chave
para entender a prpria evoluo das estruturas sociais, polticas e
econmicas de hoje. Fala-se muito hoje em sociedade do conhecimento, s
vezes com impropriedade. Mais do que a era do conhecimento, devemos
dizer que vivemos a era da informao, pois percebemos com mais facilidade
a disseminao da informao e de dados, muito mais do que de
conhecimentos. O acesso ao conhecimento ainda muito precrio, sobretudo
em sociedades com grande atraso educacional.
Como ser professor na sociedade aprendente?
Hoje as teorias do conhecimento na educao esto centradas na
aprendizagem, no ato de aprender, de conhecer.
- O que conhecer?
Conhecer construir categorias de pensamento, ler o mundo e
transform-lo, dizia Freire. No possvel construir categorias de
pensamento como se elas existissem a priori, independentemente do sujeito
que conhece. Ao conhecer, o sujeito do conhecimento reconstri o que
conhece.
- Como conhecer?
S possvel conhecer quando se deseja, quando se quer, quando nos
envolvemos profundamente com o que aprendemos. No aprendizado, gostar
mais importante do que criar hbitos de estudo, por exemplo. Hoje se d
mais importncia s metodologias da aprendizagem, s linguagens e s
lnguas estrangeiras, do que aos contedos. A transversalidade e a
transdisciplinaridade do conhecimento mais valorizada do que os contedos
longitudinais do currculo clssico.
Frente disseminao e generalizao do conhecimento,
necessrio que a escola e o professor, a professora, faam uma seleo
crtica da informao, pois h muito lixo e propaganda enganosa sendo
veiculados. No faltam, tambm na era da informao, encantadores da
palavra para tirar algum proveito, seja econmico, seja religioso, seja
ideolgico.
Conhecer importante porque a educao se funda no conhecimento e
este na atividade humana. Para inovar preciso conhecer. A atividade
humana intencional, no est separada de um projeto. Conhecer no s
adaptar-se ao mundo. condio de sobrevivncia do ser humano e da
espcie.
Antes de conhecer o sujeito se interessa por... curioso,
esperanoso (Freire). Da a importncia do trabalho de seduo
(Nietzsche) do professor, da professora, frente ao aluno, aluna. Seduzir no
sentido de encantar pela beleza e no como tcnica de manipulao. Da a
necessidade da motivao, do encantamento. Motivao que deve vir de
dentro do prprio aluno e no da propaganda. preciso mostrar que
aprender gostoso, mas exige esforo, como dizia Paulo Freire no primeiro
documento que encaminhou aos professores quando assumiu a Secretaria de
Educao do Municpio de So Paulo.
Certamente, para o professor ter xito nessa sociedade aprendente, o
professor, a professora precisam ter clareza sobre o que conhecer, como se
conhece, o que conhecer, porque conhecer, mas um dos segredos do
chamado bom professor trabalhar com prazer, gostando do que se faz. A
gente faz sempre bem o que gosta de fazer. S bem sucedido aquele ou
aquele que faz o que gosta.
5
Aprender com emoo, ensinar com alegria
A educao necessria para a sobrevivncia do ser humano. Para
que ele no precise inventar tudo de novo, necessita apropriar-se da cultura,
do que a humanidade j produziu. Educar tambm aproximar o ser humano
do que a humanidade produziu. Se isso era importante no passado, hoje
ainda mais decisivo numa sociedade baseada no conhecimento.
O professor precisa saber, contudo, que difcil para o aluno perceber
essa relao entre o que ele est aprendendo e o legado da humanidade. O
aluno que no perceber essa relao no ver sentido naquilo que est
aprendendo e no aprender, resistir aprendizagem, ser indiferente ao
que o professor estiver ensinando. Ele s aprende quando quer aprender e s
quer aprender quando v na aprendizagem algum sentido. Ele no aprende
porque burrinho. Ao contrrio, s vezes, a maior prova de inteligncia
encontra-se na recusa em aprender.
Aprender vem de ad (junto de algum ou algo) e praehendere (tentar
prender, agarrar, pegar). Aprendemos porque somos seres inacabados: as
tartarugas nascem sabendo o que precisam. Nascem na praia sem a
presena da me. Mesmo assim, elas sabem que devem ir logo para o mar,
caso contrrio podem acabar na boca de algum predador. Os seres humanos,
contudo, se abandonados, mesmo com alguns meses de vida, eles
morreriam. Nascem frgeis. Se os pais no os alimentam, morrem.
Ns, seres humanos, no s somos seres inacabados e incompletos
como temos conscincia disso. Por isso, precisamos aprender com.
Aprendemos com porque precisamos do outro, fazemo-nos na relao com
o outro, mediados pelo mundo, pela realidade em que vivemos.
O que acontece conosco que se o que aprendemos no tem sentido,
no atender alguma necessidade, no apreendemos. O que aprendemos
tem que significar para ns. Alguma coisa ou pessoa significativa quando
ela deixa de ser indiferente. Esquecemos o que aprendemos sem sentido, o
que no pode ser usado. Guardar coisa intil burrice. O corpo aprende para
viver. isso que d sentido ao conhecimento. O que se aprende so
ferramentas, possibilidades de poder. O corpo no aprende por aprender.
Aprender por aprender estupidez37.
Todo ser vivo aprende na interao com o seu contexto: aprendizagem
relao com o contexto. Quem d significado ao que aprendemos o
contexto. Por isso, para o educador ensinar com qualidade, ele precisa
dominar, alm do texto, o com-texto, alm de um contedo, o significado do
contedo que dado pelo contexto social, poltico, econmico... enfim,
histrico do que ensina. Nesse sentido, todo educador tambm um
historiador.
Ns, educadores, precisamos ter clareza do que aprender, do que
aprender a aprender, para entendermos melhor o ato de ensinar. Para ns,
educadores, no basta saber como se constri o conhecimento. Ns
precisamos dominar outros saberes da nossa difcil tarefa de ensinar.
Precisamos saber o que ensinar, o que aprender e, sobretudo, como
aprender.
- O que aprender?
Aprender no acumular conhecimentos. Aprendemos histria no
para acumular conhecimentos, datas, informaes, mas para saber como os
seres humanos fizeram a histria para fazermos histria. O importante
aprender a pensar (a realidade, no pensamentos), aprender a aprender.
o sujeito que aprende atravs da sua experincia. No um coletivo
que aprende. Mas no coletivo que se aprende. Eu dialogo com a realidade,
com autores, com meus pares, com a diferena. Meu texto, este texto que
estou escrevendo agora, por exemplo, resultado de um dilogo: dilogo com
37
Rubem Alves, Sobre moluscos e homens, in Folha de S. Paulo, 17 de fevereiro de 2002, p. 3.
o contexto, com os educadores, presentes em diversas palestras, cos os
autores que li, etc.
Aprende-se o que significativo para o projeto de vida da pessoa.
Aprende-se quando se tem um projeto de vida. Aprendemos a vida toda. No
h tempo prprio para aprender.
E mais: preciso tempo para aprender e para sedimentar informaes.
No d para injetar dados e informaes na cabea de ningum. Exige-se
tambm disciplina e dedicao. Como diz Paulo Freire: Quem ensina
aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender"38.
S aprendemos quando colocamos emoo no que aprendemos. Por
isso necessrio ensinar com alegria39. Nossas escolas continuam
preocupadas em ensinar e no param para pensar o que ensinar, como se
aprende, porque se aprende. Dar aulas tem-se constitudo na nica
preocupao da escola. Tudo se resume na aula. Precisamos parar para
pensar a escola, pensar no que estamos fazendo. Pedro Demo acha
inacreditvel que a escola prossiga meramente dando aulas, em vez de
estar cuidando da aprendizagem de todos os estudantes40.
Um concurso para professores traa o perfil do candidato. Elabora
questes. Define bibliografia. Define o processo de seleo: d pesos
diferentes (juzo de valor) s partes da prova escrita, faz ou no entrevistas,
considera ou no o tempo de servio, a experincia, a prtica, considera ou
no os ttulos... Um concurso para professores define o professor que quer.
Somos escolhidos.
E ns, professores, escolhemos tambm? Que sentido tem para ns
nos submetermos ao processo de seleo? Queremos se aprovados para
qu? H um projeto que nos move? Ou nos submetemos passivamente ao
perfil exigido pelo concurso? Por que no definimos as caractersticas a
serem valorizadas no processo de seleo? Por que no definimos o
38 Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessrios prtica educativa. So Paulo, Paz e Terra, 1997, p. 25. 39
Georges Snyders, A alegria na escola. So Paulo, Manole, 1986. 40
Pedro Demo, Conhecer & Aprender Sabedoria dos limites e desafios. Porto Alegre, Artmed, 2001.
processo de seleo? Com quem trabalharemos? Com quem construiremos
um projeto de vida, de escola, de educao, de sociedade? O que esperam
de ns, nossos alunos e alunas? Precisamos passar no concurso do sentido
que tem o nosso fazer pedaggico. Precisamos usar estrategicamente os
concursos pblicos para professor para viabilizar um projeto de vida, um
sonho.
Emprego. O sistema trata o professor apenas como um vaga? O
sistema, ao abir um concurso est chamando para um emprego. E ns,
estamos nos candidatando a uma vaga, ou a um projeto de vida a ser
realizado, a uma sonho?
E, finalmente, conseguimos um emprego. E agora? cada vez mais
difcil manter-se no emprego, na profisso, principalmente pelo desrespeito,
pela indisciplina, pelo desinteresse e pela violncia que contamina muitas de
nossas escolas. H muitos professores e professoras que se sentem infelizes
na escola e principalmente na sala de aula. Falta interesse, falta disciplina,
faltam objetivos claros, enfim, falta sentido para o que ensinam. O aluno
tambm no v sentido no que est aprendendo na escola. E vem a pergunta
desalentadora: Para que estou estudando isso, professora? - Para que
estudar?.
Em muitas palestras que venho dando, uma pergunta, dita de diversas
maneira, me chega mesa: O que devo fazer? O que o senhor faria no
meu lugar?.
O aluno quer saber, mas ele no quer aprender, no quer aprender o
que lhe ensinado e nem como lhe ensinado. E o conflito, o desinteresse, a
indisciplina, a violncia nas escolas est crescendo. A escola ensina num
paradigma e o aluno aprende num outro paradigma. O que fazer diante do
paradoxo: o aluno quer saber, mas no quer aprender?
A escola precisa estar atenta s mudanas profundas que o contexto
miditico contemporneo est provocando na cabea de crianas e jovens.
Em mdia, no mundo, uma criana passa 4 horas dirias em frente
televiso. No Brasil so 8 horas. Em mdia, no mundo, a criana passa 8
horas dirias na escola. No Brasil so 4 horas. E mais: os professores
passam mais tempo com as crianas do que os pais. Passamos muito tempo
na escola, passamos muito tempo diante da televiso.
A criana passa muito tempo sentada diante da televiso porque sente
prazer em ficar l. O que o professor fala no exerce o mesmo fascnio da TV.
Cada vez mais as crianas chegam escola transportando consigo a
imagem de um mundo real ou fictcio que ultrapassa em muito os limites
da famlia e da comunidade de vizinhos. As mensagens mais variadas
ldicas, informativas, publicitrias transmitidas pelos meios de comunicao
social entram em concorrncia ou em contradio com o que as crianas
aprendem na escola. Estas mensagens surgem sempre organizadas em
rpidas seqncias o que, em numerosas regies do mundo, tem uma
influncia negativa sobre a capacidade de manter a ateno, por parte dos
alunos e, portanto, sobre as relaes na aula. Passando os alunos menos
tempo na escola do que diante da televiso, a seus olhos grande o
contraste entre a gratificao instantnea oferecida pelos meios de
comunicao, que no lhes exige nenhum esforo, e o que lhes exigido para
alcanarem sucesso na escola. Tendo assim perdido, em grande parte, a
preeminncia que tinham na educao, professores e escola encontram-se
confrontados com novas tarefas: fazer da escola um lugar mais atraente para
os alunos e fornecer-lhes as chaves de uma compreenso verdadeira da
sociedade da informao. O professor deve estabelecer uma nova relao
com quem est aprendendo, passar do papel de solista ao de
acompanhante, tornando-se no mais algum que transmite conhecimentos,
mas aquele que ajuda os seus alunos a encontrar, organizar e gerir o saber,
guiando, mas no modelando os espritos, e demonstrando grande firmeza
quanto aos valores fundamentais que devem orientar toda a vida41. Essas
consideraes do Relatrio para a UNESCO da Comisso Internacional sobre
Educao para o Sculo XXI me parecem muito apropriadas para explicar as
41
Jacques Delors (org.), Educao: um tesouro a descobrir Relatrio para a UNESCO da Comisso Internacional sobre Educao para o Sculo XXI. So Paulo, Cortez, 1998, p.154-155.
dificuldades enfrentadas hoje pelos professores. So pistas para enfrentar a
questo: O que devo fazer? O que o senhor faria no meu lugar?. Mas,
claro, elas no do conta de toda a complexa questo do saber ensinar.
Diante das dificuldades da prtica docente, do desencanto dos
nossos alunos, muitos e muitas professoras so vtimas da sndrome da
desistncia42. Ela expressa na exausto emocional provocada pelo
aumento da quantidade de trabalhos e pela despersonalizao provocada
pela sua baixa valorizao social e reduzida realizao pessoal.
So essas dificuldades que nos levam pergunta de sempre: por que
ser professor hoje? Qual sentido de ser professor hoje? Para que estou
ensinando? Como deve ser o novo professor?
Eis, em resumo, as respostas que tenho dado com mais freqncia em
minhas falas, considerando o contexto da globalizao e da nova
globalizao43 emergente, que venho chamando de planetarizao44 e a
sociedade da informao que prefiro chamar de sociedade aprendente.
1. O novo professor um profissional do sentido. Diante dos novos
espaos de formao (diversas mdias, ONGs, Internet, espaos pblicos e
privados, associaes, empresas, sindicatos, partidos, parlamento...), o novo
professor integra esses espaos e deixa de ser lecionador para ser um
gestor 45 do conhecimento social (popular), o profissional que seleciona a
informao e d/constri sentido para o conhecimento, um mediador do
conhecimento. Gestor aqui significa construtor, organizador, mediador,
coordenador. No se confunde com gerente de uma empresa.
42
Ver pesquisa sobre sade dos trabalhadores em educao da CNTE (Confederao Nacional dos Trabalhadores em Educao), Educao: carinho e trabalho Burnout, a sndrome da desistncia do educador, que pode levar falncia da educao. Braslia, CNTE, 1999. Essa pesquisa foi o mais amplo levantamento j realizado a respeito da educao em todo o mundo. Durante dois anos foram entrevistados 52 mil professores e funcionrios de escola em 1.440 unidades das redes pblicas estaduais, nos 27 estados do Brasil. 43
Milton Santos, Por uma outra globalizao: do pensamento nico conscincia universal. So Paulo, Record, 2000. 44
Ver ngela Antunes, Leitura do mundo no contexto da planetarizao: por uma pedagogia da sustentabilidade. So Paulo, Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo, 2002 (Tese de doutorado) e Moacir Gadotti, Pedagogia da Terra. So Paulo, Peirpolis, 2001. 45
Ladislau Dowbor, A reproduo social: propostas para uma gesto transformadora. Petrpolis, Vozes, 1998.
O novo profissional da educao precisa perguntar-se: por que
aprender, para qu, contra qu, contra quem. O processo de aprendizagem
no neutro. O importante aprender a pensar, a pensar a realidade e no
pensar pensamentos j pensados. Mas a funo do educador no acaba a:
preciso pronunciar-se sobre essa realidade que deve ser no apenas
pensada, mas transformada.
Muitas vezes no vemos sentido no que estamos ensinando. E nossos
alunos tambm no vem sentido no que esto aprendendo. Numa poca de
incertezas, de perplexidades, de transio, esse profissional deve construir
sentido com seus alunos. O processo ensino/aprendizagem deve ter sentido
para o projeto de vida de ambos para que seja um processo verdadeiramente
educativo. O grande mal-estar de muitos de nossos professores e de nossas
escolas est no viver sem sentido do que esto fazendo. O ato educativo
est essencialmente ligado ao viver com sentido, impregnao de sentido
para nossas vidas.
2. O novo professor um profissional que aprende em rede
(ciberespao da formao), sem hierarquias, cooperativamente (saber
organizar o seu prprio trabalho). um aprendiz permanente, um organizador
do trabalho do aluno; consciente, mas tambm sensvel. Ele desperta o
desejo de aprender para que o aluno seja autnomo e se torne sujeito da sua
prpria formao.
Por isso, o novo professor precisa desenvolver habilidades de
colaborao (trabalho em grupo, interdisciplinaridade), de comunicao (saber
falar, seduzir, escrever bem, ler muito), de pesquisa (explorar novas
hipteses, duvidar, criticar) e de pensamento (saber tomar decises).
O enfoque da formao do novo professor deve ser na autonomia e na
participao, nas formas colaborativas de aprendizagem. Diz Paulo Freire: O
bom professor o que consegue, enquanto fala, trazer o aluno at a
intimidade do movimento de seu pensamento. Sua aula assim um desafio e
no uma cantiga de ninar. Seus alunos cansam, no dormem. Cansam
porque acompanham as idas e vindas de seu pensamento, surpreendem suas
pausas, suas dvidas, suas incertezas46.
3. Ensinar mobilizar o desejo de aprender. Mais importante do que
saber nunca perder a capacidade de aprender. Saber saborear, diz
Rubem Alves47. O novo profissional da educao deve romper o divrcio entre
a vida escolar e o prazer.
Para ensinar so necessrias principalmente duas coisas:
a) gostar de aprender, ter prazer em ensinar, como um jardineiro que cuida
com emoo do seu jardim, de sua roa;
b) amar o aprendente (criana, adolescente, adulto, idoso). S aprendemos
quando aquilo que aprendemos significativo (Piaget) para ns e nos
envolvemos profundamente no que aprendemos.
O que aprendemos deve fazer parte do nosso projeto de vida. preciso
gostar de ser professor (auto-estima) para ensinar.
4. A tica parte integrante da competncia do professor, do saber
ser professor. Isso significa que um professor que no tem um sonho, uma
utopia, no comprometido... no competente, no tico. No se pode
educar sem um sonho. Ensinar por ensinar, mecanizar, deshumanizar o
processo educativo no ser tico. Aprende-se ao longo de toda a vida,
desde que tenhamos um projeto de vida. tica do cuidado48, da
amorosidade (Freire).
A razo competente deve ser uma razo molhada de emoo (Freire).
O papel das emoes no processo de aprendizagem decisivo: razo e
emoo no so instncias separadas no ser que aprende (Wallon). A
emoo parte do ato de conhecer.
Em alemo educar significa cuidar, acolher. Uma sociedade alucinada e
ruidosa como a nossa no pode educar porque no pode cuidar, no pode
acolher. Nela no h mais tempo para o modo de ser cuidado, para o
46
Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessrios prtica educativa, So Paulo, Paz e Terra, 1997, p. 96. 47
Rubem Alves, Conversas com quem gosta de ensinar. So Paulo, Cortez, 1981. 48
Leonardo Boff, Saber cuidar: tica do humano, compaixo pela terra. Petrpolis, Vozes, 1999.
encontro, mas apenas para o modo de ser trabalho ou explorao, nas
expresses utilizadas por Leonardo Boff49.
5. O novo professor tambm um profissional do encantamento.
Num mundo de desencanto e de agressividade crescentes, o novo professor
tem um papel bifilo. um promotor da vida, do bem viver, educa para a paz
e a sustentabilidade. No podemos abrir mo de uma antiga lio: a educao
ao mesmo tempo cincia e arte. A arte a tcnica da emoo (Vygotski).
O novo profissional da educao tambm um profissional que domina a arte
de reencantar, de despertar nas pessoas a capacidade de engajar-se e
mudar.
49
Idem, ibidem.
6
Educar para uma vida sustentvel
Trs dcadas de debates sobre nosso futuro comum deixaram
algumas pegadas ecolgicas, tanto no campo da economia, quanto no campo
da tica, da poltica e da educao, que podem nos indicar um caminho diante
dos desafios do Sculo XXI. A sustentabilidade tornou-se um tema gerador
preponderante neste incio de milnio para pensar no s o planeta mas
tambm a educao; um tema portador de um projeto social global e capaz de
reeducar nosso olhar e todos os nossos sentidos, capaz de reacender a
esperana num futuro possvel, com dignidade, para todos.
O cenrio no otimista: podemos destruir toda a vida no planeta
neste milnio que se inicia. Uma ao conjunta global necessria, um
movimento como grande obra civilizatria de todos indispensvel para
realizarmos essa outra globalizao, essa planetarizao, fundamentada em
outros princpios ticos que no os baseados na explorao econmica, na
dominao poltica e na excluso social. O modo pelo qual vamos produzir
nossa existncia neste pequeno planeta, decidir sobre a sua vida ou a sua
morte, e a de todos os seus filhos e filhas.
Os paradigmas clssicos, fundados numa viso industrialista
predatria, antropocntrica e desenvolvimentista, esto se esgotando, no
dando conta de explicar o momento presente e de responder s necessidades
futuras. Necessitamos de um outro paradigma, fundado numa viso
sustentvel do planeta Terra. O globalismo essencialmente insustentvel.
Ele atende primeiro s necessidades do capital e depois s necessidades
humanas. E muitas das necessidades humanas a que ele atende, tornaram-
se humanas apenas porque foram produzidas como tais para servirem ao
capital.
Precisamos de uma Pedagogia da Terra, uma pedagogia apropriada
para esse momento de reconstruo paradigmtica, apropriada cultura da
sustentabilidade e da paz. Ela vem se constituindo gradativamente,
beneficiando-se de muitas reflexes que ocorreram nas ltimas dcadas,
principalmente no interior do movimento ecolgico. Ela se fundamenta num
paradigma filosfico50 emergente na educao que prope um conjunto de
saberes/valores interdependentes. Entre eles podemos destacar:
1. Educar para pensar globalmente. Na era da informao, diante da
velocidade com que o conhecimento produzido e envelhece, no adianta
acumular informaes. preciso saber pensar. E pensar a realidade. No
pensar pensamentos j pensados. Da a necessidade de recolocarmos o tema
do conhecimento, do saber aprender, do saber conhecer, das metodologias,
da organizao do trabalho na escola.
2. Educar os sentimentos. O ser humano o nico ser vivente que se
pergunta sobre o sentido de sua vida. Educar para sentir e ter sentido, para
cuidar e cuidar-se, para viver com sentido cada instante da nossa vida.
Somos humanos porque sentimos e no apenas porque pensamos. Somos
parte de um todo em construo e reconstruo.
3. Ensinar a identidade terrena como condio humana essencial.
Nosso destino comum no planeta, compartilhar com todos, sua vida no
planeta. Nossa identidade ao mesmo tempo individual e csmica. Educar
para conquistar um vnculo amoroso com a Terra, no para explor-la, mas
para am-la.
4. Formar para a conscincia planetria. Compreender que somos
interdependentes. A Terra uma s nao e ns, os terrqueos, os seus
cidados. No precisaramos de passaportes. Em nenhum lugar na Terra
deveramos nos considerar estrangeiros. Separar primeiro de terceiro mundo,
significa dividir o mundo para govern-lo a partir dos mais poderosos; essa
50
Entre os principais representantes desse paradigma podemos citar: Paulo Freire, Leonardo Boff, Sebastio Salgado, Boaventura de Sousa Santos, Milton Santos, Aziz AbSber, Thomas Berry, Fritjop Capra, Edgar Morin.
a diviso globalista entre globalizadores e globalizados, o contrrio do
processo de planetarizao.
5. Formar para a compreenso. Formar para a tica do gnero
humano, no para a tica instrumental e utilitria do mercado. Educar para
comunicar-se. No comunicar para explorar, para tirar proveito do outro, mas
para compreend-lo melhor. A Pedagogia da Terra que defendemos funda-se
nesse novo paradigma tico e numa nova inteligncia do mundo. Inteligente
no aquele que sabe resolver problemas (inteligncia instrumental), mas
aquele que tem um projeto de vida solidrio. Por que bela a diversidade,
porque enriquecedora na possibilidade de criao de novas realidades e
mais plenas. A solidariedade, como valor e como necessidade humana,
embeleza, humaniza e promove a vida.
6. Educar para a simplicidade e para a quietude. Nossas vidas
precisam ser guiadas por novos valores: simplicidade, austeridade, quietude,
paz, saber escutar, saber viver juntos, compartir, descobrir e fazer juntos.
Precisamos escolher entre um mundo mais responsvel frente cultura
dominante que uma cultura de guerra, do rudo, de competitividade sem
solidariedade, e passar de uma responsabilidade diluda a uma ao
concreta, praticando a sustentabilidade na vida diria, na famlia, no trabalho,
na escola, na rua. A simplicidade no se confunde com a simploriedade e a
quietude no se confunde com a cultura do silncio. A simplicidade tem que
ser voluntria como a mudana de nossos hbitos de consumo, reduzindo
nossas demandas. A quietude uma virtude, conquistada com a paz interior e
no pelo silncio imposto.
claro, tudo isso supe justia e justia supe que todas e todos
tenham acesso qualidade de vida. Seria cnico falar de reduo de
demandas de consumo, atacar o consumismo, falar de consumismo aos que
ainda no tiveram acesso ao consumo bsico. No existe paz sem justia.
Diante do possvel extermnio do planeta, surgem alternativas numa
cultura da paz e uma cultura da sustentabilidade. Sustentabilidade no tem
a ver apenas com a biologia, a economia e a ecologia. Sustentabilidade tem a
ver com a relao que mantemos conosco mesmos, com os outros e com a
natureza. A pedagogia deveria comear por ensinar sobretudo a ler o mundo,
como nos diz Paulo Freire, o mundo que o prprio universo, por que ele
nosso primeiro educador. Essa primeira educao uma educao emocional
que nos coloca diante do mistrio do universo, na intimidade com ele,
produzindo a emoo de nos sentirmos parte desse sagrado ser vivo e em
evoluo permanente.
No entendemos o universo como partes ou entidades separadas, mas
como um todo sagrado, misterioso, que nos desafia a cada momento de
nossas vidas, em evoluo, em expanso, em interao. Razo, emoo e
intuio so partes desse processo, onde o prprio observador est
implicado. O Paradigma-Terra um paradigma civilizatrio. E como a cultura
da sustentabilidade oferece uma nova percepo da Terra, considerando-a
como uma nica comunidade de humanos, ela se torna bsica para uma
cultura de paz.
O universo no est l fora. Est dentro de ns. Est muito prximo de
ns. Um pequeno jardim, uma horta, um pedao de terra, um microcosmos
de todo o mundo natural. Nele encontramos formas de vida, recursos de vida,
processos de vida. A partir dele podemos reconceitualizar nosso currculo
escolar. Ao constru-lo e ao cultiv-lo podemos aprender muitas coisas. As
crianas o encaram como fonte de tantos mistrios! Ele nos ensina os valores
da emocionalidade com a Terra: a vida, a morte, a sobrevivncia, os valores
da pacincia, da perseverana, da criatividade, da adaptao, da
transformao, da renovao.
Todas as nossas escolas podem transformar-se em jardins e
professores-alunos, educadores-educandos, em jardineiros. O jardim nos
ensina ideais democrticos: conexo, escolha, responsabilidade, deciso,
iniciativa, igualdade, biodiversidade, cores, classes, etnicidade, e gnero.
Paulo Freire insistia na necessidade de reafirmar a esttica como
dimenso fundamental da tarefa de educar. O Instituto Paulo Freire vem
dando continuidade e reinventando esse sonho de Paulo Freire. Como me
escreveu um dos seus diretores pedaggicos, Paulo Roberto Padilha, que
est concluindo sua tese de doutorado sobre esse tema, a boniteza de ser
professor est no fato de ser uma atividade desafiadora, cheia de cores,
tempos e espaos diferentes. A vida do professor poderia ser dinmica e bela
se pudssemos ench-la de jardins, de sons, de imagens, de sentimentos...
se pudssemos resgatar a beleza que temos em ns, seres humanos.
Resgatar na sala de aula e na escola, a nossa humanidade. Concordo
plenamente com ele.
7
Ser professor, ser educador
Educadores, onde estaro?, pergunta Rubem Alves.
E ele mesmo responde: Em que covas tero se escondido?
Professores, h aos milhares, mas professor profisso, no algo que se
define por dentro, por amor. Educador, ao contrrio, no profisso,
vocao. E toda vocao nasce de um grande amor, de uma grande
esperana51. E continua: Com o advento da indstria como poderia o
arteso sobreviver? Foi transformado em operrio de segunda classe, at
morrer de desgosto e saudade. O mesmo com os tropeiros, que dependiam
das trilhas estreitas e das solides, que morreram quando o asfalto e o
automvel chegaram. Destino igualmente triste teve o boticrio, sem recursos
para sobreviver num mundo de remdios prontos. Foi devorado no banquete
antropofgico das multinacionais52.
Rubem Alves um emrito escritor, psicanalista, educador respeitado,
mas sobretudo um semeador de sonhos e de idias que do a pensar. Foi
assim que introduziu uma intrigante distino entre ser professor e ser
educador: Com o advento do utilitarismo a pessoa passou a ser definida
pela sua produo; a identidade engolida pela funo. E isto se tornou to
arraigado que, quando algum nos pergunta o que somos, respondemos
inevitavelmente dizendo o que fazemos. Com essa revoluo instaurou-se a
possibilidade de se gerenciar e administrar a personalidade, pois que aquilo
que se faz e se produz, a funo, passvel de medio, controle,
racionalizao. A pessoa praticamente desaparece, reduzindo-se a um ponto
imaginrio em que vrias funes so amarradas. isto que eu quero dizer
51
Rubem Alves, in Carlos R. Brando (org.), O educador: vida e morte escritos sobre uma espcie em perigo. So Paulo, Brasiliense, 1982, p. 16. 52
Idem, ibidem.
ao afirmar que o nicho ecolgico mudou. O educador, pelo menos o ideal que
minha imaginao constri, habita um mundo em que a interioridade faz uma
diferena, em que as pessoas se definem por suas vises, paixes,
esperanas e horizontes utpicos. O professor ao contrrio, funcionrio de
um mundo dominado pelo Estado e pelas empresas. uma entidade
gerenciada, administrada segundo a sua excelncia funcional, excelncia esta
que sempre julgada a partir dos interesses do sistema. Freqentemente o
educador mau funcionrio, porque o ritmo do mundo do educador no
segue o ritmo do mundo da instituies. No de se estranhar que Rousseau
tenha se tornado obsoleto. Porque a educao que ele contempla ocorre
colada ao imprevisvel de uma experincia de vida ainda no gerenciada53. E
conclui mais a frente: Talvez que um professor seja um funcionrio das
instituies... O educador, ao contrrio um fundador de mundos, mediador
de esperanas, pastor de projetos. No sei como preparar o educador. Talvez
que isto no seja nem necessrio nem possvel... necessrio acord-lo. E a
aprenderemos que educadores no se extinguiram como tropeiros e
caixeiros54.
As reaes s provocaes de Rubem Alves no se fizeram esperar.
Suas teses geravam uma saudvel polmica. O professor Jefferson Ildefonso
da Silva sustenta que existe um falso dilema entre educador e professor.
Esse dilema se dilui e perde sua relevncia ao se encarar a formao do
educador para alm do mbito pedaggico ou individualista, para situ-lo na
perspectiva de uma proposta e teoria pedaggica que incorpore o carter
poltico da prtica pedaggica e sua dependncia da prxis social global,
onde se d a luta hegemnica das classes55. Todo professor , por funo,
educador. Para ele o educador um intelectual dirigente, orgnico. Numa
sociedade dividida, ele no neutro. Numa perspectiva emancipadora, o
53
Idem, pp. 18-19. 54
Idem, p. 28. 55
Jefferson Ildefonso da Silva, Formao do educador e educao poltica, So Paulo, Cortez/Autores Associados, 1991, p. 13.
educador um intelectual orgnico das classes populares, a favor dos
interesses das pessoas que necessitam de educao.
Com ele, tambm concorda meu ex-aluno e amigo, a quem ensinei e,
sobretudo, com quem muito aprendi e continuo aprendendo, o professor
Celso dos Santos Vasconcellos para o qual seria um contra-senso pensar que
a classe dominante se disponha a oferecer um ensino popular de qualidade
que desvende as relaes de dominao existentes na sociedade: A escola
para o povo s tem sentido numa nova forma de organizar a sociedade. No
possvel fazer uma escola para todos dentro de uma sociedade para alguns!
Ou seja, a democratizao da escola precisa ser acompanhada de um novo
projeto social56. Formar para e pela cidadania no pode limitar-se a uma
formao genrica para uma sociedade que no existe. Uma educao
cidad precisa ser uma educao de classe.
Vasconcellos insiste na questo do sentido da funo docente. Ele
sustenta que os educadores no esto sabendo articular o novo sentido da
sua profisso sobretudo em funo de seu desgaste profissional. Ele sustenta
que o que vai dar sentido sua profisso justamente a esperana de poder
construir uma realidade diferente e de que a escola pode contribuir para a
concretizao desta sociedade mais humana. O mesmo movimento que
recupera o sentido do trabalho do professor o que d sentido ao estudo para
o aluno. Estamos no mesmo barco; da a importncia de ver no aluno e na
comunidade um aliado (e no um inimigo, como tem acontecido amide)57.
Vasconcellos insiste na necessidade do professor ganhar o aluno para a
indispensvel mudana que deve ocorrer: no se trata mais de estudar
simplesmente para poder garantir o seu lugarzinho no bonde da histria; trata-
se, isto sim, de estudar a fim de ganhar competncia e ajudar a mudar o rumo
deste bonde, ou seja, ajudar a construir uma sociedade onde haja lugar para
todos!58 e cita a seguir um artigo da Folha de S. Paulo, segundo o qual o
56
Celso dos Santos Vasconcellos, Para onde vai o professor? Resgate do professor como sujeito de transformao, So Paulo, Editora Libertad, 1995, p. 49. 57
Idem, p. 52. 58
Idem, ibidem.
Brasil logo ter dois tipos de pessoas: os que no comem, porque no tm o
que comer e os que no dormem, de medo dos que no comem.
Diante desse quadro, o professor competente, profissionalmente, o
professor que sabe, no pode ficar indiferente. Porque ser comprometido,
engajar-se, ser tico, faz parte da sua competncia como professor. Como
profissional do sentido, sua profisso est ligada ao amor e esperana. Ela
no se extinguir enquanto houver espao para a construo da humanidade.
A esperana, para o professor, a professora, no algo vazio, de quem
espera acontecer. Ao contrrio, a esperana para o professor encontra
sentido na sua prpria profisso, a de transformar pessoas, a de construir
pessoas, e alimentar, por sua vez, a esperana delas para que consigam, por
sua vez, construir uma realidade diferente, mais humana, menos feia, menos
malvada, como costumava dizer Paulo Freire. Uma educao sem esperana
no educao.
A educao, nesse sentido, confunde-se com processo de
humanizao. Respondendo questo como o professor pode tornar-se um
intelectual na sociedade contempornea, o gegrafo brasileiro Milton Santos,
falecido no ano de 2001, respondeu: Quando consideramos a histria
possvel e no apenas a histria existente, passamos a acreditar que outro
mundo vivel. E no h intelectual que trabalhe sem idia de futuro. Para
ser digno do homem, qual seja, do homem visto como projeto, o trabalho
intelectual e educacional tem que ser fundado no futuro. dessa forma que
os professores podem tornar-se intelectuais: olhando o futuro59.
Pensar a educao do futuro e o futuro da humanidade pensar
holisticamente, pensar a totalidade. E educar holisticamente estimular o
desenvolvimento integral do ser humano em sua totalidade pessoal -
intelectual, emocional, fsica - relacionada com a totalidade do mundo da
vida - os outros seres vivos, a comunidade, a sociedade - e a totalidade
csmica: a Terra, o universo. Educar holisticamente entender o se humano
59 Milton Santos, O professor como intelectual na sociedade contempornea. In Anais do IX ENDIPE- Encontro Nacional de Didtica e Prtica de Ensino, vol. III, So Paulo, 1999, p. 14.
como um ser que transcende, que ultrapassa todos os limites, at o ltimo
horizonte, como diz Leonardo Boff60.
O professor precisa indagar-se constantemente sobre o sentido do que
est fazendo. Se isso fundamental para todo ser humano, como ser que
busca sentido o tempo todo, para toda e qualquer profisso, para o professor
tambm um dever profissional. Faz parte de seus saberes profissionais
continuar indagando, junto com seus colegas e alunos, sobre o sentido do que
esto fazendo na escola. Ele est sempre em processo de construo de
sentido. Como diz Celso Vasconcellos61, o sentido no est pronto em
algum lugar esperando ser descoberto. O sentido no advm de uma esfera
transcendente, nem da imanncia do objeto ou ainda de um simples jogo
lgico-formal. uma construo do sujeito! Da falarmos em produo. Quem
vai produzir o sujeito, s que no de forma isolada, mas num contexto
histrico e coletivo (...). Ser professor, na acepo mais genuna, ser capaz
de fazer o outro aprender, desenvolver-se criticamente. Como a
aprendizagem um processo ativo, no vai se dar, portanto, se no houver
articulao da proposta de trabalho com a existncia do aluno; mas tambm
do professor, pois se no estiver acreditando, se no estiver vendo sentido
naquilo, como poder provocar no aluno o desejo de conhecer?
Celso Vasconcellos insiste, em seu livro que o papel do professor
educar atravs do ensino62. Ele pode apenas ensinar tabuada, mas s
educa atravs do ensino quando construir o sentido da tabuada junto com seu
aprendiz, po
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