8/6/2019 Cabocla (psicografia Vera Lucia Marinzeck de Carvalho - esprito Jussara)
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CABOCLA
Romance de Jussara
Psicografia deVera Lucia Marinzeck de Carvalho
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Outros livros psicografados pela mdium
Vera Lcia Marinzeck de Carvalho:
Pelo Esprito Antnio CarlosReconciliao
Cativos e Libertos
Copos que Andam
Filho Adotivo
Reparando Erros
A Manso da Pedra Torta
Palco das Encarnaes
Aconteceu
Muitos So os Chamados
O Talism Maldito
Aqueles que Amam
O Dirio de Luizinho (infantil)
Pelo Esprito Patrcia:
Violetas na Janela
Vivendo no Mundo dos Espritos
A Casa do Escritor
O Vo da Gaivota
Por Espritos diversos:
Valeu a Pena!
Perante a Eternidade
Deficiente Mental: Por que Fui Um?
Pelo Esprito Rosngela:
Ns, os Jovens
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Narro a histria de minha vida como falo e escrevo agora, com os
conhecimentos espirituais que hoje possuo, usando termos que Allan Kardec,
tempo mais tarde, codificou na Doutrina Esprita, de fenmenos existentes e
praticados por vrios de ns, negros, e por muitos desde longnqua data. Com
palavreado da poca e caracterstico nosso, dos escravos, iria dificultar a leitura.
Continuo simples, a simplicidade requer aprendizado e eu tenho tentado aprender
no decorrer do tempo.
Dedicamos esta obra a todas as pessoas singelas que esto dando valor na
oportunidade da reencarnao.
Jussara
Inverno de 1998
Dedico este trabalho, com todo o meu amor, ao Gustavo, meu filho
querido.
Vera
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Atualmente, h diversos livros de Histria, inclusive didticos, que esto
resgatando a riqueza da cultura africana e, felizmente, desfazendo algumas idiaserrneas e at mesmo preconceituosas sobre os negros, que foram sendo
alimentadas e tidas como verdadeiras durante muitos anos.
importante lembrar que os africanos sofreram influncia de outros
povos, inclusive dos rabes, antes mesmo de sarem do continente africano. Com
isso as crenas, tradies e religies que eles trouxeram sofreram modificaes ao
longo do tempo.
O editor
Sumrio
1 - A fuga
2 - A cobra
3 - Recordaes
4 - Fatos e fatos
5 - Minha passagem6 -Visitas
7 - Na enfermaria
8 - Fui escravocrata
9 - Acontecimentos no quilombo
10 - Na fazenda
11 - Meu passado com Jos
12 - Trabalho de reconciliao
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A FUGA
"Preciso conseguir! Ir em frente! Meus Deus, me d foras!"
s vezes resmungava, tentando me encorajar a continuar. Estava cansada,
com dores, fome e sede. Minhas pernas continuavam a trocar passos impulsionadas
pela minha vontade forte, vontade dirigida pelo amor, pela necessidade de salvar
aqueles que mais amava: meu filho, minha filha e meu genro.
Estava com vrios ferimentos, os galhos me dilaceravam a carne. Alguns
arranhes eram profundos e sangravam. Doam, mas no importava, no deveriam
me incomodar. Tinha um objetivo, que era me afastar o mais possvel. s vezes
olhava meus ferimentos e segurava o choro, estava muito machucada, mas no
queria me apiedar de mim mesma. Um arranho acima do meu olho direito
sangrava muito, obrigando-me a fech-lo. Tentava sec-lo com uma blusa de minha
filha. Levou minutos para parar de sangrar, quando parou, suspirei aliviada, porm,
continuava a doer, a arder.
Os galhos fechavam a passagem, no tinha nada para abrir caminho e no
podia me dar ao luxo de escolher o melhor lugar para passar. Meu tempo eraprecioso, tinha que continuar a andar e assim fiz.
Tentava abafar meus gemidos, mas de vez em quando saam dos meus
lbios alguns ais. Cada passo que dava era um sacrifcio, dores latejantes nas costas
e os arranhes continuavam, ardiam, doam.
Usava as mos para tentar afastar os galhos, mas eram estas e os braos os
mais machucados.
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Ao entrar na floresta eu marcava um rumo e o seguia, no queria desviar e
continuava a andar... No fcil marcar rumo em mata fechada, mas eu marquei,
tinha o instinto forte do povo indgena.
Por vezes sentia que ia morrer, meu corpo queria parar, no agentavamais, eu respirava fundo e pedia a proteo de Deus.
"Preciso ir! Preciso ir o mais longe possvel! Deus Pai, me ajude!"
E continuava, parecia que, ao respirar fundo, uma energia diferente me
impulsionava, sentia como se estivesse sendo protegida, como se algum com
muito carinho estivesse me ajudando.
"Deus no desampara ningum, Ele me ajudar! Mas e se os que meperseguem pedirem a ajuda de Deus para me capturar? A quem Ele ajudar? -
Pensava aflita. - Deus meu Pai, mas Pai deles tambm. Talvez faa como uma
me que com justia sabe entender uma disputa entre seus filhos e atende aquele
que lhe parece mais justo".
E seguia, andava...
"Uai!"
Um espinho grande entrou no meu brao esquerdo. Tive que pux-lo com
fora, o sangue esguichou. Amarrei as roupas que trouxe nos braos, estas estavam
em tiras e j no me protegiam.
"Au, au, au..."
"Os ces..."
Escutava o latido dos ces e nesses momentos tentava andar mais rpido.
Ao escut-los pela primeira vez, senti mdo, mas tambm alvio, meu plano dera
certo, eles estavam atrs de mim.
"Se me pegarem, ser pior, bem pior!"
E continuava. Comecei a pensar em minha vida. As lembranas vieram e
isso at que me fez bem, parecia que os ferimentos doam menos e a dor nas costas
e pernas ficou mais amena com meu crebro cheio de recordaes.
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Ali estava eu, fugindo. Fugindo? No era bem isso que estava fazendo.
Que me importava agora fugir do cativeiro? No temia a escravido, era livre em
esprito, depois de ter vivido trinta e oito anos como escrava, no importava ser
liberta, tinha poucas iluses, havia sofrido muito e o entusiasmo juvenil daliberdade havia passado. Sabia, tinha a certeza de que ao ter o corpo morto meu
esprito seria libertado, livre igual a um passarinho a voar pelas campinas por cima
das copas das rvores das matas.
Mas necessitava fugir, tinha que andar ligeiro e me distanciar da fazenda
para que meus entes queridos estivessem a salvo.
Fazia mais de um dia que estava andando. Sa da fazenda no dia anterior,de madrugada. Nas primeiras horas caminhei com mais facilidade, depois com
muito esforo e s estava conseguindo ainda porque queria muito, tinha que
continuar andando. Trouxera comigo s uma cabaa de gua. Os alimentos que
conseguimos guardar, meus filhos levaram. Comi algumas frutas que encontrei no
caminho, no queria parar ou desviar, no podia, estavam atrs de mim, iriam me
pegar com certeza, mas precisava prolongar minha captura. Quanto mais
demorassem para me alcanar, maior a chance de meus filhos serem salvos.
"E eles pensam que esto perseguindo os quatro. - Sorri com lgrimas nos
olhos. - Os quatro!"
Recordei os planos de fuga.
"Cabocla - perguntou Dito -, voc no quer vir conosco? Tem certeza de
que no quer mesmo?"
"No, Dito - respondi -, estou velha, ou me sinto velha, e com o meu
problema s iria criar dificuldades e atras-los. Vo vocs, estarei orando para que
tudo d certo".
"Sinto deix-la, mame - falou Tomasa, minha filha, que todos chamavam
carinhosamente pelo apelido de Tobi.
- Tenho receio de que o senhor Lisberto lhe castigue quando derem por
nossa falta".
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"Ele no far isso - respondi. - J me bateu uma vez e quase me aleijou".
"Odeio ele por isso, pelo que fez senhora e ao nosso irmo Manu" - disse
Antnio, meu filho Tonho.
"Precisamos ter cautela - disse Dito -, no bom que nos vejamconversando, podem desconfiar".
Nisso Filo, outra escrava da senzala, aproximou-se.
"O que vocs tanto conversam? Posso saber?"
"Falvamos que, se no chover, as plantaes iro morrer" - disse Tobi.
"Ah, que temos com isso? O que nos importa que eles tenham prejuzo?" -
Falou Filo com desprezo."Filo - disse Tonho -, fomos ns que plantamos e seremos ns que iremos
replantar. Depois, se faltarem alimentos, seremos os primeiros a passar fome".
" verdade! - Respondeu Filo nos observando. -Pensei que estivessem
falando do interesse do senhor Lisberto por Tobi".
Tobi nem respondeu. Filo era uma pessoa boa, trabalhadeira, mas muito
faladeira, tnhamos desconfiana de que ela contava o que ocorria entre ns para o
capataz. Demos por encerrada a conversa e cada um foi para o seu canto.
A fazenda em que vivamos era bonita, grande, havia criaes e muitas
plantaes a perder de vista. Mas a seca estava castigando aquele ano.
Os senhores, donos da fazenda, estavam em viagem pela Europa. Nosso
sinh, Narciso, deixou um primo para cuidar de tudo. Mas quem cuidava eram os
empregados., principalmente dois, o senhor Joo da Tripa, que administrava a
fazenda, e o senhor Lisberto, que coordenava o trabalho dos escravos.
Senhor Lisberto, que passou a ser o nosso terror, era casado, tinha filhos,
mas estava sempre cobiando as jovens negras. Era mau, exigente e rancoroso.
Continuei a lembrar. Embora isso tivesse acontecido anos atrs, ainda doa
e lgrimas escorreram fartas pelo meu rosto. A imagem de meu filho Manu veio
forte, lembrava de cada detalhe do seu rosto, do seu modo meigo e bondoso, do
seu jeito amigo.
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Manu enamorou-se de uma moa, escrava da fazenda vizinha. Querendo
v-la, pediu vrias vezes que o deixassem ir at l e lhe foi negado. Numa tarde,
num impulso apaixonado, saiu sem permisso e foi encontrar-se com ela. No
contou a ningum. Senhor Lisberto julgou que havia fugido e procurou-o pelafazenda. Encontrou-o quando voltava, trouxe-o amarrado e no quis escutar
explicaes. Colocou-o no tronco e comeou a chicote-lo.
Estava lavando roupas quando me contaram. Fui correndo para o ptio
onde ficava o tronco. Gritei desesperada pedindo clemncia. Como no fui
atendida e recebi apenas risadas em resposta, avancei sobre o senhor Lisberto na
tentativa de que ele parasse e me escutasse. Ele ento me deu uma pancada com ocabo do chicote, que era de madeira, nas minhas costas, e ca com forte dor, sem
conseguir me mexer.
"Fique quieta, negra! Seno morre junto com seu filho!"
Ali fiquei, no cho, a dor me tirava o flego. Apavorada, fiquei olhando o
terrvel e injusto castigo. As chicotadas, o barulho do chicote nas costas dele, os
gemidos abafados eram como um delrio, um pesadelo horrvel que nunca mais
esqueci.
Naquele momento, ali, sozinha na mata, me esforando para caminhar, as
lembranas eram to fortes, to ricas em detalhes que me faziam tremer de
indignao. Estava soluando, respirei fundo e parecia ver meu Manu no tronco.
Foram minutos que me pareceram horas. Eu ali, inerte no cho, e meu
filho amarrado no tronco, sendo castigado.
Senhor Lisberto o chicoteou at cansar ou talvez at sua raiva passar. Manu
estava desmaiado. Ento, os outros escravos, que vieram correndo e ali ficaram
vendo horrorizados o castigo, desamarraram-no e o levaram para a senzala, e como
no conseguia me mexer pegaram-me e levaram-me para perto dele.
Manu estava com as costas que era uma pasta sangrenta, havia perdido
muito sangue. Pedi aos que me carregavam:
"Por Deus, me coloquem perto de meu filho!"
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Maria e Jacinta, chorando, fizeram o que pedi: me colocaram na esteira, de
costas, ao lado dele. Enfaixaram-me e me deram ch de ervas para tirar a dor.
Fiquei ao lado de Manu, consegui pegar sua mo.
"Que a dor dele passe para mim, meu Deus. Tenha piedade de ns, quesofremos!"
Jos e outros negros cuidaram de Manu, deram uma beberagem forte para
ele, limparam os ferimentos. Ele voltou do desmaio, comeou a balbuciar palavras
sem nexo.
Meus filhos eram de estatura baixa e Manu era fraco. Temia por ele, achava
que no iria resistir."Cabocla - falou um dos negros que cuidou dele -, o que pudemos fazer
por Manu foi feito, ele est muito machucado e perdeu muito sangue".
Pela manha ele teve febre alta que no abaixou mais, seus ferimentos
infeccionaram.
No me afastei do seu lado, fiquei ali deitada. J me mexia, mas no
conseguia me levantar. Manu delirava, falava alto:
"Vou? Sim, quero! Isso o cu? Quem voc? Branco me ajudando?"
"Manu, meu filho, converse comigo!"
s vezes eu implorava e ele tentava responder a algumas de minhas
rogativas. No conseguia, me olhava somente e foi s uma vez que me respondeu
sorrindo:
"No sofra por mim, mame, no vale a pena. Vou ser muito feliz!"
Foi piorando. Aps trs dias de muito sofrimento, ele quietou e Jacinta me
abraou.
"Cabocla, Manu parou de sofrer!"
No chorei, at senti um certo alvio, meu Manu seria feliz, tinha a certeza.
Fiquei olhando-o. Dois amigos da senzala pegaram Manu, aproximaram-no de mim
para que pudesse beij-lo e foram enterr-lo.
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Sofri muito aqueles dias, tive muitas dores fsicas, mas a dor moral foi bem
maior. Sentia-me como que arrebentada por dentro, me revoltei.
"Por qu? - Indagava. - Por que tudo isso? Por que sermos escravos, ver
entes queridos maltratados?"Ningum me respondia. Abaixavam a cabea e algumas escravas choravam
comigo.
Foi aps chorar muito que a revolta passou e a vida continuou. Mas fiquei
quase invlida. Minhas costas passaram a doer muito, foi com muito esforo que
consegui me sentar e depois ficar de p. Usava uma faixa apertada e s dei alguns
passos doze dias depois. Foi com dificuldade que voltei a andar.Meus dois filhos sofreram muito, tinham medo, choravam, tiveram que
voltar ao trabalho no outro dia e s nos vamos noite. Mesmo cansados,
apavorados, com medo do senhor Lisberto e do castigo, todos na senzala nos
ajudavam noite. Durante o dia s as negras que estavam para ter filhos e as que os
tiveram recentemente nos ajudavam.
No voltei ao trabalho porque provaram ao senhor Lisberto que eu estava
machucada e minhas colegas de infortnio prometeram trabalhar por mim.
Logo que consegui andar, voltei a lavar roupas. Minhas companheiras me
ajudavam, deixando o servio leve para mim. Era grata a elas, agradecia sempre.
Aos poucos melhorei, mas fiquei curvada. As dores iam e vinham; alguns
dias me sentia melhor, outros pior. "Ai!"
Tropecei e senti uma dor forte nas pernas que me obrigou a parar uns
instantes. Passei a mo no lugar dolorido e escutei os ces.
"Preciso continuar! Preciso! Por Tobi..."
Minha filha Tobi estava com quase dezesseis anos, mulata bonita,
despertou paixo no senhor Lisberto. Mas minha filha amava Dito e eles
escondiam esse amor para que o feitor no descontasse sua raiva no pobre rapaz.
"Mame - me disse Tobi, dias antes -, amo Dito e ele me ama, estou
grvida. Entreguei-me a ele para que o senhor Lisberto no fosse o primeiro,
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porque se ele cismar me ter de qualquer jeito. Mas estou com medo de ele
descobrir; ruim como , matar Dito como matou Manu".
Tobi, triste, abaixou a cabea enquanto falava. Tinha o hbito de passar as
mos nos cabelos lisos como os meus."Se Dito morrer, morro junto!" - Exclamou minha menina.
"No - pensei -, no vou agentar v-los ser castigados, no vou!"
Tobi tinha razo. No entendia como o senhor Lisberto ainda no a
estuprara. Achei que era porque a sua mulher, ciumenta, estava vigiando-o ou que
ele estava aguardando alguma ocasio propcia. Fiquei apreensiva ao saber de sua
gravidez. Resolvi ajud-los sem que eles soubessem.Os trs planejaram fugir pelo riacho. No seria fcil, teriam que subir um
morro alto, aps ir pela montanha, onde sabamos existir um quilombo. Ningum
sabia onde ficava e os brancos tinham medo de ir l. Os fazendeiros que tinham
escravos fujes esperavam ajuda de soldados para invadi-lo. Mas o tempo passava e
a ajuda no vinha, e tnhamos conhecimento de que l viviam muitos negros livres.
Muitos escravos sonhavam em ir para l, mas os senhores e os feitores
redobraram a vigilncia, dificultando as fugas e aumentando os castigos. Quando
capturavam os fujes, eram castigados at a morte para servir de exemplo.
"Eles correm perigo, se ficarem aqui certamente iro ser castigados, se
capturados tambm, mas se conseguirem fugir estaro livres" - conclu.
"Mame - disse Tobi -, quando o senhor Lisberto descobrir que estou
grvida ir me bater at que eu diga de quem. Muitos sabem que Dito e eu nos
amamos e, quando de souber, com certeza ir mat-lo. Temos que arriscar. Venha
conosco! No quero me separar da senhora".
"Quando amamos, s nos ausentamos, no nos separamos. Estarei sempre
com vocs, unidos pelo amor. Eu fico!"
"E se ele lhe bater?"
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"Posso dizer a ele que no sabia. Que fugiram pelo riacho e foram para o
quilombo. No se preocupem, ele no ir me bater. Vo com Deus e que sejam
felizes e livres no quilombo."
Marcaram o dia, seria na madrugada do domingo, em que os negros selevantariam mais tarde. Aos domingos era feito um rodzio: folgava-se duas vezes
por ms e trabalhavam-se dois. Havia servios que no podiam deixar de ser feitos,
como tratar dos animais. E aos sbados os empregados da fazenda costumavam
beber noite, reunindo-se para conversar, indo dormir altas horas, e a vigilncia era
menor.
Arrumei escondida alguns alimentos para que eles levassem e os fiz tomarbanho no sbado e colocar roupas limpas. Como planejei, fiquei sem tomar banho
e com a roupa suja. noite, disfaradamente, me despedi deles. No pude abraar
meu filho e nem meu genro para no desconfiarem, mas discretamente abracei
Tobi.
" a ltima vez que eu a abrao - pensei. - Que Deus os proteja!"
Segurei-me para no chorar, olhei-os como que querendo gravar suas
fisionomias dentro de mim.
De madrugada, como planejaram, saram. Eu, que no havia conseguido
dormir, vi seus vultos sarem da senzala cuidadosamente. Dito saiu primeiro, depois
Tonho e Tobi. Era costume algum acompanhar as mulheres, principalmente as
jovens, para ir latrina, e por isso no desconfiariam ao ver Tonho indo com Tobi.
Meu corao bateu apressado, senti a dor da separao, que chegou a ser fsica; me
separava dos meus familiares, daqueles que amava. Mas no chorei, tentei orar,
roguei proteo a Deus para eles. Afastaram-se. Fiquei quieta por minutos.
Acompanhei em pensamento o trajeto deles.
"Agora passam pelo ptio, pelo curral, devem estar ao lado do pomar,
atravessaram a pequena plantao de milho, chegaram ao riacho. Pronto, agora
que devo fazer o que planejei. Que o Senhor dos Cus me ajude!"
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Como no escutei barulho, tive a certeza de que eles conseguiram chegar
ao riacho. Porque, se tivessem sido descobertos, j teria ouvido a gritaria.
Antes de o primo do nosso sinh vir tomar conta da fazenda no havia
fugas, ramos bem tratados e no havia razo para sair de l. A senzala sempre teveum porto que nunca era trancado. Senhor Lisberto at que tentou tranc-lo, mas
no fazia diferena faz-lo ou no, porque era fcil sair de l. Feita de pau e barro,
havia muitos buracos por onde passaramos com facilidade. Para torn-la segura
seria necessrio construir outra e ele no queria dispor de dinheiro para isso,
preferiu punir e vigiar mais.
Levantei-me com cuidado, mas Filo acordou e me olhou. Dei um sinal deque ia latrina, ela se acomodou e pareceu dormir novamente.
Cautelosamente sa da senzala. Havia pegado uma pea de roupa suja de
cada um dos trs e a cabaa com gua. Andei com muita prudncia. Havia
decorado o caminho. Tinha que passar perto da casa-grande, que estava sempre
vigiada, dia e noite, para chegar ao outro lado, o da mata.
"Vou despistar os empregados para facilitar a fuga deles. Quero que
pensem que tomamos esse caminho, no s eu, mas os quatro!" - Resmunguei.
Quase que o vigia me viu. Tremi, estava no cho, me arrastei uns cem
metros. Achando que no seria vista, me levantei e andei cuidadosamente. Tive
dificuldade de passar pelo muro de pedras, no qual fiz meus primeiros ferimentos.
Os joelhos sangravam, mas no me importei.
J estava quase clareando quando entrei na mata.
"Que beleza o nascer do sol! Como a energia do astro-rei nos fortalece!"
Suspirei aliviada por ter chegado at ali, marquei o rumo e me pus a andar
o mais rpido que conseguia. Sempre gostei muito das rvores, de admir-las, sentir
seu frescor, amava as florestas, mas no prestei ateno em nada dessa vez, tentava
passar pelos lugares mais fceis.
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Mas naquele momento, cansada, j no escolhia, ape-nas andava... Meu
desejo era parar, deitar e chorar, mas no podia... As pernas se moviam, ora a
esquerda, ora a direita... Trocava passos...
2
A COBRA
Peguei, assim que entrei na mata, um pau que me serviu de bengala, mas
ele se quebrou no meio.
"Mais esta! E agora?" - Resmunguei.
Olhei ao redor, mas no vi nada que pudesse substitu-lo.
"Como uma faca est me fazendo falta!"
Ns, os escravos, no tnhamos acesso a nada que pudssemos usar comoarma. Ferramentas como foice e enxada eram distribudas antes do trabalho e
recolhidas no fim do dia. E ai daquele que no as devolvesse! Na cozinha da
senzala - assim chamvamos uma parte esquerda, na frente, onde eram preparadas
nossas refeies - havia um grande fogo e duas facas, e a responsvel por elas era
uma negra que seria castigada se deixasse algum peg-las. Um empregado sempre
vinha conferir se elas estavam l. Nem cogitamos peg-las, no queramos a velha e
bondosa Isaura no tronco.
Sem minha bengala, passei a andar com mais dificuldade, mancando muito.
Ouvi os ces, tremi de medo, tinha horror dos enormes cachorros da
fazenda.
"Acho que consegui engan-los, esto atrs de mim, mas devem ter
percebido que perseguem apenas uma pessoa -pensei. - Eles devem ter imaginado,
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quando descobriram a fuga, que, como todos, fomos para o riacho. Mas os ces me
farejaram e eles vieram pela mata atrs de mim e esto atrs de um s".
Sempre que escutava os ces tentava andar mais rpido. Quanto mais longe
eles me encontrassem, melhor, mais tempo teriam os trs para se distanciar echegar ao destino: o quilombo.
Deixava rastro de propsito, pedaos das roupas que levava, e tambm
ficaram manchas de sangue dos meus ferimentos.
"Quando me pegarem iro me torturar - pensei tristemente. - Iro
descontar a raiva de t-los enganado, de, em vez de quatro, pegarem s a mim, e
por saberem que dificilmente iro capturar os outros. Poderei dizer que fiquei paratrs, mas no se enganam os ces, que no acharo mais os rastros. No acreditaro
em nada do que eu falar. No tem importncia, irei morrer de qualquer jeito, ento
no falarei nada, nada!"
Tonho calculou que em cinco dias acharia o quilombo, talvez um ou dois
dias a mais.
"Os feitores vo levar mais dois dias para chegar fazenda e ento, quando
forem procur-los pelo riacho, meus filhos estaro a salvo no quilombo. Consegui
ajud-los, antes eu ser torturada do que eles. Tomara que ao me encontrarem
deixem os ces me atacarem, pois eles me faro em pedaos cm minutos. Ser
prefervel a morte rpida tortura."
Sabia que quando eles queriam torturar era com extrema maldade, extraam
dentes, unhas, queimavam com ferro quente, podiam at furar os olhos.
Gemi e roguei:
"Meu Deus, tenha piedade de mim. Porm, salve meus filhos e no a
mim."
A tarde estava quente, o calor mido me fazia delirar de sede. Tambm
estava faminta.
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"Ser que estou andando em crculos? - Preocupei-me. - No faz mal, no
quero ir a nenhum lugar, se estiver, eles estaro tambm. At quando agentarei
andar?"
Parei noite e, quando no enxerguei mais nada, me deitei no cho etirei um cochilo. Estava aflita e com medo, por isso no conseguia dormir,
descansei pouco e logo nos primeiros raios de claridade me levantei e me pus a
andar. Estava ansiosa para parar novamente, mas a noite demoraria a vir. Meus
perseguidores pararam tambm noite, ningum se aventuraria a andar pela mata
no escuro.
"Se eles no me pegarem esta tarde, iro faz-lo s amanh - conclu. -Meus filhos..."
Tive, noite, ali na mata, um sonho: parecia que eu me desligara do corpo
para ir at meus filhos. Os trs dormiam num vo entre as pedras, estavam
cansados, mas aliviados, ningum os perseguia.
"Ser que meu sonho verdadeiro? - Balbuciei. -Quero crer que sim".
No sabia como, mas tinha a certeza de que eles estavam bem.
Tentei ver a posio do sol entre as rvores e calculei que deveriam ser trs
ou quatro horas da tarde. Foi quando me defrontei com uma pedra grande, num
lugar onde no havia muitas rvores. Vi o cu, o seu azul bonito. No resisti.
"Vou parar um pouquinho! Vou descansar por alguns minutos."
Deitei na pedra e me pus a olhar o cu. O barulho dos ces me alertava que
eles no haviam parado e que a distncia diminua.
Por uns minutos fiquei quieta, esticada sobre a pedra. Resolvi continuar,
encolhi as pernas para me levantar, quando senti uma dor aguda, uma pontada no
tornozelo esquerdo. Olhei assustada e vi uma cobra se afastando, to assustada
quanto eu.
"A cobra me picou! Uma cascavel!"
Ela certamente estava perto de mim e se assustou com o meu movimento
brusco, deve ter se sentido ameaada e me picou.
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"Meu Deus! - Resmunguei. - Irei com certeza morrer. E agora, levanto e
continuo a andar ou fico aqui? - Cheguei a sorrir. - Morrer? Vou morrer de
qualquer jeito e se for por causa do veneno da cobra ser o melhor que pode me
acontecer".Sentia um cansao to grande que s a idia de me levantar e andar me deu
enjo. Resolvi ficar. Acomodei-me novamente, esticando meu corpo cansado.
Sabia lidar com picadas de cobras, j vira companheiros morrerem por
terem sido picados. Tentava aliviar as vtimas desse bicho peonhento, mas raras
vezes conseguia salv-las se a cobra era mesmo venenosa.
Aprendi com os negros da senzala a fazer remdios, chs, como tambm acolocar ervas no ferimento. E ali, longe de tudo, nada podia fazer por mim, nem
gua tinha para beber. Ao lembrar-me da gua, desejei imensamente saborear esse
lquido delicioso.
"gua, gua - falei. - Que gostoso poder tom-la. gua bno! Que
grande bno! to bom sabore-la!" Ergui a cabea e olhei o ferimento, l estava
o sinal dos dois dentes da cobra. Fiquei quieta ali na pedra, no tinha nimo nem
para me mexer. E as lembranas vieram...
A nica pessoa que me chamava de Jussara era minha me adotiva, a meiga
e bondosa Jacinta.
"Jussara - dizia ela -, foi seu pai que deu esse nome a voc. Ele era livre,
branco, empregado da fazenda. Quando o sinh Silva comprou este lugar, ele veio
junto como empregado. Aqui ele se apaixonou por sua me, a ndia Japira. Foi um
amor lindo e voc nasceu. Quando sua me morreu, seu pai perdeu a razo, parecia
que ia enlouquecer de dor. Acabou pedindo ao sinh para fazer um servio
perigoso e morreu assassinado. Acho que morreu feliz para ir se encontrar com sua
me. Mas, antes de ir para o tal servio, me pediu para que tomasse conta de voc.
Jussara, voc no escrava! cabocla, filha de branco e ndio".
"No sou escrava, mas vivo como uma!" - Falava sempre.
Jacinta tentava me confortar:
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"Jussara, o sinh Silva sabia disso. Quando seu pai morreu servindo-o, ele
at me falou: 'Negra Jacinta, crie a menina do Limo, ela livre, mas o que ir fazer
com essa liberdade sendo to pequena? Ela viver aqui com voc, na senzala, e
depois veremos'."Quando encarnada, nunca soube o nome do meu pai, s seu apelido:
Limo. Ele era chamado assim porque, como me contaram, um dia ele confundiu
laranja com limo. Foi alvo de risadas e brincadeiras, e ficou o apelido. Ele se
chamava Joo.
Tinha oito anos quando o sinh Silva desencarnou e seu filho, sinh
Floriano, como herdeiro, ficou dono de tudo.Fui criada como escrava e era tratada como uma. Estava com doze anos
quando um dia, estando trabalhando na colheita de milho, o sinh Floriano
aproximou-se de mim, verificando o trabalho. Aproveitando a oportunidade,
mesmo com medo, lhe falei:
"Sinh, por favor, posso lhe dizer algo?"
"Diga, negra!" - Respondeu ele me olhando.
" que no sou negra, sou filha de um branco, ex-* empregado da fazenda
do seu pai, com uma ndia."
"Nota-se pelos cabelos lisos que filha de ndia. O que voc quer,
Cabocla?" - Indagou o sinh.
"Ser livre!"- Respondi baixinho.
"Livre? Para qu? Aqui voc come, tem lugar para dormir. Voc pensa que
irei sustent-la vagabundeando? Se no quiser trabalhar, no ir comer. O que far
com sua liberdade? Vamos, diga!" - Falou meu sinh, j irritado.
"Bem, no sei..." - Respondi com medo.
"Ento fique como est e no me encha!"
"No justo! Vivo como escrava sem ser uma!" -Falei.
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"No me faa perder a pacincia. O que sabe voc de justia? Acha injusto
eu tratar voc como escrava sem ser? Poderamos ter deixado voc morrer de fome
e no o fizemos."
"Mas que no sou negra e nem escrava!" - Repeti."Voc j disse isso e eu lhe digo, se tratada com uma, escrava! Chega,
menina! Tenho o que fazer. Saia da minha frente!" - Gritou o sinh.
Como no sa, um feitor que o acompanhava me deu uma bofetada no
rosto e eu ca, ele ia me chutar quando o sinh ordenou:
"Pare! S essa bofetada est bom. E voc, menina, decida, ou fique aqui
como escrava ou v embora se quiser a liberdade."Lgrimas caram pelas minhas faces e o sangue escorreu do lado esquerdo
de minha boca. Limpei-a e continuei meu trabalho.
Naquela noite chorei muito nos braos de Jacinta.
"Cabocla - disse Maria bondosamente -, no chore, seu destino ser
escrava sem ter nascido uma. Voc pode ir embora. Mas como ir? Para onde? Os
perigos so muitos para uma menina que logo ficar mocinha. O que fazer loira da
fazenda? Aqui voc tem a gente, tem Jacinta, que a ama como me, conhece todos
e conhecida. Tem lugar para dormir e alimentos. O que far se sair daqui? Ir para
a cidade? Eu no conheo a cidade, nem sei como , aqui ningum sabe ao certo,
s temos as informaes de Onofre, que veio de uma. Diz ele que l estranho,
muitas casas, uma ao lado da outra, muita gente branca e escravos. No deve ser
bom para uma menina sozinha. melhor que fique aqui".
"Como escrava sem ser?" - Questionei.
Maria me abraou e disse carinhosamente:
"Somos o que podemos ser. Se no escrava e no consegue viver de
outro modo, de que lhe adianta ser livre? No fique triste, Cabocla, aceite o que a
vida lhe oferece."
"Voc, Maria, sempre foi, conformada" - disse Filo, que estava
escutando.
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"Tento ser paciente, Filo - respondeu Maria. - De que adianta viver
reclamando, querendo ser o que no somos? Aprendo muito nessa senzala, com
essa vida".
"Voc, Maria, sempre fala esquisito. Aprende! O que pode aprender comoescrava? A carpir, lavar roupas, ter filhos?" - Indagou Filo.
" verdade, Maria - falou Jacinta. - Voc fala muitas coisas esquisitas que
no entendo. to boa e conformada".
"No falo nada de estranho - replicou Maria- que sonho sempre..."
"Sonhos esses bem estranhos" - falou Filo.
"Tambm os acho estranhos - repetiu Maria. - Sonho sempre que j fuiuma sinh, passei a vida toda sem fazer nada, nem de bom, nem de mau, uma
preguia s. Esqueci de trabalhar, ser til, e sofri por isso. Agora, como negra e
escrava, trabalho, ajudo os outros, os doentes, benzo, fao chs que so remdios
que curam, sinto-me til e no temo a morte, estou tranqila. Aprendo sim, Filo,
mesmo forada, trabalho muito".
"Se seus sonhos so verdadeiros, voc j foi uma sinh. E agora prefere ser
escrava. Quer continuar sendo uma?" -Perguntou Filo, confusa.
"No sei explicar direito - respondeu Maria. - Certamente que eu queria ser
uma sinh, ter roupas bonitas, me alimentar bem, ter um quarto s para mim. Mas
sinto que j fui uma e que tudo passou, que todo o conforto que tive no me serviu
de nada. A morte para todos e quando ela vem modifica tudo. Morre pobre,
morre rico. Nosso ex-sinh no morreu? Meu pai escravo no morreu? Tudo o que
nasce morre, temos uma alma e vamos com certeza continuar vivendo. E acho que
aquele que preguioso, nada fez de til, sente-se vazio, triste e aborrecido, logo,
infeliz. J aquele que foi til sendo sinh ou escravo est contente, esse
contentamento vem l do ntimo, da alma. o que sinto nos meus sonhos, eu,
como sinh, tinha tudo, mas era infeliz, vazia, e agora que nada tenho estou
satisfeita comigo, tranqila, e sei que serei feliz".
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"No entendo seus sonhos - disse Jacinta. - Ou ser que os entendo? Estou
me lembrando agora de Nau, um negro que viveu aqui quando eu era menina. Ele
veio de longe, de um lugar com nome esquisito. O feitor dizia que ele era da
frica. Nau falava de um modo estranho, s vezes no conseguia entend-lo. Masele dizia que sua terra era muito linda, tinha animais grandes e bonitos. Dizia
sempre que, quando a gente morre, deixa na terra o corpo apodrecer e vai para um
lugar por algum tempo, e depois volta e nasce em outro corpo1. Por isso se pode
ser sinh, morrer e nascer escravo e vice-versa. Riam dele, eu o achava engraado,
mas nunca me esqueci de suas palavras. Talvez esse negro estivesse com a razo, e
seus sonhos, Maria, no sejam to estranhos. Se Deus bom e misericordioso, porque nos fez escravos? Ser que Ele cria uns para servir a outros? Por que essa
diferena? Se Ele no justo, no Deus e a Ele no existe! Se existe e justo, tem
que haver um motivo para essas diferenas. Agora, se acreditar que o esprito, ns,
nascemos muitas vezes, a escravido pode ser uma ocasio de aprendizado, de fazer
preguiosos trabalharem".
"Vocs falam muito e no acham soluo para o meu problema" -
resmunguei, sentida.
"Minha filha, melhor voc ficar aqui conosco - falou Jacinta me
abraando. -No quero me separar de voc! Maria tem razo. De que adianta ser
livre se no tem para onde ir?"
"Cabocla, sabe que me revolto por ser negra e escrava, queria ter nascido
filha dos sinhs, mas tambm no vejo outra soluo para seu caso, deve ficar aqui
conosco na senzala e como escrava" - opinou Filo.
Chorei muito naquele dia, resmungando:
"Se no tivesse ficado rf no estaria sendo tratada como escrava. Meu pai
certamente teria cuidado de mim."
O tempo passou e acabei por aceitar a situao.
"Minha infncia! Balbuciei baixinho. - No posso reclamar de minha
infncia!"
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I- Muitos negros vindos da frica tinham conhecimentos sobre vrios assuntos,
principalmente os africanos pertencentes a algumas tribos. Nau foi um rei em sua aldeia, era um
esprito que em existncias anteriores teve a compreenso da reencarnao e nessa, com o sofrimento
que a escravido lhe- imps, recordou. (Nota da Autora Espiritual)
Falava devagar, estava ofegante, respirava com dificuldade e fazendo
barulho, suava e ansiava por gua, minha boca estava seca. Levantei a cabea, senti
tontura e escutei os ces mais perto.
As lembranas de minha infncia, a imagem de cenas vividas, vieram
fortes.Brincava com a garotada na senzala, era amiga de todos. Jacinta cortava
meus cabelos bem curtos para evitar falatrio, porque os tinha diferentes dos
outros.
Gostava muito de ir ao pomar, subir nas rvores, colher frutos. Fazamos
armadilhas para passarinhos, mas eu acabava soltando-os, no gostava de ver
animais presos.
Brincvamos que ramos os sinhs e eu gostava de imitar o padre que vira
somente duas vezes, que fora benzer a fazenda. Pegava um galho em que deixava
umas folhas na ponta e o balanava, falando enrolado. Ramos, achando graa.
Ns, as crianas, ramos bem alimentadas e vestidas, andvamos soltas
pela fazenda. Os adultos tambm tinham lazer, s que estavam proibidos de
realizar os cultos africanos e eles foram esquecidos.
Desde pequena gostava de um negro, Jos, que era casado e tinha filhos.
Quando menina, queria que ele fosse meu pai; adolescente, o quis para marido.
"Jos, Jos... - Balbuciei. - Meu primeiro e nico amor..."
Mas Jos era srio,trabalhador e bondoso, estava sempre acalmando os
negros, ajudando todos. Um dia, um de seus filhos foi ferido com a enxada.
Cuidaram dele na senzala, mas o ferimento infeccionou e ele ficou mal. Jos pediu
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ajuda ao nosso sinh, este nem respondeu e o mocinho desencarnou. Jos chorou
muito, ficou quieto e tristonho por dias, escutou muitas ironias, como:
"Voc, Jos, sempre nos pediu pacincia, sempre fez tudo para os sinhs e
agora, quando precisou deles, nada fizeram por voc, nem foram buscar obenzedor na outra fazenda e nern chamaram o mdico da cidade" falou um
jovem amigo do mocinho morto.
"Chamar mdico para negro, s na sua cabea" - retrucou uma negra.
"Mas para Jos bem que poderia - opinou uma escrava. - Ele sempre foi
exemplar".
"Mas negro e escravo!" - Disse um negro maldosamente.Jos no respondia a nenhum comentrio. Sua esposa -Morou muito pelo
filho morto. Eles tinham oito filhos. Ela, desesperada, disse:
"Eu no terei mais filhos, no vou dar mais escravos para servir os sinhs,
que nem cuidam de ns."
Tive vontade de consolar Jos, mas no o fiz, evitava falar com ele. E a
esposa dele cumpriu a promessa, passou a dormir com as mulheres sem
companheiros e no teve mais filhos.
Algum tempo depois da morte do filho de Jos, reunidos aps um dia de
trabalho, ele disse:
"Sofri, sofro muito com a morte do meu filho. Acredito em Deus e O acho
justo. Estive pensando e cheguei concluso de que a morte, para os bons, no
castigo, , deve ser, um acontecimento bom. Mas a morte no deve ser voluntria,
no devemos acabar com a nossa vida, cada um tem um tempo certo para ficar no
corpo fsico. Devemos nos conformar com a vida que temos, porque no Deus
quem escolhe nossa sina, a gente que faz por merecer t-la de um modo ou de
outro. Meu filho morreu jovem, sentiu muitas dores, mas no momento da morte
estava tranqilo e agora deve estar num bom lugar."
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"Ora, Jos, o que nos importa morrer e ir para um bom lugar! - Exclamou
uma negra com ironia. - Ir para o cu dos brancos? Se formos para l,
continuaremos servindo!"
Jos a olhou por um instante e respondeu tranqilo:"Minha cara, Deus, ao criar tudo, a Terra, o sol, as estrelas, no estava
servindo? Tudo isso no foi um trabalho d'Ele? Por que ns no podemos servir?
Tenho a impresso de que h apenas um cu para onde vo todos os homens bons,
sejam eles brancos ou negros. E que este cu temporrio, porque aqui, na Terra,
que acertamos nossos erros. No sei por que, mas acredito nisso."
"Que ningum da casa-grande escute isso - disse Jacinta. - Os sinhs noquerem que se fale sobre isso. Eles no acreditam. Talvez porque no tolerem
pensar que j podem ter sido negros e escravos ou que podero vir a ser".
,"Mas, se pensarmos que o esprito tem muitas existncias fsicas em
corpos diferentes, a gente cr que Deus justo e bondoso" - falou Maria.
Escutei a conversa atenta, sem coragem de opinar. Achava que, se Deus
era justo, Ele no ia fazer diferena entre seus filhos, e se estas existiam era porque
ns mesmos as fizemos.
Continuei a amar Jos, nunca fiquei sabendo se ele soube ou no desse
meu amor, nunca me deu ateno e nem conversou comigo a ss. E ele continuou
sempre sendo o amigo de todos de todas as horas.
Caolho interessou-se por mim. Chamava-se Jernimo, mas, como tinha os
olhos tortos, todos o chamavam por esse apelido. Era um rapaz simptico.
Acabamos por namorar e at gostei dele, passamos a viver como marido e mulher.
Tivemos trs filhos, deixei os cabelos crescerem e nem falava mais que no
era escrava. Como no ser, se era casada com um e os filhos eram mulatos e
escravos?
Um dia Caolho, indo atrs de uma vaca, caiu do cavalo e fraturou a perna,
o fmur, na altura dos quadris. Ficou imobilizado, cuidamos dele, mas a perna
gangrenou e, como no tnhamos recursos para cort-la, a doena se espalhou
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rapidamente pelo corpo. Caolho sofreu muito. Fui afastada do trabalho para cuidar
dele e o fiz com toda dedicao e carinho.
"Cabocla - disse ele -, devo partir, vi hoje ao meu lado minha me e meu
amigo Tiu, que esto mortos h tempo. Eles me disseram para ter calma que logomeu sofrimento ir acabar e que iro me levar para um lugar onde no terei mais
dores. Confio e no tenho medo. Cuide dos nossos filhos, olhe sempre por eles".
Fiz que sim com a cabea e comecei a chorar. Ele comeou a delirar,
desencarnou tranqilo e suas ltimas palavras foram:
"Me, eu vou!"
No quis mais me unir a ningum, aprendi ento a cuidar dos doentes epassei a faz-lo com carinho.
Voltei a me lembrar de Jos, sempre calmo, tranqilo, conselheiro da
senzala. J estava velho e eu o respeitava e admirava. Agora, ali deitada naquela
pedra, fraca, compreendi que meu amor por Jos sempre foi uma jia que guardei
no fundo do meu ser.
"A cobra! Seu veneno est me matando! Bendita ou maldita? Nem uma
coisa nem outra, ela s um animal que, se sentindo ameaado, me picou. Talvez
seja melhor morrer pelo seu veneno que nas mos dos feitores. Deus
misericordioso, teve, tem misericrdia de mim. A cobra..."
3
RECORDAES
"Por que ser que recordo tanto? - Indaguei-me. - Ser porque estou fraca?
Ser o veneno da cobra? No, j o fazia antes de ela me picar. Essas lembranas me
so agradveis, no me sinto s..."
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S que as recordaes no vinham em seqncia; me lembrava de fatos
ocorridos anos atrs e outros que tinham acontecido havia apenas alguns dias. As
cenas iam e vinham na minha memria e me deixei envolver, pois me pareciam to
reais que era como se eu as estivesse vivendo novamente.O sinh Floriano era mal-humorado e resmungo, mas boa pessoa. Como
j mencionei, naquele tempo no era ruim nossa vida, a dos escravos da fazenda.
ramos bem alimentados, vestidos, tnhamos folgas e festas. Era raro haver
castigos, a senzala era grande, espaosa. No havia abusos sexuais. Mas eles, muito
catlicos, proibiram nossos cultos e, embora ns no entendssemos a religio
deles, tnhamos que dizer que tambm ramos catlicos."Ser que esse Jesus morreu por ns tambm, os negros?"
Negrito, um jovem escravo, estava sempre indagando e ningum sabia
responder. A sinh, a esposa de sinh Floriano, estava nos ensinando sua religio.
Ela, quando tinha vontade, nos reunia aos domingos tarde e nos falava de sua
crena ,nos ensinava a orar, mas era difcil decorar aquelas oraes grandes que no
entendamos. Rezvamos pela metade, s vezes modificando a prece. Sorri ao
recordar. Uma vez, uma amiga minha rezou:
"Pssaro de Maria, cheio de graa..."
A sinh ficou brava e ela perguntou:
"Ave no pssaro?"
A sinh no respondeu e ordenou:
" ave e acabou..."
Acho que nem ela sabia que ave era no sentido de salve.
Um dia Negrito perguntou sinh aquilo que tanto o incomodava:
"Jesus ou no o salvador dos negros?"
"No - respondeu a sinh - , acho que no. Creio que no havia negros
naquele tempo".
"Um dos reis magos no era negro? Ouvi o padre falar isso quando ele
esteve aqui no Natal" - disse Maria.
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"Bem, no sei - respondeu a sinh. - Pode ser que sim, pode ser que no.
No quero que pergunte mais nada, vamos aprender orar".
No perguntamos mais nada. Jacinta comentou aps a aula:
"Esse Jesus estranho, poderoso e foi morto na cruz...""Para nos dar exemplo - disse Maria. - Ele foi humilde e no estranho".
"Jesus nasceu para nos ensinar, certamente incomodou a muitos com Suas
palavras e por isso morreu - disse Jos, concentrado. - Acho que no foi Sua morte
a passagem mais importante de Sua existncia. Penso que foi Sua vida, o que fez, o
que falou, o que ensinou. Muitos focalizam Sua crucificao como o ponto
principal, esquecendo-se de Seus ensinamentos. A sinh at chora ao contar Suasdores, mas diz Seus ensinamentos sem emoo. Concordo, Jesus sofreu, mas no
vemos tantos aqui sofrerem tambm? No sabemos de muitos negros que morrem
nos troncos, em torturas? Claro que no so como Jesus, mas so filhos de Deus
tambm. O importante o que Ele ensinava, Sua orientao, e devemos seguir Seu
exemplo. Gostaria de saber mais, tudo sobre Jesus. Que homem excepcional foi
Ele!"
Concordei com Jos, embora tenha ficado quieta. Achei que a maior lio
que Jesus nos deixou foi que Ele amou muito mais do que foi amado. Foram muito
boas aquelas aulas, aprendi a amar Jesus e Maria, Sua me.
O sinh Floriano desencarnou e a sinh foi morar com a filha longe da
fazenda, e seu filho, sinh Narciso, veio com a esposa tomar conta de tudo.
Esse novo sinh era bom, s que no ligava para a fazenda e eram os
empregados que cuidavam de tudo.
O sinh Narciso e a sinh Frano tinham uma histria interessante. O
sinhozinho Narciso, na idade de casar, no o fez. A famlia havia tentado arrumar
casamento para ele, porm o sinhozinho recusou-se a aceitar. Comentavam em
cochichos que ele no gostava de mulheres. Os pais sonhavam em v-lo casado e
com filhos. E, numa viagem que ele fez Frana, voltou casado. Ele deixou a
esposa no Rio de Janeiro e veio fazenda dar a notcia aos pais. Contou & que
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ela, a esposa, era de famlia nobre, mas arruinada, e que estavam muito
apaixonados. Os sinhs foram corte conhecer a nora. Parece que a aceitaram e o
casal ficou morando no Rio de Janeiro. Com a morte do sinh Floriano e a sinh
indo embora da fazenda, eles tiveram que ir morar nela. E era Filomeno, um velhoempregado, quem cuidava de tudo.
A francesa, a nova sinh, despertou curiosidade em ns. Era bonita, loura
de olhos claros, alegre e risonha, os dois pareciam se dar bem. No tinham filhos.
Achvamo-la estranha, no tinha nenhuma escrava para ajud-la a se vestir, a se
banhar, e as escravas que serviam a casa-grande comentavam que ela tinha algumas
atitudes diferentes. As lavadeiras afirmavam que ela no tinha menstruao. Nosprimeiros meses at pensamos que estava grvida. Depois conclumos que a sinh
deveria ter alguma doena, mas ela parecia saudvel. Era muito simptica, tratava
todos bem, passeava a p ou a cavalo pela fazenda e levava sempre algumas
escravas com ela. Ria e brincava muito. Ela se chamava Georgette, mas passamos a
cham-la de Frano; no comeo escondido, depois ela veio a saber, gostou do
apelido e todos ns passamos a cham-la assim, com a sua aprovao.
Foi um perodo feliz, em que ouvamos sempre sua risada alegre e
escandalosa. Mas eles resolveram ir para a Frana numa longa viagem, ficando em
seu lugar um primo do sinh Narciso, o cruel sinh Honorato, que tinha idias
diferentes em relao escravido.
Sua primeira providncia foi substituir os empregados da fazenda por
outros que vieram com ele. Despediu Filomeno com a desculpa de que ele estava
velho e levou-o junto com a esposa para a cidade. Ficamos sem proteo, no
tnhamos a quem nos queixar. Diminuiu nossa alimentao, passou a exigir mais
trabalho e comearam os castigos. Muitos velhos escravos voltaram a trabalhar.
Tnhamos saudade do tempo antigo. Foi um perodo difcil, em que muitos de ns
passaram a desejar a liberdade e a querer fugir.
Ficamos sabendo que um quilombo foi formado no alto da montanha e
que muitos escravos da regio tinham ido para l.
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Na nossa fazenda houve uma fuga de onze escravos, que no foram
capturados. A o sinh Honorato adquiriu ces ferozes, contratou mais empregados
e a vigilncia aumentou. E foi logo aps a fuga desses escravos que meu filho saiu
sem permisso e foi castigado para servir de exemplo.No gostei do empregado Lisberto desde a primeira vez que o vi, nenhum
dos escravos gostou dele. Fiquei apreensiva quando ele comeou a se interessar por
Tobi. Minha filha era muito bonita, mulata com os olhos castanho-claros, com
traos do av branco e corpo bonito.
Lisberto no havia feito Tobi de amante porque a esposa do sinh
Honorato no gostava, no queria abusos sexuais, mas ela viajava muito e, comoestavam ocorrendo muitos abusos, tudo indicava que poderia acontecer de tudo
naquela fazenda e que nem a esposa do Lisberto, que era jovem e bonita, salvaria
Tobi das taras desse feitor desumano.
Torcamos para que o casal voltasse logo, mas eles estavam sempre dando
notcias adiando o regresso.
Comeamos a perceber que o sinh Honorato estava roubando o nosso
sinh, depois tivemos a certeza. Mas no tnhamos como avisar nosso sinhozinho
Narciso, ningum sabia escrever na senzala. Tnhamos que ficar quietos, tentando
nos adaptar nova administrao.
Parei de recordar por instantes, olhei o cu. Como olhar o infinito nos
acalma. Estava me sentindo muito mal, no tinha foras nem para me mexer.
Conclu: "Logo irei morrer!"
Todos ns sabemos que iremos morrer, que o corpo fsico que usamos,
ns, espritos, para nos manifestar no mundo fsico, ir um dia parar suas funes
biolgicas, mas quando esperamos pela morte com tempo determinado outra
coisa.
Conhecendo os efeitos do veneno, sabia que logo iria falecer. Fiquei
arrepiada.
"Calma, Jussara - resmunguei para mim mesma. -Todos morrem..."
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Por que ser que a morte nos causa pnico? Ser que por no saber o que
se passar conosco? Meu instinto de preservao veio forte.
"No quero morrer!" - Exclamei.
"Mas ser que nesse caso querer poder?" - Pensei."No!" - Cheguei a balbuciar.
No tinha poder sobre a vida ou a morte. E a morte uma continuao da
vida.
"Tudo passageiro!"
Realmente, a vida uma s, mudamos a forma de viv-la. Mas naquele
momento, ali, sozinha, esperando essa mudana, tive perodos que foram instantesde medo e pavor, mas depois de paz e tranqilidade, em que senti que algum me
amparava, me transmitia profundo e puro amor. Senti que deveria me ligar a esse
sentimento que me acalmava, mas vacilava e esperava... E esperar sempre
angustioso. Aguardar a morte me foi estranho. No estava esperando por algo
qualquer, ou por uma pessoa, mas pelo desconhecido. O que viria a ser essa
mudana? Vieram as indagaes. Ser que iria acabar? Desaparecer para sempre?
"No - conclu. - Isso no! Sinto meu esprito, sinto-o dentro desse corpo
cansado. A vida continua!"
Iria para o inferno? Cu? No fui to m para ir para o inferno e nem to
boa para merecer o cu. Que vida iria ter? Iria me encontrar com aqueles que amei
e que j morreram?
Nesse momento os erros nos afligem e desejamos no t-los cometido. E
os acertos nos do tranqilidade.
"Poderia ter sido melhor, ter feito mais o bem, ajudando mais os outros."
Quase sempre desejamos isso, felizes os que aproveitam a oportunidade,
porque o tempo passa e no volta mais. E a morte do corpo fsico chega, levando-
nos a desencarnar, a viver de outra forma, que ser de acordo com nossas aes.
"O que fiz de errado? - Indaguei. - No sei... Ser que amar um homem
que tem uma companheira foi um erro?"
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Envolvi-me novamente nas recordaes...
Nunca aconteceu nada entre mim e Jos. Foi somente eu a am-lo. Ele era
muitos anos mais velho que eu. Quando pequena, Jos j era adulto e eu o olhava
admirada. Quando ele se juntou com Zefa, fiquei triste, tinha quase nove anos echorei escondida. Acompanhei sua vida, sabendo tudo o que acontecia com ele.
Era discreta, tinha horror de que descobrissem meu amor. Acho que ele
desconfiou, porque um dia estava sozinho encostado na cerca junto senzala, me
viu olhando para ele, por um instante pensei que fosse me falar algo, mas afastou-se
rpido e desde aquele dia me evitou.
"No, meu amor por ele no podia, no pode ser errado."No houve nenhuma ao errada decorrente desse sentimento. No fiz
ningum sofrer por isso. Foi algo belo, que por muitas vezes me incentivou a viver,
alimentou minha iluso, me deu esperanas. Foi um amor lindo!
Os anos se passaram e eu fiquei mocinha. Jacinta sempre me dizia:
"Jussara, voc est na idade de casar. Tem alguns pretendentes, escolha um
para ser seu marido." "Casar? Como casar?" - Indagava rindo. "Aqueles que se
ajuntam aqui na senzala como o casar dos brancos. So companheiros e isso
que importante" - respondeu Jacinta pacientemente.
"De fato - disse nossa amiga Maria -, todos os casais deveriam ser
companheiros, amigos que se ajudam enquanto esto caminhando juntos. O amor
paixo deve ser substitudo pelo amor desinteressado, sem apego. Quando um casal
se une s por fatos externos no h nada nessa unio que dure ou permanea. no
ntimo que est o verdadeiro amor carinho, que no passa com o tempo".
Achei que Jacinta tinha razo. Pensei bastante. Amava e no era
correspondida, ele no seria meu companheiro, estava ligado a outra. Resolvi
escolher dentre os jovens solteiros um companheiro.
"Senzala, meu lar! A moradia que tive durante esta vida!"
A senzala era a casa de todos os escravos da fazenda. Uma grande moradia
onde havia muitas pessoas que pensavam diferente. s vezes l era agradvel, havia
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demonstrao de afeto, principalmente entre pais e filhos. Tambm foi bero de
grande amizades, lugar em que havia sempre ocasio de fazer o bem, ajudar o
prximo.
Mas tambm s vezes tornava-se desagradvel por serem muitos adesfrutar de um mesmo espao que nem sempre era respeitado. Havia muitos
desentendimentos, fofocas, discusses e at brigas. E os motivos eram diversos,
mas o maior era a inveja que um tinha do outro. Tanto que os escravos que serviam
na casa dos sinhs eram invejados e iam pouco senzala, eles dormiam no poro
da casa-grande.
Davam muitos palpites um na vida do outro, havia quase sempre brigasentre casais, at algumas traies, que para no acabar em mortes eram apaziguadas.
Sei que existiram muitas senzalas no Brasil, em inmeras fazendas, e que
no foram idnticas e os escravos foram tratados de muitas maneiras. Mas
descreverei aquela em que vivi.
A senzala era feita de barro e pau, tinha espao para todos. Havia o canto
para a cozinha, uma latrina, que era uma fossa funda cercada de tbuas e ficava do
lado direito, frente. Era usada s em casos especiais: por doentes ou noite. Isso
evitava que a senzala ficasse com cheiro ruim. As outras latrinas eram fossas
externas, do lado esquerdo, a alguns metros de distncia, entre as rvores. Tinha
seis casinhas de barro, trs para as mulheres e trs para os homens.
Tomvamos banho no riacho, as mulheres o faziam de roupa, que
trocvamos numa casinha, que tambm era de barro e pau, perto do riacho. Esses
banhos, dependendo da poca, eram de duas a trs vezes por semana.
Guardvamos nossos pertences, sempre poucos, nas nossas esteiras de
dormir.
Ns, as mulheres, sempre deixvamos a senzala limpa, varrida e
organizada. As jovens colhiam flores e as colocavam por toda ela, enfeitando-a.
Mas, mesmo assim, seu cheiro no era agradvel. Mesmo o espao sendo grande,
era para muita gente.
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Houve senzalas em que os escravos eram presos, s vezes pequenas para
muitos, onde as latrinas ficavam na parte interna, mal ventiladas, o odor era
realmente desagradvel.
No calor, a senzala em que vivi era abafada, no inverno entrava muitovento, era fria. Estvamos sempre reclamando.
Mas foi o lar que tive, uma escola na qual aprendi muito, como a conviver
com outras pessoas, a respeitar quem no pensava como eu, a repartir, a ser
solidria e a dar valor a um lar, a uma casinha simples em que morasse s minha
famlia. Era isso que desejava quando estava na senzala, foi a isso que aprendi a dar
valor.
4
FATOS E FATOS
"Ser que eu, ao morrer, virarei alma penada? No quero! Certamente irei
com uma alma boa para algum lugar. No quero assombrar ningum.
Assombraes..."
Lembrei-me de um fato que ocorreu quando ainda era pequena. Por causa
de uma negra faceira, dois escravos brigaram, se machucando. Dias depois, um
matou o outro pegando uma enxada e golpeando o rival na cabea. O escravo que
matou ficou preso no tronco por no ter outro lugar para ficar. A escrava escolheu
um terceiro, outro jovem, para ser seu companheiro. O assassino ficou preso s
uma semana. Achando que estava solucionado o problema, o sinh mandou solt-
lo. Mas, ao ser liberto, ele pegou um pedao de pau e foi tentar matar a jovem que
amava. Ela gritou e um feitor foi acudi-la, sendo atingido por uma paulada. Um
outro feitor pegou uma faca e matou o negro assassino. Foi um fato triste, e os pais
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dos que morreram sofreram muito com o ocorrido. Nada aconteceu com a escrava
e o feitor atingido s se machucou.
Meses depois, a alma desse escravo passou a assombrar a fazenda. Eu tinha
muito medo. Ns, as crianas, nem ficvamos mais ao escurecer na porta dasenzala. Foram muitos a ver o escravo com a faca no peito, com o olhar rancoroso
e blasfemando.
O sinh Floriano mandou chamar Maria e outros escravos mais velhos na
casa-grande e lhes pediu:
"Dem um jeito na alma desse escravo! Faam o que for preciso para que
ele no assombre mais. Todos da fazenda esto amedrontados e essa alma penadateve a ousadia at de vir assombrar a casa-grande. Chamei o padre da cidade, ele
veio benzer, orou, mas j no outro dia a assombrao estava aqui novamente."
"Bem - falou Maria -, que no se manda em esprito como se manda em
ns. No sabemos o que fazer". "Ele era escravo como vocs e devem se
entender. Minha esposa est com medo e no quer ficar aqui. Faam o que for
preciso!" - Exigiu o sinh.
Joaquim aventurou-se a falar:
"Sinh Floriano, tenho um irmo que mora na Fazenda Santa Helena, ele
sabe fazer esse trabalho, ele e alguns amigos conversam com os mortos e creio que
eles podero falar com essa assombrao e orient-la para que no assombre mais."
"Voc deve ir l hoje mesmo com o capataz. Vou escrever ao meu
compadre, o dono da Fazenda Santa Helena, para deixar que seu irmo e amigos
venham aqui nos ajudar" - disse o sinh.
E assim foi feito. Logo tarde estavam os visitantes, o irmo de Joaquim e
duas mulheres j idosas, hospedados na nossa senzala. Ficaram conversando,
trocando idias, at tarde da noite. As crianas foram afastadas para que no
escutassem.
No outro dia, o trio saiu a andar por toda a fazenda, orando e queimando
ervas, foram at a casa-grande. tardinha se reuniram no ptio em frente senzala.
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Fizeram um crculo, riscaram o cho, cantaram. Todos ns, inclusive as crianas,
ficamos vendo. Quando escureceu, eles pediram para quem tivesse medo entrar na
senzala. S algumas mulheres o fizeram, e ns, as crianas, fomos obrigadas a
entrar. Mas ns tnhamos nossos truques para fazer o que nos convinha.O medo era grande, mas a curiosidade era maior, ficamos a espiar pelas
frestas do porto, interessados em ouvir e ver o que se passava no ptio.
"Meu Deus! - Exclamou um menino de oito anos. -Estou vendo o negro
assassino! Valei-me, Nossa Senhora! Ele est sendo obrigado a vir, tem dois
espritos pegando-o pelos braos "2.
"No vejo nada - disse um outro menino -, mas acredito em voc. Mameme disse que eles falavam que iam mesmo buscar a alma penada para conversar
com ela e explicar os inconvenientes de ficar a vagar com tanto dio. E eles fazem
isso porque tm amigos que tambm so mortos, s que so bons e os ajudam".
"E, pelo que ouvi - disse uma mocinha -, quando uma pessoa boa viva,
tambm boa depois de morta. Tanto aqui como l os bons ajudam sempre e os
maus tentam fazer maldade".
"Os bons sempre vencem .'"-Exclamou uma menina.
"No acredito nisso! S se for l do lado dos mortos -disse um menino. -
Aqui os maus dominam, maltratam".
"? - Disse a mocinha. - s ver o assassino, como ele est, para perceber
que os maus so castigados".
"Vamos ficar quietos, seno no escutaremos nada" -pedi.
No deu para ouvir tudo, mas entendemos que o negro, o esprito que
assombrava, falou por uma, das mulheres e o irmo do Joaquim conversou com
ele. Exigiram que fosse embora e largasse de assombrar a fazenda. Foi uma
conversa demorada. Ajudaram-no tirando a faca de seu peito e curando o
ferimento. Ele foi embora para o alvio de todos e o irmo de Joaquim falou alto*:
2- A criana que viu era sensvel, um mdium vidente. (N.A.E.)
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* O esprito falou por meio de incorporao. A mulher, que era mdium, serviu de
intercmbio entre o esprito e os escravos.
Assim, o irmo de Joaquim pde esclarec-lo, e este, tomando conscincia de que havia
desencarnado, deixou de ter a impresso da dor do ferimento de seu corpo fsico. (Nota do Editor)
"Esse jovem ir para um lugar aonde devem ir todos os que morreram. Foi
orientado a no voltar mais aqui. Vamos orar por ele desejando que fique em paz e
que receba a orientao necessria. Ele tem que perdoar a todos e a si mesmo,
esquecendo o rancor. Esse moo estava sofrendo muito, como fazem os que no
perdoaram, e esperamos que agora ele tenha alvio, siga o seu caminho e no voltemais aqui."
O trio voltou para sua fazenda no outro dia e ficamos a comentar o
episdio por muito tempo. Deu certo o ritual deles, que nada mais foi que uma
evocao e incorporao para uma orientao. E a assombrao no apareceu mais.
Contavam-se na senzala muitos casos de assombrao. A maioria tinha
medo e eu sempre temi alma de outro mundo, mas sempre gostava de ouvir.
"Quem se suicida so os que sofrem mais aps a morte do corpo -
comentou Joaquim. - Embora creia que cada caso seja visto por Deus de forma
diferente, justa. Lembro-me bem de um fato ocorrido quando eu era criana:
suicidaram-se em curto espao, aqui na fazenda, um negro, um capataz e sua
mulher. Uma negra velha, muito bondosa, pediu a todos ns que fizssemos
oraes e pensssemos com firmeza em no nos suicidar. Ela dizia que vibraes
de suicdio estavam sobre a fazenda e que aquele que se ligasse a essa energia teria
vontade de se suicidar. Recomendou tambm que falssemos com ela se tivssemos
vontade de morrer. Pois no que foram muitos os que pensaram em se suicidar?
At a sinhazinha, a irm do sinh Floriano, que era menino naquela poca. O sinh
Silva mandou-a para a casa de sua irm passar uns tempos e foi ento que ela
conheceu o marido e por l ficou".
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"E os suicidas? Os trs que se mataram? Como ficaram? Assombraram a
fazenda?" - Indagaram.
"Pelo menos ningum os viu. Mas falaram que eles sofreram porque no se
pode matar um corpo que Deus nos deu para viver aqui na Terra. Ao sofrer, deve-se ter pacincia, tudo passa e sempre se tm momentos felizes" - respondeu
Joaquim.
Joaquim, sempre que possvel, nos falava sobre o suicdio, que ningum
deveria faz-lo porque no se foge dos problemas arrumando outros piores. E acho
que no falou em vo. Enquanto vivi na fazenda, ningum se suicidou. Algumas
vezes se desejou a morte, mas nunca a ponto de pensar em acabar com a vida,porque acreditvamos que a vida no acaba e que continua com a morte do corpo.
E suicidar-se no resolve nada, os problemas continuam os mesmos e, ao saber que
se continua vivo, surgem outras dificuldades e o remorso vem quase sempre forte.
E sabendo que existe a reencarnao que no devemos mesmo pensar em tirar
nossa vida fsica e nem a de ningum, porque a reao para essa insensata ao
sempre dolorosa, embora se tenha sempre o socorro e a ajuda de outros, irmos
auxiliando irmos. A colheita de quem plantou.
Um dia, conversando sobre assombrao, Jos comentou: "Por que alma
do outro mundo? Ser que ao morrer passamos a ser do outro mundo? De outro
lugar? Penso que todos os que morrem devem ir para um lugar nesse mundo
mesmo. E os que no vo e por algum motivo ficam aqui conosco podem ser
vistos e assombram aqueles que os vem."
"Por que ser que uns vo para esses lugares e outros no?" - Indagou uma
negra.
Jos respondeu, aps pensar uns instantes: "Acho que se tem sempre
motivos para ficar. As pessoas boas so os bons espritos, esses no assombram,
continuam sendo teis. H aqueles que foram bons, s que, apegados s suas
posses, no querem abandonar o que julgam ser deles, se sentem presos aos seus
bens, que na verdade no lhes pertencem mais. E at pelo amor egosta, paixo,
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muitos no conseguem entender que necessitam viver separadamente por algum
tempo. Outros ficam pelo dio, odeiam tanto que se ligam aos seus desafetos,
querendo faz-los sofrer e sofrem junto. Os que ficam so sempre imprudentes."
Ficamos quietos a pensar, conclu que Jos tinha razo. Morrer deveria seruma partida da qual no se leva nada, iramos s conosco mesmo, com nossas
aes boas e ms.
Filo quebrou o silncio:
"Voc, Jos, deve ter razo. A sinh antiga, que morreu h tempo, vagou
pela fazenda. Dizem que ela no foi m, mas que era apegada demais a sua casa e a
seus filhos, li, na fazenda vizinha, aquele capataz maldoso, depois que morreu,assombrou por anos a fazenda, perseguido por alguns negros. Acho que o capataz
no encontrou sossego porque foi mau e os negros por no terem perdoado."
"So muitos os fatos ouvidos e vistos - falou Jos -que servem para nos
confirmar que o esprito continua vivo aps a morte. Os bons tm o merecimento
de ficar bem, os maus sofrem pelas suas maldades e os que no perdoam sofrem
tambm, embora possam ser vtimas e bons".
Naquele tempo no pensava na morte para mim, parecia que nascera para
no morrer. Mas essa passagem para todos. Mesmo quando planejei a minha fuga
para despistar a dos meus filhos, no pensei em morrer. Enganei a mim mesma.
Quando queremos fugir da realidade, conseguimos. No pensei muito nas
conseqncias. Agora, ali estava esperando por ela, pela morte, ou pela chegada dos
feitores.
"Quem chegar primeiro?" - Indaguei-me.
Olhei para a pedra em que estava deitada, era cinzenta e irregular. Ao lado
do meu rosto estava passando uma fileira de formigas. Cada uma levando algo,
pedaos de folhas, gros, at pedacinhos de pau para sua casa, o formigueiro.
Observei-as por instantes.
"Ser - me indaguei - que as formigas vivem no formigueiro juntas como
ns, negros, nas senzalas?"
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Vi-me criana...
Dormia junto com outras meninas, muitas preferiam dormir com os pais,
mas, como eu era rf, dormia sempre com um grupo de amigas. Brincava e fazia
pequenos trabalhos, conversvamos muito e aprendi logo a ter medo. Temor dosobrenatural, das pessoas, de alguns escravos que eram pessoas com qualidades e
defeitos e que olhavam para ns com cobia, a ns, as jovenzinhas, e muito para
mim, que era diferente, pele mais clara, cabelos lisos.
Jacinta temia por mim e estava sempre me protegendo, queria que
casasse porque um companheiro me protegeria da cobia,de alguns homens.
Mas queria encontrar um amor, um sentimento forte como o dos meuspais. Pedia a Jacinta com olhar suplicante: "Conte, Jacinta, me conte a histria dos
meus pais." "Voc, menina, no se cansa mesmo de escutar. Eu no agento mais
falar dessa histria. Dizem que aqui nessas terras, antes de o branco vir e trazer os
negros como escravos, viviam os ndios, que eram os donos de tudo." Interrompi:
"No entendo, Jacinta, se eles estavam aqui e eram donos da terra, como
puderam vir outras pessoas e mandar em tudo?"
"Acho que poder mesmo no podiam, mas no so feitas tantas coisas que
no se podem fazer? Ns, os negros, ramos livres na nossa terra e os brancos
foram l e nos tiraram de nossos lares como se fssemos pedras, nos trouxeram
para c e nos obrigaram a trabalhar para eles. Somos como animais."
Filo, que escutava, indagou indignada:
"Jacinta, se nascemos para aprender, qual ser a lio que um escravo
aprende?" l
"Deve ser trabalhar, sem dvida" - respondi. ' "A obedecer e a domar o
orgulho" - respondeu Jacinta. "Parece que vocs duas esto pensando como Jos -
disse Filo. - No acredito nisso. No creio que aprendemos aqui na Terra. Acho
Deus injusto, se fosse justo, Ele no seria deus s dos brancos, ou no faria
negros".
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"Filo - falou Jacinta -, os negros sofrem, mas os brancos tambm. Ficam
como ns, doentes, sentem a morte de entes queridos, h brancos pobres".
"No venha defender esse Deus em que voc cr!" -Exclamou Filo.
"Como se Ele precisasse de minha defesa! Se o que Jos fala estiver certo,Deus justo! Talvez sejamos ns que diferenciamos, que fazemos por merecer a
vida que temos. No sei se Jos est certo, mas aprendemos quando queremos. E
eu aprendi muito aqui na fazenda."
Filo riu de gargalhar.
"No ria de Jacinta" - defendi-a.
"Ora, Cabocla, no estou rindo dela, mas do que ela disse. Aprender algoaqui? O qu? Na senzala?"
"Sim, aqui na fazenda, na senzala - respondeu Jacinta. -Hoje no sou
orgulhosa, tenho f, amo a vida, sou obediente e gosto de trabalhar".
"Jacinta - pedi -, fale de meus pais..."
Minha me de criao, querendo pr fim na discusso, me atendeu:
"Limo era branco, de sorriso bonito, era um timo empregado. Sua me
vivia com sua tribo nessas passagens, na floresta. Conheceram-se, mas no falavam
a mesma lngua. Comunicavam-se por sinais e um foi aprendendo a linguagem do
outro. A tribo de sua me, que era composta de poucos ndios, porque com uma
doena trazida pelos brancos, muitos morreram, no gostou do namoro de sua
me. Japira, sua genitora, era muito bonita e geniosa, e resolveu fugir com seu pai.
Os ndios resolveram ir para outro local se reunir com outra tribo. Seus pais
viveram felizes o tempo que ficaram juntos. Moravam numa pequena casa aqui na
fazenda, sua me ficou grvida e voc nasceu, mas infelizmente ela morreu. Seu pai
desesperou-se e o sinh me pediu para cri-la, tinha dado luz um de meus filhos e
tinha leite para ambos e assim a criei. Seu pai, aps o falecimento de sua me,
tornou-se triste, ningum o viu mais sorrir, mas vinha todos os dias ver voc. A
teve o acidente e ele morreu."
Jacinta calou-se e Filo, que escutava, comentou:
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Senti muito quando Caolho morreu e resolvi no casar mais. Jacinta me
aconselhava:
"Jussara, voc jovem, arrume outro companheiro." "No quero, Jacinta.
Vou ficar viva at morrer." Houve pretendentes, que recusei. O tempo passou e aaconteceu a morte triste do meu filho mais velho, a vida tornou-se difcil na
fazenda e ns fugimos.
Na vida de todos ns h acontecimentos, so fatos e fatos que formam
histria, e a nossa, por sermos o personagem principal, nos importante.
3- Fao essa ressalva para dizer que essa foi minha experincia na senzala. A vida dos
escravos no Brasil diferiu muito: houve lugares em que foram bem tratados e em outros viverammiseravelmente. E certamente a escravido foi. uma perodo de muito aprendizado. (N.A.E.)
5
MINHA PASSAGEM
Parecia que me lembrava de tudo o que me acontecera, at fatos sem
importncia me vieram mente. Lembrei-me at de que, quando criana, achamos
no pomar, Tnica e eu, um ninho com ovinhos. Todos os dias amos v-lo at que
nasceram os filhotes, ficaram grandes e voaram. Quando o ninho ficou vazio, fiqueitriste, havia me acostumado a ir v-lo. Quando somos privados de algo a que nos
acostumamos, sentimos falta. E isso acontece com tudo o que faz parte de nossa
vida.
"Ser que sentirei falta do meu corpo? Sim, acho que sim, uso-o h tantos
anos como roupa do meu esprito. Mas ele da natureza e a ela deve voltar. Que
pensamentos estranhos, parece que me so sugeridos" - nunca pensara isso antes.
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na pedra e eu deitada no seu colo. Os dois vultos, os quais agora via bem, eram
uma mulher e um homem simpticos e tranqilos, que calmamente mexiam no
meu corpo e me faziam sentir separada dele. Eram dois socorristas que me
desligavam da matria. Preferi olhar para meu filho. Que saudade! Ele estava feliz,sadio e lindo. Passava com delicadeza a mo nos meus cabelos.
Voltei meu olhar para a pedra e vi meu corpo deitado, cheio de ferimentos.
Estava com as roupas rasgadas e sujas. Olhei para mim, sim, porque eu era aquela
que meu filho acariciava; estava com a mesma roupa, do mesmo jeito, s que no
sentia os ferimentos. Escutei os feitores:
Cabocla est morta! Olhem, picada de cobra! Mas e os outros? Os ces no acham mais rastros. Eles no existem. Eu estava certo,
perseguamos uma s pessoa. Cabocla nos enganou! Os fujes foram para um lado
e ela pela floresta, para despistar, para que os filhos fugissem. Esperta!
E agora? - Indagou um deles.
Vamos voltar - respondeu o senhor Lisberto. - Andamos muito e
estamos longe da fazenda. Devemos ter cuidado, h cobras por aqui. Que raiva!
Tanto trabalho por nada e ainda teremos que ouvir as gozaes dos outros.
Andamos pela mata fechada, no pegamos ningum, uma escrava tola nos enganou
e os fujes devem estar longe.
S por sorte iremos captur-los - queixou-se um deles.
Eu bem que falei que seguamos um rastro s! -
Repetiu o outro.
Voc tem razo! Um rastro s! Enganados por uma maluca! - Disse o
senhor Lisberto, irritado.
Por uma me que ama! - Consegui dizer e at me assustei, minha voz
era normal, s que os feitores no escutaram.
Mame, durma nos meus braos. Cuidarei da senhora!
Ficaremos aqui? - Indaguei
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Vou lev-la para onde moro! - Respondeu meu filho. Comecei a sentir
sono, mas escutei os feitores.
Temos pouca gua. Vamos reparti-la com os ces, um pouco para
cada um. Amanh tarde chegaremos fazenda. Vamos voltar! - Ordenou osenhor Lisberto.
E Cabocla? - Perguntou um deles.
Vamos deix-la a, no devemos perder tempo enterrando-a. s uma
escrava! - Respondeu o senhor Lisberto.
Foram embora. Olhei para Manu, ele me transmitiu calma. Adormeci
confortada nos seus braos. Acordei disposta num leito. Apalpei, o colcho era macio, com lenis
como os dos sinhs, cheirosos e muito limpos. Estava num quarto grande com
vrias camas, quase todas ocupadas por mulheres brancas e negras. Olhei tudo
espantada, sem coragem de me mover.
Uma moa branca, muito bonita, veio at mim e sorriu agradavelmente.
Bom dia! Como est passando? Precisa de alguma coisa?
No tive coragem de falar, s respondia com movimentos de cabea. Senti
muita vergonha. Uma moa branca me dirigindo a palavra como se eu fosse igual a
ela. A jovem, sempre risonha, sentou-se no leito em que eu estava e ajeitou com
carinho os lenis. A percebi que estava vestida com um camisolo branco, de
mangas longas e com detalhes de renda, de tecido macio, passei a mo, encantada
com a pea de roupa. Olhei novamente para a moa, que continuava me olhando
com carinho. Segurou a minha mo e disse sorrindo:
Por favor, no se sinta envergonhada! Como voc prefere que eu a
chame, Cabocla ou Jussara?
Cabocla - respondi, abaixando a cabea e os olhos.
A moa passou a mo pelo meu rosto, levantou-se e disse delicadamente:
Seja bem-vinda, Cabocla! Aqui no mais escrava e no se sinta
inferior. Voc no ! Aqui somos todos iguais!
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Fique vontade. Vou avisar Manu que voc acordou.
Tive vontade de falar, fazer perguntas sobre muitas coisas, mas fiquei
quieta, sem me mexer. Ela se afastou.
Passei as mos pelo meu rosto, nada de ferimentos. Levantei as mangas eolhei para meus braos e mos, nenhum arranho. Suspirei aliviada e sorri feliz.
Respirei fundo. Como gostei de sentir o cheiro daquele lugar. A senzala,
por mais que a limpssemos, no tinha bom cheiro e nos ltimos tempos, com o
servio aumentando, no tnhamos mais disposio para limp-la melhor.
Manu entrou no quarto, olhei-o maravilhada. Cumprimentou
educadamente todos que estavam no quarto e aproximou-se de mim, emocionado. A bno, minha me!
Deus o abenoe, meu filho! - Respondi com lgrimas de alegria nos
olhos.
Beijou-me a mo, depois meu rosto e nos demos um forte abrao. A
percebi que no sabia onde estava e por que estava ali. Indaguei-o:
Manu, meu filho, que fao aqui? Por que estou num quarto igual ao
das sinhs, com essas roupas cheirosas?
A senhora est bem? Quer alguma coisa? - Indagou meu filho em vez
de responder.
Estou muito bem, muito confortvel! - Respondi.
Mame, a senhora desencarnou! Seu corpo fsico morreu com a picada
da cobra.
Ficamos quietos uns segundos.
"Estranho - pensei -, morri e estou como viva!"
Mame - continuou Manu a explicar -, a senhora morreu mesmo, quer
dizer, seu corpo fsico morreu. Temos mais este corpo, que igual ao que usamos
quando encarnados. Este corpo chama-se perisprito, que uma roupagem do
esprito.
Onde est meu corpo morto? - Perguntei.
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Ficou l na pedra, est apodrecendo e logo ser esqueleto e p -
respondeu Manu.
Hum...
Entendeu? - Indagou meu filho.Estava um tanto confusa. Mas, se meu corpo morrera, eu agora deveria ser
alma e graas a Deus no era penada.
Morri... Que vai ser de mim agora? - Perguntei.
Ir morar comigo numa bela casinha. Ir aprender muitas coisas e
seremos felizes.
Manu, a moa me tratou como se eu fosse uma sinh. Mame, diferenas existem s no mundo fsico, aqui diferente.
Somos todos iguais, filhos do mesmo Deus.
Ns, os escravos, somos filhos de Deus? Tem certeza?
Manu riu.
Sim, mame, somos todos filhos de Deus, porque fomos criados por
Ele.
Onde est Caolho, seu pai? - Quis saber.
Papai nasceu de novo, reencarnou. um lindo menino.
Branco ou negro?
Branco. Nosso esprito, mame, vive num corpo fsico, quando este
morre, vive-se ento um perodo na erraticidade * ( erraticidade perodo em que o
esprito passa desencarnado, aguardando uma nova encarnao . N.E.), em que se pode ser
feliz ou infeliz, dependendo do seu merecimento, depois ele nasce de novo num
outro corpo, reencarna.
Ficamos quietos por momentos e eu pensei no que ouvi e achei bem certo.
Falei com entusiasmo:
Se Jacinta ouvisse isso ficaria muito alegre e Jos entenderia muitas
coisas. Ambos dizem que Deus no injusto. Eu at que em certos momentos
duvidei dessa justia.
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Mas, se Caolho foi negro e agora branco, ns nascemos na Terra,
reencarnamos, para aprender mesmo.
Manu riu. Sempre segurando minha mo, falou:
Mame, Deus justo. Temos, na Terra como na erraticidade, a reaode nossas aes, o aprendizado a que fazemos jus. Mas agora chega de conversa.
Durma, a senhora precisa se refazer, descansar. Mais tarde virei busc-la para um
passeio.
No queria dormir, mas tive sono e adormeci tranqila.
Quando acordei fiquei quietinha, respirei fundo, sentindo o aroma
agradvel daquele lugar. Abri os olhos devagarinho e me alegrei por no terningum perto ou me observando. Prestei ateno em tudo, nos detalhes, achando
o quarto maravilhoso.
A moa risonha aproximou-se de mim e me cumprimentou baixinho:
Oi, Cabocla! Chamo-me Regina. Trouxe um alimento para voc.
Sentei-me na cama sem saber o que fazer e muito envergonhada. Estava
mesmo com vontade de me alimentar. "Mas morto se alimenta?" - Indaguei-me.
Regina, lendo meus pensamentos, disse calmamente:
Cabocla, voc est aqui h dez dias somente. Logo aprender a viver
sem os reflexos do corpo fsico e a no necessitar se alimentar mais. Isso caldo
de legumes e tomar suco. No uma alimentao como a do encarnado, mas se
sentir melhor aps se alimentar.
Aprender muitas coisas e creio que logo no sentir falta de nada do que
fazia encarnada, porque voc no era apegada a nada.
S aos meus filhos... - Suspirei, me esforando para falar, porque tinha
receio de dizer algo que fosse inconveniente.
Voc aqui saber deles e poder, logo que possvel, v-los. Vamos,
alimente-se! - Disse ela carinhosamente.
Regina afastou-se e eu tomei a sopa, achando-a deliciosa. Logo que
terminei, ela veio pegar o prato.
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"Tratada como sinh!" - Pensei. - "Como sinh!"
Uma senhora branca, elegante, aproximou-se do leito ao lado do meu,
abraou com amor a moa que nele estava e disse em tom baixo, mas, como estava
ao lado, escutei: Filha, como est?
Mame, sofro, no estou bem. Morrer de parto, que injustia! Agora
que ia ter nosso primeiro filho!
Filha, no reclame! Por seu merecimento pude traz-la para c. H
tantos lugares feios e tristes a que um desencarnado pode ir.
Preocupo-me com meu nen! Que ser dele sem me, sem mim? -Queixou-se a moa, chorosa.
Seu esposo ir trat-lo bem. Sua cunhada est cuidando dele - tentou a
senhora consolar a filha.
Mame, no amava meu esposo, sabe bem que fui obrigada a casar
com ele e que era minha cunhada quem governava a casa. No fui feliz no
casamento, mas no queria morrer. Estou muito triste! S tenho dezoito anos!
Filha - disse a senhora pacientemente -, aqui ser feliz. No tenha d
de si mesma, o pior que nos pode acontecer deixarmos a autopiedade nos privar
de ser feliz ou de tentar ser.
Mame, aqui ficam todos juntos, negros, brancos e ndios.
Isso faz diferena para voc? - Indagou a senhora.
No - respondeu a jovem -, sabe bem que no. Sempre achei a
escravido uma grande injustia e amei Juvelina, a nossa me negra, como minha
segunda me.
Vamos, nimo, voc j podia ter se levantado e est h uma semana s
se lastimando!
Com muito custo a senhor
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