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A RECEITA DO “MANJAR DE FÍGADOS” DO DOUTOR AMATO LUSITANOAlfredo Rasteiro ............................................................................................................................................................ 4

A ALIMENTAÇÃO NA OBRA DE AMATO LUSITANO (1511-1568)Fanny A. Font Xavier da Cunha ...................................................................................................................................10

“OS FRUTOS E AS LEGUMINOSAS NAS CURAS DE AMATO LUSITANOAdelaide Neto Salvado ...............................................................................................................................................17

O VINHO NA ÉPOCA DE AMATO LUSITANOAntónio Lourenço Marques ........................................................................................................................................25

ELOS À VIDA - ALIMENTO DA PALAVRA POÉTICAMaria de Lurdes Gouveia da Costa Barata ............................................................................................................... 30

A BOTÂNICA DA BACIA MEDITERRÂNICA EM AMATO LUSITANOAntónio Manuel Lopes Dias ....................................................................................................................................... 35

A ALIMENTAÇÃO NA ALDEIA DO MALHADALMaria Assunção Vilhena Fernandes ..........................................................................................................................41

HÁBITOS ALIMENTARES NA SERRA DA GARDUNHAAlbano Mendes de Matos ...........................................................................................................................................46

ALIMENTAÇÃO NA BEIRA INTERIOR...António Maria Romeiro Carvalho ...............................................................................................................................55

ESTUDANTES DA BEIRA INTERIOR EM SALAMANCACandeias da Silva ......................................................................................................................................................63

SALAMANCA E OS LUSITANOSAlfredo Rasteiro ..........................................................................................................................................................74

RELAÇÕES CULTURAIS ENTRE SALAMANCA E A BEIRA INTERIORSantolaya Silva ...........................................................................................................................................................78

OS ETERNOS ODORES DA MEMÓRIARibeiro Farinha ...........................................................................................................................................................82

CONCLUSÕES - VII JORNADAS DE ESTUDO ..........................................................................................................86

SUMÁRIO

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Medicina e Ética

Pode parecer estranho que numa publicação desta natureza, onderegistamos os trabalhos apresentados nas Jornadas de Estudo“Medicina na Beira Interior - da pré-história ao séc. XX”, que desde1989 se vêm realizando à volta da personalidade e da obra de AmatoLusitano e das manifestações relacionadas com a medicina produzidaspelas gentes da Beira Interior ao longo dos tempos, se insira estanota com uma referência explicita à ética. Porquê lembrar as forçasnormativas que governam as acções humanas de modo a torná-lasboas e acertadas?

No decurso deste nosso já longo empreendimento, temosacompanhado apresentações de realidades cuja existência pertenceao passado, mas que contribuíram de algum modo para que a realidadeactual seja como é. Ora, do ponto de vista da medicina, com todosesses contributos, estamos hoje mais próximos da solução de muitosdesequilíbrios que afrontam quer o corpo humano em si, quer na suarelação com os outros e com o mundo. As ciências biomédicasalcançaram um desenvolvimento prodigioso, conferindo um poderenorme àqueles que, detentores dos seus saberes e instrumentos,têm o papel social de os aplicar. E sabemos como a acção humanatambém é frágil. A desumanidade é tantas vezes um lugar comum,atingindo níveis inconcebíveis. Actuar sobre a vida, pode ter o sentidode a preservar e engrandecer, mas também de a aniquilar.

Não é pois descabido, nesta viagem pelos tempos, quando tambémolhamos para o momento de hoje, em que existe uma tal riquezacriada para servir o homem, mas que pode ser utilizada com efeitoscontrários, que marquemos o nosso percurso com uma chamada deatenção para os valores universais e eternos que configuram a ética.

O 11° número dos cadernos de cultura “Medicina na Beira Interior -da pré-história ao séc. XX”, que vos apresentamos, regista em espe-cial os trabalhos que os nossos investigadores dedicaram a aspectosda alimentação sondados na obra de Amato Lusitano ou na BeiraInterior através dos tempos.

A direcção

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A RECEITA DO «MANJAR DE FÍGADOS» DO DOUTORAMATO LUSITANO (1511-1568)

por Alfredo Rasteiro*

Entalada entre a Serra da Estrela e a vizinha Es-paña, a Beira Interior vai do Douro ao Tejo, limitadaa ocidente pelos rios Côa e Zêzere e a oriente pelosrios Águeda e Erges. Região semeada de Santuáriosdesde os alvores da Humanidade, os seus habitantesgravaram os xistos do vale do Côa desde há 20 000anos, estiveram em Fratel há 5 000 anos, ergueram edeixaram cair Egitânia. Faltaram-lhe organizaçõesconventuais que desenvolvessem as artes da doçariano século XVI e desde sempre viveram inquietações eapertos. «Estas terras orientais, segregadas do núcleoatlântico da Nação, guardam, no seu isolamento, umavida popular mais que todas conservadora: nahabitação, no trajar, nas comidas, nas formas deconvivência, na riqueza do folclore e até nos módulosarcaicos da canção, ritmada pelo adufe, quedesenrola, por cima do ondulado solene do terreno,melodias rituais de igreja primitiva». Era assim noPORTUGAL, O MEDITERRÂNEO E O ATLÂNTICO,1941, 1991, de Orlando Ribeiro. Era assim até que asestradas construídas nos últimos dez anosreaproximaram Guarda de Cidade Rodrigo e Sala-manca e tornaram Castelo Branco mais próxima deLisboa, enquanto os municípios raianos tratam de viverem boa paz com «nuestros hermanos», como é ocaso de Idanha-a-Nova com Sierra de Gata, Coria,Alcântara e Valência de Alcântara sob os olhares daSenhora do Almortão que nunca virou costas aCastela, por muito que lhe cantassem. Em temposde Europa e de Regionalização, é importanteidentificar, recensear e demarcar. Diz-se que alinguagem reflecte inteligência e carácter e que a Artede Cozinha é o Bilhete de Identidade de um Povo.Desde as primeiras Jornadas de Castelo Branco em

31 de Março de 1989 e posteriormente em todos osmeses de Novembro, muito se fez para que houvesseum melhor conhecimento desta região e dos seuspovos, desde a abordagem dos últimos resquícios dofalar Leonês entre os Quadrazenhos do Alto Riba Côa,até aos rituais da vida e da morte nas terras da Egitânia.Caberá às Sessões de 1996 o levantamento possíveldos comeres regionais. Quando em Novembro de 1995se propôs que a Alimentação fosse o tema centraldestas Jornadas, previa-se que o ano fosse de crise,com a encefalopatia das vacas inglesas a causarestragos na agricultura portuguesa mal regida porlegislação que em 2 de Setembro de 1994 continuavaa permitir a importação de vitelas inglesas, vivas paraengorda e carcaças para rações, ignorando asencefalopatias do tipo Creutzfeldt (1920)-Jakob (1923)e desprezando a opinião pública. O silenciamentoimpossível da encefalopatia bovina e a sonegação deinformações relativas a bruceloses de ovinos ecaprinos e cisticercoses do porco, coincidiu com aabertura das fronteiras na Grande Europa. Aerradicação destas pragas passa pelo direito a umagovernação preocupada com a saúde e pelo direito àqualidade da alimentação e da habitação dosgovernados, que implica o necessário acompanha-mento da criação e abate dos animais e respectivafiscalização.

A perda de visão, doença dos olhos, pode ser umadas mais dramáticas consequências da cisticercosehumana. Há trinta anos, por 1966, Antônio Manso daCunha Vaz mostrou-me uma cisticercose ocular emdoente natural de Belmonte. Na literatura portuguesaestavam registados quatro casos, um de HenriqueMoutinho e Fernando Lacerda em doente de Coimbra

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- Bol.Soc.Port.Oftalmol., 1944-45, T.4, 147-150 - e trêsoutros de Cunha Vaz em doentes de Albardo (Guarda),Fiais da Telha (Carregal do Sal) e Vilar Seco (Nelas) -Bol.Soc.Port.Oftalmol.,1946-47,T,5,203-208.Posteriormente João Eurico Lisboa e Cruz Ferreira(Rev.Soc.Port.Oftalmol—1976,2 (2),61-68) e A.Figueiredo Ribeiro e Catarina R. Oliveira, (ExperientiaOphthalmol., 1977,3(1),37-40)referenciaram doisnovos casos em doentes provenientes de Angola. Aausência de informações relativamente a novos casosé sugestiva de melhores condições higienosanitárias,ainda que eventuais portadores de Taenia solium setenham fixado em Portugal.

Inventariar os hábitos alimentares dos Beirões nãoé tarefa fácil, mesmo que a finalidade seja seleccionare preservar as melhores receitas e os bons petiscos,porque as comunidades beirãs se tornaramtradicionalmente fechadas enquanto foram dilaceradaspelo frio e pela fome, por séculos de inquisições,migrações e guerras civis. Quando José Saramagoempreendeu a VIAGEM A PORTUGAL com um «guiaàs ordens, ou roteiro que leva na mão, ou catálogogeral», para além do «choque e adequação,reconhecimento e descoberta, confirmação esurpresa» que as suas descobertas lhe trouxeram,comprovou o «murmúrio infindável de um povo» em«espelho reflector das imagens exteriores», como seestivera em câmara escura ou na caverna de Platão(427-347 a.C.), na REPÚBLICA. Só conhecemos oque amamos e não é fácil desvendar o livro abertoque é a Alma de um Povo. Gregório Marañon declarouem 1954 para a edição espanhola dos RETALHOSDA VIDA DE UM MÉDICO de Fernando Namora,Monsantense de adopção: «( ...en Ia vida aldeana.)Todo parece alli sencillo y sin complicaciones. Perotodo tiene Ia ruda transcendencia, eternamente igualy eternamente nueva, del patético y escondido jadeodel mundo. Lo único universal, ... es lo tipicamentelocal de cada país, tanto en lo externo como en loíntimo. ... nada hay más universal, ... que una aldeanallena de graçia ingenua y no aprendida ... donde seconservar Ias viejas costumbres, que son Ias eternas;Ias universales no acabar nunca de ser costumbre ymueren cuando dejan de ser modas...».

«Jejuando» por terras da Beira Interior, JoséSaramago «comeu um excelente bife de cebolada»em Moimenta da Beira, festejou uma «opolentachouriçada» Ao Modo da Guarda e enterneceu-seem Cidadelhe com um «Entre, esteja na sua casa».A voz é branda, o rosto socegado, e não é possívelque haja no mundo mais límpidos olhos. Está na mesao pão, o vinho e o queijo. O pão é grande, redondo,para o cortar é preciso apertá-lo contra o peito... pãocom olhos, queijo sem olhos, vinho que salte aosolhos...»

Pão cozido, vinho e carne assada, foram desdesempre ementa festiva. O sal e os alhos, os

condimentos. Era assim em Lisboa quando JoãoAfonso Telo foi armado cavaleiro pelo rei D.Pedro I(1320-1367), com «grandes montes de pão cozido eassaz de tinas cheias de vinho e logo prestes porquebebessem. E fora estavam ao fogo vacas inteirasem espetos a assar. E quantos comer queriamdaquela vianda tinham-na muito prestes e a nenhumera vedada» (Fernão Lopes: CRÓNICA DE D.PEDRO).Era assim no tempo do Rei D. Pedro e continua a serassim. Tudo se complica, porém, quando, a despeitode densa rede de estradas, com mais ou menosburacos, a agricultura é pobre e cada um é forçado aprocurar em lugares distantes um suplemento àsmagras culturas dos seus cabeços pedregosos, comodiria Orlando Ribeiro e estas deslocações influenciamos comeres e os sabores regionais. Assim, a BeiraInterior surge a olhos estranhos como um corredor depassagem que nunca se envergonhou da sua condição,onde não vemos a doçaria rica dos conventos nem aopulência e a imaginação de outras regiões. Peranteestranhos, a confecção alimentar na Beira Interioresconde contradições e mistérios que se ligam aproblemas de Identidade do País que somos. Localde passagem e confluência de muitos povos, ainterioridade da antiga Lusitânia favoreceu apreservação de usos e costumes que as autoestradasdo progresso têm vindo a destruir, que descurámos edemorámos a compreender, especialmente no EstadoNovo, quando se pensou que «Portugal pode ser, senós quizermos, uma grande e próspera Nação». Naverdade, depois do aniquilamento dos invasoresislâmicos no inicio da nacionalidade , escondidos osescravos e a população flutuante e marginal, Portugaltornou-se Estado Pátria de duas Nações que nuncase entenderam como tal, a Nação organizada, chefiadapelos descendentes do Conde D. Henrique e seguidorada bandeira de Cristo e a Nação hebraica discreta,que geria o tesouro real e fornecia os médicos, quesofreu um valentíssimo susto em 1383 e seráperseguida depois de 1493, uma realidadeescamoteada até 1925, quando o Engenheiro de Mi-nas Samuel Schwartz (1880-1953) «descobriu» OSCRISTÃOS-NOVOS EM PORTUGAL NO SÉCULOXX. O esclarecimento desta realidade possibilita umamelhor identificação da Beira Interior, seus Usos eCostumes. Dito de outra forma, até que ponto usos ecostumes hebráicos persistiram na Beira Interior atéaos nossos dias? Será suficientemente seguro paraa defesa dos usos e costumes Sefardins,Quadrazenhos, Ciganos ou outros, proceder à suainventariação? Até que ponto o Artigo 13° daCONSTITUIÇAO DA REPUBLICA preserva estesdireitos, quando utiliza a expressão raça com asignificação de grupo humano? Princípio daigualdade, n° 1: «Todos os cidadãos têm a mesmadignidade social e são iguais perante a lei»; n° 2:«Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado,

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prejudicado, privado de qualquer direito ou isento dequalquer dever em razão de ascendência, sexo, raça,língua, território de origem, religião, convicçõespolíticas ou ideológicas, instrução, situaçãoeconómica ou condição social».

No momento em que os Portugueses se confrontamcom a Revisão Constitucional e com um processo deRegionalização em marcha, é legítimo indagar seexistem e que significado têm eventuais vestígios dehábitos alimentares conservados por descendentesdos «Israelitas que desde o século XVI até 1974 seescondem em hábitos de Cristãos para salvarem avida e secretamente judaizavam» na Beira Interiore é pertinente abordar este tema em Castelo Brancoonde o Doutor João Rodrigues (1511-1568) nasceu eterá sido baptizado, segundo os ritos da Santa MadreIgreja. Nesse tempo, quando D.João III (1502-1577)«tomou a possissam do reino avião se os nouoscristãos tanto engolfado no mundo & seus enganosque quasi hiam esquecendo sua antigua ley & perdiãoo temor da quella fonte donde nos mana a vida, coma muita riqueza que adquerião dinidades & oficiosnobres que no reino alcançauão, e acharense jaapacíficos por que ymitauam muito ao pouo cristão,dado caso q o secreto de suas almas nuca omudarom», segundo o testemunho de Samuel Usque,CONSOLAÇÃO ÀS TRIBULAÇÕES DE ISRAEL,Ferrara, 1553, cap. 30.

No final do século XVI, o «SUMARIO de todas asPascoas, Festas e Cerimonias Judaicas, assim daLei escrita, como do seu Talmud e mais Rabinos» deJoão Baptista d’Este recolhido por Mendes dosRemédios em OS JUDEUS EM PORTUGAL, II, 1928,cotado por David Augusto Canelo em ÕS ÚLTIMOSCRIPTOJUDEUS EM PORTUGAL, 1987, diz-nos que«O judeo não pode comer porco, lebre, coelho, nemos quartos trazeiros de nenhum animal quadrúpede... São obrigados a degollar toda a sorte de animais eAves ... Não podem comer carne juntamente comcousas de leite ... Os peixes que não podem comersão os que não tem escamma, e barbatana, comohe o Cassão, Crogo, Arraia e Outros...».

Bella Herson na tese da Universidade de S.PauloCRISTÃOS-NOVOS E SEUS DESCENDENTES NAMEDICINA BRASILEIRA (1500/1850),1996, cita oscasos dos médicos naturais de Castelo Branco Tho-mas Nunes Morato, submetido a audiência da santainquisição de Lisboa em 16 de Janeiro de 1711,processo n° 11490, porque em sua casa «Não comiamcarne de porco e nem peixe de pele...» e de seu tioJoão Nunes de Abreu submetido a acto público de féem 26 de Julho de 1711, processo n° 1195, porqueem sua casa «não comiam carne de porco, nem peixesem escama, trocavam camisa limpa no sábado etratavam o sábado como dia Santo».

Intolerâncias e desconfianças mútuas e múltiplasimpediram que a nação maioritária, fundamentalista,

católica e apostólica reconhecesse a minoria israelitae razões de sobrevivência e proselitismo explicam quea nação judaica mantenha preconceitos em relaçãoao vinho, ao sangue, à carne cozida em leite e à carnede porco. Herdeiros directos das primeiras civilizaçõesagrárias, desde sempre consumiram água; sal, trigo,uvas, figos, azeite, ovinos, caprinos e bovinos, leite emel. Não cozinham o cordeiro no leite da ovelha(EXODO,23,19 e DEUTERONÓMIO,14,21) e nãoconsomem sangue (LEVÍTIC0,7,27, 17,10 e 17,14).Podem comer gafanhotos, estão proibidos de comergordura de ovelha, de boi e de cabra e não ingeremporco, camelo, coelho, lebre, rato, toupeira, doninha,morcegos, gaivotas, cisnes, cegonhas, poupas, avesde rapina, avestruzes, lagartos, crocodilos, camaleão,salamandra, lampreia e sopa de cação. (LEVÍTICO eDEUTERONÓMIO).

Em 1993 Maria Antonieta Garcia constatou que OSJUDEUS DE BELMONTE consideram o consumo decarne de porco «um hábito alimentar fortementeenraizado na Beira» e «alguns acabam por usá-la naalimentação. Outros sempre a recusaram. Todos,porém, conhecem as «alheiras», o enchido criadopelos cristãos-novos. Confeccionado sem carne deporco, seco ao fumeiro.» Esta questão das alheirasmerece atenção por três motivos, primeiro, porqueinicialmente além do pão de trigo, dos alhos e da águade cozer as carnes, podiam levar galinha, perdiz, vitelae ainda (?) os «animais proibidos» coelho e lebre.Depois, eram metidas em tripa, que poderia ser deporco. Finalmente porque, em Mirandela, evoluirampara «toucinheiras». Registe-se que as alheiraspodiam levar carne de perú, uma ave que os autoresdos Livros Sagrados não conheciam, diferente do galoe do pavão, trazida do México para a Europa depoisde 1519, uma novidade representada em 1653 na Salados Capelos da Universidade de Coimbra e admitidana ARTE DE COZINHA,1680, de DomingosRodrigues.

A repulsa por determinados alimentos é quasesempre ditada por fundamentalismos e pordogmatismos, os mesmos que levam os profissionaisdo proselitismo político a chamarem mouros aosAlentejanos e cristãos-novos aos militantes maisrecentes. Quanto à carne de porco, que AmatoLusitano dizia ser gelatinosa, viscosa e de efeitodemorado, (PRIMEIRA CENTÚRIA, Memória VIII), serábom recordar que quando o Povo Judeu atingiu a terrados Lusitanos, entre o Douro e o Tejo, já o porco ibéricocá estava e constituía a principal fonte de proteínasna alimentação dos humanos que, por isso, lheelevaram estátuas, desde Murça a Ávila. GregórioMarañon, na CRÍTICA DE LA MEDICINA DOGMÁTICA,1954, reconhece que «el cerdo» é «un animal quepuede entrar en el templo de Ia ciencia conducido porun médico, después de haber entrado en Ias iglesiasconducido por un santo».Continuam a existir

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mealheiros com a forma de um porco e em España a«mast cell» (Labrocytus) foi a «celula cebada».

As CVRATIONVM MEDICINALIVM CENTVRIAESEPTEM, Ancona, 1 de Dezembro de 1549, resumemo que Amato Lusitano entendia dever dizer sobrealimentos e regimen alimentar. Depois de destacar aimportância da formação médica e a confiança dodoente no seu médico, o Doutor João Rodriguescaracteriza a abordagem do caso clínico desde ainquirição à elaboração da história clínica, valoriza aprescrição do regimen alimentar e acredita, comHipócrates, que nas fases agudas das doenças sedeve comer pouco. Cita Hipócrates (460-377 a.C.),Galeno (130-200), Oribasio (325-403), Paulo d’Egina(625-690), Avicena (980-1037), Gentile da Foligno ( ?-1348) e outros, Autores de primeira classe, clássicosque contribuiram para a sua formação médicadiariamente enriquecida com novas experiências queregista sempre, pormenorizadamente. A importânciada água fresca é destacada na PRIMEIRA CENTÚRIA,Memórias II e III, principalmente na Memória Ill emque recorda Manuel Cirne, da Feitoria de Antuérpia eenaltece as qualidades da água própria para beber,referindo-se à fonte, nascente, caudal, percurso,levesa, distância percorrida pela água, densidade,arejamento, peso, ausência de sabor, ausência decheiro, quantidade, transparência e ausência dedepósito. A boa água é pura e afugenta a hipocondria,coze bem os legumes e é mal empregue no vinho,uma «memória da água» que cinco séculos mais tardepermanece viva em Castelo Branco, na voz de AntónioSalvado: «Se falo desta fonte é porque nela/ bebi;em minha boca ainda vive/ a transparência cálida quetive/ ao debruçar-me inteiro para ela: // pureza de águaque meus olhos, presos/ à condição de imagens evelhice,/ maternalmente guardam, com ilesos/bichinhos a nadar à superfície...» (A.Salvado:ANTOLOGIA, 1985,98).

O elogio dos vinhos peninsulares é feito na MemóriaXXVIII da PRIMEIRA CENTÚRIA com a advertência deque, «por serem fortes e subirem ràpidamente àcabeça», deveriam ser desdobrados com água eproibidos aos doentes, dando a entender que emEspanha e Portugal se bebia principalmente água, aocontrário de Franceses, Italianos e Alemães quebebiam vinho desde o berço. Assim, para Amato, oshomens e mulheres Peninsulares eram «bebe-águas»,os Franceses bebedores de vinho, os Alemãesbebedores de cerveja e os Eslavos bebedores de leitee esta constatação é sugestiva de que Amato Lusitanoapenas se estava a referir à comunidade Sefardim poisnos lembramos, por exemplo, do Capítulo XXXII doLEAL CONSELHEIRO, quando o rei D.Duarte(1391-1438) aconselha a adição de duas partes deágua ao vinho de consumo.

O que estava proibido e o que os peninsularesSeferdins podiam comer está indicado na Memória

VIII da PRIMEIRA CENTÚRIA. O Doutor JoãoRodrigues proibia a carne de porco e todas as comidasgelatinosas e viscosas, de efeito demorado. Permitiafrangos, capões, galinhas gordas de capoeira e avesdo campo que não vivessem em zonas pantanosas.Aconselha linguado, perca, ruivo, salmonete, sardinha,solha, robalo, truta e lúcio. Usava pimenta e mostarda.Preferia o vinho branco e, ao contrário dos gostosactuais, aconselhava-o levemente aquecido. Refereque as Portuguesas e as Espanholas, tal como asantigas Romanas, não tinham o hábito de beber vinho(Memória XCII), como se isso fosse proibido pelareligião e diz que o vinagre punha as mulheres«histéricas» (Memória VIII). Aconselhava frutas, passasde uva, amêndoas, pinhões e nozes. O jantar eraservido às dez horas e a ceia às dezasseis.

No século XVI o sal, o calor e o fumo eram os meiosde preservação disponíveis. Os condimentos eramnecessários para esconder o indol e o escatol daputrefacção, para disfarçar cheiro e sabor. A indústriado frio não existia e os transportes demoravam.

Nos Comentários IN DIOSCORIDIS ANAZARBEI DEMEDICA MATERIA LIBROS QVINQVE, Veneza, 1553Amato passa em revista, ao correr da pena, coisastocantes à medicina, simples e drogas que entravamna preparação de medicamentos, plantas, animais ecoisas por vezes utilizáveis na confecção de alimentos.Merecem menção os termos hispânicos e lusitânicos,por vezes «lusitanices»: lirio decor de ceo, ouriço domar, ouriço quacheiros, cavalinho marino, buzios,mixilhus (mexilhão), briguigois (berbigões), conchulaIndica (conquilha), caraqueles (caracóis), cangreiopescado de agoa dulce (caranguejo), alacral (lacrau),bugio, pele de la culebra (pele de cobra), lula, lebre,columbo (peixe pombo), siba (tartaruga), salmonete,cadozes, atuni (atum), milipedibus, rapa cona (DeBlatta pistrinaria), natura de vieya, capacha de velha(De Pulmone Marino, potta marina), figado, porcisylvestris, canis vero, gallinarum, lupinum, vergalhode cervo, suella de zapatos viejos, gallinas, huevos,ovos, ciguattragas (cigarras), Lagostas de terra(gafanhotos grandes), quebranta uesso ave (aguiaquebra ossos), cotouia, golandria (andorinha), denselephans, marfil, tornizuelo de pie del puerco, can-tharides, cantarelle, arebenta buei, vaqua loura,gusanos del pino, salamantegua (salamandra), arana,lagartixa, salta rostro (lagarto), terrestris crocodilus,minholquas (minhocas), musganho, murganho,ratones (ratos), leche (leite), suero de leche, la (lã)...

Salvo leitura mais atenta, o porco está representadonos COMENTÁRIOS pelo osso astragalo, no segundolivro, «Enarratio LI - Tallus à malleolo dissert(Tornizuelo de pie del puerco) - Talus os pedis est,quod cruri inferitur, & illud multi, cauilham alij verò osbalistae appelat, falso multi eum malleolumnominant.».

Em algumas culturas os astragalos foram utilizados

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como peças de jogos de crianças e o «pé de porco»tem sido iguaria apreciada por Portugueses. Figurana ARTE DE COZINHA, 1680 de Domingos Rodriguesem injurioso «Mãos de porco de Judeo. - depoisde cozidas as mãos de porco frias e albardadas,pondo-se nos pratinhos, se mandarão à meza»,depois de umas «Mãos de porco.» e de umas «Mãosde porco albardadas.» percursoras dos «Pés de porcopanados» cozidos em água com sal, cenouras, salsalouro e pimenta, passados por ovo e pão ralado, fritosem óleo e servidos com mostarda da COZINHA RE-GIONAL DA BEIRA BAIXA, 1992, p. 97, de Maria deLurdes Costa Basto. Diga-se que a feijoada com o«canelo» do presunto velho dá menos trabalho, melhorsabor e não ofende.

Para o paladar português e suas «estórias»,interessa comparar os conselhos alimentares doalbicastrense João Rodrigues com a literaturagastronómica disponível, especialmente com o«LIVRO DE COZINHA» dito da Infanta D. Maria (1538-1577) que desposou em 1556 Alexandre Farnésio(1545-1592) duque de Parma e com a ARTE DECOZINHA de Domingos Rodrigues (1637-1719), natu-ral de Vila Cova à Coelheira, cozinheiro de D.João Vno fim da vida. Padrões de referência para a Históriada Alimentação em Portugal, o LIVRO DE COZINHAexibe a panóplia de condimentos que as Descobertastrouxeram a Lisboa, pimenta, cravo, gengibre,açafrão, açúcar e canela e a ARTE DE COZINHAmostra o que ficou na maré vazante, muita enxundia,muita banha, o açúcar de cana que vinha do Brasil,espécies pretas (pimenta, cravo da India e nozmoscada) e todos os adubos (pimenta, cravo, nozmoscada, canela, açafrão e coentro seco). Ambosutilizam sangue e gordura animal, cozinham carneem leite, apresentam pratos de lampreia, porco,coelho, lebre...

As «morcelas» dos nossos dias e os «chouriços»de sangue, exemplificam o tipo de «cozinhados» queum judeu «não pode» comer e interessará verificarporque é que existe um doce metido em tripa de porco,com o mesmo nome e formato das morcelas, fabricadocom ovos e amêndoas, que no século XVI se faziacom banha de porco e passou a fazer-se com banhade vaca no século seguinte. Domingos Rodriguesafiança que estas «morcelas» podiam ser comidasem dia de peixe e quando as confeccionava com melchamava-lhes Melícias.

Entre os doces tradicionais portugueses o «manjarbranco» figura no LIVRO DE COZINHA, preparado apartir de peito de galinha cozido em leite e da mesmaforma que a invenção das alheiras pode ter sidodeterminada pela necessidade de mostrar fumeirosonde não havia porco, também entre os doces irãosurgir «manjares» sem cozedura em leite. Assim,«Para os novatos aprenderem» Amato Lusitano«dedicou-lhes esta preparação» (PRIMEIRA

CENTÚRIA, Memória XXI, 1549):R/FÍGADOS de capão, faisão, perdiz ou galinha

gorda - cinco onçasAmêndoas doces lavadas - duas onçasPevides de melão, sem casca - uma onçaDepois de tudo muito bem pisado, juntar dez

onças de açúcar,cozer em lume brando segundo a arte e servir

bocadinhos.Variantes desta receita figuram na ARTE DE

COZINHA de Domingos Rodrigues e na CULINÁRIAPORTUGUESA, Lisboa, 1936, de António Maria deOliveira Bello, OllebOMA. Domingos Rodrigues registaum «Manjar real» feito com peito de galinha, pão,amêndoas e açúcar que não leva leite, ao contráriodo Manjar Branco.

Olleboma, refere o «Manjar de Língua», comlíngua de vaca, água, sal, amêndoas, canela, açúcare gemas de ovos, «Para cada quilo de polpa de língua:2 quilos de açúcar, meio quilo de amêndoas, 3colheres, das de sopa, de canela, 4 dúzias de gemassem clara nenhuma» e acrescenta um «Manjar di-vino», que apenas leva pão de trigo, água, açúcar,amêndoas, ovos e canela.

Habituámo-nos a falar de João Rodrigues e aesconder a intolerância que o obrigou a mudar denome.

Falei de «chouriços» que imitavam carne de porco,de «murcelas» que não eram de sangue e de«manjares» que não levavam leite. Não sei se estasreceitas reflectem opções de natureza religiosa e atéque ponto isto lembra O CURIOSO ILUMINISMO DOPROFESSOR CARITAT, Gradiva,1996, de StevenLukes. Mas sei que estas coisas têm a ver comLiberdade e respeito pelo Outro, quando recusamosser prisioneiros de nós próprios, fechados uns aosoutros. O «manjar de fígados» de Amato Lusitano éuma gulodice que podia recordar a pátria mítica dosnovos lusitanos, que respeitava fundamentalismos eproselitismos. A carne não era cozinhada em leite e oresultado final lembrava o manjar que se fazia nosconventos das monjas cristãs. Dito de outra forma,tratava-se de um manjar adaptado aos usos e cos-tumes Sefardins e é necessário acrescentar que foraindicado no regímen alimentar de um banqueiro quenão bebia vinho, na convalescença de uma pneumo-nia. Dispenso-me de especular sobre o que mais tardese descobriu a respeito de substâncias armazenadasno fígado, do glicogénio, da vitamina A, dos factoresanti anémicos, etc..

Diz-se que quem se cura não se regala e isso temmuito que se lhe diga, especialmente quando o médicoentende prescrever de acordo com a capacidadeeconómica do doente. Neste caso clínico, como setratava de um banqueiro, além do «manjar de fígados»com pevides de melão descascadas, o doente

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completou a cura com um cordial de invençãoHispânica em que entravam safiras (corindon azul),jacintos (quartzo vermelho), esmeraldas (berilo verde),caranguejos (Carcinus maenas), coral branco e coralvermelho (Corallium rubrum), margaritas (pérolas),espódio, marfim, raspas de chifre, seda crua, cascasde limão, sementes de papoila branca, azedas,portulaca, goma-arábica, pétalas de rosa, tormentilha,alcaçus, aloes, amido, sândalo, coentros, cânfora,almíscar, ambar, ouro, prata, osso de coração de veadoe açúcar. De todos estes ingredientes o osso decoração de veado pareceu-me o mais difícil deencontrar, mesmo por conta de um banqueiro e fuipor ele na «ANATOMIA COMPLETA DEL HOMBRE»,Madrid, 1728 de Martin Martinez (1684-1734) que apáginas 252 e seguintes, refere um coração com pelosque teria sido encontrado por Amato em Ferrara eregista: «En el Corazon humano se han encontradovarias monstruosidades ...Lo tercero, averse halladodentro de èl vn huesso, que fue vnica causa de Phtisisen vn hombre; y fue lo mas maravilloso, que en eldicho huesso estaba claramente representada la efigiedel difunto: aunque el observador (que fue SamuelSpilemberger, Medico Hungaro) no dize, si esculpida,ó pintada: yo mas creo, que seria aprehension suya.»

Voltando a Amato: «Pesados os prós e os contras,o médico prudente receita de acordo com a idade,a natureza e as posses do doente, o local, o tempoe coisas semelhantes. Diferentes doentes nãocalçam os mesmos sapatos» (PRIMEIRACENTÚRIA, Memória LX).

*Professor da Faculdade de Medicina de Coimbra

Resumo Bibliográfico

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1988

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A ALIMENTAÇÃO NA OBRA DE AMATO LUSITANO (1511-1568)

por Fanny André Font Xavier da Cunha*

A Herança dos Descobrimentosna Obra de Amato Lusitano:”O Pão nosso” e o “Pão dos Outros”

Com o início das navegações e explorações da 2ªmetade do século XVI, nas novas regiões do mundo,os conhecimentos agrícolas são enriquecidos e oshábitos alimentares alterados, com reflexos benéficosna saúde dos povos. Essesreflexos estão bem patentesna obra de Amato Lusitano.

Considerando a utilidadena alimentação de algumasdas novas espécies botâni-cas dadas a conhecer aoVelho Mundo, as quais cons-tituíam “o pão dos outros”,mas que passaram tambéma ser “o pão nosso”, citam-seo arroz, as batatas, a man-dioca, o milho, o feijão, ogegerlim, o açúcar, o café, ochá, o cacau, muitos legu-mes, algumas “frutas viajan-tes”, como a anona, a pêraabacate, a manga, a banana,a papaia, o maracujá, oananaz, o côco, o cajú e,acima de todas, os citrinos.

Também o sabor dosalimentos se alterou com osDescobrimentos, e o uso eabuso das especiarias,como o açafrão, a canela, ocravinho, o gengibre, osândalo, a malagueta, omastique e as pimentas.

De entre os alimentos queeram “o pão dos outros”, Amato Lusitano utilizou naalimentação dos seus doentes, o arroz, o gergelimou sésamo, o açúcar, a papaia , o pistácio, os citrinose o tamarindo, de entre as especiarias, o açafrão,canela, a pimenta, o sândalo e o cravinho (cravo-da--Índia), afim dos aromatizar.

E sempre omni-presente , o açúcar como adoçante;

contudo o açúcar, produto alimentar, é tambémutilizado na oficina do farmacêutico, tendo assim oprivilégio de entrar na botica e na cozinha. O açúcar,princípio imediato obtido do colmo do Saccharumofficinarum oriundo da Índia, chegado ao Mediterrâneoe ao conhecimento dos gregos ainda na Antiguidade,só após os Descobrimentos irá atingir o seu apogeu,passando a ser cultivado por nós primeiramente na

Madeira, por iniciativa doInfante D. Henrique, emais tarde no Brasil.

Este “gostinho doce”,levado por nós para a Ma-deira (1452) e daí para osAçores, instala-se emCabo Verde, em S. Tomée no Brasil (1533). A partirdaí os portugueses passa-ram a dominar o comérciodo açúcar.

Os Egípcios foram, pro-vavelmente, os primeirosa produzir açúcar, masforam necessários 3 000anos para que a cultura dacana de açúcar se esten-desse ao conjunto dasregiões tropicais. O açú-car só tomou um lugar im-portante na Europa noséculo XVIII, com aintrodução do chá e docafé. Portugueses e es-panhois difundiram a canasacarina nas Antilhas e naAmérica do Sul.

Amato Lusitano utilizavamuito o açúcar; na CURA

XLIV, 1ª Centúria,-Dum rapaz que soltava gemidos adormir, aconselhou que “comesse, em jejum, umaonça de açúcar por uma só vez, e por cima bebesse,por uma só vez, 2 onças de água de chicória”; naCURA 11, 4ª Centúria -De febre contínua, a alimentaçãodepois da medicamentação, consistiu numa tisanaou amigdalato de caules de alface confeccionados

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com açúcar; na CURA LXXVIII, 1ª Centúria-De terçãcontínua, “para extinguir a sêde, alface envolvida emaçúcar, ou abóbora ou pepino ou ameixas e frutossemelhantes que é costume envolver em açúcar”,“Bebia por cima água de cevada, à qual se juntava umpouco de vinho de romãs e algumas de groselha; naCURA XVIII, 4ª Centúria,-De um doente curado combeber água gelada: “já curado, comeu durante algunsdias seguintes, em jejum, açúcar rosado por cima deágua de endívia”; na CURA LXXXIII, 4ªCentúria-Deescarros de sangue com tosse, a alimentaçãoconsistia em tisana misturada com cozimento pisadode frango, tanto ao almoço como ao jantar. Depois dacarne e do próprio frando, tinha como bebida água decevada e, ainda, polpa de marmelos ou’coentrosincrustados de açúcar; na CURA XCII, 1ª Centúria-Duma antiga erosão do estômago, A.L. refere: “Assim,a comida que se dava a este jovem era do melhoralimento: carne de frangos, de perdiz, de faisão e decabrito, cozida na água de alface e chicórias ousementes de papoila branca, e também panetelan feitade amido e tisana de cevada. À noite, caldo de capãocom açúcar; canela egipcíaca com açúcar, conformeé trazida de Alexandria”.

Da canela, escreveu Garcia de Orta, notável médico,pioneiro da Medicina Tropical e um dos maioresinvestigadores botânicos do século XVI (1563): “Hemuyto gentil mézinha para o estômago, e para tirar adôr de coliqua, que he procedente de causa fria; porquetira a dôr de improviso como eu muytas vezes vi. Fazo rosto vermelho e de boa côr; tira o mão cheiro daboca” (col.15); a caneleira (Cinamomum zeylanicumBreynw) da qual se extrai a canela, foi conhecida pelosportugueses directamente na ilha de Ceilão, ondechegaram em 15O5. Em 1536 o interesse pela canelalevou os portugueses a ocuparem a ilha e manter omonopólio deste valioso produto.

A canela é também utilizada na cozinha comoespeciaria e na botica. Na Europa era já empreguedesde o século IX, mas só se tornou popular no séculopassado, quando o seu preço baixou.

Amato Lusitano, na CURA LXXXVII, 1ªCentúria, Domorbo celíaco, prescreve uma dieta de sumo de capãoou galinha, aromatizado de mastique e cinamomo(canela), mastica, Almécega da Índia - pequenaspérolas de resina de cheiro e sabor suaves earomáticos. Na 3ª Centúria, CURA XXII-De um rapaztomado de sintomas epilépticos, Amato diz-nos que“a comida desta criança eram caldos de frango comuns pós de cinamomo ... Para beber tinha a princípioágua de cinamomo, e com o andar do tempo um poucode vinho”; na 6ª Centúria, CURA V-De um menino quefalava mas se tornou mudo..., A.L. proibia todos oslegumes excepto o grão de bico (Cicerarietinum 1.),possivelmente originário do Próximo Oriente, e muitocultivado em Portugal, e alimento de muitaspopulações pobres. Proibia, também, todas as frutas,

os lacticínios e os peixes. O que para A.L. constituiaum regime alimentar atenuante era a carne de frangos,pombos, cabritos, lebres, perdizes, etc., assadas oucozidas com salvia, hortelã, manjerona, esemelhantes, com adjunção de cinamomo, pimentae semelhantes aromas. Como bebida, água em quefosse cozida salva, cinamomo, betónica ou pimenta.Amato Lusitano apreciava muito a pimenta, uma dasespeciarias que já era conhecida na Europa antes daépoca dos descobrimentos, mas que sendo rara eraum produto de custo muito elevado. Com a descobertado caminho marítimo para a Índia, o comércio dapimenta passou para os portugueses até ao séculoXVII. Assim, na 1ª Centúria, CURA VIII - Em que setrata duma febre; recomenda que o doente tomecoisas salgadas, mostarda, pimenta ...e um remédiode 3 espécies de pimentas, para deitar todos os diasnos caldos e na alimentação; também açafrão-das-Índias (Curcuma longa L.), cuja raíz contém umasubstância amarela que é aromática e oleaginosa,originário da Índia, é empregue e aconselhado porAmato, na 2ª Centúria, CURA XVIII - De um indivíduoque não podia praticar o acto sexual, depois depurgado, mandava-o comer e beber do melhor. Comefeito, todos sabem que Vénus esteriliza-se sem Ceresnem Baco. Fizesse uso, pois, de capões, galinhasfaisões, tordos, melros, frangos, ...Dos legumes: grãode bico, alho-porro, cebola, açafrão; da noz-moscada,especiaria proveniente da noz de arila, fruto daMyristica fragans, Garcia d’Orta dizia: “he muyto boafeita em conserva com açúcar, e tem um cheiro muytobom, e o sabor muyto melhor: tem-se cá esta conservapor muyto boa para o cerebro”, sendo aconselhadopor Amato, bem como o cravinho, na 3ª Centúria,CURA XXXVIII, em electuários reconfortantes. Ocravinho é uma especiaria originária do Oriente, masjá conhecida na Europa no século IV. É utilizado nãosomente em culinária, mas também com finsterapêuticos. Outras essências referidas por Amato eutilizadas na alimentação, eram os pós citrinos e desândalos, na 1ª Centúria, CURA LXV - Dum que sofriade dores de estômago, a alimentação preceituada era:“capão ou frango, perdiz ou faisão, do que se preparavamuitas vezes, um picado que era guarnecido do póde citrinos e de sândalos para fortalecer o estômagoe as víceras internas”. Camões, no canto X, est.CXXXIV, escreve:

“Ali também Timor”,que lenho mandasândalo salutífero e cheiroso.”

Amato Lusitano, ao referir-se ao açúcar utilizado naCURA XIII, 2ª Centúria, diz ser ele trazido de S. Tomépara Portugal pelos nevegantes. E mais uma vez, naCURA XCIV, 3ª Centúria - De febre lenta, receita aodoente que beba, pela manhã, caldo de galinha com

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um pouco de açúcar.De entre os alimentos que após os Descobrimentos

foram dados a conhecer ao Velho Mundo, contavam-sea batata, o feijão e o milho, todas de alto valor nutritivo,mas que Amato Lusitano não podia utilizar, pois nãotinham sido introduzidas na Europa.

Assim a batateira, apesar da primeira descriçãobotânica, do francês Clusius datar de 1588, só foiintroduzida na Europa posteriormente. A batata, Sola-num tuberosum, originária dos Andes, na América doSul, foi introduzida na Europa no fim do século XVI,só se tendo tornado alimento de base em fins doséculo XVIII, passando a ser o legume maisdisseminado no Mundo. A introdução da batata marcoupara a Europa uma data fundamental na luta contra adesnutrição crónica das populações.

Quanto à difusão no globo, um grande naturalista ehistoriador português, Carlos França, é categórico: “abatata ainda não existia no século XVI em Portugalnem no Brasil ... Nós, que difundimos do Velho e doNovo Mundo plantas de muito menor utilidade, aindanão a tínhamos em Portugal nem nas colónias...”. Oreceio de perigo em consumir batata, justifica o seutardio emprego na Península, e a dificuldade que houveem a vulgarizar, mesmo nos países onde ela foraintroduzida no século XVI.

Por sua vez o milho, verdadeira dádiva ao VelhoMundo, foi cultivado pela primeira vez nos campos deCoimbra no penúltimo quartel do século XVI.

Quanto ao feijão, que veio substituir a fava, sendonatural da América, só foi trazido para a Europatambém no século XVI.

O feijão (Phaseolus spp.) era bem conhecido dosíndios da América, em especial o feijão comum e ofeijão de Lima. Provavelmente originário da Guatemala,ainda que se tivessem encontrado sementes no Perú,em túmulos incas. Os primeiros exploradoreseuropeus (séc.XVI), dessiminaram-no através doMundo. Foram os portugueses que introduziram asespécies americanas em África.

Enquanto o feijão não foi conhecido no Velho Mundo,bem como a batata e o milho, as populaçõescontentavam-se com a fava.

A fava era “o pão nosso de cada dia”. Como legumeela era um bom alimento. Lembremos que elas eramantigamente o alimento dos gladiadores. Contudodevido a serem um alimento flatulento, Amato, naCURA I, 2ª C., mandava que o doente se abstivessedas favas. O mesmo preconceito se verifica na CURAXCII-De sintomas originados por se ter comido muitaservas em oxiporo, na qual manda evitar, além das favas,ervilhas, alcachofras, e maçãs, afirmando mesmo:“quem quiser conservar a saúde, precisa de evitarestas substâncias ou semelhantes”. Contudo naCURA LXVI, 4ª C.,diz que dentre as ervas são de louvara endívia, a chicória, a lactuca e semelhantes; entrea hortaliça permite ainda, na CURA-De vários sintomas

melancólicos, o espinafre e o aipo, ao qual reconhecepropriedades diuréticas. O aipo (Apium graveolens),originário da Índia ou do litoral mediterrânico, ao qualapenas se conheciam, antigamente, propriedadesmedicinais, só tardiamente foi utilizado como legume,ainda que, como condimento, já fosse utilizado. Àssuas propriedades Amato faz clara alusão na CURAXLIII, 7ªC.,-Numa terçã esquisita, em que concede aodoente, como alimento, chicória, endívia, melão,abóbora ... que provocam o correr da urina, ou melhorainda, “um decocto de raíz de aipo”.

De entre os alimentos que eram o “pão dos outros”,A.L. utilizou o arroz, o qual fora introduzido na PenínsulaIbérica no século VIII, tendo sido os portugueses quelevaram a cultura do arroz para África e para o Brasil,mas esta cultura só se generalizou no século XVIII.

Amato Lusitano apreciava muito o arroz, como odemonstra na CURA XXXVII, 3ª Centúria- em que proibetodos os legumes, “mas damos apreço ao arroz”, naCURA XLIV, 2ªCentúria-Da disenteria, na alimentaçãoconstavam arroz e marmelos. Vamos encontrar denovo o uso de marmelos na Centúria IV, CURA LXXXIII-De escarros com tosse..., em que a alimentação eratisana misturada com cozimento pizado de frango.Como bebida, água de cevada. Ainda como comida,polpa de marmelos ou coentros incrustados de açúcar.De facto o marmelo , é um fruto cujo mesocarpo,compacto e adstrigente é por vezes bastante áspero.O marmeleiro - Cydonia oblonga Miller ROSACEAE,é um arbusto cultivado e subespontâneo em Portu-gal. Como alimento o marmelo é muito apreciado,fazendo-se com ele a marmelada, geleia, e aindacozido ou assado, mas sempre com açúcar! A umdisentérico, na 6ª Centúria, CURA XIV-De umdisentérico curado por uso vário de cera, que comesseem jejum um marmelo escavado, cheio de cera eassado ao fogo. E que nada bebesse em cima!, aexclamação é nossa. Novamente o poder adstringentedo marmelo.

O arroz (Orysa sativa L.) é um cereal do grupo dasGramíneas, cultivado pelo valor alimentar dos seusgrãos, isto é, dos seus frutos de consistência dura. Asua importância é reconhecida desde os tempos maisrecuados: eles fornecem proteínas, gorduras,vitaminas, mas principalmente amido e tambémaçúcar.

De acordo com os mais antigos registos, é possívelsupôr que os primeiros arrozais tivessem florescidona China 3 000 anos antes de Cristo. Desde então,mitologia e lendas orientais apresentam o arroz comoalimento dos deuses, carregado de poderes mágicos.

Na China, em 288 a.C. o imperador Chin-Nongparticipava pessoalmente no plantio e regulamentavae prescrevia os ritos que se deviam acompanhar asua cultura. Na Índia, é conhecido desde a época dasinvasões arianas. Annapurna, deusa da abundância,servia arroz ao Deus Shiva. Arroz perfumado, aliás,

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ainda hoje é oferecido a Buda, e os nossos noivossão geralmente recebidos com uma chuva de arroz,ritual oficiado na Índia com a farinha do cereal, pelopróprio sacerdote, para assegurar a felicidade eabastança aos recém-casados.

Fenícios, egípcios e gregos - segundo investigaçõeshistóricas e arqueológicas .- não conheciam a culturado arroz. Nas suas ruínas nenhum vestígio deste ce-real foi encontrado, ainda que sob o domíniomacedónico tenham surgido breves referências. Bemmais tarde, com o intercâmbio entre o Império Romanoe a Índia, aparecem indicações mais precisas - aHistória Natural de Plínio (29-79 d.C.) descreve oproduto sob o aspecto económico e comercial:milhares de moedas de prata era quanto custava umprato de arroz preparado por Apício, célebregastrónomo do tempo de Tibério.

O Ocidente conheceu esta cultura graças àexpedição de Alexandre “ o Grande”, que atingiu ovale Indo em 326 a.C. e através dos árabes, a partirda Síria e do Norte de África.

Dos “poderes mágicos” do arroz se serviu tambémAmato Lusitano, como na 4ª Centúria, CURA LXXVII-Devista diminuída e corrompida de escotomia, inclui en-tre os alimentos aconselhados, arroz, queijo, carnede vaca, farinha, e, comum a todas as dietas, o caldode frango; na CURA LXXXVI-De rejeição de sangue, “acomida era feita a princípio de amido, mas depois foium frango cozido em água calibeada com grão dearroz ...e alcachofra na cozedura de frango”; na 6ªCentúria, CURA XXXIII-De uma dor do estômago,permitiu-lhe “o seu familiar arroz”; na CURA XLVI-Deuma terçã, recomendou arroz. Quanto ao amido, oqual constitui as reservas nutritivas dos vegetais,pertence ao grupo das substâncias ditas glúcidos: oscereais e os tubérculos fornecem quase totalidade deamido.

Vimos que Amato dava aprêço ao arroz, e não sópara as disenterias; como alimento principalmente,como é o caso na 4ª Centúria, CURA XCII-Como atrairo leite para os peitos,recomenda bons alimentos paraas amas, como alimentos com adjunção de arroz.Este feito com leite e açúcar. E na 6ª Centúria, CURAXLVI-De uma terçã,torna a recomedar arroz ao doente.

O arroz era considerado alimento forte, pois a suafarinha se assemelhava à do trigo e à da aveia, à qualA.L. se refere citando o divino Ancião, no livro 6° deVulgar Morbis, parte 5ª, aforismo 21: “Os alimentosmais fracos têm vida curta”. Isto é interpretado peloseu mais diligente e fiel comentador, Galeno, aoacrescentar: “Por alimento fraco não se pode entenderoutra coisa a não ser o que dá pouco sustento aocorpo”. Deste género são as hortaliças e a maior partedos frutos; estes (diz ele) têm curta vida, isto é, sãode tal natureza que dão aos que dela se alimentamcurta vida, visto rapidamente serem evacuados docorpo.” Ora, Galeno, no livro por nós citado, o 8° do

Methodus Medendi, quando descreve os alimentosconvenientes aos que sofrem de bílis amarga e aosatacados fortemente de febre efémera, nega-lhes todasas formas de hortaliças, visto conterem em si fracopoder suculento e terem muito do que não presta. Eassim como lhes interdita isto também faz o mesmocom as que costumam ser muito nutrientes, como éo pão puro, os ovos frescos, as carnes e espelta(espécie de trigo, de inferior qualidade) -Triticum spelta.Concede o que está intermeada nestas, isto é, atisana que parece tomar como semelhante ao cremorde farinha de trigo no livro 4° De Sanitate Tuenda. Aaveia (Avena sativa), gramínea do Norte do Novo eVelho Mundo e a sua farinha possuem um alto valornutritivo, pois além do amido contém proteínas, saisminerais e vitaminas, razão pela qual Amato diz: “poishoje na Grécia se preparam papas de aveias...”Osflocos de aveia e as papas usam-se na alimentaçãoem todo o Mundo.

É um cereal cultivado particularmente no sul dePortugal.

Sendo o cremor o cozimento do suco de uma planta,como o “cremor de amêndoa, de muito louvor”, na4ªCentúria, CURA XLVII-De febre contínua comperturbações mentais, e na CURA LXXX- De pleurite,o doente tinha como alimento tisana ou cremor deamêndoas. Ora a tisana é também um decocto, ouseja um cozimento ou cremor. O cozimento de cevadaou chá, ou de ervas medicinais constituía a bebidaordinária dos doentes de Amato Lusitano, e que veioaté aos nossos dias. O nosso Castilho, no “Médico àforça” a elas se refere “...precisa já já sangrada.../...edepois de uma tisana,/que eu mesmo lhe hei-dearranjar”, cap.II,7.p.126.

Na 7ª Centúria, CURA XCVIII-De uma terçã..., parafortalecimento do doente, receita cremor de tisana oupão molhado em vinho.

Tisana de Cevada-Hordeum distichonL..Gramanieae: algumas espécies ficaram no estadoselvagem, enquanto que outras eram já cultivadas noAntigo Egipto.

Este cereal, cultivado particularmente no Sul doPaís, era antigamente usado para o fabrico de umpão de difícil digestão. Ainda é usado na confecçãode cozimentos e em alimentos para bébés.

E assim como Amato Lusitano utilizava a cevadana bebida dos seus doentes (1ª Centúria, CURAII-Duma pleurite), diz que a alimentação , como doençaexigia, era-lhe dada sob a forma de tisana coada; ouseja, de decocto; enquanto na CURA XLVI-De febreefémera que passou a contínua e do regime alimentara haver no dia da purga, diz-nos: o regime destaalimentação era tisana... e panatela preparada compevide de melão. Por bebida, decocção de cevada;na CURA LII-De pleurite...-Método de alimentação:“que não provasse nada a não ser papas de tisanacoada, e na bebida não passasse além da água

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simples de decoccção de cevada”; na CURA LVII-Demulher grávida, ordem de alimentação, a saber: “umatisana, grãos de romã com substâncias açucaradase outras semelhantes... e como bebida, água decevada; na CURA LIX-Da pleurite. Na alimentaçãotomava tisana coada ou panatela preparada commanteiga. Bebida: hidromel; CURA XCII-Duma antigaerosão do estômago, a que já nos referimos, tisanade cevada, e depois água de capão; na 7ª Centúria,CURA XXVIII-De uma pessoa que sofria de uma terrívelpleurite, alimento: cremor de tisana, caldo de frango,com um pouco de açúcar; para beber, água de cevadaa fim de manter os instestinos a trabalhar; novamentecomo alimento, na CURA XXXIV tinha uma tisana eágua de cevada para beber; o mesmo na CURA XCI-De febre contínua; na 7ª Centúria, CURA XCI-De umhomem que sofria de dupla terçã; comida à vontadeno começo do acesso; o pão que tomava era molhadoem sumo de romãs, e a tisana em que se misturavamas grainhas de romã. Este fruto da Punica granatumL. da Ásia subtropical e da Mauritânia, ainda constanos nossos dias, sob a forma de cozimento, a nossaFarmacopeia.

Na 3ª Centúria, CURA XCIII-De um fleimão, aalimentação consistia em tisana, caldo de frango,panatela e a bebida era água de cevada só ou comvinho de romãs; na 5ª Centúria, CURA XVIII-De dor deintestinos proveniente de humor cálido, o seu alimentoera delicado, com tendência para o frio, mas à bebidade água vulgar misturava-se vinho de romãs azedas;a principal acção da romã seria a refrescante, comose verifica na CURA LXXVIII, 1ªC.-De terçã contínua,:“Para extinguir a sede: alface envolvida em açúcar ouabóbora ou pepino ou ameixas e frutos semelhantesque é costume envolver em açúcar. Bebia por cimade água de cevada, a que se juntava um pouco devinho de romãs e algumas vezes groselha.

Quanto à água de cevada, com os grãos desta, aindahoje se faz, nalguns países, uma tisana refrescante,e uns chupa-chupas que em França se chama sucre“d’orge”, e a cevada perlada (grãos descorticados earredondados) é usado nas sopas, pelo seu poderalimentício. O seu grão torrado é sucedâneo do café,sendo porém, nos nossos dias, a sua utilização maisimportante para o fabrico da cerveja, que ironicamenteé também bebida refrescante.

Por sua vez o trigo (Triticum durum), “pão nosso decada dia”, é o principal cereal do Ocidente. É o nossopão, conhecido desde a mais alta antiguidade, deorigem contudo desconhecida. De Candolle pensa quea sua origem se encontra na região do Eufrates.Difundiu-se na Ásia e na Europa, e os espanhoisintroduziram-no no Novo Mundo cerca do ano de 152O.O trigo é utilizado no fabrico do pão, da “panatella” edo amido. Amato Lusitano refere a “panatella” comfrequência, esclarecendo-nos na 7ª Centúria, CURAXCIX-De febre com síncope: “Estes doentes devem

ser alimentados pouco a pouco assiduamente.Dávamos-lhe pão molhado com vinho de romãsazedas, assim como caldos de frango, preparadoscom pós de margaridas e corais tratados, em quetambém eram cozinhadas umas papas, que ositalianos chamam de panatella, de pão branquíssimo,chamado farinha-flor, o qual dificilmente espalha,misturado com muitos coentros frescos ... Nestadoença davamos-lhe à vontade romãs e o côndito de3 sândalos... e para beber água fria e gelada misturadacom um julepo de violetas. Ainda lhe receitamos vinhobranco do melhor ou vermelho áspero.” Já na CURAIII-De febre efémera que passou a contínua e do re-gime alimentar a haver no dia da purga: “O regimedesta alimentação era tisana e “panatella” preparadacom pevide de melão”; na CURA XCII-Duma antigaerosão do estômago, incluía também panatella feitade amido e papoila branca; na CURA XVII, 1ª Centúria-Da ulceração da boca que os gregos chamam aftas eos árabes alcholas, o método de alimentação incluíaa panatella, e de beber, vinho de romã.

Na 4ª Centúria, CURA XLII-De vários sintomasmelancólicos...: na alimentação era-lhe permitida apanatella; na CURA LXXXIII-De pleurite, o doente po-dia consumir panatella ou pão lavado em água esalpicado de açúcar; na CURA XIX, 5ª Centúria-Deuma terçã dupla, tinha, no dia do paroxismo, pana-tella ou lactuca cozida em óleo...; por sua vez o pãoconsumido era molhado ora em sumo de romãs (7ªC.,CURA XCV) ora molhado em vinho. Na CURA III, 1ª C.- Em que se trata duma febre de terçã dupla, mandatomar “panatella” cozinhada com alhos; e na CURAXCVIII-De uma terçã, 4ª C., a quem no início do calafrio,davamos alimento em abundância: “permitiamos-lheque comesse, no princípio do calafrio, pão semprelavado e polvilhado de alguma agresta (o que lheagradava muito, dizia ele), sendo a agresta sumo deuvas ainda verdes (de agre, azedo). Outro tipo de pãoé aconselhado na CURA LXXV: pão biscoito ao almoço,sem qualquer conduto; e na CURA XXII, 6ª C.,-De sarnagálica..., outro tipo de pão: a alimentação consistiade quatro onças de pão náutico ao almoço e outrastantas ao jantar, e para beber decocto da raíz dosChinas (desta raíz deu-nos notícia Garcia De Orta,nos seus Colóquios). Outro alimento que era “o pãonosso”, era a fava (Vicia faba), com a qual até aosDescobrimentos o Velho Mundo se contentava.

De entre os legumes que alteraram os hábitosalimentares do Velho Mundo, além da batata,citaremos o feijão, o tomate, o pimento, e outros“viajantes” como o girassol, o amendoim e o gergelim(Sesamum indicum L.), Amato Lusitano refere esteúltimo, o único seu conhecido.

Quanto a hortaliças, certamente com os finsdiuréticos já assinalados numa outra Cura, foi dadoao doente da CURA I (4ª C)-De inflamação do fígadocom tosse, depois de purgado e, ao almoço, um frango

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cozido em raíz de aipo comum, enquanto que naCURA XLII-De vários sintomas melancólicos... erapermitido ao doente, na alimentação, entre ashortaliças, a endívia, a chicória, o espinafre, a alfacee o aipo. Às primeiras tece louvores, aconselhandofrequentemente a alface ou lactuca, ou respectivoscozimentos (CURA LXVI, 4ª C). A alface, Lactucasativa L., cujas folhas jovens são utilizadas naalimentação humana, particularmente em salada,inclusivé o talo. É a salada mais difundida no mundo.Originária do sul da Europa e da Ásia Ocidental, écultivada há mais de XX séculos. Possuindopropriedades sedativas, Amato Lusitano, utilizava-asob a forma de água de lactuca, ou de decocto. Aendívia, que ele enaltece, é uma variedade da chicóriaou almeirão (Cichoryum intybus), que se utiliza emsalada ou cozinhada; também a raíz da chicória,moída e torrada permite confeccionar uma bebidasemelhante ao café. Este só no final do século XVI éque começou a ser conhecido na Europa e no Brasilfoi introduzido a partir de um punhado de sementeslevado em 1727.

Para Amato a alface, a endívia e a chicória são delouvar, dentre as ervas (sic). Mas há outras duas“ervas” muito citadas nas suas curas, que são ocoentro ou coriandro e o alho porro.

O coentro - Coriandrum sativum L., é aconselhadoem várias curas: na CURA III, 1ª C.,-Delombrigas...manda tomar caldinhos com perfume emuita semente de coentro; e na CURA XCIX, 7ª C.,De febre com síncope,diz: “Estes doentes devem seralimentados pouco a pouco e assiduamente”, peloque à panatela manda misturar muitos coentros fres-cos, e, nesta doença dava ao doente à vontade, romãse o côndito de 3 sândalos ... Este tinha por base aessência de sândalo, de sabor picante e amargo,obtida por destilação do tronco e da raíz do sândalo,Santalum album L., descrito por Garcia da Orta. Aimportância do sândalo na Europa foi obra dosnavegadores, portugueses, tanto como madeira comoperfume.

O alho pôrro, Allium porrum, entra na alimentaçãoperscrita por Amato Lusitano na CURA I, 2ª C.-Dedestilação cálida: do declínio da doença, diz, “entreos alimentos deve-se fazer referência a um ou outroalho pôrro que lhe mandamos tomar, em vez doacetàrio, cozido em água e envolvido em manteigafresca”. Amato justifica-se porque “todos os autoresafirmavam que o alho pôrro era muito excelente parao peito, e que desta opinião era o Imperador Nero quequando cantava bem, dizia ser efeito dos muitos alhosporros tomados. “ Por este motivo os médicos daépoca empregavam decoctos de alho pôrro comopeitoral para preparar muitos remédios da traqueiaartéria. Encontramos também em Amato a indicaçãode “panatella” cozinhada com alhos; deduz-se queseja com Allium sativum L. cultivado e originário da

Ásia Central, onde é conhecido desde a Antiguidade,consome-se crú ou cozido, como condimento nascarnes, sopas e saladas, conservas, e com pão(açordas). Tão profusamente utilizado na culináriaportuguesa que a província alentejana lhe dedicou aseguinte quadra:

“De Lisboa me mandaramQuatro frades num ceirão.Frei azeite, frei vinagre,Frei alho, frei pimentão.”

col por Tomás Pires

Outro legume que para Amato tem assinaladaprimazia é a abóbora (Cucurbita pepo), na CURA I, 3ªC.-De hética, e, ao mesmo tempo, deapodrecimento... Já a alcachofra (Cynara scolymus)não gozava dessa primazia, pois que se na CURALXXVI, 5ª C.-De rejeição do sangue, era incluída naementa: “A comida era feita a princípio de amido, masdepois foi de frango cozido ...e alcachofras nacozedura do frango”; com contrapartida na CURA XCIImanda evitá-las.

De entre as frutas, os vulgares melões (Cucumismelo L.) são para Amato fruta muito boa e digna delouvor: CURA XLII, 4ª C.; rivalizando com o melão,incluindo as pevides, está a romã; e frutasadstringentes como na CURA LXXI, 1ª C.-Dum meninoque sofria de disenteria, em que o regime dealimentação incidia nas respectivas amas: “abrunhos”apedradose também marmelos, ameixas silvestres,e outros com adstringência semelhante. O vinho seriatinto carrascão; também na CURA LXXIV- Duma chagaque consumia a garganta, mandava comer sorvas,nêsperas e pêras, assim como frutos adstringentes;destes, e em casos de disenteria o mais recomendadoera os marmelos; a romã era aconselhada algumasvezes em grão, mas a maior parte das vezes em águaou vinho de romãs, ou algumas vezes groselha (Ribesrubrum) cultivada apenas desde a Idade Média; asuvas, ora as aconselhava verdes (agresta ou agraço),ora secas ao sol; das frutas secas a mais prescrita éa amêndoa, fruto de Prunus amygdalus, originário daÁsia, mas cultivado há longo tempo na regiãomediterrânica, e em Portugal no Algarve, e em Trás-os-Montes e Alto Douro (Terras Quentes); as amêndoaspodem comer-se cruas ou torradas, ou moídas nofabrico de bolos, bem como a sua essência, delas seobtendo também leite ou óleo. Amato prescreve-assob a forma de tremor, ou incrustadas de açúcar ouao natural, com nozes e pinhões...

Outro fruto seco e “viajante”, o pistácio ou pistache“mui estimado dos Senhores e Cardeais, e chamam-lhe pistache; a tiodas as fruitas que achei por estecaminho dei vantagem das nossas”, Mestre Afonso,ITINERÀRIO, 1, p.19. Amato terá dado vantagem aopistácio, mas usou-o a par com a amêndoa na CURA

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LIV, 4ª C.-De melancolia flatuosa..., por este doentemostrar fastio pela comida, mandou preparar oseguinte molho: “Amêndoas doces branqueadas epistácios muito bem pisados, mais fígado de frango,com um pouco de açúcar, agresta e pós de cinomomo”para acompanhar a carne e cozinhados.

Dentre as “frutas viajantes”, Amato Lusitanoaconselha, na CURA XCI, 6ª C., a papaia ou mamãoou caricas, fruto de “mamoeiros pingues” (Caricpapava L.), e considerado diurético. Supõe-se que omamoeiro é de origem americana, da região andina.Foi adaptado no Brasil entre 1578 e 1585, com grandefacilidade. Posteriormente foi difundido em toda a zonatropical. O seu fruto é dos mais consumidos.

Outra fruta exótica aconselhada por A.L. naalimentação dos seus doentes era o tamarindo(Tamarindo indica) quer na poção de cevada, quer emágua de tamarindo. O tamarindeiro parece seroriginário da Africa Tropical e de parte da Índia e Java.Os frutos são comestíveis e a sua polpa ácida e doce.Usa-se na confecção do caril. Como medicina, delediz Garcia de Orta: “tã medicinal que não tem preço”,col.59. Na CURA XXVIII, 2ª C.-De erisipela oriunda dofígado, a alimentação era tisana coada com leite desementes de melão, e a bebiba poção de cevada comtamarindos.

De todas as frutas “viajantes” destacam-se oscitrinos que, graças aos navegadores portugueses enão só, vieram a prestar grandes serviços às Arma-das, resolvendo o problema do escorbuto.

Consideremos os citrinos, pois Amato Lusitano osrefere. Foi no século XVI que a sua cultura segeneralizou e não só em Portugal.

Na CURA LXV, 1ª C., Amato manda guarnecer umpicado de pó de citrinos. Esta palavra citrino designacolectivamente os frutos das diversas espécies dogénero Citrus. Com excepção da toranja e da limalimeta pensa-se em geral que os citrinos são todosoriginários da China e da Asia do Sudoeste. Oschineses conheciam já a laranja cerca de 2200 anosa. C., e o cidrão, cerca de 300 anos antes de J.C..

Com os navegadores portugueses e espanhois inicia-se a sua dessiminação por várias regiões da América.Se a laranjeira (Citrus sinensis L.) e (Citrus aurantiumL.) é de origem asiática, ela foi porém introduzida emPortugal na época dos Descobrimentos em fins doséculo XV, com a viagem de Vasco da Gama. Aprimeira laranjeira da China que se plantou em Portu-gal, em Lisboa, trouxe-a D. Francisco deMascarenhas, em 1635, da China a Goa e da Índiapara o seu jardim de Xabregas.

Foi no século XVI que a sua cultura se generalizou,não só em Portugal como em todos os seus domínioscoloniais, incluindo o Brasil. Assim em Agosto de 1548podemos verificar que a sua introdução no Brasil forarápida, porque o P.e Manuel da Nóbrega escrevia nassuas Cartas do Brasil para Portugal:

“Porque vejo que se dão uvas ... Cidras, laranjas,limões dão-se em muita quantidade e figos tão bonscomos os de lá”. A laranja de umbigo, ou da Baía, édescendente, por mutação, das laranjeiras queintroduzimos no Brasil.

Quando os jesuítas chegaram ao Brasil,encontraram, pois, as laranjeiras, que aí existiam hámuito tempo.

A expansão mundial dos portugueses deu aconhecer novos mundos ao mundo culto da épocaelementos e observações de navegadores,missionários, viajantes, científicos ou auto-didactasque muito contribuiram para uma culturação da própriaNatureza, com a dessiminação de plantas e sementesúteis na alimentação e na botica, e na sua difusãopela terra.

Lembremos que no capítulo da botica AmatoLusitano a propósito do bálsamo do Peru, escreve:“Eu aconselharia todos os farmacêuticos (eperfumistas) que usassem este bálsamo trazido doPerú.”

* Investigadora. Museu Nacional da Ciência e daTécnica

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OS FRUTOS E AS LEGUMINOSAS NAS CENTÚRIAS DE CURAS MEDICINAISDE AMATO LUSITANO

por Maria Adelaide Neto Salvado*

“Ora eu sei que toda a arte médica se poderealizar por três processos, isto é, pela dietaou regime alimentar, pela medicação, isto é,tomando e bebendo remédios; e pela operaçãomanual chamada cirúrgia pelos gregos (...)”Cura VI, V Centúria de Curas Medicinais

Amato Lusitano

1 - Alimentação e Saúde - os “nós e os laços”na visão de Amato Lusitano

Ao longo das Centúrias muitas são as Curas emque Amato aponta como causas das mais variadasdoenças ou excessos alimentares, ou dietasalimentares inapropriadas, que não raras vezesconduziam à morte.

Foi este o caso de um vendedor de 45 anos de nomeJoão Baptista (Cura 3, V Centúria).

Tratado por Amato por um decocto de raiz da Chinae submetido a uma cuidada dieta alimentar comproibição absoluta de vinho e sal, João Baptistarecuperou as forças e a saúde.

No entanto, passados 6 meses, conta Amato,“como tivesse andado em comezainas e pândegasinfindáveis com os seus amigos comilões e bêbados”1,morreu de repente com uma apoplexia.

De igual modo, excessos alimentares foramimputados como causa de uma dupla terçã contraídapor um português, de nome Eduardo Gomes.

Radicado em Veneza, onde possuía negóciosimportantes, deslocava-se Eduardo Gomes frequentesvezes a Ancona por imperativos da sua vidaprofissional.

Aí, os muitos amigos que possuía ofereciam-lhe,

no dizer de Amato, “lautos e opíparos banquetes”. Eraeste português pessoa respeitável e não vulgar poeta,pois, conta Amato, teria traduzido de italiano para alíngua hispânica versos decassílabos e canções dePetrarca.

A tradução foi feita no dizer de Amato “conforme osentido e a harmonia rítmica e a consonância, quesuscita a admiração de toda a gente”.

Submetido a uma rigorosa dieta, este homem denegócios - poeta ficou curado em breves dias. Porisso, Amato intitulou o relato do seu caso clínico “Deuma terçã dupla convertida em simples e curadabrevemente“.2

Nessa mesma V Centúria, Cura 29, Amatoresponsabiliza “as comezainas intermináveis, jantaresintempestivos e frequente embriaguês”3, como dasprincipais causas da artrite, da podagra ou da quiragra.

Frugalidade e sobriedade com base numaalimentação pouco nutritiva à base de couves e legu-mes, interdição de vinho e total abstenção de carne anão ser da de aves, são metas indicadas por Amatoaos doentes com estes sofrimentos.

De excessos alimentares fala também a Cura 11, IIICentúria “De um que não obedecia às prescrições domédico”.

Relata esta Cura o caso clínico de D. Camilo Colonnaque, atacado por doenças muito graves (nefrite, poda-gra e quiragra), teria encarregado Amato do seutratamento compremetendo-se a seguir à risca (sobjuramento) a dieta rigorosa que este lhe impunha.

Não cumpriu, no entanto, D. Camilo o seu juramentoe ao 6° xarope comeu ao jantar ovos fritos e mariscos,ficando às portas da morte.

Só depois de uma forte insistência de Amatoconfessou D. Camilo a sua falta, o que levou Amato a

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terminar assim o relato deste caso: “Com voz pausadadigo-lhe que esta era a resposta ao que prometera e,pedida licença, retirei-me para nunca mais lá voltarmesmo que me oferecessem um ou dois dos seuscastelos”.4

Esta atitude de Amato causou, por certo, impactoem Roma: um médico fazendo frente a um ilustrepatrício pelo cumprimento das directrizes clínicas quelhe impusera não seria na época muito usual.

Parece-me legítima esta conclusão, partindo daafirmação com que Amato encerra o relato deste caso:“Houve conhecimento disto o Sumo Pontífice, várioscardeais e outros romanos ilustres”.5

2 - Saúde e Tabus Alimentares

As dietas alimentares impostas por tabus culturaisou por obediência a normas religiosas são, segundoAmato, as responsáveis por certo tipo de doençasque atacam com frequência determinados povos.

A título de exemplo refere Amato ser este o casodos Hebreus que, pelo zelo no cumprimento da Leide Deus, praticam um tipo de alimentação à base de“comidas atrabiliosas” - isto é, comidas que sepensava produzirem a cólera negra considerada naépoca ser a causa da melancolia.

E cita Amato como exemplo paradigmático o casodos hebreus italianos que comem várias substâncias“geradoras de biles negra: carne de vaca fumada, leg-umes, muito queijo salgado, pastéis de carne cozidoscom chícharos e legumes, lentilhas, azeitonas e carnesalgada” são os elementos da lista elaborada porAmato.6

Ciente, tal como Galeno e Avicena, de que o regimealimentar era um dos três únicos processos a seguirpela arte médica, a indicação de uma rigorosa dietaalimentar surge nalgumas Curas como caminho pri-mordial a seguir.

Na Cura 48, V Centúria, relata Amato o caso dePedro Crinito, rapaz de 3O anos de idade atacado porfebre maligna e erisipela ulcerada contraída aquandoda sua prisão na cadeia de Ancona por causa de umadívida.

Um remédio tópico sobre as chagas da erisipelaacompanhado de uma “rigorosa dieta alimentar” foicaminho prescrito por Amato.

“Um óptimo regime de alimentação”, foi também oprincipal remédio imposto por Amato ao seu irmãoJosé Amato no tratamento de dores e vermelhidão deolhos.7

Mas não apenas de restrições alimentares ou dietasfrugais falam as Centúrias. Em determinados tiposde doentes e de doenças, é pelo contrário umaalimentação farta e abundante a recomendada porAmato Lusitano.

São exemplos desta actuação a dieta alimentarprescrita a João Maria Marcantónio, um homem de

35 anos que se definhava tal era o seu estado demagreza.8 Foi esta a dieta imposta por Amato:

Pela manhã: leite de jumenta recentemente mungidocom algum açúcar; Frangos preparados em leite eengordados com a carne de tartarugas dos bosquescozidas num caldeirão de água da fonte coberta commuito trigo, que se usava igualmente na alimentaçãodos frangos, constituiam o alimento que o doentedeveria comer com frequência.

“Externamente - conta Amato - o corpo era lavadocom banhos emolientes e untado com uma misturade óleo de violas e amêndoas doces”.

E termina Amato deste modo o relato desta Cura:“Tais coisas tornaram-no cheio e obeso e voltou a estarbom no espaço de 6 meses”.

Uma óptima alimentação, pelo facto de ele estarem crescimento foi a prescrição de Amato a ummenino de 2 anos de idade filho de um homem deMonte Santo, perto da cidade de Recaneto, que sofriade epilepsia.9 “Uma dieta de boa alimentação” foitambém o prescrito por Amato a Manuel Ario, de 35anos de idade que sofria de grande acidez e peso noestômago.

Molhos chamados pelos gregos de embámmatacom os quais comia a carne e cozinhados foramrecomendados por Amato nos momentos em que odoente mostrava fastio pela comida.

Era a seguinte a receita desses molhos:“Pise-se muito bem num almofariz com mão-de-gral

amêndoas doces, branqueadas, e pistáceos recenteslimpos, ana, quanto se quizer; a isto junte-se de fígadode frango um ou dois, quanto lhe parecer, com umpouco de açúcar, agresta e pós de cinamomomisturados, com água rosácea. Misture, faça-se ummolho e utilize-o.”10

3 - Os Frutos nas Curas de Amato

Fontes importantes de sais minerais, vitaminas,glúcidos e celulose os frutos são, neste limiar do 3°milénio, considerados elementos fundamentais emqualquer dieta alimentar.

Nas dietas prescritas por Amato Lusitano os frutosdesempenham de igual modo relevante papel.

As amêndoas (Prunus amygdalus) originárias doPróximo Oriente e introduzidas na região mediterrâneaem época longínqua, a noz fruto da nogueira (juglansregia), árvore originária das regiões temperadas daEuropa do Norte e muito apreciadas por gregos eromanos, o pistácio fruto da Pistácia Vera árvore nativada Ásia Central, chamada pelos mongóis de “fruto doparaíso”, que foi introduzida no século I em Roma,trazida da Síria, as uvas e os pinhões elementosfundamentais da velha flora da Bacia do Mediterrâneocontam-se entre os frutos mais recomendados porAmato Lusitano.

* Nozes em jejum, surgem, entre outros, como

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tratamento prescrito por Amato a Inigo Lopo Cornélioque sofria de vómitos de lombrigas.11

* Uvas secas ao Sol e amêndoas brancas, secasao lume, contam-se entre os frutos permitidos na dietade uma mulher que habitava junto ao rio Pó e que seapresentou a Amato sofrendo de fortíssimas dores.12

* Uvas passa de Corinto e amêndoas brancas faziamparte da dieta recomendada a Thamar, mercador turcooriundo de Pérgamo que contraíra morbo-gálico emVeneza e que aportara a Ragusa no regresso à suaterra. A doença provocara-lhe entre outros males doresnas articulações e pequenas chagas na boca e noslábios.13

* Também uvas passas de Corinto e amêndoasdescascadas com pão náutico formavam o jantar deum casal de patrícios de Ragusa, João Luca e suaesposa infectados de morbo - gálico.14

Considerando “o rosto como espelho de todo ocorpo”, afirma Amato reflectirem-se nele as doençasque nos homens estão latentes. Foi este o caso destecasal de patrícios.

Uma negridão deformadora da face e do nariz eramos sinais da doença em João Luca. Tumor na caracom vermelhidão forte foram os sinais aparecidos namulher, que não escaparam ao olhar arguto de Amato,embora ambos tentassem encobrir a doença.

* Uma mancheia de uvas passas e poucasamêndoas sem casca (branqueadas) surgem comoos únicos alimentos aconselhados por Amato nojantar do jovem Marino Gondulano, da nobrezaragusiana que contraira marbo - gálico em Mênfis, noEgipto.

* Amêndoas recentes, sem casca e esbranquiçadase mergulhadas em água fria e cerejas azedas (ginjas?)preparadas com açúcar, constituiam os únicosalimentos juntamente com panatela, ou lactuca cozidaem azeite com uma pedra de sal, ou crua borrifadacom um pouco de vinagre, permitidos por Amato nodia em que o poeta Eduardo Gomez, tradutor dePetrarca, era atacado pelo paroxismo das febres deque sofria.15

* Uvas passas de Corinto, com amêndoasdescascadas e um pombo assado, constituíam oselementos do almoço recomendado por Amato aFrancisca a bela jovem de 20 anos, que sofria de umtumor no joelho e que mereceu a Amato o seguintecomentário: “Tão formosa, por Hércules, como nãohaverá outra em toda a Itália”.16

* Pinhões açucarados, e uvas - passas secas foramas guloseimas prescritas por Amato a uma raparigade 12 anos que sofria “De cita, isto é, doença Pica,que os médicos chamam também “malakia” (Moleza)”,estranha doença, que leva os doentes a ingerirem umadiversidade de estranhas coisas desde pedras, abarro, a lã, a algodão.17

* Amêndoas, pinhões e pistácios misturados comarroz feito em leite e açúcar, formavam uma das

principais recomendações da dieta de uma mulherque amamentava uma criança e que sofria de falta deleite.18

Embora em número menos significativo, outrosfrutos surgem referenciados nas Centúrias.

* Marmelos cuja polpa foi a medicação prescritapor Amato a um rapazito de 6 anos, atacado de febrecontínua.19

* Pêras e os seus cônditos cozinhadas com açúcar,comidas no fim das refeições, a nêspera e a sorva,consideradas substâncias frias e dotadas de algumaadstrigência contam-se entre os frutos da dieta a queAmato submeteu Salomão de Camaviro, atacado desede, febre e de dor muito forte na boca do estômago.20

* Abrunhos apedrados, marmelos, ameixassilvestres, contam-se entre os elmentos recomen-dados por Amato na alimentação das duas amas queamamentavam um bebé, filho do cônsul de Veneza,patrício de Ancona, João Ab Antiquis.21

A criança sofria de um grave dessaranjo de intestinose muita febre e vinha sendo tratada por dois médicoscom um ceroto (unguento em que entra óleo e cera),desaconselhado, segundo Amato, neste tipo dedesinterias. Mudando o tipo de alimentação, esclareceAmato: “Usadas estas coisas, passámos ao métodode alimentação com que a criancinha deveria sercurada”. Deste modo, debruça-se Amato sobre o tipode alimentação das amas, em cujo leite, depois deseguidos os cuidados alimentares recomendados porAmato e dos quais faziam parte os abrunhos,marmelos e ameixas silvestres, “se encontravam todasas substâncias destinadas à cura”. A criança foi curadadentro de 6 dias.

* Figos muito bem amadurecidos, peras com açúcar,uvas pendentes, amêndoas, pistácios, passas deCorinto, melões e pevides de melão, preparadas comaçúcar, encontram-se entre os elementosfundamentais da dieta prescrita por Amato a Azzarias,um hebreu, natural de Mântua, versado na línguahebraica e latina e que sofria de grande magreza,macilência e uma escamosidade espalhada por todoo corpo.22

De bastante interesse são as considerações queAmato Lusitano tece nesta Cura a propósito dosmelões. Classifica-os Amato de “fruta muito boa edigna de muito louvor, e útil não só nesta doença masem todas as biliosas”.

Tenta Amato, nesta Cura, afastar os preconceitosexistentes em Ancona acerca dos melões, afirmandoserem estes frutos, os melopepones e não ospepónios, a que Galeno atribuía a origem da cólera echamando ignorantes a quem os confundisse.

“Os pepónios de Galeno, são os cítrulos de hoje,designados assim pelos perfumistas, adornados demuitas e variadas verrugas, que nós na Hispania,chamamos pepinos” - esclarece Amato.

Planta originária das margens do rio Níger, na África

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Central, penetrou no Egipto, através do Nilo em 2.500A.C.. Muito apreciada pelos egípcios e depois pelosgregos e romanos, foi a sua cultura, por estes,largamente difundida em várias regiões da Europa.Se desde uma alta Antiguidade se consumiam melõesna região do Mediterrâneo, qual a razão destespreconceitos em Ancona no século XVI? Aos temoresdas mortíferas epidemias de cólera que assolavam osul da Europa e cuja causa incessantemente sebuscava?

Reconhecendo as vantagens dos melões, Amatoprescreve a sua utilização noutras curas. Assim:

* Sementes de melão incrustadas de açúcarsurge-nos como elemento recomendado naalimentação de crianças atacadas de varíola esarampo.23

* Leite de pevides de melão e amêndoas, que Amatochama tisana com cremor, constituia o alimento deuma rapariga de 17 anos, atacada de pleurite.24

* Cremor de amêndoas e de sementes de melãosurgem igualmente na dieta prescrita a João de EgidoGradu, mercador de Antuérpia.25

Fruto pleno de simbolismo, as romãs eram entre ospovos da Bacia do Mediterrâneo símbolos defecundidade e considerados atributos de Hera eAfrodite.

Em Roma coroavam as noivas com ramos deromãzeira, tal como eram os sacerdotes no culto deDeméter, em Elêusis.

* Sumo de romãs acetosas e a tisana, em que semisturavam as grainhas de romã onde se molhava opão, eram, entre outros, elementos da dieta prescritapor Amato ao Sacerdote Salomão que sofria de umadupla terçã e que ao fim de 14 dias de tratamentoficou curado.26

* Romãs à vontade foram os frutos dados por Amatoa Bayazet Rhais, de nacionalidade turca, capitão deum navio de Constantinopla, que sofrendo agudamentede insónias caíu em febre biliosa com síncope. Ao fimde 14 dias de tratamento recuperou a saúde - contaAmato.27

A proibição de frutos secos, chamados na épocapelos médicos horários, foi feita por Amato num casode hidropsia aquosa ou ascite de que sofria a esposade um indivíduo de Lendenara.”Uvas secas ao sol eamêndoas concedemos-lhe à vontade“28 - foi uma dasobservações de Amato a esta cura.

Uma referência aos frutos da época surge de igualmodo na Cura 1, III Centúria. Refere-se nela o casode um jovem romano que, adoecendo com febres noInverno e julgando-se já curado, começou a sentir-semal com dores e sonos agitados. Amatodiagnosticou-lhe uma febre héctica.

Longos e pormenorizados são os passos seguidospor Amato para desenvolver a saúde a este jovem.Desde o tipo de colchão que deveria ser macio e deenchimento de lã e não de penas (as penas segundo

Amato, usadas no Verão causam febre héctica), atéà coberta da cama que deveria ser muito branca e demodo nenhum suja e como tal mudada muitas vezes,até ao tempo de duração do banho e à composiçãoda água nele usada, nenhum pormenor foi descuradopor Amato.

Relativamente à dieta alimentar recomendada, osfrutos ocupam nela um lugar importante:

“Das secas comia em abundância: ameixas,cerejas, amêndoas, pistácios e pinhões preparadoscom açúcar, sementes de melão incrustadas comaçúcar, amêndoas envolvidas em açúcar, marmeleda”;e esclarece:

“Figos, uvas, romãs, cerejas e ameixas seriamrecomendadas se na época existissem”.29 Origináriada China, a laranjeira foi trazida para o Mediterrâneopelos árabes. Arvore frequente nos jardins do Islão, oseu fruto e o aroma das suas flores foram cantadaspor poetas como Ibn Sara, natural de Santarém.

Não surgem, no entanto, referências às laranjas nasCentúrias. O mesmo não sucede ao limão.

* Sumo de limão durante a noite foi uma das bebidasrecomendadas por Amato a um ourives veneziano de33 anos, de nome José, que sofria de uma febrecontínua maligna e que lhe apanhava, no dizer deAmato, “o corpo do coração”. Assim define Amato umconjunto de sinais que iam desde uma pulsação poucoelevada e fraca, febre contínua, peso e aperto nocoração e não retenção daquilo que comia.30

No entanto, os frutos surgem nas Centúrias nãoapenas como fontes de Cura. Nalguns casos, aingestão de fruta é tida por Amato como causaresponsável pelo aparecimento de certas doenças,algumas de tal gravidade que conduziram à morte.

* Febre, entorpecimento da mão esquerda e violentador no fígado eram as queixas do poeta Diogo Pirro,que viera de Bizâncio e se fixara nos subúrbios deRagusa, sofrimentos que Amato atribuiu à ingestãode fruta crua ou vagens de má qualidade.31

* Também uma doença atribuida por Amato àingestão de fruta é relatada na Cura 61, VI Centúria eque tem por título “De uma mulher grávida que por tercomido amoras com outros alimentos estragados noestômago, caiu em ânsias e espírito angustiado”.Tratada com uma poção que lhe provocou o vómitoficou curada .32

* Na Cura 71, VII Centúria, relata Amato o caso deum rapaz alemão que, ao comer figos à sobremesa,se apercebeu de um amargor intenso. Cuspindo deimediato a fruta, não impediu que o veneno que nelaexistia o tivesse grandemente afectado.

Tratado com um caldo de malvas e leite, decoctode figos e manteiga, recuperou a saúde.33 Noscomentários a esta Cura recomenda Amato que separtam primeiramente os figos ao meio antes de seremintroduzidos na boca afim de se evitarem factossemelhantes a este.

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Mas, se em certas circunstâncias os frutos nasCentúrias surgem como causa de doença, noutrasAmato considera-os como único e eficaz remédio.

Assim acontece na Cura 78, VII Centúria intulada“Do único remédio contra nefrites e cálculos de rins”,onde Amato conta o caso de um homem que,aconselhado a comer avelãs, com a parte interiormembranosa, no começo do almoço e do jantar etendo ele acatado de tal modo a recomendação domédico que as comeu em tal abundância que ficoucompletamente curado.

Nos comentários a esta Cura escreveu Amato: “Nãofoi apenas este homem, de que tratámos, curado destamá enfermidade comendo avelãs, mas muitos outros”e esclarece:

“Estas avelãs são as vulgares, chamadas nozespônticas.

Avicena coloca-as entre os remédios que tiram(absorvem) a matéria de cálculos dos rins; mas porque razões elas operam, é coisa duvidosa, se serápela sua propriedade seca, se por alguma propriedademantida na pequena membrana interior. Há até outrosque pretendem que isto se opere por meio da parteoleosa do núcleo (amêndoa interior).”34

Mas entre toda a vasta diversidade de frutos referidosnas Centúrias, apenas em relação às maçãs Amatoexpressa sérias reservas, não as recomendando naalimentação ou fazendo delas pouco uso comoingredientes na composição de medicamentos.

Pelo contrário, Amato imputa às maçãs qualidadesaltamente negativas, considerando a sua ingestãocomo causadora de graves doenças que, muitasvezes, conduziram à morte.

Foi este o caso de um rapaz de 10 anos de idade“esperançoso”, no dizer de Amato, pois dotado de“inteligência penetrante e de memória seguríssimacitava muitos trechos extensos de legislação”, que,depois de comer maçãs, se viu atacado de frequentesvómitos e febre altíssima morrendo ao fim de 3 dias“Tendo sido chamado para o ver, conta Amato,suspeitei que tudo isto acontecera proveniente de bilisprodutora de veneno, e de maçãs”.

Nos comentários a esta Cura refere:“Da bilis verde, gerada por maçãs, observei que de

facto alguns morrem”. E conta o caso da filha de umhomem de nome Samuel Asaia que morreu, segundoAmato, em circunstâncias semelhantes.35

Ora, no diálogo que Amato a seguir estabeleceucom Lando na tentativa de explicar a coexistência demuitos vermes com bilis prásina, sendo estasubstância altamente venenosa refere: “A biliscostuma gerar-se de maçãs, melões, pepinos, beta ehortaliças deste género”.

Se todos estes frutos possuem valor negativoporquê, então, as reservas de Amato expressasfundamentalmente em relação às maçãs?

Radicarão elas na carga de simbolismo atribuido a

este fruto no Antigo Testamento?Considerado como fruto da árvore da ciência do Bem

e do Mal, a maçã tanto poderia dar ao homem umconhecimento que lhe conferia a imortalidade, comoconduzi-lo a uma perdição eterna.

A forma de estrela de cinco pontas que desenhamos alvéolos que encerram as sementes da maçã foiinterpretada como indicador de que a maçã era o frutodo conhecimento e da liberdade. Comer a maçãpoderia, por isso, dar ao homem a capacidade paraconhecer, desejar e usar a sua liberdade para fazer omal.

No entanto, numa outra parte do Antigo Testamento,a macieira e os seus frutos surgem com uma outracarga de simbolismo. É no Cântico dos Cânticos: “Eusou a flor do campo, a açucena dos vales.

Tal como é a açucena entre os espinhos, assim é aminha amiga entre as raparigas.

Tal como é a macieira entre as árvores dos bosques,assim é o meu amado entre os jovens. Eu me assenteidebaixo da sombra d’aquele, a quem tinha desejado:e o seu fruto é doce à minha boca”.

Orígenes interpreta esta passagem do Cântico dosCânticos como se a maçã fosse a representação dosabor, aroma e fecundidade do Verbo Divino.

Frei Luís de Leão interpreta doutro modo estapassagem do Cântico dos Cânticos:

“Famosa árvore é a macieira cheia de folhas ecarregada de frutos e nesta circunstância a esposadá maior louvor ao esposo do que aquele que delerecebera; pois ele comparou-a à açucena que é coisaformosa, porém a nenhum fruto e a macieira a que elao comparou tem um e outro”.

Curiosamente nas Centúrias, apenas uma referênciaelogiosa faz Amato às maçãs, ao utilizar este frutocom outros ingredientes na confecção de xarope queprescreveu a uma nobre florentina de 20 anos, de nomede Maria que sofria de “Palpitação do Coração, doençaa que os médicos chamam tremor do coração” é otítulo da Cura 43 da III Centúria.

Escreveu Amato:“... de decocto de sene com adição de maçãs

camoesas (pomorum camusiorum), muito aromáticascomo se encontram em Salamanca, Alcobaça eAntuérpia”.36

É pois uma qualidade das maçãs, tal comoaconteceu no Cântico dos Cânticos, neste caso, oseu aroma, que Amato põe em relevo nesta Cura.

4 - As leguminosas nas Curas de Amato - TabusCulturais e Saúde

Plantas nativas de grande foco de domesticaçãolocalizado no Médio Oriente, as chamadas legumi-nosas comuns (ervilhas, favas e lentilhas), foramcultivadas em toda a Bacia do Mediterrâneo desde amais Alta Antiguidade.

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A prová-lo, o testemunho bíblico de Jacob e Esaú,filhos de Rebeca e Isac.

Esaú vendeu o seu direito de progenitura a Jacob atroco de um prato de lentilhas, cumprindo assim aprofecia que o Senhor fizera a Rebeca:

“Do teu ventre se dividirão dois povos e um povovencerá o outro povo, e o mais velho servirá o maismoço.(p. XXVI)

Sobre as favas e as ervilhas, largamente consumidasna Grécia e em Roma, pesavam, no entanto, algunsinterditos.

As favas, utilizadas em sacrifícios rituais, eramsegundo Plínio, empregadas no culto dos mortos.Plantas que brotam da terra com o advento daPrimavera, eram olhadas como primícias da Terra, donsdos mortos aos vivos e sinal da sua encarnação. Porisso, para Pitágoras elas eram alimento interdito:

Comer favas era partilhar os alimentos dos mortos.Largamente utilizadas na Antiguidade Clássica, aintrodução maciça destas 3 leguminosas (favas,ervilhas e lentilhas) teria sido, segundo o medievalistanorte americano Lynn White, uma das causas dodespertar cultural da Europa no século X.

Plantas ricas em proteínas e, portanto, de elevadopoder energético, elas teriam sido, segundo LynnWhite o motor da força necessária ao desbravamentode terras e à construção de catedrais. Acerca destepapel das favas como elemento de civilização,escreveu Lynn White:”The X th century is full ofbeans”.37 Muitas são, no entanto, as reservascolocadas por Amato Lusitano em relação às favas eàs lentilhas como elementos de uma dieta alimentarsaudável. Assim:

Em relação às favas, conta Amato na Cura 78 da VICentúria, o caso de uma senhora de 55 anos de idade,mãe de um patrício de Ragusa de nome Júnio Georgi,que, alimentando-se inteiramente de favas e outrosfrutos, começou a “queixar-se de forte dor na boca doestômago”. Amato atribuiu a dor à muita pituita viscosae flatulenta acumulada.

“As favas são flatuosas (como sabeis de Galeno)” -esclarece Amato.

Utilizando no tratamento de vários alimentos eexperimentando vários processos de cura (clistéres,ventosas, unguentos) só a aplicação de um vomitórioconseguiu trazer significativo alívio neste caso.38

5 - Grão de Bico - Valor alimentar e“instrumento” médico

Na diversificada e rica dieta alimentar recomendadapor Amato ao hebreu de Mântua Azzarias, apenasdois produtos são por ele explicitamente excluídos:ovos fritos e as lentilhas e favas. Acerca destas últimasescreveu:

“Recusámos-lhe todos os legumes, principalmentelentilhas e favas embora por vezes provasse um caldo

de grâo de bico”.39

É para esta leguminosa que se canalizam as maioressimpatias de Amato.

“Os legumes são todos maus excepto o caldo degrão de bico”, foi a consideração de Amato naindicação da dieta alimentar de Nicolau, de 5 anos deidade filho de Brás Danse, natural de Ragusa.40

Mas uma outra utilização, que não na alimentação,faz Amato do grão de bico.

Aplica-o no tratamento de feridas de difícilcicatrização e dá desse facto a seguinte explicação:

Devido ao facto de com a humidade ele inchartornando maiores os orifícios, permite deste modo queo pús escorra das feridas infectadas.

* E foi, utilizando este processo que Amato conseguiucurar em 2 meses um homem de nome Damião, naturalda Ilíria que sofria de uma chaga no tornozelo há quase10 anos.41

* Um grão de bico também utilizou Amato notratamento de um menino de 2 anos que sofria deepilepsia.

Segundo as indicações de Albucasi no livro 1°, Cap.II, Amato aplicou-lhe uma queimadela com um ferroem braza na parte superior da nuca. E refere: “Noorifício aplicamos-lhe um grão de bico sendo esterenovado frequentemente. Dele escorreu tanto pús queo menino ficou são”.42

6 - As Favas - Elemento de Civilização e Tabualimentar

Quanto às favas, Amato utiliza-as sob a forma defarinha na composição de um lambetivo recomendadocomo preventivo da defesa dos pulmões em doentesatacados de varíola.43

É, no entanto, acerca das hesitações de Amato emrelação à inclusão de favas na dieta alimentar receitadaa Jacoba Dei Monte, irmã do Papa Júlio II, que Amatotratou em Ancona de uma “destilação cálida”, que asdúvidas acerca das qualidades desta leguminosa sãoexpressas de forma evidente.

Escreveu Amato:“Também combinámos dar-lhe favas, especialmente

quando já ia um pouco melhor e expectorava.Mas, como surgissem dúvidas se lhas haviam de

dar cozidas com a casca ou sem a casca, mandámosque se abstivesse delas. Saber a razão disto, nãodesagradará investigar um pouco, tanto mais que sãoassuntos de que é bom ter-se conhecimento”.44

Aonde radicarão estas fortes precauções de Amatoem relação às favas?

Inserir-se-ão nos tabus e nas crenças queproliferavam na Bacia do Mediterrâneo desde a maisAlta Antiguidade? Ou terão uma outra causa?

Teria Amato com a argúcia do seu espírito deobservador correlacionado a ingestão de favas com oaparecimento da doença que nos nossos dias se

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chama Favismo?Na verdade, sabe-se hoje que essa doença - uma

anemia hemolítica grave que se manifesta por fortesacessos de febre acompanhados de icterícia, é devidaa uma deficiência, de origem genética, de uma enzimados glóbulos vermelhos - a glucose 6.

Ora acontece que os portadores deste géne sãosujeitos quando consomem favas a uma hemolise,isto é, a uma destruição dos glóbulos vermelhos compassagem da hemoglobina para o plasma.

Segundo o estudo de dois especialistas americanosda Universidade da Pensilvânia, Solomon H. Katz eJoan Schall, acerca do consumo de favas na Baciado Mediterrâneo, a incidência do Favismo em certaspopulações mediterrânicas é da ordem dos 10 a 30%.

Teria Amato pressentido esta realidade? Não opodemos afirmar.

Certo é que Amato nos comentários à Cura deJacoba Dei Monti dá conta das suas investigaçõesacerca das opiniões dos autores antigos em relaçãoàs propriedades das favas.

Assim, em relação às favas secas, classifica-as defrias e secas, apoiando-se em Galeno que assim asdefine no livro 7° “De Facultalibus simpliciummedicamentorum”.

Também em Galeno colheu Amato no livro “De victusratione in morbis acutis”, a informação de que a florda fava não perde a sua flatulência mesmo cozinhadadurante três dias.

E reafirma a mesma asserção citando uma outrapassagem do livro “De attemante victus ratione” deGaleno:

“As favas são de difícil cozimento e muito flatulentas”recordando Amato que Galeno afirmara que por essefacto “antigamente eram alimentos dos gladiadores”.Como resposta à questão se convém ou não utilizaras favas no tratamento de doenças pulmonares, Amatocita a opinião dos gregos e dos árabes, e a do próprioGaleno, para as quais era vantajosa a prescrição destaleguminosa neste tipo de doenças. E Amato citaGaleno:

“Na verdade, uma vez que a fava é, como nenhumoutro, um alimento flatulento de difícil cocção étambém apropriado para as excreções do peito e dospulmões”.

Uma dúvida, no entanto, se levanta a Amato quantoao modo como se deve ministrar as favas aos doentesque sofrem de infecções nas vias respiratórias: secom a casca, se descascadas.

Conclui Amato, depois de uma leitura atenta deGaleno, que se deve optar pelas favas moídas ecozidas sem casca, como as utilizaram Galeno eAvicena.

Uma curiosa observação tece Amato em relação aodesacordo entre o afirmado por Paulo Eginêta no livro7° da sua Medicina acerca do modo de usar as favasno tratamento da rouquidão e aquilo que o mesmo

autor expressa no livro 3° sobre este mesmo assunto.Se no primeiro caso Paulo Eginêta corrobora Galeno

recomendando o uso de favas descascadas, no livro3° opta pela utilização de favas cozidas com a casca,considerando-as como das substâncias maisfortemente abstergentes.

Reflectindo acerca desta contradição, concluiuAmato ter existido, muito possivelmente, um erro natradução desta obra e levanta a hipótese de aexpressão “a fava é cozida sem a casca” ter sidotraduzida por “cozida com a casca”.

Mais uma vez, como já noutros estudos salientámos,revelam estas últimas considerações de Amato aatitude esclarecida de um grande humanista que aliao rigor do estudo ao da investigação, lendo,comentando, cotejando os autores antigos, na buscaincessante de luz e esclarecimentos que o ajudassema cumprir plenamente um dos propósitos que lhenortearam a vida e que ele assim defeniu:

“Fui sempre deligente no estudo e, por tal forma,que nenhuma ocupação ou circunstância, por maisurgente que fosse, me desviou da leitura dos bonsautores; nem as viagens por mar, nem as minhasfrequentes deambulações por terra, nem por fim o meupróprio exílio, me abalaram a alma, como convém aohomem sábio”, propósito que permitiria a Diogo Pirro,seu doente e seu amigo assim escrever no epitáfioque lhe dedicou:

“Aquele que tantas vezes reteve a vida que fugia deum corpo doente ou a chamou das águas letais, e foiquerido tanto de pessoas comuns como de príncipes,aqui jaz”.

* Docente da Escola Superior de Educação de CasteloBranco

Notas

1 Amato Lusitano, Cura 3, V Centúria, in Centúrias deCuras Medicinais, vol. III, Lisboa, ed. Universidade Novade Lisboa, p. 171, tradução de Firmino Crespo. Destaedição são todas as citações.

2 Cura 19, V Centúria, Vol. III, p. 203.3 Cura XXIX, V Centúria, Vol. III, pp. 203 - 204.4 Cura 11, III Centúria, Vol. II, pp. 184-185.5 Ibidem, p.185.6 Cura 42, IV Centúria, Vol. III, p. 76.7 Cura 49, IV Centúria,Vol. III, p. 95.8 Cura 54, II Centúria, Vol. II, p. 110.9 (Cura 24, IV Centúria, Vol. III p. 63).10 Cura 54, IV Centúda,Vol. III, p. 98.

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11 Cura 6, I Centúria, Vol. I p. 75.12 Cura 32, I Centúria, Vol. l p. 139.13 Cura 43, VI Centúria, Vol. IV, p. 67.14 Cura 48, VI Centúria, Vol. IV, p. 77.15 Cura 19, V Centúria, Vol. III, p. 204.16 Cura 3, III Centúria, Vol. II, p.17 Cura 86, III Centúria, Vol.II, p. 305.18 Cura 92, IV Centúria, Vol. III, p.144.19 Cura 57, IV Centúria, Vol. III, P. 109.20 Cura 66, IV Centúria, Vol. III, p. 113.21 Cura 71, l Centúria, Vol. l, p. 200.22 Cura 42, IV Centúria, Vol. III p. 74.23 Cura 15, III Centúria, Vol. II, p..24 Cura 69, IV Centúria, Vol.II, p. 286.25 Cura 4, V Centúria, Vol. III, p.26 Cura 95, VII Centúria, Vol. IV, p. 339.27 Cura 99, VII Centúria, Vol.IV, pp. 354 a 356.28 Cura 30, l Centúria, Vol. I, p. 130

29 Cura I, III Centúria, Vol. II, pp. 161 a 163.30 Cura 78, III Centúria, Vol. II, p. 297.31 Cura 30, VI Centúria, Vol. IV, p. 45.32 Cura 61, VI Centúria, Vol. Iv, P.100. ‘33 Cura, 71, VII Centúria, Vol. IV, p. 311.34 Cura 78, VII Centúria, Vol. IV, pp. 319 a 320.35 Cura 85, VII Centúria, Vol. IV, p. 326.36 Cura 43, III Centúria, Vol. II, p. 244.37 Vide Jacques le Goff, A Civilização do Ocidente Me-

dieval, Lisboa, Editorial Estampa, 1983, Vol. l, pp. 82 a85.

38 Cura 78, VI Centúria, Vol. IV, p. 122.39 Cura 42, IV Centúria, Vol III, p. 74.40 Cura V, VII Centúria, Vol. IV, p.17.41 Cura 16, IV Centúria,Vol. III, p. 104.42 Cura 24, IV Centúria, Vol. III p. 63.43 Cura 15, III Centúria, Vol. II, p. 197.44 Cura 1, II Centúria, Vol.II, p. 14.

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O VINHO NA ÉPOCA DE AMATO LUSITANO: CONSOLO, SUSTENTO E ALÍVIO

por António Lourenço Marques*

O estudo da alimentação, quer na Obra de AmatoLusitano quer na Beira Interior, permite encontrar, apartir de inúmeros testemunhos que o universal epluriquotidiano gesto de comer deixou inscritos namemória do tempo, particularidades próprias deépocas e de gen-tes, úteis paradefinir o molde dasua identidade.Simultaneamenteproporciona um in-teressante cami-nho para sondar, eem consequênciacompreender me-lhor as correspon-dentes estruturaseconómicas, so-ciais e mesmomentais.

Comer é umacto essencial-mente colectivo,gerador de “umcomplexo sistemade relações - coma comida e comos comensais”,1

pois sendo umaimposição da so-brevivência, temconotações devária ordem, incluindo algumas da ordem do prazer,com mais gosto ainda quando se faz com os outros.Este mesmo facto torna-o de uma grande riqueza,susceptível de criar múltiplos registos muitoesclarecedores, quando pretendemos descortinaraspectos que o viver das pessoas foi mostrando nodecurso do tempo. Estudando a alimentação,aproximamo-nos, na verdade, do modo de viver dasgentes de outros tempos. É uma operação que nosajuda a dessincronizar o tempo, tornando-o maisverdadeiro. A irrealidade do imaginário passado, surgemais palpável. De facto, podemos também assim

sentir-nos participantes desse tempo que foi vivido poroutros. Na alimentação, o vinho tem um recorte par-ticular. Provavelmente, é uma realidade desde os tem-pos imemoriais, pois a videira é uma planta já existenteno período geológico do terciário, altura em que se

espalhou por todaa costa do Medi-terrâneo, vindo aencontrar parti-culares condi-ções de implan-tação na foz dorio Nilo e navizinhança do marCáspio. Foi nes-tes locais quepersistiu duradoi-ramente, dandoorigem às duasvariedades maisimportantes, aVitis viniferaoccidentalis e aVitis viniferapontica, que con-vergiram poste-riormente para asregiões ociden-tais do Mediterrâ-neo, onde setransformaram naVitis vinifera

orientalis. Os fenícios e depois os gregos e osromanos incumbiram-se de a distribuir mais além,conhecendo-se hoje centenas de variedades de Vitisvinifera distribuídas por todo o mundo.2 Terá sido noséculo VI a. C. que se desenvolveu a sua cultura, emzonas como a Grécia, a Sicília, Marselha, etc.

Assim, na história humana, o vinho entrou em cenaseguramente há muito tempo, como podemossuspeitar através do Gênesis: “Noé, que era agricultor,começou a cultivar a terra e plantou vinha”.3 Mas,infelizmente, com a libação imoderada, embriagou-se e deu aso a comportamentos manifestamente

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reprováveis.O Eclesiástico, outro livro santo, escrito cerca do

ano 200 a. C. por um autor natural de Jerusalém,refere-se ao vinho e ao seu uso de forma tão familiar,que não estaremos longe da verdade se afirmarmosser ele então um constituinte habitual da alimentaçãoe um acompanhante precioso do quotidiano dohomem: “O vinho bebido com sobriedade é umasegunda vida para os homens (...) Que vida é adaqueles a quem falta o vinho?” E o escritor sagradoaprofunda a riqueza dos significados do vinho,afirmando que “desde o princípio foi criado para júbiloda alma e do coração” alertando no entanto para osperigos do seu uso imoderado. “A temperança no beberé a saúde da alma e do corpo. Bebido com excessoproduz a irritação e a ira e muitas ruínas”4. Outroslivros sagrados repetem com frequência tal posiçãosustentada neste livro sapiencial, que foi utilizado parainstruir os catecúmenos e outros fiéis adeptos do culto.Também o Padre António Vieira, certamente inspiradonesta literatura, mas com sabedoria própria, reafirmoutal benevolência sobre o vinho, cerca de dois miléniosdepois, no Sermão da Segunda Dominga daQuaresma: “O vinho é aquele cordeal simples,medicado pela natureza para alegrar o coraçãohumano”.

Na história do cristianismo, em particular a partir deS. Paulo, o vinho representou sempre um papelessencial. Elevado à categoria de elemento integrantee insubstituível do rito sagrado, tornado essência dacomunhão com o pão, viu prolongar-se o significadoque lhe davam os adeptos de Mitra, um deus solarindo-ariano, que foi adoptado pelos gregos epropagado para ocidente pelos soldados romanos.Nessa religião consideravam-no veículo de participaçãomágica na divindade.5 E na luta tenaz que envolveu oculto de Mitra e o cristianismo (a basílica de S. Pedroestá erigida num local em que existiu primitivamenteum santuário àquele deus - “os deuses novos sempregostaram de instalar-se nos lugares em que seadoravam os seus predecessores derrotados”)6 a novareligião apropriou-se dos ritos da sua rival. E assim,adoptou o mesmo significado atribuído ao vinho,transmutado agora no sangue de Cristo, mito que semantém na liturgia actual.

A religião cristã, derivada do judaísmo, assumiu pois,de forma consistente, o crédito, a benevolência e aalegria que sempre se atribuiu ao acto de beber. Poroutro lado, sendo indispensável para a prática do culto,a implantação e o desenvolvimento da cultura da vinhaencontram-se profundamente ligados ao avanço dascomunidades cristãs.

É claro que o vinho, para além daquela função nobre,participante dos processos ligados à esfera sagradae mística, serve essencialmente intentos puramentemateriais, ou seja, do território do corpo: gozo, alimentoe também alivio, quando utilizado como terapêutica.

O vinho como terapêutica

Com tal aura de prestígio, é natural que o uso dovinho com fins terapêuticos remonte a tempos muitoantigos. No Corpus Hippocraticum, que é um conjuntode tratados escritos por vários médicos, quepossivelmente trabalharam em equipa, mas que foiatribuído a um único, de nome Hipócrates, nascidona ilha de Cós, cerca de 46O a. C.,7 encontramosvárias referências de cunho pré-científico sobre o vinho.

No Livro II do Tratado sobre a Dieta, escrito que seconsidera verdadeiramente “digno de Hipócrates”(como Galeno afirmava) porque “insiste na polivalênciados alimentos exactamente da mesma maneira quea Medicina Antiga”8, os efeitos fisiológicos do vinhosão descodificados de uma forma surpreendente.Tomemos nota: “ A água é fria e húmida; o vinho quentee seco, e tem também algo de laxante. Dos vinhos,os tintos e ásperos são mais secos, e não são nemlaxantes nem diuréticos nem expectorantes. Secampelo seu calor, ao consumir a humidade do corpo. Ostintos suaves são mais húmidos, e produzem gasese são mais laxantes. Os tintos doces são maishúmidos e mais débeis, e produzem gases aointroduzir humidade. Os brancos ásperos aquecem,mas não secam, e são mais diuréticos que laxantes.Os vinhos jovens são mais laxantes que os outros,por estarem mais próximos do mosto e são maisnutritivos, e também os aromáticos mais que os quenão têm aroma, pôr serem mais maduros, e mais osencorpados que os leves. Os leves são mais diuréticose os brancos e os leves doces são mais diuréticosque laxantes e refrescam, adelgaçam e humedecemo corpo, e debilitam o sangue, desenvolvendo no corpoo princípio rival ao sangue”.9

Fizemos esta longa citação porque nos parece quesão estes alguns dos fundamentos essenciais quepresidiram às orientações que Amato Lusitano, deforma profusa, refere em inúmeros casos insertos nasCentúrias de Curas Medicinais. Se as percorrermosem busca das citações sobre o vinho, quer comohábito alimentar quer como dieta ou como terapêutica,encontramos um manancial razoável de referências.João Rodrigues de Castelo Branco é um médico culto,sabedor da sua arte e habitualmente quando trata umdoente não esquece a importância que tem oestabelecimento da dieta mais apropriada. E lá vêmas orientações sobre o uso do vinho, quando trata doregime alimentar. Conselhos que são dados quer adoentes do sexo masculino quer do sexo feminino, emesmo a crianças. A sua perspectiva, apreciada naleitura das Centúrias, e genuinamente hipocrática,pois o vinho, tal como para Hipócrates, éessencialmente considerado como medicamento, ouretemperador das energias vitais, nomeadamentedepois da doença. Quando não tem específicaindicação terapêutica, Amato Lusitano, nos casos de

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doença, desaconselha habitualmente o seu uso. Porvezes, é o próprio doente que evita beber esponta-neamente, isto é, interrompe o seu uso habitual,quando percebe que tal lhe é maléfico, embora Amato,como médico, e à luz da medicina inspirada nosautores mais poderosos, o possa admitir “comproveito”. “Olivério, banqueiro de Roma, quarenta anosde idade, atingido por uma pleurite, (...) quanto aométodo de alimentação, absteve-se sempre de vinho,não porque nesta doença não possa ser dado comproveito, pois Galeno admite o vinho nas febrescontínuas, mas porque quando bebia vinho, caía emtosse violenta”.10

A esposa de Natal Proculei, patrício de Ragusa,citada na cura XL, da Sexta Centúria11 com “uma crueldoença (um corrimento pituitoso do útero, complicadocom uma febre contínua) acompanhada de inapetênciade alimentos”, depois de tratada com êxito, com váriosremédios”, entrou num regime alimentar derecuperação, com picado de frango, etc., sendo-lhepermitido “beber um pouco de vinho tinto, fraco e muitobom”. O vinho aparece-nos aqui, provavelmente comohábito alimentar daquela senhora (permissão),certamente também porque Amato Lusitano lheconfere valor nutritivo. E sobre o facto de ser umapresença comum na mesa das pessoas que viviambem naquela época, não teremos muitas dúvidas. Éo que podemos concluir da apresentação do caso dadoença da esposa de um capitão genovês, na cura IIda Primeira Centúria, que “começou a sofrer de dorescólicas”, “vivendo deliciosamente (agens indeliccis),sempre acostumada a boa mesa, sem lhefaltar o vinho”.12 E tal era a propensão desta senhorapara a bebida que mesmo com a dor “bebera vinhogeneroso de Espanha”, o que fez com que a dor“aumentasse e todos os sintomas crescessem”.Talvez se tratasse de uma cólica biliar, por litíase,pois era uma mulher na “pujança da vida, obesa”. Aforte ingestão calórica, costuma associar-se a estapatologia. Amato relacionava de uma forma clara estadoença com o excesso de bebida (“usava muito devinho”).

A rapariga ragusina de 15 anos, cuja doença éobjecto da cura XLIX,13 desta mesma Centúria e que“sofreu um ataque estranho de escarros de sangue”,

depois de uma fase de melhoria “caiu numa totaldificuldade de deglutição a ponto de não engolirqualquer liquido, excepto vinho”. E Amato pergunta:“Porque razão entre outros líquidos só era capaz deengolir vinho? (...) Porque razão esta rapariga sóadmite a transglutição do vinho, mas vomita a água eoutros líquidos?”. Um caso bem estranho e difícil! Noentanto, à luz dessa “sabedoria” que vinha deHipócrates, podia encontrar-se uma explicação:“Porque foi debilitada a parte alta do estômago (quechamamos esófago e os árabes chamam meri) emvirtude da prolongada vomitação e as fibras do mesmoou vilosidades, principalmente longas, enfraqueceramde tal modo em virtude do excesso de humidadecorrendo sobre elas que não podem satisfazer a funçãoobrigatória de deglutir. Daqui sucede que o vinho porser quente de sua natureza, e ser amigo da natureza,robustece de certo modo as vilosidades”. Aqui está ovinho amigo da natureza, como o Padre António Vieirao veio também a dizer, baseado em novosconhecimentos.

Continuando a leitura da Sexta Centúria, nos rastosdo vinho, deparamos com um agradável registo, a LIXcura ,14 já citada noutro estudo sobre o elogio da velhicedescortinado na obra de Amato Lusitano15, quando dánotícia da doença de um ancião “de oitenta anos,pessoa ponderada, sabedora e inteligente, ornamentohonroso destes patrícios”, que havia expelido umvolumoso cálculo pela uretra. Desencadeado otratamento e aconselhada a respectiva dieta, combons resultados, foi o “tão venerando e nobre ancião”instruído acerca dos cuidados a ter no futuro.“Aconselhámo-lo a abster-se de substânciasdiuréticas, salgadas, acres e picantes”, um cuidadoque considerava fácil de cumprir, mas “como não seriadecente tomar abstémio um homem de oitenta anos,mandámos que bebesse vinho do melhor” emboradiluído. Como seria bom que este ensinamento tivesseprevalecido no tratamento dos nossos velhos de hoje,com o horizonte da vida no ocaso, e que quando presosnos cuidados excessivos do corpo, eventualmenteperturbado, sob a guarda da medicina, são privadostantas vezes de pequenos prazeres inocentes, que aserem fruídos só poderiam antes dignificar a poucavida que lhes resta.

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O vinho tem de facto para Amato Lusitano um lugarprivilegiado na mesa dos doentes, e da forma comose refere à sua utilidade, em certos casos particulares,podemos conjecturar sobre a importância que lhe eraatribuída nesta época. É o que nos revela a cura XVIIIda Segunda Centúria,16 sobre um caso de impotênciade um judeu, para cujo tratamento aconselhou acimade tudo (primo) “comer e beber do melhor”. Sobre acomida, apresenta um estendal riquíssimo de iguariascampestres e aquáticas: “capões, galinhas, faisões,tordos, melros, frangos, avezinhas silvestres, masprincipalmente de pardais saltitantes”, etc., etc., epeixes. Mas para beber, o quê é que indicou? Pois,naturalmente, vinho, até porque como escreve “todossabem que Vénus esteriliza-se sem Ceres (agricultura)nem Baco (vinho)”. Esta ideia prevaleceu. Mais deum século depois, o Padre Manuel Bernardes (1644 -1710), na Nova Floresta, conta o seguinte facto:“Havendo alguns anos, que a filha de EI-Rei D. Duartede Portugal, era casada com o Imperador FredericoIII, sem ter filho, aconselharam-lhe os médicos queusasse de vinho, para lograr a desejada fecundidade”O célebre imperador alemão, não podia ser impotente,naturalmente, e já beberia vinho. Competia então àsenhora, que era a infanta D. Leonor, seguir aquelesconselhos dos médicos. O que é um facto é que docasamento realizado em Roma, em 15 de março de1452, nasceu Maximiliano I, pai de Filipe I de Espanhae avô do imperador Carlos V. Em 1831, o doutor emmedicina da Faculdade de Paris, Descourtilz, escreviaque o vinho tomado moderadamente “predispõe paraos ardores de Vénus”, conhecimento que no final doséculo XX continua perfeitamente actual.17

Outra indicação terapêutica do vinho ingerido compílulas de aloés, caldinhos com sementes de coentro,nozes em jejum, e comidas preparadas com salsa,hortelã, hissopo e mastruço, é a do tratamento dasparasitoses intestinais, afecção então muito frequente,não só em crianças como em adultos. Na cura VI daPrimeira Centúria Amato Lusitano descreve, compormenor, curiosos conhecimentos sobre a infestaçãopela lombriga ou ascaridíase.18

O vinho é ainda usado com muita frequência empensos embebidos, utilizados para curar lesões

cutâneas, feridas ou outras lesões produzidas portraumatismos profundos, atingindo mesmo asarticulações, como no caso do tratamento da contusãodo calcanhar de Paulo Gozio, descrito na cura XLVII,da VI Centúria.19 A mesma utilização é referida para otratamento das lesões provocadas no corpo do filhodo jovem que caiu de uma janela, que é o casoapresentado na cura IX da mesma VI Centúria.20

Porém, esta utilização nas lesões traumáticascutâneas já era prática no século XIII, sendo referidapor um cirurgião, o Bispo de Cervia.

Também como produto antiséptico ou como veículona preparação de cataplasmas, com o mesmo fim, ovinho tinha uma grande utilidade. “A virtuosa ecastíssima esposa de Vizinho, de 24 anos de idade”com um problema de deslocação do útero, e commuito pus, foi tratada com a aplicação local de “umcataplasma de flores de romã, de murta, de rosasvermelhas e de semente de sumagre, em vinho tintocarregado. (...) Também interiormente, na cavidadese adaptava um pedaço de lã embebido no mesmovinho”.21

Enfim, a profusão de referências ao vinho nasCentúrias de Curas Medicinais, permite fazer umaavaliação clara do seu uso, quer como hábito alimentardo século XVI, quer como elemento terapêuticovaliosíssimo na medicina de então. Leia-se porexemplo, na tradução de Firmino Crespo, a cura XXVIIIda Primeira Centúria22 sobre a “propinação de vinhonas febres contínuas” de um o doente que nunca seabsteve de vinho. Mas do vinho certo, bem escolhido,bem preparado, bem guardado e bem utilizado, comoAmato Lusitano aí explica com grande segurança,maestria e muito proveito.

* Assistente hospitalar graduado.

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Notas

1 Comer y beber en la Idad Media, Historia 16, AnoXIX, n° 223, p. 22.

2 Miguel A. Torres, Producción y comercialización delvino en el Mediterráneo.In: La alimentación mediterránea,F. Xavier Medina (ed.), Icaria, Barcelona, 1996, p. 197.

3 Gênesis, 9.4 Eclesiástico, 31.5 Erich Kahler, Historia Universal del Hombre, Fundo

de CulturaEconómica, México, 1993, p. 143.6 Ibid. p. 1417 Hipócrates, Juramento Hipocrático - Tratados

Médicos, Planeta De-Agostini, Madrid, 1995, p. 7.8 Robert Joly, Hipocrate Medicine Grecque, Gallimard,

1964, p.174.9 Hipócrates, Juramento Hipocrático - Tratados

Médicos, Planeta De-Agostini, Madrid, 1995, p.p. 232-233.

10 Amato Lusitano, Primeira Centúria, Livraria Luso-Espanhola, 1946, p.88.

11 Amato Lusitano, Centúrias de Curas Medicinais,Trad. De Firmino Crespo, Volume IV, Universidade Novade Lisboa, p.p. 62, 63 e 64.

12 Primeira Centúria... etc, p. 35.13 Ibid. p. 78.14 Ibid. p. 97.15 A. L Marques, “A Velhice no Tempo de Amato

Lusitano”, Cadernos de Cultura “Medicina na Beira Inte-rior”, n° 8, Castelo Branco, 1994, p.p. 17-20.

16 Ibid. Vol. II, p. 43

17 A. S. Martins, in: Sexologia em Portugal, II Vol., TextoEditora, Lisboa, 1987, p. 213.

18 Primeira Centúria, etc. p. 44.19 Ibid. p.76.20 Ibid. p. 23.21 Primeira Centúria, etc., p. 6622 Ibid. p.p. 98 - 103. Exemplo: “O vinho que ele usava

era branco e naturalmente frio a que todos osLombardos, principalmente os de Ferrara, chamamAlbano. Não é de admirar se dissermos que este vinhoera, de sua natureza, frio, visto que comparado ao corpohumano é, sem dúvida, frio. De facto, com as suaspropriedades logo torna frio e até esfria mais do que aágua; pois a água esfria só porque é fria; o vinho, porém,não só esfria pela sua frialdade, mas ainda por umacena agrura do paladar pelo que penetra mais facilmentedo que a água”. E sobre o vinho branco, bom para osdoentes com febre, transcreve Galeno: “ Este vinho decor branca (chamado oligóforo), de ténue substância,não possuindo nenhuma das qualidades que há nosoutros vinhos, nem a aspereza, nem a adstringência,nem a doçura, nem a acidez, nem o aroma. É o únicovinho que foi dado evitar os males da água e do vinho.Em cada pais aparecem alguns tipos: na Itália, o Sabinofraco, que dãoaos febricitantes; na Ásia, o Titacazeno eo Tibiceno. Uma vez conhecidos os caracteres destevinho, facilmente se encontrará em qualquer região ondese produzem os vinhos muito fracos e aquosos.Encontrei-os, de facto, na Cicilia, na fenícia e em Cyro daPalestina, etc. E até os vi, como disse, em todos os paísese, o que é mais de admirar, no Egipto”. E Amato Lusitanocomenta: “Nestas palavras de Galeno, brilha mais claroque a luz do meio-dia que este vinho branco aquoso ébom para os febricitantes”. Etc.

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ELOS À VIDAALIMENTO DA PALAVRA POÉTICA

por Maria de Lurdes Gouveia da Costa Barata*

«Colhe a azeitona dos frondosos olivais, à chuva,ao vento, levantando-se ainda de noite, ao toque dobúzio, para preparar um caldo de couves com feijõespequenos e assar umas sardinhas que entala numnaco de broa rachada ao meio para servir de merendaao meio-dia, dando um pouco de conforto aoestômago, para poder gritar, no cimo das oliveiras,uma moda dolente apropriada, misto de resignação ede dor, de alegria e de tristeza, de sofrimento e mágoamal contida contra um destino tão revesado, contrauma sorte tão madrasta»

(Beira Baixa, Jaime Lopes Dias, p.135, 136).

Deste modo, José Pedro Moreira fala do povo beirão,em princípios do século XX, enquadrando-o numapaisagem austera de terra pouco generosa, de perfilafiado por nortadas agressivas, talhando as gentes asofrimento e sacrifício de luta tenaz pela sobrevivênciaquotidiana.

O poeta António Salvado dá os traços marcantesda Beira Baixa em que o verde é o da sem esperança:

Onde as searas cruzam a granitoE a voz do longe é feita de suor.

A suave beleza solitáriadas oliveiras raras numa encosta

A estranha consolação das giestastão floridas em campos desolados.

E o verde esperança filho da sem esperança.(Interior à Luz, 2° ed., p.14)

Frade Correia enquadra de lirismo esta Beira, nãosem lhe deixar o travo disfórico de uma realidadehostil: «A lírica suavidade / das raparigas que descemas encostas, / com bilhas à cabeça... A claridade /das tardes outonais! / O fumo que sobe alto como asnuvens / das ceias tão frugais! (...)» (Jaime LopesDias, ob. cit., p.200). A marca da pobreza vemexpressa na frugalidade duma alimentação, produtode condições geográficas.

Insistindo com um poeta da Beira Baixa, JoãoCamilo transmite-nos esta terra, que parece abarcarnum passeio, mas que lhe vibra no coração: «Estatarde fui de bicicleta ao rio Ponsul. / (...) As vezes apaisagem parecia o deserto devido à cor do céu, / eeu pensei nos filmes de cowboys, na travessiaperigosa de certos vales. / Arbustos rasteiros e pedras,algumas oliveiras. / Mas não parecia árida esta terraonde só cresce o mato».

Meio físico e alimento interligam-se, predestinandoaquele às gentes que o habitam. Se Orlando Ribeirofala da Beira Baixa como uma «manta de retalhos»,há alguns destes de pior estamenha, negando-se, porinfertilidade, a oferecer ao homem o alimentoindispensável ao viver. Os alimentos são dons daNatureza que a natureza humana exige.

A alimentação desempenhou sempre um papelimportante e fundamental «na estrutura e na evoluçãobiológica dos diferentes grupos raciais nas suascaracterísticas», como explica Josué de Castro(Geopolítica da Fome, p.101). Continua o mesmoestudioso (ob. cit., p. 103): «Sob a acção avassalanteda fome, dá-se no homem o apagamento ou mesmoa absoluta supressão de todos os outros desejos einteresses vitais, e o seu pensamento concentra-seactivamente em descobrir o alimento por quaisquermeios e à custa de quaisquer riscos». Voltemos entãoà Beira, para ouvir Carlos Selvagem a falar das gentesdeste espaço hostil: «Ficou, como sempre, pelo amorà terra, o povo humilde, servo da gleba, que não temo gosto nem o pendor migratório e quando emigra éque a terra lhe nega o mínimo e, então, parte com aalma a sangrar e a alumiá-lo só a crença de voltar umdia» (Beira Baixa, p.161). Esse povo beirão arrancou-se assim das suas raízes e partiu para outras terrasna demanda de melhores condições. FernandoNamora dá a dimensão desta ferida num poema que,embora de abrangência global, se adequa ao contexto:

António, é preciso partir!

O moleiro não fia,a terra é estéril,a arca vazia,

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o gado minga e se fina.António, é preciso partir!A enxada sem uso;o arado enferruja,o menino quer pão, a tua casa é fria.É preciso emigrar!O vento anda como doido - levará o azeite;a chuva desaba noite e dia - inundará tudo;e o lar vazio,o gado definhando,a morte e o frio por todo o lado,só a morte, a fome e o frio por todo o lado,António!

É preciso embarcar!Badalão! badalão! - o sinojá chora a despedida.Os juros crescem;o dinheiro e o rico não têm coração.E as décimas, António?Ninguém perdoa - que mais para vender?Foi-se o cordão,foram-se os brincos,foi-se tudo!A fome espia o teu lar.

Para quê lutar com a braveza da terra,com a indiferença do Céu,com tudo, com a morte, com a fome, com a terra,com tudo!Árida, árida a vida.António, é preciso partir!António partiu.E em casa, tudo ficou sem jeito, desamparado,vazio.Ficou a solidão.

As Frias Madrugadas

No rumo desta reflexão entra assim a presença dosalimentos nas palavras de poetas e romancistas.Também o contrabando foi maneira de resolverproblemas de sobrevivência com afastamento menosprolongado da família. As zonas de raia da Beira sãopropícias a essa realidade. De A Noite e a Madrugada,de Fernando Namora ainda, retiramos esta situação:

«O Camarão, um feião dos demónios, o maispossante contrabandista de Montalvo, ria como umgaiato da sua sorte ao jogo. Por isso, foi o único asaudar o Pencas.

- Já moeste a bicha? (refere-se a uma cobra)- tava farto. A canalha vai acabar com ela.- Estás assim a desprezar uma ceia em condições?

Já comi lagartos em Espanha e terei de os comersempre que as coisas corram mal. São bichosanafados, que dão uma rica sopa. (...)

- Estava doido de fome, Pencas, no meio da serra;

tínhamos meio quilo de pão para três... Filei dois,carago, verdinhos como feno, deram um molho queparecia banha a derreter-se no trigo! Sabias dessepetisco?

- O Rechena ainda agora mo disse; mas aquela, sea comesse, dava-me ânsias. A vaca quis morder.

- Se o mouco não te der hoje ceia, deixas as ânsiasde lado... Um dia a gente leva-te ao contrabando; vaisaprender a livrar o corpo de apuros. Que dizes a umlagarto gordo comido na serra, estrugidinho por mim?...E ainda ganhas para uma semana de vinho, conho!Bebe aí um copo, não hás-de ser toda a vida ummedricas!» (p. 19 e 20).

Constatamos, no brutal desta conversa, as agruraspor que passa o ser humano quando corre o risco desoçobrar, dando corpo ao provérbio «Quando há fome,não há ruim pão» ou «Asno com fome, cardos come».Não se diz também «Primeiro os dentes que osparentes»? O instinto de conservação fala alto edomina todo o resto.

Falávamos da raia, do contrabando. Também aexpressão desse espaço se documenta na palavrade António Salvado, num poema homónimo de quereteremos as duas últimas estrofes:

(...)Como agarrar as amplidões dos cumes,arrancar da neblina a fenda proibidado céu azule retalhar por entre a incertezaa pedregosa e mendigante viade mitigar a fome e saciar a sede?

Ficou tombado no florar das urzes,dos giestais transidos de humildadeum coração calcado sem futuroe retalhado.

(O Corpo do Coração, Raia, p.39)

O perigo de vida - o que ameaça a estabilidade cor-poral - motiva o homem, que desde o início da suaexistência descobriu a máxima mens sana in corporesano e há muito conferiu a desagregação dapersonalidade sob o suplício da fome. Ninguém discutepolítica com o estômago vazio, ninguém fala deobjectos de amor sem primeiro dar resposta ao instintode conservação, que é o mesmo que dizer, o instintode alimentação. A força sexual, com o peso daprocriação e continuidade da espécie, esbate-se edesaparece diante do espectro da fome. «Quem come,com todo o mal pode» ensina o povo sabedor. Perdero apetite é sinal de alerta, doença próxima ou doençajá declarada.

S. Gens, orago das Moitas, tem o poder de restituiro apetite às pessoas que o perderam. Diz MariaAssunção Vilhena, em Gentes da Beira Baixa -Aspectos etnográficos do concelho de Idanha-a-Nova

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(p.408), que, quando alguém não consegue comer porfalta de apetite, lhe é aconselhado: «Promete umasmigas a S. Gens» e «então prometem-se esmolasem pão aos pobres e vão lá distribuí-las no dia daFesta que é no Domingo de Pascoela».

Assim, a alimentação domina a vida, frequentementesem que disso nos apercebamos. Expressõespeculiares o documentam: «é comer e calar»;«comem-se uns aos outros»; «deixar-se comer»;«essa não como eu»; «ou há moralidade ou comemtodos»... E há aquele que é «unhas de fome», ou oque «tem fome de dinheiro», ou o que «bebe aspalavras», ou o que «bebe os ventos» por alguém oupor alguma coisa...

Andrée Rocha faz um estudo sobre Um MotivoObsidiante na Narrativa Queirosiana, que são asalusões alimentares. Transcrevamos um dos aspectosfocados, que tem alguma generalização de referênciano falar: «... apetite carnal está amplamentedocumentado em personagens como Amaro, Basílio,Carlos, Teodorico e outros menos importantes. Aspróprias expressões que acompanham amorespecaminosos ou venais têm a ver com um referentecomestível. Quando Amelinha, receosa de incorrer naira divina, exprime o seu desejo de morrer, Amaro temesta réplica inesquecível: - “Com estas carninhas!”(...) Teodorico, desconfiado da fidelidade da suaMaricocas, pergunta a Alpedrinha. - “Petiscaste?”. Aoprazer amoroso subjaz sempre um impulso de gula,como ao prazer gastronómico uma evidente volúpia»(Temas de Literatura Portuguesa, p.118 e 119). Nestalinha, uma linguagem familiar torna usual expressõescomo uma mulher apetitosa ou de apetite e ele é umpão. Constatamo-lo apenas, sem discutir o mau gosto.

Um nunca acabar de vivências vai concatenar osignificado profundo do acto de alimentar-se. Arefeição, seja almoço, jantar, merenda ou chá, agregaas pessoas para celebrar, festejar. Retrocedendo àrefeição nocturna dos cristãos, o ágape, encontramosa paz no beijo trocado, continuação e memória daÚltima Ceia. Confraternizar e celebrar. É o significadoque está ligado ao casamento e às grandes bodas,às refeições de aniversários e comemorações. Mesmoque, em certos casos, venha a manifestar-se a gula.Para um sorriso, António Ramos Proença, nas suasMemórias de um Médico, conta os jantares do EspíritoSanto, «que se realizavam anualmente em Maio, emmais que um domingo, como consequência depromessas feitas em situações aflitivas. Reunião entredez a quinze convivas, os Irmãos da Confraria, emlouvor do Espírito Santo. (...) Opíparos banquetes,bem servidos e melhor regados, onde se comia ebebia até fartar, tendo a particularidade de se cantarem coro o “Bendito e Louvado”... E bem assim, antesde cada prato, à laia de aperitivo para o que se seguia,e como remédio de acondicionamento para o que jáse tinha comido. (...) Os jantares eram fartos, cinco a

seis pratos fora a sopa e abundantemente regadoscom tinto e branco. Cada prato, cada cântico e nofinal, para bem se saber onde se realizava, vá decantar à porta da casa, já na rua, o “Bendito e Louvado”(...)». Ramos Proença fala ainda do sacristão que in-tegra esta historieta como sendo um garfo dosmelhores e um copo dos maiores.

Na palavra, seja a mais poética ou a mais prosaica,aparece metaforizada a alimentação. Sabor e cheirovêm da Natureza e entranham-se no verbo tomando-omais vigoroso e expressivo.

Eugénio de Andrade deu o título As Mãos e osFrutos a um livro de poemas, e versos como «só astuas mãos trazem os frutos» (Eugénio de Andrade -Poesia e Prosa - I, p.13), ou «tremem maduras todasas espigas / como se o próprio dia as inclinasse»(ib., p.15), ou «Canto porque o amor apetece. / Porqueo feno amadurece / nos teus braços deslumbrados»(ib., p.14 e 15), ou «Somos folhas breves ondedormem / aves de sombra e solidão. / Somos só folhase o seu rumor. / Inseguros, incapazes de ser flor / (...)(ib., p.21), traduzem a imbricação dum mundo veg-etal e comestível.

Aroma de frésias e cores de lima e limão embebema poesia de Eugénio de Andrade. E têm relação comsabores, cores, aromas da Beira Baixa.

António Salvado torna exuberante de natureza beirãmuitos dos poemas de O Corpo do Coração. Umaautêntica

Natureza viva com frutos

O frescor das maçãs imobiliza:comove em arrepio agitaçãoa pele inerme e cálida das mãos -um gemido animal que regozija.+Gomos por entre os lábios e trincadosimpacientes mitigando a sedesorvidos lentamente a saciar -e a frescura da sombra de arvoredos.+A pouco e pouco desgarrando as bagaso sabor apertado e tão mordidona língua a destilar esvaecida -os cachos na videira a cintilar.+Com amplas copas de folhagem verdenem o calor lhe dilacera a frescapalpitação do seu interior -o figo aberto à dimensão da boca

(O Corpo do Coração, p.13)

Também em Plantas da Beira (ob. cit., p.37) tornavivas e eternas as giestas, o alecrim, o rosmaninho, aalfazema, as estevas, a «filigrana de orégãos», o per-

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fume do tomilho, a salsa e a profusão da artemísia edo endro. Muitos mais exemplos poderiam ser dadosa partir da obra deste poeta.

Josué de Castro, na obra já anteriormente citada,dá importância ao revestimento vegetal dum espaçoe afirma peremptório: «O meio botânico constitui oelo que liga de maneira indissolúvel o grupo humanoao meio físico - a um determinado tipo de solo e clima»(p.101). O reino vegetal simboliza a unidade da vida eo carácter cíclico da existência como hierofania deforça cósmica.

Pão é liame vital. Marialcina (Não é uma Estrela)num breve poema com o título Valor transmite essaideia: «Milho / a brilhar / ao sol. // Vidas / da mesmacor // Alimento / calor». O trigo, benesse de origemconcedida por Deméter, a deusa maternal da Terra,ainda hoje se deita aos noivos que saem da igrejadepois de casados. Trigo é símbolo de abundância eos grãos que contém, comparados ao ovo do mundo,remete para as origens. Em muitas terras da Beira,as fogaças oferecidas aos noivos eram constituídaspor alqueires de trigo. Também o arroz tem umasimbologia afim - se o trigo é elemento essencial naEuropa, o arroz é na Asia. Significa felicidade efecundidade, a pureza primeira. Daí estar igualmentepresente nos obséquios aos noivos.

Não se contêm os poetas da Beira Baixa no cânticosempre renovado aos cereais e aos frutos, por vezesnuma ânsia de libelo que pretende a igualdade nadistribuição de bens essenciais, como no poema MaisJustiça (Versos - Poemas de Amor e Saudade) deManuel Dias Catana:

(...)E admirei muitos campos verdejantesDonde o trigo e o milho hão-de brotar,Com que o homem, nas lidas fatigantes,Hão-de um dia o seu corpo alimentar.E vi frutas docinhas, saborosas:O alperce, a maçã, a doce pêra,Mais perfumadas do que as frescas rosasNas amenas manhãs de Primavera.Uvas de muita estirpe e cambiante,De sabor raro, fresco, delicioso,A bela melancia refrescante,O melãp perfumado e saboroso,E o nectar puro, ardente e cristalino,Que ao homem dá vigor e alegria,Tudo fazendo crer que há um Ser Divino,Ser que tudo nos dá e tudo cria.- Ó Deus, alto Senhor Omnipotente,Autor de tanto mimo e maravilha,Distribui esses bens por toda a gente,Pondo a maior justiça em tal partilha!

As dádivas da Terra são para todos os homens daTerra. Dádivas de fazer crescer água na boca, com

aromas, sabores, que se imiscuem na boca em

Sonancias

Boca de rosaamor profanoboca de espinhosamor bravio

boca de amorasamor de vinho

boca salgadaacre ciúme

boca exangueamor vazio

Fernando Namora (Nome para uma Casa)

Destes retalhos de reflexões, se deduz que oprimeiro elo à vida passa pela alimentação.Alimentação que a linguagem assimila, que alimentafrequentemente a palavra poética. E a palavra poéticaenche-se de elos vegetais, de sugestões de repleção.

Nada melhor para terminar que um canto à terraprenhe das benesses de Deméter, na voz de AntónioSalvado (Utere Felix, p.16):

Cantarei porque a terra está madurae as papoulas namoram as cigarrase as madressilvas trepam pelos murose lá ao longe alvoram alvoradasResplandece no brilho dos trigaisa voz secreta duma brisa ondeanteSoltam chamas os frutos quando estalaa sua casca maternal e quente(...)

Elos à vida: os alimentos. Que estão na palavrapoética. São também alimento da palavra poética.

* Docente na Escola Superior de Educação de C.Branco. Mestre em Literatura Portuguesa

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Bibliografia

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Verbo”, n° 18 - Livros RTP.NAMORA, Fernando. Nome para uma Casa -Lisboa

Livraria Bertrand,1984.PROENÇA, António Ramos. Memórias de um

Médico - Factos, historietas e... ocorrências. Pequenase despretensiosas narrativas, algumas com sabormais ou menos alegre e até anedótico. -CasteloBranco: edição de autor, 1980.

ROCHA, Andrée Crabbé. Um Motivo Obsidiante naNarrativa Queirosiana. In: «Temas de LiteraturaPortuguesa». -Coimbra, 1986.

SALVADO, António. O Corpo do Coração. -Lisboa:Átrio, 1994.

SALVADO, António. Interior à Luz. Nova Edição. -Coimbra A Mar Arte, 1995.

SALVADO, António. Utere Felix. -Castelo Branco:Belgaia - Produção Cultural, Lda, 1990.

VILHENA, Maria Assunção. Gentes da Beira Baixa- Aspectos Etnográficos do Concelho de Idanha-a-Nova. -Lisboa, Faculdade de Letras: Edições Colibri,1995.

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A influência mediterrânica na vida científica portuguesa do século XVI.

A BOTÂNICA DA BACIA MEDITERRÂNICA EM AMATO LUSITANO

por António Manuel Lopes Dias*

1. Notas acerca das origens da cultura árabe

“Tudo se faz pouco a pouco,...”“O meu coração nú” de Baudelaire

Em fins do século VII as guerras de expansãochegavam ao fim e nessa época foi decidido substituiro grego pelo árabe em documentos oficiais. O Corãofoi sempre copiado em árabe. Até à fixação por escritoe em árabe, muitas ideias sobre diferentes temasestavam armazenados na memória das pessoas eeram transmitidas de boca em boca e de geração emgeração.

A escrita tornou-se usual a partir da segunda metadedo século IX, graças à rapida arabização do PróximoOriente e ao conhecimento da técnica da fabricaçãode papel. Este foi descoberto por um chinês, Ts’aiLun, segundo a tradição e começou a fabricar-se noTurquestão oriental no séc. V. Por volta de 757,produzia-se já em Samarcanda por mãos chinesas,possivelmente prisioneiros da guerra e através dascostas mediterrânicas chegam a Tunis no tempo dosaglabíes, quer dizer, antes de 909, e ao AI - Andaluzantes de meados do século X, pois daquela épocasão os Breviário e missal moçarabe de Leiden(mosteiro de Silos) e o Glossário arabicolatino damesma cidade, hoje holandesa.(15)

Palavras árabes ou persas e mesmo latinas ougregas, remodeladas numa pronúncia oriental de todasas origens receber-se-á o seu contributo: álcachofra,albricoque, açafrão, carmezim, algodão, alcool,alcatrão, zero, algebra, entre muitas outras. Oportuguês recebe o vocabulário árabe em dose maciça- mais de 900(10).

2. Trocas culturais e científicas entre o Orientee o Ocidente

As trocas culturais e científicas entre o Oriente árabee o Ocidente cristão tiveram lugar nas regiões que

conheceram sucessivamente uma ocupaçãomuçulmana duradoura e uma reconquista cristão: aSicília e a Itália do Sul, a Espanha sobretudo e tambémPortugal.

Graças a numerosas tradições de obras filosóficase científicas de árabe em latim, o Ocidente redescobriua herança antiga até então conservada em trechosesparsos, enriqueceu-se com métodos e técnicasnovos, encontrou as bases de um desenvolvimentointelectual decisivo.

Gerardo de Cremona traduziu para latim grandesoma de conhecimentos médicos árabes, como é oCânone de Ibn Sinâ (Avicena). Uma mesma realidadese nos impõe e suscita a nossa curiosidade: amedicina árabe então em todo o seu esplendor eiluminava todos quanto dela se aproximavam.

A idade do ouro dos países muçulmanos desde oséc. VIII ao IX ajudada por condições materiaisfavoráveis, nomeadamente a extensão do espaçogeográfico, as riquezas artesanais, e agro-pecuáriase as trocas comerciais. Face ao Ocidente do inícioda Idade Média apresentava um avanço espantoso, afilosofia e a ciência árabes levavam os seus frutos auma Europa que começava o seu próprio despertar.

A cultura árabe deixou então de ocupar no campohistórico o lugar privilegiado que fora até então o seu,falando-se de declínio. Mas não se pode esquecerque o Ocidente muçulmano continuou a viver graçasàs descobertas dos grandes sábios, mais difundidas,ensinadas e comentadas incansavelmente, embora amedicina árabe, tal como as outras disciplinas,tivessem deixado provas de dinamismo criativo efecundo, como acontecera nos séculos anteriores.

Muitos dos sábios, incluindo os maiores, comoal-Râzi (Rhazés), al-Madjûsi (Haly Abbas), Ibn-Sinâ(Avicena) são de origem persa, mas como a línguaárabe, foi o seu meio comum de expressão, falamosde medicina árabe.

Todas as religiões, tinham homens sábios quetrabalhavam lado a lado. Por isso, muitos falarão da

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medicina “islâmica”, que se difundiu num império cujasbases, culturais e religiosas foram o Islão e algunsdos seus representantes mais ilustres, foram cristãosou judeus e não muçulmanos.

Sem dúvida que a ciência médica praticada noOriente muçulmano repousa largamente sobreconcepções antigas herdadas de Hipócrates. A teoriahumural exerceu uma influência prepoderante namedicina até ao século XVIII. Doutrina filosófico-médicainserida num sistema global de explicação do mundo.A boa saúde resultava da mistura em boa proporçãode humores, do seu equilíbrio que o médico deviaquerer atingir os seus doentes. Também é preciso terem conta o paciente, devido ao seu temperamento,aos seus hábitos alimentares, às suas doençasantecedentes, ao clima da sua região e novelos decoisas que o doente acrescentava.

3. A herança grega

Os fundamentos antigos foram conhecidos pelossábios árabes, sobretudo graças às traduções dasobras gregas.

A literatura médica antiga, fora ensinada econservada, em universidades como a de Alexandria,no Egipto, e com mais cuidado no Hospital deGondêshâpur no sul da Pérsia.

Assim como figuras históricas que foram notáveiscomo al-Mansûr que contratou Djurdjîs b. Bukhtîshûmédico em Bagdade e que foi director do hospital deGondêshâpur e o sábio cristão Hunayn b. lshâq, chefede fila de uma verdadeira escola de tradutores.

O califa al-Ma’mûm que fundou a “Casa daSabedoria”, em Bagdade, na primeira metade doséculo IX, uma academia. Hunayn b. Ishâq traduziuem sírio e em árabe 129 tratados de Galeno.

Através destas traduções com exigências científicasmodernas, a obra de Galeno foi largamente difundida.Com estas versões árabes, os Aforismo, osPrognósticos, as Epidemias, de Hipócrates e o tratadode Botânica de Dioscórides, os escritos de Rufo deÉfeso, as compilações dos sábios bizantianos comoAlexandre e Paulo de Egina e outras obras.

Esta herança grega, assimilada através dastraduções criou um vocabulário médico que até entãofaltava à língua árabe.

Do grego To xérion (medicamento em pó) foi tomadoda forma derivada do siríaco ikdîrîn, tonando-se emárabe iksîr acompanhado do artigo defenido, al-Iksîrque pela via da tradução latina devia dar o elixir.

Através dos hindus, sobretudo no domínio dafarmacologia, o arsenal terapêutico da Índia assentaquase exclusivamente nas plantas. O livro de Shanaqfoi escrito no séc. IV da nossa era, foi traduzido empálavi, depois em árabe sob a califa Al-Ma’mûm.Tratava de venenos e das propriedades e virtudes dasplantas.

Neste património grego e helenístico sobretudo, mastambém hindu, devem ser procuradas as origens e osfundamentos da ciência árabe.

Al-Râzi (Rhazés) que tinha o gosto pelos livros, fezvastas compilações e deixou quase cinquenta obras,homem erudito e que foi director, no séc. X, de umhospital em Bagdade. Entre os livros publicados deixouuma enciclopédia em 23 volumes, com título notável,do “Livro que contém tudo”. Além disso Al-Râzi citanos seus livros de doenças, a opinião de autoresgregos, sírios, indianos, persas e árabes. A literaturados mestres é considerada exemplar e davaautoridade, além das notas das suas própriasobservações.(10)

Al-Râzi descobriu uma “verdade” que é exemplar:“o mais recente beneficia dos dados adquiridos dosseus predecessores, acrescentando-os com umestudo pessoal de sua autoria”. A via do progressocientífico está firme nestas suas palavras.(5)

4. Apontamentos do domínio muçulmano naPenínsula Ibérica

Depois da morte de Maomé (632) empreenderamos árabes uma guerra de conquista que, em menosde um século, lhes deu um império que se estendiadas margens do Indo à orla do Atlântico.

Em 694 descobriu-se que os judeus peninsulares,comparando a sua situação com a dos que viviam naTingitânia e continuavam a praticar o Judaísmo sob ojugo dos muçulmanos entravam com estes emconjuração, a fim de instaurarem o mesmo regime naHispânia. Segundo as decisões do Concílio de To-ledo (XVII) os conspiradores judeus que fizessem oapoio dos muçulmanos seriam vendidos comoescravos e perderiam todos os bens e os filhos,maiores de sete anos eram-lhes igualmente retirados.A sucessão dos acontecimentos veio demostrar: quefoi ineficaz, talvez por não se aplicar completamente,a legislação anti-judaica e em outro plano que osjudeus não eram vítimas inocentes. Além de teremurdido uma invasão dos muçulmanos, colaboraramactivamente com os invasores. Dizem os cronistasárabes que, nas cidades onde viviam judeus, porexemplo, em Toledo, eram estes quem as gaurneciacom os muçulmanos, depois da conquista.

A conquista muçulmana levava sete anos, e areconquista cristã havia de demorar oito séculos. R.Menéndez Pidal divide estes oito séculos, em trêsépocas: (três séculos, de 720 a 1002), em que asupremacia pertenceu aos muçulmanos; segue-se umbreve período de transição (meio século, de 1002 a1045) em que os cristãos já são um pouco superioresem armas. 2ª Reconquista (dois séculos, de 1045 a1250), em que a supremacia pertence aos cristãos.3ª Epílogo granadino (dois séculos e meio, de 1250 a1492) (11). A verdadeira luta entre cristãos e

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muçulmanos, durou, pois, cinco séculos dos quaisapenas dois são de reconquista propriamente dita(12).

Ao domínio muçulmano só escapou uma pequenaregião montanhosa, no extremo norte, onde se refugiouPelágio com os sobreviventes das hostes do últimorei visigótico, D. Rodrigo. Fiéis ao ideal da Hispânicacristã, não tardaram esses homens a iniciar omovimento libertador. Mas a conquista muçulmanalevava sete anos e a reconquista cristã havia dedemorar oito séculos.

A monarquia visigótica tinha tombadoinesperadamente com o desastre de 711. Nem osmuçulmanos previam que a invasão lhes resultaria aposse, quase imediata, da maior parte da Península.Tão rápida queda, foi imputada ao sistema de relaçõesentre o Estado e a Igreja. Se algumas desventurashouve, a causa mais importante atribui-se à própriaorganização política. A monarquia visigótica era electivae nisto residia a sua principal fraqueza. Como todosos nobres podiam aspirar ao trono, andavam emconstantes lutas e não raro depunham ouassassinavam os reis, para se apoderarem da coroa(segundo Gama Barros, foram depostos ouassassinados 14 em 34 reis).

Com excepção das Astúrias e da Galiza onde oscristãos consolidavam o seu domínio, formaram-sejunto dos Pirinéus novos núcleos de resistência comos Navarros e Aragoneses, era de resto, no séc. VIII,o domínio muçulmano quase completo da PenínsulaIbérica.

Em fins do séc. VIII, os Francos fizeram naCatalunha várias conquistas e constituíram com elasuma província chamada Marca Hispânica, que serviude barreira contra os muçulmanos.

O quadro cronológico indica o domínio muçulmano,primeiro dos Emires de 713 a 755, depois, dosPríncipes e Calífas Omíadas de 755 a 1031. Os reinosde taifas de 1031 a 1100 e por fim os Almorávidas de1100 a 1145.

Em 755, Abderramão I vindo do Oriente, inaugurouem Córdova uma dinastia de príncipes omíadesindepententes de Damasco, que continuaram achamar-se emires que Abderramão III (912-961) tomouo título de califa. O Califado de Córdova manteve-seaté 1031.

Foi consentido aos cristãos regerem-se por leis emagistrados próprios, mas eram geralmente obrigadosa viver em bairros à parte e excluídos dos cargoshonrosos e lucrativos. Houve numerosas tentativas paraos islamizar, carregando-os de impostos e favorecendoos renegados. Tudo dependia da vontade dosgovernadores.

Chamavam-se moçarabes aos cristãos arabizadosou tornados árabes e que viveram sob o domínioserraceno. Moçarabe significa “aquele que quer passarpor árabe”(13). Muitos cristãos abraçaram o Islamismo,são os muladis. Os muçulmanos avassalados pelos

cristãos designavam-se mudéjares.Por cerca de 881, no reinado de Afonso III criava-se

recentemente a Sé de Leão. Tinham sido restauradasas antigas sés de Iria, Orense, Astorga, Porto,Coimbra e Lamego. Iria viria a dar Compostela.

Cerca do ano de 900 restauraram-se as antigas dio-ceses de Tui e Viseu e pela mesma alturaestabeleceu-se a de Salamanca.

Pertence a esta época a construção de um momentonotabilíssimo a Igreja de Lourosa (no concelho deOliveira do Hospital), espécime único em territórioportuguês de estilo moçarabe, cuja fundação éatribuída ao ano de 912, mencionada numa inscrição.

Braga e Mérida eram duas metrópoles em que secontinha quase todo o território do moderno Portugal,no tempo dos visigodos, Braga era a única metrópoleda Galiza, tendo por sufragâneas Dume, Porto, Tui,Orense, Iria, Lugo, Britónia e Astorga. Mérida continuoumetrópole da Lusitânia, tendo por sufragâneas PaxJulia (Beja), Lisboa, Ossonoba (Estoi), Egitânia(Idanha-a-Velha) Conimbriga (Condeixa-a-Velha),Viseu, Lamego, Caliábria, Cória, Évora, Avila e Sala-manca.

Apesar de Almançor, em 997, destruir o antigotúmulo do apóstolo S. Tiago de Compostela, D. DiogoGelmires nos primeiros anos do século XII concluiu aCatedral a que, o Papa Urbano II tinha dado a dignidadeepiscopal. E desde então a Basílica de S.Tiago nãocessou de crescer em glória e esplendor, tornadacentro de grandes peregrinações do mundo cristão.Em 1120 o Papa Calisto II, transferiu para Compostelao privilégio metropolítico da extinta Igreja de Mérida, oque deu lugar a litígios com a Sé de Braga e os nossosreis.

O rei Afonso VI de Leão conquistou aos mouros acidade de Toledo em 25 de Maio de 1085, no mesmodia, agonizada em Salemo, S. Gregório VIII, antigomonge de Cluni, de nome Hildebrando.

De 1100 a 1145, os Almorávidas, vindos de África,impuseram o seu domínio aos vários avanços doscristãos. Na época dos Almorávidas funda-se amonarquia portuguesa (1100 a 1145).

Abu Iúçufe Iacube de 1190 a 1191, fez grandesinvasões e assim este Califa almóada, reconquistouquase todas as praças a sul do Tejo.

A 16 de Julho de 1212 travou-se a batalha de Navasde Tolosa a que os mouros chamavam “da desventura”que teve a vitória completa das armas cristãs. Paraela contribuiram Afonso II de Portugal, com tropasportuguesas.

A reconquista definitiva do território portuguêsconcluiu-se no reinado de D. Afonso III na campanhainiciada em Março de 1249 no Algarve e ultimada pelosfreires militares de Santiago de Avis.

Passado um século deu-se a batalha de Salado (30de Outubro de 1340), em que as nossas tropas saíramvitoriosas sob o comando do rei D. Afonso IV.

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A obra da Reconquista, começada por Pelágio nasAstúrias, pode dizer-se que só terminou em 1492,quando os reis católicos, Fernando e Isabel, tomaramaos mouros o reino de Granada. Este período durouperto de oito séculos, e os príncipes cristãos deEspanha tiveram de lutar, quase constantemente con-tra os mouros.

A Cruzada Hispânica influiu assim, nas Cruzadasdo Oriente e, em compensação recebeu delas valiosoapoio, pois muitos dos cruzados colaboraram naconquista de cidades de terras do litoral portucalense.

O Renascimento com os seus homens, iria abriruma nova página da história, que teve entre nós agrande influência árabe, tardiamente terminada.

5. A flora da bacia mediterrânica

A influência mediterrânica é grande nos paísesribeirinhos ou não o sendo apresentam os seusindícios. Geralmente os estudos referem-se a paísesa norte do mar Mediterrânico de carácter europeu eenvolvendo as diversas áreas pertencentes às suasdiversas línguas. Actualmente, com os estudos doSaara central, foi descoberta uma flora tipicamentemediterrânica que resultou numa das maioressupresas provocadas pela exploração botânica. Avegetação na região montanhosa do Hoggar éindiscutivelmente mediterrânea(14).

Abulcassis, cirurgião de Córdova e Galeno, célebremédico grecoromano, são indicados como utilizadoresde plantas de origem árabe. Assim, como Teofrasto eDioscorides de Anarzabei na sua célebre De materiamedica também as indicavam. Muitos célebres sãoIbn-Sîna, hoje conhecido por Avicena, al-Râzî =Rhazés e ainda al-Madjûsî também conhecido porHaly Abbas, estes de origem persa(9).

O rosmaninho conhecido por iazir, klil e hasalhan.O hortelã por mersit, hana ou nana. A salva eraconhecida por kusa ou takruf e no Egipto por sasaf. Omirto dos heróis era conhecido do árabe por tehan, eno Sahel por mersin, e no Saara por tafeltest. Apalmeira-anã tinha o nome de dum e a palmeira

tamareira designava-se por nekla. A giesta tinha onome de sedida e ainda de tellegit. A anábasechamava-se dega ou belbel e ainda djell. A figueiraera designada por at-tin no Corão e ainda por trêsnomes argelinos telukant, tagerut e kerma. Assim

como o pinheiro era conhecido por azumbei, seunbere sunber.

Mais adiante vamos ver como Amato estava bem apar dos conhecimentos do Mediterrânico e como osutilizou na sua vida profissional.

6. Os médicos mais citados nas Sete CentúriasMedicinais

Entre os muitos médicos citados por Amatoaparecem em maior quantidade e não menos, emqualidade, como observaram vários estudiososmédicos, Hipócrates, Galeno e Avicena.

Hipócrates de origem grega, nasceu na ilha de Cos,cerca de 450 a.C. e parece que viveu mais de cemanos.

A 1ª Ed. Das obras de Hipócrates data de 1525 e foiimpressa em Roma. A 1ª Ed. Grega foi executada emVeneza em 1526.

Galeno nasceu em Pérgamo de 128 a 138. Estudoumedicina em Alexandria, voltando depois a Pérgamoe mais tarde a Roma onde ganhou a sua consagração.

Os árabes consideravam-no o príncipe do médicose os hebreus nobilis chirurgus. Era considerado umsábio oriental, o que explica o carinho fidelíssimo queos árabes e judeus dispensaram.

Algumas das obras de Galeno conhecem-se apenasa partir de versões árabes ou latinas.

Avicena filósofo e médico árabe, nasceu emBukhara, em 980 e morreu em 1037. Os seustrabalhos baseavam-se nos gregos que conheciamatravés de traduções árabes.

O sistema médico de Avicena ficou sendo por largotempo, a autoridade por excelência do ensino e daprática da medicina.

Os seus escritos foram já em 1493 traduzidos emlatim e várias vezes reimpressos.

Os mestres considerados, são os mais citados porAmato não esquecendo que muitos outros, aqui e ali,também o foram.

Assim, temos o seguinte quadro, para não fastidiaro leitor, sintetizamos em seguida, as citações:

As médias de citações pelas sete Centúrias dãorespectivamente:

- 43,0 para galeno- 25,1 para Hipocrates- 16,3 para Avicena

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- 6,7 para Aecio de Amida, autor do Terabiblos.O somatório dos totais, dão-nos 638 citações.É curioso verificar que para Amato, Galeno é de longe

o mestre mais citado, ainda mais que “o pai damedicina”, Hipócrates.

E mesmo Avicena, ultrapassa a centena de vezescom que é citado.

Os médicos limitavam o seu saber ao saber queescorria das obras de três grandes médicos:Hipócrates, Galeno e Avicena. O que originou omarasmo da medicina até ao renascimento, na opiniãode alguns(5).

Mais uma vez, a influência oriental e grega saltam àvista e a maior parte das vezes através dos árabes.

Por último apraz-nos considerar a riqueza decitações de medicina e de botânica no século XVI, sócomparáveis a livros muito posteriores aos do períodoque agora estudamos.

Não resistimos à tentação de uma notícia deste anode Gérard Badou, na revista L’Express, em que serefere à varíola.

No século VII depois de J. Cristo, o vírus da varíolaé introduzido na Europa com as invasões árabes.Assim como as cruzadas veicularam a varíola nossécs. XII-XIII.

No séc. XVI após as conquistas espanholas, avaríola provocou o desaparecimento de mais demetade dos índios do México e do Perú. No séc. XVIIIa pequena varíola, como então era conhecida, matavatodos os anos na Europa de 200 a 600 mil pessoas.

Há cerca de trinta anos, continuava em estadoendémico, numa trintena de países, e provocavaanualmente, dois milhões de mortos.

Felizmente na Somália, em 1977, um ilustredesconhecido podia-se gabar de ser o último casomundial de varíola(1).

Conclusão: A influência mediterrânica na vidacientífica de Amato.

No século I da nossa era dois autores, Plínio, oVelho, para a sua história natural, e o médico gregoDioscórides, que escreveu a Matéria médica,conseguiram assimilar os conhecimentos eruditos dafitoterapia.

No século II d.C., um outro médico de origem grega,Galeno da escola de medicina do tempo de Esculápio,em Pérgamo, redige uma súmula de todos osconhecimentos eruditos da arte de curar. Aí mencionamais de 450 plantas medicinais e recomenda anecessidade para qualquer médico, de ter grandesconhecimentos de botânica e de ervanária.

As iniciativas eruditas dos gregos são aproveitadospelos mercadores siríos que as começam a introduzirno Próximo Oriente. Na escola de Jundeshapur, naPérsia, e graças aos sírios, ideias terapêuticas gregas,judias, persas e hindús são permutadas e

confrontadas. Os calífas chamam a Bagdade, muitossábios e, deste modo, a medicina árabe utiliza diversasfontes de saberes médicos e fitoterapêuticosenriquecidos pelas descobertas árabes. Pelo ano mil,Avicena enumera 650 plantas medicinais, o querepresenta um aumento sensível comparada com asenumerações de Discórides e de Galeno(5).

A abadia beneditina de Monte Cassino, entre Romae Nápoles, apresenta o interesse de ter mantidorelações com a escola de medicina criada em Salernono séc. IX, notável excepção em termos de estagnaçãoda ciência médica. A lenda atribue a sua criação àiniciativa conjunta de quatro médicos, um grego, umárabe, um judeu e um salernitano. Durante trêsséculos, a escola é o berço da renovação da medicinae da botânica. Chegam a elas doentes de todas asproveniências, nomeadamente cruzados doentesregressados da Terra Santa. É célebre a assimilaçãodo código de um médico judeu da Tunísia, IsaacJudeu, divulgando por um médico itineranteConstantino Africano.

Aquele código tinha um pouco mais de centena emeia de plantas, das quais algumas eram ignoradas.O maior obstáculo mediaval ao progresso do sabermédico é a obrigação resultante da religião dominantede crer em males que são castigos divinos. Noentanto, as plantas, podem ser consideradas comoum dom divino, à disposição dos seres humanos paraos libertar dos sofrimentos. O estatuto ambíguo, poisas infusões de feiticeiros e os remédios com boareputação, todos contém plantas!

A inovação em Salerno onde se redigem tratadosde valor como Circa instants, de 1150 que enumera229 drogas vegetais e que tem já novidades árabes.Entre os numerosos aforismos desta escola, retivemoseste que é muito curioso: Se os médicos te põemdefeitos, substitui-os pelas três ideias que praticamosaqui: bom humor, repouso e sobriedade.

Esta é florescente em Espanha, onde se implantacom a conquista islâmica. Ibn al Batyar, aumenta emcerca de 200 plantas o conhecimento sobre remédiosvegetais. Alberto, o grande, professor em Paris, escreveo De Vegetalibus onde se refere a avicena, e o Circainstans salertiano e dá ideia dos conhecimentos quepossui como naturalista, passo importante para orenascimento que vem a seguir. A corrente deobservação, de experimentação e de inovação saídada escola de Salerno reforça-se. A escola de medicinade Montpellier a partir do séc XI orientada neste sentido,adquiriu uma incontestável notoriedade. Montpelliertinha um comércio importante com a Espanhaislâmica e com o Levante. Esta escola beneficia doconhecimento das medicinas árabe e judia espanholae da protoquimiatria árabe, que, com o auxílio daalquimia, suscitará grandes desenvolvimentos emmatéria médica.(5) (13)

Enfim, a qualidade de ervanário só será reconhecida

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no século XVI e aí dizia-se simplista.Na Biblioteca de Leipzig tem um livro de 1498, em

latim, com título “Herbarius” que não teve mais de 5exemplares. Tem 150 gravuras feitas manualmente esão coloridas. De 1489 e da autoria de Schoeffer existeo “Hortus sanitatis”. Com o mesmo título e da autoriade Meidenbach, de 1491, uma espécie de tratadosobre a matéria.

As edições de Leipzig (da biblioteca) portantoalemãs, foram levadas para Moscovo, no fim da 2ªGuerra Mundial, e caiu um silêncio profundo sobre osmesmos, até este ano em que foram devolvidos à suapertença, segundo a “Conaissance de l’Art” de Verão.Calcula-se que as edições são de Guttemberg. Apesarda botânica e do seu desenvolvimento na actualidade,o vegetal e as suas virtudes curativas nunca perderamcompletamente a sua aura de mistério. Ainda hoje,no mundo, o surto de interesse pelas plantas, é cadavez maior e calcula-se em 12000 as plantasaromáticas e medicinais que actualmente interessam.

* Engenheiro Agrónomo.

Bibliografia

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2) BAUDELAIRE, Charles, 1988, O meu coração anu precedido de Fogachos, Trad, pref. e nótulas deJoão Costa, Guimarães Edit., Lisboa.

3) FICALHO, Conde de, 1884, Plantas Uteis da Áfri-ca Portuguesa, Imprensa Nacional, Lisboa.

4) FREITAS, Augusto S. Bardoja de, 1908, Indicepara a obra Plantas Uteis da Africa Portuguesa peloConde de Ficalho, Sociedade Geografia de Lisboa,Lisboa.

5) LE GOFF, Jacques, 1991, As doenças têmhistória, 2ª Ed., Ed. Terramar, Lisboa.

6) LE GOFF, Jacques, 1995, A Velha Europa e aNossa, Tradução de Regina Louro, 1ª Ed., Ed. Gradiva,Lisboa.

7) LUSITANO, Amato, 1980, Centúrias de CurasMedicinais, Vol. I a IV, Prefácio e Trad. de FirminoCrespo, Univ. Nova de Lisboa, Fac. Ciências Méd.,Lisboa.

8) KITSIKIS, Dimitri, 1985, L’Empire Ottoman, Col.Qui sais-je? Presses Universit. De France, Paris.

9) MATVEJEVITCH, Predrag, 1994, BreviárioMediterrânico, Tradução de Pedro Támen, QuetzalEd., Lisboa.

10) MIQUEL, André, Serge Bonim, 1971, O Islamee a sua civilização, Sécs. VII-XX, Tradução de Fran-cisco Nunes Guerreiro, Ed. Cosmos, Lisboa, Rio deJaneiro.

11) OLIVEIRA, Pe Miguel de, 1994, HistóriaEclesiástica de Portugal, Actualização de Pe ArturRoque de Almeida e Prefácio do Pe António CostaMarques, Publicações Europa-América, Ldª, Mem-Martins, Portugal.

12) PALENCIA, A. Gonzáles, 1925, História de LaEspanã Musulmana, Edt. Labor, Barcelona.

13) PLAJA, Fernando Diaz, 1995, A vida quotidianana Espanha Muçulmana, Colecção Biblioteca deHistória, Nº 10, Tradução de Artur Lopes Cardoso,Lisboa.

14) QUÉZEL, Pierre, 1954, Contribution à l’étudede Ia flore et de Ia vegetation du Hoggar, Argel.

15) VERNET, Juan, 1978, La Cultura HispanoárabeEn Oriente Y Occidente, Ed. Ariel, Barcelona.

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A ALIMENTAÇÃO NA ALDEIA DO MALHADAL NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DESTE SÉCULO

por Maria da Assunção Vilhena Fernandes*

A alimentação “é o acto básico mais primitivo detodo o ser vivo”. Consiste em ingerir toda a substânciaque serve para a nutrição - os alimentos. Em resumo,consiste em comer que é uma necessidade e umprazer.

José Albano Marques escreveu:

“Comer! Oh! Sim comer.É lei da natureza.Mas, quando um pratoÉ misto de belezaE de sabor.O seu preparadorÉ com certezaUm príncipe,Um rei,Um grão-senhor!”

É um poema interessante, mas os pratos de quevou falar não são “misto de beleza”; sê-lo-ão de saborpara quem foi criado com eles, mas sobretudo deconforto para o estômago. O “seu preparador” não teriasido, ao longo dos tempos, nem príncipe, nem rei,nem grão-senhor, mas a modesta dona de casa, mãe

de família, de uma aldeia do concelho de Proença--a-Nova.

A alimentação é dos elos mais fortes e significativosentre o homem e o meio. O Malhadal, com umapopulação que vivia essencialmente da agricultura, noprincípio do século sofria de muitas carências,principalmente alimentares, porque o terreno arávelera pouco, os métodos de cultivo primitivos e,consequentemente, as colheitas eram más.

Desde tempos imemoriais que a base daalimentação do povo desta zona da Beira consistiunos cereais, nas castanhas, nas hortaliças e legumes,complementada com a carne dos animais criados comos mesmos produtos agrícolas: porcos, cabras,galinhas, coelhos...

Os produtos da terraOs cereais

O pão era o principal alimento deste povo. Para ofazer, cultivava-se três espécies de cereais, conformea qualidade do terreno: em maior quantidade o milho,depois o centeio e, por fim, o trigo. Era com o milhoque se fazia a broa, o pão mais usado, que só se

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cozia de 15 em 15 dias para poupar lenha, tempo eesforço.

Quando as searas produziam mal, nas casas maispobres o pão era racionado, só se comendo àsrefeições.

Havia casas em que se conservava escondido oufechado à chave e só a mãe ia buscar, antes darefeição, o pão necessário.

Algumas famílias, que viviam com mais abundância,pelas festas, faziam broa triga-milha que era maismacia; outras misturavam metade da farinha de centeiocom metade de milho-pão meado. Como nestesterrenos o trigo produzia muito mal, só se fazia pãode trigo para as bodas, para os doentes ou para asparturientes.

O restante trigo conservava-se na arca para, ao longodo ano, se ir moendo para os caldos para os doentese crianças de peito, cujas mães tivessem pouco leite,para fazer fritos (cascoréis, belhós...) e bolos, paraas bodas e batizados (bolos dormentes, pão leve,bolos miúdos) e para as “filhoses da azeitona”.

Para a merenda das mulheres que iam levar a “visita”aos noivos, cozia-se pão de centeio.

A farinha de centeio também servia para fazer asfarinheiras. Do milho moído mais grosseiramente, istoé, com a mó de cima mais levantada, faziam-se aspapas de carolo que se temperavam como as de farinhamais fina, com sal e azeite e, por cima, mel que haviaem todas as casas.

As hortaliças e os legumes

As hortaliças que mais se cultivavam para aalimentação humana eram as couves (ratinhas etronchudas) e os nabos. No Verão plantavam-sealmeirões, uma espécie de salada dura que se comeno Outono e Inverno. Semeavam-se várias espéciesde abóboras (porqueiras e doces), cabaças e feijão,que se comia verde no tempo quente e do qual seguardava algum seco para comer ao longo do ano.Era quase sempre tão pouco que as mulheres odebulhavam à mão. Cultivava-se, em abundância,alface (de cortar), pepinos e tomates que se comiamem salada e seriam uma das principais fontes devitaminas. Colhiam nos poços ou represas e nosribeiros alguns agriões que também eram consumidosem salada e no Outono, “gasalhos”(cogumelos) quecomiam assados ou guisados, para condimentar os“afogados” cultivavam salsa, alhos e cebolas. Estascruas, também serviam de conduto para um bocadode broa. As batatas, que se cultivavam em pequenasquantidades e produziam pouco, eram um luxo, noprincípio do século. Cultivavam em abundância gilase beterrabas brancas e amarelas para os animais.Pena que não as soubessem cozinhar para eles!

Em 1950, quando cheguei ao Malhadal,desconheciam a cenoura, o espinafre, os coentros, a

batata doce, etc., e cultivavam apenas pequenoscanteiros de favas e ervilhas que cozinhavam com acasca como o feijão verde; não sabiam comer as favase as ervilhas verdes, em grão.

Os frutos

A castanha era o fruto que se colhia em maiorquantidade, antes de vir a “doença da tinta” que vitimougrande quantidade de árvores. Apesar disso, acastanha ainda era importante na alimentação destepovo, suprimindo o défice em farináceos. Comia-seassada (quando fresca) ou cozida (quando seca noscaniços suspensos do telhado das cozinhas). Nestecaso, comia-se à colher, como sopa, aproveitando-sea água da cozedura. Era um fruto muito apreciado eusado na Quaresma, quando só se podia comer“magro”.

A colheita fazia-se, habitualmente, em Outubro esó se comia livremente nos magustos de Todos--os-Santos ou do S. Martinho. Depois, passava a serracionada como quase todos os alimentos.

Cerejas, toda a gente tinha. Era a fruta sumarentaque havia em mais abundância e de várias qualidades,que se podia comer livremente sem preocupação desaber quem seria o dono da árvore, porque não sepodia guardar como a castanha e não se vendia. Atéàs crianças era permitido comer quantas quisessem.No Verão, começava-se, muitas vezes, a refeição porum cesto de cerejas, de onde todos se serviam antesde se abeirarem da “bacia” dos legumes cozinhados,ou simplesmente preparados, como se passava comas saladas.

Figos, também havia em abundância e também nãoera crime nem pecado colhê-los em qualquer figueira,fosse de quem fosse.

Abrunhos abundavam nos vales e quase toda a gentetinha. Se não tivesse, recorria aos vizinhos. Maçãsnão havia muitas; por isso se comiam com parcimónia:guardavam-se para as festas e ofereciam-se depresente a quem não as tinha.

Marmelos todos tinham para as mezinhas sobretudo.Em toda a zona que envolvia a aldeia, havia umas 6

laranjeiras que davam umas laranjas muito ácidas masque atraíam a garotada, talvez pela sua bela cor numazona tão verde. Não havia catraio que não as roubasse,tendo depois o cuidado de lavar bem as mãos, a carae a boca para não se denunciarem pelo cheiro.

As uvas eram destinadas ao vinho e a ninguém erapermitido regalar-se com um bom cacho. Apesardisso, não havia catraio que não as furtasse, nemque fosse bago aqui, bago ali, para que não se notasse.É que o vinho era muito importante para se beber porfestas e bodas, para dar um copo aos homens queiam “ajudar”, para as mezinhas e para fazer sopaspara gente fraca e crianças.

Os medronhos, frutos silvestres muito abundantes,

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podiam comer-se livremente, respeitando-se aspropriedades apenas nas colheitas para a fabricaçãoda aguardente.

As azeitonas, como não se comiam ao natural,estavam ao cuidado da dona de casa e serviam deconduto para o pão em desejuns e merendas. Àscrianças davam poucas, dizendo-lhes que não podiamcomer muitas pois as faziam “rudas”. O que é fácilconcluir: guardavam-se poucas pois, de contrário,fariam falta para fazer o azeite, principal tempero daalimentação desta gente e que tinha de chegar até aoano seguinte.

Quando, nas famílias mais pobres ou muitonumerosas, o azeite não chegava, trocava-se qualquerproduto excedentário pelo azeite indispensável e apanela temperava-se com uma colher de banhaderretida...

Os produtos de origem animal

Alimentados com os produtos da terra, toda a gentecriava porcos, cabras, galinhas e coelhos que eram aprincipal fonte de proteínas da sua alimentação.Matavam sempre dois e três porcos, nas famílias maisnumerosas e a grande preocupação era de que nãofaltasse o toucinho, ao longo do ano. Os presuntoseram trocados por toucinho do Alentejo que diziam“surdir mais”. Faziam grande quantidade de farinheiracom as banhas, outras carnes gordas e farinha decenteio - o enchido mais barato, portanto - para secomer alternado com o toucinho comoacompanhamento de couves, nabos e saladas. Amorcela, feita com sangue e alguma carneensanguentada, tinha de se comer nos primeiros tem-pos a seguir à matança porque rança facilmente. Oenchido mouro e o magro (sempre pouco) guardava-seno azeite para se comer pelas festas, bodas, malha epara dar de merenda às visitas. Portanto, raramentese comia carne de porco magra.

Cabras e cabritos toda a gente tinha, mas leitenenhum adulto ou adolescente tomava visto serdestinado à fabricação dos queijos tão úteis para odesejum e a merenda e o farnel dos que iam trabalharlonge do casal.

Carne de cabrito raramente se comia, às vezes noCarnaval, pois se deixavam crescer e só se matavambode ou cabra velha pela malha, pelas bodas ou outrasfestas em que também se comiam coelhos, galo ougalinha que tivesse escapado dos caldos dasparturientes ou doentes...

Os ovos eram para vender à oveira que passava emdias certos, para com esse dinheiro comprar roupa ecalçado. Também se davam às vizinhas ou comadrespara fazer os bolos das bodas ou dos batizados, oulevavam-se de “visita” a doentes ou parturientes. Nãohavia o costume de comer ovos às refeições; apenasumas gemadas com vinho para as pessoas fracas.

Como complemento a estes produtos animais,compravam-se sardinhas salgadas, pois, no interiornão era possível comprá-las frescas. Quem podiacomprar em maior quantidade, no mercado mensal,costumava, depois de lhes sacudir o sal, untá-las,uma a uma, com azeite e guardá-las às camadas emalguidares que se guardavam nas “alojas” onde oscatraios não tivessem acesso. Só se ia buscar, cadadia as necessárias para assar em cada refeição.

Em geral, só se fritavam para os farneis, pois eraimperioso poupar azeite. Havia pessoas que, para evitarde as comer tão “sarnentas”, as assavam logo todase guardavam-nas em azeite e vinagre até seesgotarem, às vezes dois meses. Comiam aindataralhões e talvez “pardalitos saltitantes” e peixes daribeira.

As refeições

Na época a que me refiro, as refeições eram o“desejum”, ao sair para o trabalho, por vezes muitoantes do sol-nado; o almoço, por volta das 9,5 ou 10horas, já depois de se ter trabalhado algumas horas;o jantar, quando o sol já ia alto, por volta das 1,5 ou 2horas da tarde, e a ceia, à noite, depois do regressodo trabalho.

Nos dias longos da Primavera e do Verão, havia amerenda, que começava e acabava em data fixa: en-tre 25 de Março ou dia da Senhora de Março, e 26 deSetembro, ou dia de S. Miguel. Costumavam dizer:

“ A Senhora de Março traz a merenda e o pedaço.”(pedaço de tempo para descansar, ou sesta)

A merenda constava, geralmente de pão com mel,pão e queijo, ou pão e azeitonas, ou figos colhidosdirectamente da figueira. Se ainda era Quaresma, nãose merendava...

Nas noites mais longas, quando se faziam seroadasa fiar ou a fazer, qualquer outro trabalho, ou se haviavisitas, fazia-se outra refeição - a tarouca - que, amaior parte das vezes, constava apenas de pão comqueijo ou farinheira assada. Se o serão era a seguir àmatança dos porcos, fazia-se um “afogadelho”(pequeno refogado) de fígado, bofe, entretinho,coração, muita cebola e vinho, que formava muitomolho, onde se molhava o pão.

De que se compunham as refeições

O “desejum” era igual durante todo o ano: pão comazeitonas ou com queijo.

Em quase todas as refeições se comia pão(excepção quando a refeição tinha castanhas).

Na Primavera e no Verão:- saladas: de alface, de pepino ou de tomate com

batatas cozidas cortadas miudinhas- feijão verde com cebola e algumas batatas aos

bocadinhos

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- nabos com batatas (poucas) temperadas comazeite, às vezes com feijão verde partido à mão

- couves ratinhas “a monte” com azeite- couves ratinhas requentadas (cozidas de véspera),

com broaNo Outono e Inverno:- sopa de cabaça com hortaliça- papas de carolo ou farinha de milho mais fina, com

azeitonas ou com mel- fritos de abóbora (principalmente na Quaresma)

castanhas secas cozidas (espécie de sopa)- nabos cozidos - rama e cabeça, com azeite- salada de almeirão com feijão seco cozido ou

batatas cozidas esmagadas- couves tronchudas “a monte” com azeite ou ossos

de porco- couves cozidas acompanhadas de castanhas

assadas em vez de pão.Os naturais desta terra costumavam dizer que

“quando tivessem comido couves 18 vezes eradomingo...”

O acompanhamento (conduto) destes pratos eraquase sempre o mesmo: sardinhas assadas,toucinho, farinheira ou morcela se ainda havia algumacoisa. Só os adultos comiam uma sardinha inteira.

Arroz e massa raramente se comia porque não haviadinheiro para se comprar com fartura; oferecia-se de“visita” a pessoas doentes, poucos que os comiamalém das parturientes.

Coisa estranha: nas bodas chegavam a fazer maisde 30 pratos, todos à base de carne, cozinhados dediferentes formas, com macarrão, arroz, batatas, etc...Aí esqueciam o racionamento...

Em casa, comia-se na cozinha, sentados em“tropeços” em volta de uma pequena mesa sobre aqual se colocava a “bacia” da comida, de onde comiamtodos, com cuidado para que as colheres não seentrechocassem. Só se comia em pratos individuaisem refeições de festa.

Se iam trabalhar longe da povoação, levavam farnel,geralmente sardinha frita ou toucinho e um bocado dequeijo embalados em folhas de couve. Quando haviamuitos ovos, coziam ou fritavam-se alguns para osfarneis.

A alimentação infantil

Disse-me uma vez uma velhota, referindo-se àsrestrições com que criara os filhos: “Tanto que nóspassámos para criar os filhos! E aí estão fortes esaudáveis!”

Após o parto, se tudo corria bem, as crianças eramcriadas ao peito, mas se as mães não tinham leite,começavam os problemas: procurava-se, no casal,uma mulher caridosa que ainda estivesse a amamentaro seu filho, para partilhar o seu leite com o infeliz queestava condenado à morte se não fosse mamar esse

leite. As vezes não se encontrava nenhuma mulhernessas condições e as pobres mães sem leite,tentavam tudo para salvar os filhos: davam-lhe leitede cabra à colher, se havia alguma cabra emcondições; preparavam caldos de farinha - triga comleite - mas se não o havia, faziam os caldos só comfarinha crua apenas escaldada com água e um poucode açúcar; davam-lhe sopas de vinho; mastigavam pãoou batatas que, depois de muito bem ensalivadas,eram introduzidas na boca das crianças que, comdificuldade, engoliam esse bolo.

A mortalidade infantil, nos primeiros meses de vidaera grande, tanto pior quando surgiram epidemiascomo febre tifoide, garrotilho, varíola e outras.

No Malhadal muitas vidas foram ceifadas;certamente foram as mais débeis que não resistiram.É possivel que as que resistiram sejam esses filhosfortes de que me falou a minha informadora? Ter-se-ádado um fenómeno de selecção natural?

As crianças que atingiram a 2ª infância, deixavamde ser tratadas com os desvelos com que foram na 1ªe nem sempre comiam quanto queriam e aquilo quegostariam de comer: não lhes davam ovos, nem leite(apenas um pouco de almece), não comiamregularmente carne magra, comiam apenas metadeou a terça parte de uma sardinha, um bocado detoucinho ou de farinheira (apenas farinha e gordura),poucas azeitonas, pouco queijo (come o pão e cheirano queijo!), enfim, comiam da mesma “bacia” dosadultos, se queriam sobreviver. Cedo começaram a irpara os campos com as cabras e aí, com os maisvelhos, aprenderam a lutar pela sobrevivência.Contaram-me homens e mulheres que foram criançasnas 1as décadas do século, o que por lá comiam, alémdo bocado de broa que levavam na bolsinha: azedas,rebentos tenros de carqueja, pequenos bolbos de umaespécie de lírio a que chamavam “gambozinos”,putegas das estevas e dos sargaços, flores demarmeleiro e de sargaço branco e chupavam algumasflores como o suga-mel. Amadurecidos pela durezada vida, passaram a deitar a mão a tudo o queencontravam, pertencesse a quem pertencesse.Escolhiam os melhores medronhos, figos, laranjas,abrunhos, uvas, marmelos, maçãs ...

Longe do casal, ajudavam-se uns aos outros a tiraro leite das cabras, às vezes, deitados no chão depapo para o ar, ordenhando directamente para a boca.Outras vezes, partiam ramos de figueiras, espremiamo leite que ela segrega para uma grande folha côncava,ordenhavam para aí o leite de cabra que coalhava ecomiam os coágulos com uma folha rija que servia decolher.

Na capoeira, na ausência das mulheres da casa,tiravam um ou outro ovo, de modo a que não senotasse a falta e cozinhavam-no do modo que lhefosse possível.

Nas “alojas” sempre encontravam momentos

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oportunos para tirar qualquer coisa que se pudessecomer, principalmente nos dias a seguir à matançaem que as carnes estavam na conserva.

Terão, com essa conduta, encontrado as proteínas,as gorduras, as vitaminas e os sais minerais de que oseu organismo estava carente?

Procurei saber se teria havido grandes avitaminoses,graves doenças por carências e parece-me que nãoas houve. Além da cárie dentária que deixou algumasbocas despovoadas (hoje também há); alguns casosde bócio (raros).

Não me falaram de nenhum caso de problemas devisão nem de raquitismo. Conheci pessoas de maisde 80 anos que enfiavam uma agulha sem óculos.

Gente que passava grande parte do tempo sob ainfluência dos raios solares terá recebido deles grandesbenefícios. Os ares são puros, razão pela qual,certamente, aqui não houve nenhum caso detuberculose, mesmo quando ela grassava noutras zo-nas com resultados catastróficos.

Será que a alimentação, que se julgava tão pobretinha todos os elementos necessários a uma saúdenormal e que o facto de ser ingerida em pequenasquantidades, muitas vezes racionada, foi salutar paraeste povo?

* Professora efectiva do Ensino Secundário

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Hábitos Alimentares na Serra da GardunhaA COMIDA NO CASAL DA SERRA NO SÉCULO XIX

por Albano Mendes de Matos*

A Terra e a Alimentação

O tema da alimentação na Beira Interior tem sidopouco tratado pela Historiografia. A comunicação queapresentamos a estas jornadas pretende descreveralguns aspectos da alimentação quotidiana e festivana aldeia do Casal da Serra, freguesia de São Vicenteda Beira, situada na vertenteSudoeste da Serra daGardunha, numa altitude de720 metros, estendendo-seas suas terras entre as alti-tudes de 600 e 1220 me-tros, compreendendo umdesnível de 620 metros.

Fundamentam este estu-do alguns testemunhosorais de pessoas idosas daaldeia, nascidas no séculopassado, algumas das quaistiveram contactos comindivíduos nascidos noséculo XVIII.

Até meados deste século,o serrano da Gardunhapraticava, na generalidade,uma “agricultura desubsistência”(1), da qualdependia essencialmente asua alimentação, trabalhando terras “foreiras”(2), deproprietários absentistas, cuja laboração passava depais para filhos, sendo o foro satisfeito anualmenteem géneros.

Já neste século, após a implantação da República,as terras foram vendidas aos habitantes do Casal daSerra, que passaram a possuir alguma terra própria,muitos com parcelas minúsculas, em virtude departilha por familiares.

No século XIX e nas primeiras décadas do séculoXX, o casaleiro ainda se aproximava da naturezaselvagem, aproveitando as dádivas espontâneas, nodomínio do comestível, para ele próprio e para osanimais. No “tempo antigo”, em oposição aos dias de

hoje, como dizem , o homem conhecia perfeitamentea Natureza e o que lhe podia oferecer. O espaço nor-mal do homem era a terra, a fazenda, fonte dosprincipais produtos para a alimentação.

Relativamente à terra disponível para a produção dealimentos, ainda hoje estão patentes, na serra, noslimites do Casal, três níveis de ocupação do solo com

as culturas, de acordo coma altitude. Um nível maiselevado, onde se podemobservar vestígios de casase currais, de pedra, terraçosaplainados e bordejados pormuros, cuja ocupação re-monta a mais de doisséculos. Pode explicar estaocupação nas alturas, opastoreio e o facto nas terrasmais baixas estarem implan-tados soutos, de que aindahá vestígios. Um segundonível de ocupação, a médiaaltitude, com algumas cons-truções ainda em estado deconservação razoável, comocasas e cortes, erguidas noséculo passado e príncipiosdo século presente, masabandonadas nos anos 50 e

60, como consequência do fenómeno de emigração.Um terceiro nível de ocupação do solo, verifica-seactualmente, apenas com terras laboradas na periferiada aldeia.

A actividade laboral do casaleiro, até meados desteséculo, pode dizer-se, que girava toda dentro doslimites da produção diária, cíclica ou sazonal, decomida para o agregado familiar, que exigia bastantequantidade, devido ao elevado número de filhos, que,logo na infância, eram orientados para o trabalho daterra, numa constante luta contra a fome.

A alimentação, como primeira necessidade vital parao homem, é também uma manifestação cultural dospovos, quer pelo modo como são adquiridos os

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produtos, quer como são preparados ou como sãoconsumidos. Estudos que tratem destes temas devemser preocupação da Antropologia, quer no “presenteetnográfico”, no pulsar actual dos povos, quer nasvivências passadas, no campo da AntropologiaHistórica.

A alimentação, como problema social, porquesituado no mundo dos homens, é um dos factoresque podem indicar o grau de desenvolvimento de umpovo, ou dar a conhecer um pouco da sua história doquotidiano, dos seus costumes e das suas tradições.Embora de um modo superficial, ainda há uma relaçãoentre formas de alimentação e as regiões ou territóriosgeográficos, pelo menos nas dietas tradicionais. Porexemplo: o Alentejano consumia, essencialmente,produtos derivados do trigo e do porco, o Minhoto, opão de milho, o caldo verde e as batatas, o Algarviopeixe e figos, o Beirão do interior, pão centeio, couves,batatas e castanhas.

Comer é uma necessidade primária. É indespensávelpara o processo bio-químico do organismo. A procurade alimentos tem sido uma preocupação permanentede todos os povos. Perante o espectro da falta dealimento, a preparação da comida e o acto de comertornaram-se momentos envolvidos por certasacralidade, como são exemplos o homem descobrir--se para comer, a mulher benzer-se para amassar opão, a reza, após a ceia, da oração cristã: “O pãonosso de cada dia nos dai hoje”.

O medo da fome, como o medo da peste e da guerra,sentimento natural do homem, é de todas as eras e asubalimentação atinge, ainda hoje, cerca de doisterços da humanidade.

Sob o estigma da míngua e da fome(3), vivia apopulação do Casal da Serra, no século XIX, que cavavaa serra, palmo a palmo, socalco a socalco, com oboucheiro, para lançar um grão de centeio, cuidavado porco na furda, encomendando-o a Santo Antónioou a Santo Antão, e conduzia as cabras, nos trilhosdas encostas ou canadas, na procura de pasto, numaligação íntima entre a terra e o homem, com umapluricultura pouco variada e exígua, em microfúndiosde solos pobres.

Esta aldeia serrana permaneceu num grandeisolamento até meados deste século. Teve caminhoalcatroado há menos de 20 anos e possui luz eléctricahá pouco mais de uma década. Mercê da sua situaçãogeográfica e da fraca acessibilidade, a aldeiacaracterizou-se como um “isolado populacional”(4),com forte endogamia, que condicionou uma estruturafamiliar com forte índice de consanguinidade. A “fomeda terra” e a grande pressão sobre os solos, comcolheitas paupérrimas, conduziram a surtosemigratórios, nos finais do século XIX e princípios doséculo XX. Apenas nas décadas de 50 a 60 dopresente século, os casaleiros se abremdefinitivamente ao exterior, na aventura da “emigração

francesa”.No século XIX, com a população em crescimento,

era evidente o subaproveitamento dos solos, com acultura intensiva do castanheiro e as terras na possede meia dúzia de ricos de outras localidades. Broa,uma malga de couves e um pouco de vinho foi a dietaquotidiana de muitos casaleiros.

Na última década do século XIX, chegavam ao Casalos “louceiros”, que trocavam louça por produtosagrícolas, na altura das colheitas, e traziam a novade que haveria de vir um “cavalo de ferro”, a deitarfumo, pelos campos acima, que tragueria comida paratodos(5). Referiam-se ao comboio, que chegou à BeiraBaixa em 1891. Com o comboio, a passar a cerca dedez quilómetros, começaram a chegar alguns produtosalimentares, mais assiduamente, como a sardinhasalgada, inacessível à bolsa de muitas famílias.

A ordem dos alimentos

No universo alimentar estabelece-se uma diferençaentre aquilo que é da natureza, o que se obtém pelouso da natureza e o que vem de fora. Há um conjuntode produtos ingeríveis que não são tidos como comida,como a água, as outras bebidas, alcoólicas ou não, eos remédios, da farmácia ou caseiros. Numa posiçãointermédia encontrava-se o tempero, como o sal, omolho e os condimentos.

O universo alimentar pode ser estabelecido emquatro ordens: a procedência da comida, o tipo decomida produzida, o modo como a comida pode serconsumida e a qualidade do alimento, sob o ponto devista dos seus efeitos sobre o corpo e o organismo doconsumidor.

Procedência da Comida

A comida era obtida por três vias ou tipo de aquisição:Directamente da natureza, sem acção do trabalho

produtor do homem, sem estar incluída nacomunidade, como a caça e a colecta, actividadesnão tidas como trabalho;

Pela acção do trabalho do homem sobre os recursosda natureza, na fazenda ou no quintal, cujos osexcedentes poderiam ser vendidos ou trocados.

Vinda de fora, da vila ou da cidade, mediante compraou troca directa (ver quadro seguinte).

Da comida apanhada directamente da natureza,contavam-se:

A caça de animais de três espécies: o coelho bravo,abatido com armas de fogo ou apanhado comarmadilhas de ferro (os ferros), com redes ou àpaulada; a perdiz, morta a tiro ou apanhada comarmadilhas (aboízes); os pássaros, apanhados comarmadilhas (costilos, costelos e lousas).

Algumas pessoas utilizavam carne de cobra parafazerem uma espécie de canja.

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A apanha de algumas plantas ou ervas, nãogeneralizada a todas as famílias, como: agriões, nasribeiras, para caldo e saladas, labaças, nos lameiros,para caldo, poejos, nos lugares húmidos, para juntarao feijão pequeno cozido; saramagos brancos, para“ervas” (esparregado) e para caldo: urtigas, cujaspontas tenras eram metidas no caldo e nas papas;os cogumelos, nas variedades comestíveis, míscarosbrancos e amarelos, apanhados nos pinhais, emNovembro e Dezembro, após a chuvadas, e “frades”,apanhados em terrenos fortes e húmidos, comidosassados ou guisados, simples ou comacompanhamento de arroz ou de batatas.

Os alimentos produzidos na fazenda, pelo trabalhodo homem, provinham de três espaços:

Do pasto, da fazenda ou da serra, alimentavam-seas cabras. Todas as famílias tinham cabras emquantidade segundo as possibilidades em pastageme mão-de-obra, que eram uma fonte de riqueza, poisdavam o leite, para a dieta diária, o queijo para oconduto, o soro para um almoço ou uma ceia frugal, ea carne para as festas. Os cabritos eram normalmentevendidos para obtenção de alguns reais, patacos,viténs e coroas.

No quintal, junto da casa, ou mesmo nas lojas,encontrava-se a “criação” ou “vivo” como os coelhos,as galinhas e o porco, este, por vezes, em furdasisoladas. O porco era o governo da casa, na salgadeirahavia um naco de toucinho e um osso, para temperaro caldo e para conduto, no azeite ou no fumeiro, haviaum pedaço de morcela ou de chouriço, para conduto,na arca era guardado o presunto, para os dias gravesou de festa. Mal ia uma casa se lhe faltava o porco.

O quintal produzia legumes, verduras, frutas,batatas, de sequeiro ou de regadio, podendo dizer-seque era a praça da casa.

Da lavoura, na fazenda, com uma agricultura quasena totalidade de enxada, procediam os alimentosfundamentais para a alimentação, como batata,centeio, feijão, grão e o milho, bem como o feno, aveiae cevada para a ração dos animais e alguns frutos.

Na fazenda e no quintal, existiam muitoscastanheiros, tendo a castanha um valor bastanterepresentativo na alimentação do casaleiro, e oliveiras,que forneciam a azeitona, para o conduto, e o azeitepara os fritos e para os temperos.

De fora, da Vila (São Vicente da Beira) e de outraslocalidades, vinham os produtos de compra ou detroca, segundo as posses, como o arroz, a massa, obacalhau, o açúcar, o pão trigo, normalmente vendidopela “trigueira”, uma mulher da aldeia da Torre.

Tipos de Comida

A comida provinha dos animais, a cabra e a criaçãoou vivo (coelhos, galinhas e porco), e das plantas.Dos animais, a carne propriamente dita, o sangue, osmíudos e os ossos. O porco, para além da carne e dabanha, fornecia os enchidos, como a morcela, achouriça, o chouriço, o mouro, a farinheira e o bucho.Da galinha, comiam-se essencialmente os ovos, pois,a carne era para a dieta dos doentes ou para algumafesta. Da cabra, que com o porco formavam o par deanimais por excelência, provinha das famílias, comofoi referido.

A comida proveniente das plantas dividia-se em“grãos”, o milho, o feijão, o centeio, a cevada e o grão,“raiz”, a batata, “verduras”, a abóbora, as vagens dofeijão, ervilhas, favas, folhas de couve e de nabo, as“saladas”, alface, tomates e pimentos, e a “fruta”,ameixa, ginja, figo, abrunho, pêras maçãs e algumascerejas.

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Modo de consumo dos alimentos

No que se refere à dieta quotidiano, o serrano doCasal estabelecia as seguintes distinções: a “comida”e “aquilo que acompanhava a comida”.

Na “comida” agrupava um conjunto de alimentos debase ou principais. A “comida” era a batata, o feijão, ogrão, o arroz, a massa, a carne, quando emquantidade, o leite e o soro, estes dois últimos quandomisturado com sopas de pão.

O que acompanhava a “comida” modificando-a, porvezes, era a “mistura”, como alguns legumes, ouconduto, como carne ou os fritos, mesmo não inseridosna comida, mas completando-a.

Na confecção da comida, havia dois conjuntos deingredientes que eram importantes. O primeiro, comqual se preparava a comida, incluia o azeite, a banha,o alho e a cebola, o outro molho, que se juntava nacomida, para a tornar mais saborosa, ou para a“compor”, preparado com azeite ou banha e diversoscondimentos, como a salsa, o louro, o serpão e ovinagre, o alho e a cebola.

A mulher, na cozinha, podia alterar o modo depreparar a alimentação, alternando os produtosprincipais, que umas vezes eram “comida” e outraseram “acompanhante”, ou conduto. Por exemplo,refeição de “couves traçadas”, apenas couves cortadasaos pedaços, o que era sinal de comida muito pobre,de “couves traçadas com batatas”, se predominavamas couves, ou de “batatas com couves traçadas”,quando a comida base era a batata, tendo comotempero um fio de azeite. Refeição apenas de couveera sinal de pobreza e de fome, mas era vulgar. Umpedaço de bacalhau, comida de fora, podia servir paraduas refeições: cozido com arroz, dava sabor a este,depois retirava-se e servia para o dia seguinte, combatatas cozidas.

No tempo da castanha, fresca ou seca, estas podiamservir de “comida” ou de acompanhante, consoante aquantidade consumida. Como “comida”, a castanhafresca era cozida em quantidades suficientes para oagregado familiar e da castanha seca era feita ocaldudo, após longo cozimento, podendo juntar-se--lhe um pouco de mel ou de leite. Antes ou depoisdesta refeição, podia comer-se algum conduto, comoum naco de queijo, ou de toucinho, ou um frito defarinha com ovos, ou simplesmente azeitonas.

O valor da comida

O serrano da Gardunha reconhecia a comida pelosseus valores em relação aos efeitos sobre o corpo eao equilíbrio biopsíquico que fomentava os indivíduos,bem como tinha noção benéfica da variabilidade dosalimentos ingeridos.

Segundo a acção que provocavam no corpo, osalimentos eram considerados como comida “forte” ou

“pesada” e “fraca” ou “leve”, “gostosa” e “sem-gosto”.A comida “forte”, para o serrano casaleiro, para além

de quaisquer considerações de natureza calórica ouenergética, que desconhecia, era a comida que dava“sustança”, que transmitia força e capacidade para otrabalho durante mais tempo e tornava o corpo maissaudável. Classificavam-se, neste campo, a carne decaça, porco capado, cabra, por ordem de qualidade,o feijão, o grande mais forte do que o pequeno, o leitee os ovos, tudo preparado com muito unto (toucinho,banha, azeite).

A comida “fraca” não tinha a “sustança” da forte.Eram tidos como alimentos fracos, a batata, o arroz,as verduras, o milho (em papas), alguns legumes eas frutas.

As mulheres, senhoras de um conhecimentotradicional e de grande intuição, preparavam ascomidas misturando alimentos fortes com alimentosfracos, de forma a equilibrar o valor nutritivo da refeição,sempre que era possível, ficando-se muitas vezes pelapreparação de uma comida fraca, em qualidade equantidade, com um quinhão forte para o homem, queera o braço de trabalho da família.

A comida “forte” era boa para as pessoas sadias etrabalhadoras, mas era ruim para as pessoasenfraquecidas e para quem tinha problemas noaparelho digestivo. A comida “fraca” era mais própriapara as pessoas doentes e enfraquecidas e para osvelhos e ruim para pessoas fortes.

Classificar uma comida como forte ou fraca, comogostosa ou não gostosa, em clara oposição deconceitos, era um procedimento relativo, que recaíaem dois pares opostos, avaliações que incidiam nasqualidades de energia e de produção de paladar.

Em valores de gosto, o casaleiro classificava acomida sob dois aspectos: o sabor próprio da comidacom os condimentos, por um lado, e o sabor segundoa quantidade de sal, por outro. Uma comida saborosatanto podia significar uma comida com demasiadosabor a sal, como uma comida com “bom gosto” oupaladar, proveniente da mistura de produtos e de

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condimentos. No entanto, era bem vincada aclassificação de uma comida boa por oposição asaborosa, quando a comida era forte, bemcondimentada e variada, como a comida das festas,das malhas e da matação, pois, a comida doquotidiano, salvo raras excepções, era pobre e poucovariada.

Comida “ruim” era a comida sem gosto, desenxabidaou aguada. Havia a ideia generalizada de que a comida“boa” era a dos ricos e comida má a dos pobres.

Comida festiva e comida ritual

A comida, naturalmente, era melhorada e maisabundante no período das festas religiosas, noscasamentos, nos baptizados, nas colheitas e nasfestas familiares, com realce para a matação. Muitasvezes, a comida era a mesma do quotidiano, masservida em quantidades maiores e mais condimentadae acompanhada de vinho. Nas festas, era vulgar oarroz com chouriço ou carne de cabra guisada.

Era característica a ementa das bodas: caldo decarne, de cabra ou de porco, com grão e massa, porvezes com folhas de couve esfarradas, ou de nabo,se era tempo dele, miudezas de cara ou de porco ecarne de cabra, guisada ou cozida, com batatascozidas, pão trigo cozido para o evento, arroz docecom leite de cabra e doces caseiros.

De Domingo Gordo a Terça-Feira de Entrudo, comia-se comida gorda: cabeça de porco, toucinho, bucho,morcelas de cozer, se ainda restavam na salgadeira,no fumeiro ou no azeite.

Nas malhas do centeio, as refeições eram fortes eabundantes, pois o esforço dispendido assim o exigia.Ao almoço, leite de cabra, com pão de centeio ou demilho e miudezas de cabra ou de chibo, com batatas;ao jantar, carne de chibo ou de cabra, com batatas oucom feijão.

A merenda, papas de carolo de milho e conduto:queijo, presunto e chouriço, comido sobre o pão.

A comida ritual, própria dos tempos festivos, erapreparada segundo as posses das famílias.

Pelo Natal eram feitas as filhós, com receita “aolho”(6), como diziam, com farinha de trigo, ovos,mogango, azeite, leite e aguardente, fritas com azeite,depois da amassadura fermentar, em grandescaldeiras de latão ou de cobre, utensílio que passavade casa em casa ou de família em família, porempréstimo, porque era objecto de luxo, que todasas mulheres desejavam possuir.

Na penúltima década do século XIX, uma mulher doCasal, de nome Ana Fernandes, herdou um pedaçode terra, no lugar do Castelo Velho, e logo o vendeupara comprar uma caldeira, com o dinheiro recebido,no mercado do Fundão. Para comemorar o feito, poisera acontecimento de prestígio, percorreu algumasruas do Casal, cantando e tamborilando na caldeira:

“Tum, tum, tum,de uma cancheira,tum, tum, tum,comprei uma caldeira!”(7)

Pela Páscoa, algumas famílias mais abastadasfaziam os Bolos da Páscoa, preparados, porfermentação da massa composta por farinha de trigo,ovos, leite, azeite, aguardente, por vezes, comsementes de erva-doce, cozidos em forno não muitoaquecido.(8)

Sendo terra de muita castanha, festivos eritualizados eram os magustos, nos meses de Outubroe Novembro, no campo, juntando rapazes e raparigas,em alegre convívio, numa ruptura com o trabalhoquotidiano, rigoroso e difícil.

As dificuldades económicas das famílias eramavaliadas pela comunidade que, embora fechada aoexterior, era aberta interiormente. Quase todos sabiamquase tudo dos outros. A entreajuda no trabalho, quese manteve até hoje, na doença, na morte e nosmomentos difíceis, era regra comunitária. O sentimentode vizinhança e a interiorização da pertença a umgrupo geravam sentimentos de solidariedade.

Uma família que, por exemplo, não fizesse filhós,pelo Natal, era sinal de estarem em dificuldades.Familiares e vizinhos repartiam com essas famíliasas filhós e os bolos.

As castanhas eram, ainda, um factor de relaçõesfamiliares e sociais intensas, corn fortes sentimentosde socialização, em momentos ritualizados. Nasnoites frias, familiares e vizinhos confraternizavam, noserão, à volta da lareira e frente a uma panela decastanhas cozidas ou assadas no borralho. Cada umtirava as castanhas da panela, descascava-as, atiravaas cascas para a pilheira, que serviam de acendalhapara o lume da manhã seguinte, ou eram atiradaspara o monturo, para estrume.

As castanhas eram mastigadas entre o contar avida, transmitir notícias ou dizer contos e contar umahistória, como a seguinte:(9)

“Um dia, dois compadres cegos, estavam a comercastanhas cozidas, que tiravam de um panelo de barro.Depois de beberem um copito de aguardente,começaram a discutir sobre quern tinha comido maiscastanhas. Cada compadre cego dizia ter comido maisdo que o outro, porque era mais ligeiro no dedo. Àstantas, diz um dos compadres:

- Ó compadre, eu comi mais porque as comi com acamisa!

- Ná, compadre, eu ganhei, eu comi mais, porqueaté comi com o casaco!”

É de referir o ritual da taborna ou tiborna, praticadopelos rapazes ainda há poucas décadas, que consistiaem surripar broas, ainda quentes, no forno, às mulheresdescuidadas, após a tiragem da cozedura, e correrpara o lagar para torrarem a broa, em fatias, nas

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brasas da fornalha, mergulhá-las no azeite das tarefase comerem-nas.

A conservação dos alimentos

Conservar os alimentos era um grande problema.Uma grande parte era consumida logo após a colheita.A carne de porco era conservada na salgadeira, depedra ou de madeira, mergulhada em sal. O enchido,morcelas chouriças e chouriçosa conservados emazeite, em potes de barro vidrado, para evitar quesecassem e tomassem ranço.

O tomate, meio amadurecido, era conservado emvinagre, proveniente do vinho que azedava, em potesde barro.

O milho e o centeio eram armazenados em arcazes,para evitar que os ratos o roessem e conspurcassem.O pão cozido, para a semana, era guardado em tábuassuspensas do tecto, coberto por panos, em locaisescuros.

As castanhas não consumidas após a apanha eramcolocadas no caniço, para secarem e, depois dedescascadas, eram guardadas em sacos de pano cru.Algumas castanhas eram conservadas, em verde,enterradas em areia, nas lojas, para seremconsumidas nos meses de Novembro, Dezembro eJaneiro.

Durante o dia, o conduto, (toucinho, queijo,azeitonas ou chouriça) era guardado em folhas decouve ou em panos molhados, para não secar.

O pão, o azeite e o leite

Pão, azeite e leite era a trilogia dos produtosalimentares muito cara dos casaleiros. Uma boaprodução de pão, uma boa carga de azeitonas e leiteque bastasse, para o consumo do quotidiano e para oqueijo, era a recompensa e o contentamento para alabuta diária.

O pão era o último alimento a faltar na arca; umnaco de broa ou um pedaço de centeio eraminsubstituíveis nas refeições. Se faltava o condutocomia-se pão seco sobre o caldo. Caldo de couvescom migas de broa foi a ceia de muitos casaleiros.Devido à qualidade dos solos para o cultivo do milho,na maioria milho branco, nas assentadas junto dosriachos ou das nascentes, o consumo da broa levavavantagem em relação ao consumo do centeio. Osciclos anuais de “semear, colher, comer” eram definidospelos dois cereais. Ao ciclo da maturação do centeio,como cereal de sequeiro, de Outubro a Junho, períodode oito meses, seguia-se o ciclo do milho, cultura deregadio, de Junho a fins de Setembro, quatro meses.A cultura do milho exigia mais cuidados e mais mão--de-obra do que a do centeio. Amadurecido o centeio,comia-se, essencialmente, de Junho a Setembro, opão obrado dom desse cereal, escuro com aroma

característico.Era denominado “o pão”. De Outubro a Maio,

consumia-se o pão de milho, após a desfolhada e asecagem do grão na eira. Era chamada “a broa”.

Temos, portanto, o ciclo do pão e o ciclo da broa,embora muitas famílias não os definissemconcretamente.

O trigo, cereal nobre, para os dias graves, o pãodos ricos, teve pouca expressão no Casal.

Em certos anos, chegava a fome. A míngua do pãoera extrema, especialmente nos meses de Abril eMaio. Grupos de mulheres iam do Casal a CasteloNovo, cerca de dez quilómetros, para comprarem umabroa, racionada pela numerosa prole. O centeio eraceifado, ainda meio seco, e debulhado para ser levadauma moedura à azenha.

Muitas famílias, acabado o milho e o centeio aindaem maturação, em Maio, faziam pão com farinha decevada, pouco própria para a panificação, por possuirpouco gluten e a massa não levedar ou fintar. O pãode cevada, muito negro e pesado, era conhecido por“pão praganudo”, facto que ficou registado na oralidadetradicional, comentando a cevada:

“Chamais-me praganudamas lá virá o mês de Maio,Em que vos dareiUma grande e boa ajuda!(10)

O casaleiro produzia maioritariamente milho branco,que dava uma broa alva, macia e adocicada, poroferecer melhores produções.

O fabrico do pão podia ser simples ou de mistura,neste último caso, meado, com farinha de milho e decenteio ou de milho amarelo e milho branco, outerçado, com farinha de centeio, de milho branco e demilho amarelo.

As perdizes e a passarada competiam com ohomem na comida dos grãos de milho ou do centeio,dizimando, por vezes, as searas, que eram guardadaspelos rapazes. Em 1830, para protecção das searas,o Governo do Reino pagava uns tantos réis por cadapássaro morto apresentado na Câmara Municipal deSão Vicente da Beira. Como a fome e a míngua dopão aumentavam, o Juíz daquela vila solicitou aoIntendente-Geral da Polícia, para que fossem apenasapresentadas as cabeças dos pássaros, porque acarne era necessária para a alimentação do povo.(11)

Uma grande parte das famílias, quando já não tinhacereal para a broa, pedia, por empréstimo, alqueiresde milho, a serem pagos por alqueires de milho, naaltura da colheita, ou de centeio, com o ganho deuma quarta de cereal para o emprestador. Algumaspessoas para pagarem o empréstimo em centeiotinham que ir para a ceifa, ao quinto, nos campos deIdanha ou Penamacor, para satisfazerem o contratado.Empenhavam-se, pelo pão, na Primavera, para se

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desempenharem no Verão.Uma mulher do Casal, conhecida por Tia Rita Grande,

quando acabava o milho, comprava o pão e enterrava-o para os filhos não o comerem de uma só vez.

O pão de trigo raramente era consumido. Era o pãodos ricos, mais caro do que o centeio e o milho. Estavana mesa do pobre apenas na festa e na doença. Ossolos não eram próprios para a cultura deste cereal.A cor do pão consumido também definia a hierarquiasocial: o pão branco, de trigo, para os ricos; o pãoescuro, de centeio, para os pobres.

A par do pão, que não podia faltar a qualquermomento, e do azeite, da colheita anual, encontrava-seo leite, um dos mais importantes alimentos, consumidona sua forma integral, bebido simples ou com centeioesmigalhado ou broa esfarelada, ao almoço ou à ceia,ou nos seus derivados, queijo fresco ou curado, bemcomo o soro, seu componente pobre, retirado dacoalhada no fabrico do queijo , comido com sopas depão. Se o leite foi a comida principal, em muitasrefeições, o queijo foi o conduto de muitas merendase um acompanhante de muitas refeições.

A produção de leite e o seu valor nutritivo oscilavaem certas alturas do ano, devido aos pastos, em queo leite dessorava, ficando fraco, quer para aalimentação quer para a produção de queijo.

A colheita da azeitona, para conserva, efectuava-seem Novembro, comendo-se “retalhada”, que adoçavaem quinze dias três semanas, ou “curtida” atéFevereiro ou Março, data em que era salgada, parase conservar. Antes da salga, a água era mudadaalgumas vezes, facto que regista o dito popular:

“Quem quiser um bom azeitoneiro,tem que escoar três vezes em Janeiro!”

O azeite, como já foi referido, era o principal temperoda comida do pobre. Era o ingrediente para as friturase dava luz nas candeias. Em anos de fracas colheitas,era poupado por mão sábia da mulher, que cortava aaltura do fio da almotolia, tendo muitas vezes que serpedido emprestado até à colheita seguinte. Pela suacor e pelo seu valor, o azeite era considerado ouro,como diz a quadra popular:

“Colhei colhedores,apanhai apanhadeiras,que são carrolas de ouroque saem das oliveiras!”(12)

As refeições

As refeições constavam da comida, como caldo decouves ou de outras verduras, batatas ou feijão, e doconduto, como carnes da salgadeira, enchidos, queijo,fritos ou azeitonas.

O conduto que não ia ao prato era posto sobre a

fatia do pão, normalmente cortado aos pedaços coma navalha.

No campo ou em casa, os homens comiam semprecom a cabeça descoberta, preceito que não abrangiaas mulheres, como era normal todos benzerem-seantes de começarem a comer.

A comida do casaleiro era simples e pouco variada,com raras modificações da dieta. A variação da comidaacompanhava a maturação dos produtos do quintal eda fazenda, de acordo com os produtos da época,com períodos fartos e períodos de escassez.

Pela madrugada, havia o desejum ou o “mata-bicho”,com um punhado de figos secos, um naco de pãocom azeitonas ou queijo, um copo de aguardente oude água.

No tempo quente, com os dias maiores, de Junho aSetembro, o almoço ocorria pelas dez horas, umalmoço ligeiro, com feijão frade ou couves cozidascom batatas, algumas vezes apenas comida seca,um pouco de pão e conduto.

Jantava-se pelas treze ou catorze horas, a melhorrefeição do dia, composta por um caldo forte de feijãoou de grão e conduto, ou um prato de feijão, de batatasou de grão com carne ou outro conduto.

A ceia, à noite, após um dia de trabalho, constavade caldo de couves, com azeite e um pedaço detoucinho, se o havia. Em tempos de menos fartura, aceia podia constar apenas de uma salada de pepinoou de tomate, com migas de pão centeio, ou migasde broa em soro.

Nos dias pequenos, no Inverno, na Primavera e partedo Outono, poderia não haver almoço. No Verão, haviamerenda, a meio da tarde, de pão e conduto.

A comida do pastor

Como em cada família havia um ou mais pastores,é de salientar a comida destes trabalhadores, na maiorparte do ano.

Os pastores, após a ordenha da manhã, partiampara a serra, pelas canadas, com as cabradas sóregressando à tarde. Levavam a comida no surrão ousarrão, juntamente com o pífaro, a corna com oconduto e uma lata. Jantavam, pelo meio-dia emerendavam pela tarde. A refeição constava de migasde broa com leite. Levavam uma ou duas cabras porordenhar, cujo o leite era ordenhado para a lata, naqual deitavam as migalhas de broa, que comiam coma cocharra.

À hora da comida, batiam com um pau na lata e ascabras, que estavam por ordenhar, corriam para opastor, que após lhes tirar o leite, lhes dava um pedaçode broa. Os pastores escolhiam as cabras que davammais leite para terem um jantar mais abundante.

Como o conduto para o dia, os pastores levavam,na “corna”, um naco de queijo com azeitonas. Ospastores ricos tinham o conduto melhorado; na “corna”,

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dividia a meio por uma rolha de cortiça, levavamchouriça ou presunto, de um lado, e azeitonas ouqueijo, do outro.

A tarde, já próximo da povoação, quando os pastoresdormiam com as cabras, nas cortes ou no bardo, umirmão levava-lhe a ceia, numa lata, normalmente, sorocom broa, proveniente do fabrico dos queijos com leiteda ordenha da manhã.

Os lugares da refeiçãoe o modo de servir

Quotidianamente, o lugar da refeição era a lareira.Em dias de festa, ou por ocasião de visitas, a comidaera servida na mesa da sala ou sobre a arca.

À lareira, as refeições podiam tomar dois aspectosem relação ao modo de cada um servir. Com a comidanum grande prato ou num alguidar pequeno, o “tejelão”ou “barranhão”, sobre a mesa do pão, indispensávelna cozinha, uma pequena mesa com gaveta, onde seguardava o pão e o conduto, em que cada um iatirando, com o garfo de ferro ou com a colher de lata,o seu quinhão em cada prato, até não haver maiscomida. Ou com a comida distribuída em pratos debarro, normalmente sempre o mesmo. A mulher a umcanto e o homem a outro.

Primeiro, era servido o homem, depois os filhos, epor último, a mulher, que muitas das vezes ficava como pior quinhão e a dieta reduzida.

Os restos da comida eram para os bichos, o cão eo gato, ou para o “vivo”, as galinhas e o porco. Aslavaduras e rapaduras, que untavam a água eram parao porco, engurdurando-lhes a vianda.

O vinho, quando havia, era bebido de um jarro debarro, à vez que passava de mão em mão, começandopelo homem ou pelo mais velho. Por vezes, eramusados copos de barro ou de vidro para o vinho.

No lado da mulher estavam as panelas e os pratos,enquanto no lado do homem estava a lenha paracompor o lume.

Tabus e preceitos relacionados com a comida

Ao longo da história, a alimentação foi sempre umagrande preocupação para o homem. Rituais, tabus,preceitos religiosos e crenças ligaram-se à produção,ao manuseamento e à deglutição dos alimentos.

No Casal da Serra, como em outros locais,verificaram-se normas e preceitos, com, por exemplo:Durante a Quaresma não se podia comer alimentosgordos, próprios do Entrudo, ou carne em certos dias,normalmente às terças-feiras e sextas-feiras, comopreceituava a Igreja Católica, salvo se fosse satisfeitoo pagamento de indulgências para a terça-feira.

As mulheres mestruadas não podiam mexer emcarnes, na matação, porque podiam estragar-se.

Por norma, a alimentação obtida localmente, dada

pela natureza ou sob a acção do homem era “forte” esadia. Os casaleiros alimentavam-se de uma comidasadia, mas nem sempre farta, porque era preparadacom os alimentos frescos da horta, produzidos à suavista, por oposição à comida vinda de fora, sem sesaber qual a sua origem.

Para os alimentos serem considerados bons, haviacertos tabus e o rigor das prescrições em relação àscolheitas e aos animais, para consumo, tendo a luaem papel preponderante.

Na lua nova não deviam ser praticados certostrabalhos, porque esta fase da lua é de renovação.Tudo o que, no mundo e no tempo, estavadesordenado, a lua nova, misteriosa, por não ser vista,reordenava o mundo e o tempo.

A carne de porco capado é melhor do que do porco“varrasco”, por capar. Os porcos só deviam sercapados entre a lua cheia e o quarto minguante,porque era esse o tempo lunar propício.

A matação do porco só devia ser efectuada emquarto minguante. No dia da quadratura, ou passagemdo quarto da lua, não se podia mexer em carne, porquepodia estragar-se.

A lua comandava certos trabalhos agrícolas, paraque as colheitas fossem abundantes e os alimentosbons. As batatas só podiam desgrelar-se na lua velhaou lua cheia, porque o serviço feito noutro tempo apele engelhava e o tubérculo amolecia.

As oliveiras só podiam ser enxertadas na lua velhade Abril, para os enxertos pegarem e não mirrarem.Todos os alimentos que espigam (alface, nabo, couve,cebola, etc.) deviam semear-se no quarto minguante,durante o período de sete dias. O cebolo devia sertransplantado em quarto minguante, para pegar, e assuas raízes deveriam ver a lua.

Todos os alimentos que não espigam, como abatata, deviam ser plantados em quarto crescente.

O pão nunca devia colocar-se com a lar para cima,para haver sempre fartura. Nunca devia estar àsavessas. Nunca se deveria deixar miolos de pão nalareira, após as refeições, para que o diabo não viessea casa comê-los e fazer maldades.

Na quinta-feira da Ascensão não devia ser apanhadacouves, na horta, porque estava lá a Nossa Senhoraescondida.

Comer castanhas verdes ou em leite, fazem piolhos.Comer “marouva”, fruta por criar, faz impingens.

* Mestre em Antropologia

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Notas

1- Considera-se “agricultura de subsistência”, aagricultura praticada para consumo do agregado fami-liar, com raros excedentes, como única forma desubsistência.

2- Designavam-se, localmente, “terras foreiras”, asterras de proprietários absentistas, sujeitas apagamento de foro, ou renda, cujo domínio de quem astrabalhava passava de pais para filhos, por herança.

3- Segundo Rosa Dias, falecida em 1912, com 115anos de idade, houve no seu tempo, várias fomes,doenças e guerras, que passaram pelo Casal,chegando a ser asssaltado pelas tropas de João Alves,guerrilheiro da Patuleia.

4- Considerava-se um “isolado populacional”, acomunidade que tem poucas relações com associedades envolventes, em que os jovens procuramparceiro sexual na sua própria sociedade ou mesmo nafamília, com forte índice de endogamia econsanguinidade.

5- Facto referido por José Mendes, falecido em 1959,com 96 anos de idade.

6- Nas receitas a “olho”, junta-se, em quantidadesconvenientes, ovo, massa de mogango cozido, leite eazeite mornos e aguardente, para as filhós, e ovos, azeitee leite mornos e aguardente, por vezes, algumassementes de erva-doce, para os bolos de Páscoa, e,depois, deita-se farinha de trigo, por forma a tornar-seuma amassadura normal, amassando durante cerca deuma hora, ficando a fermentar (fintar), entre duas a trêshoras, consoante a temperatura.

7- Ouvido por José de Matos, em 1910, a seu paiAntónio de Matos.

8- Ver 6.9- Ouvido nos anos 70 do século passado, a seu avô,

por José Mendes, falecido em 1960, com 96 anos deidade.

10- Ouvido, nos princípios deste século, por José deMatos, a seu avô António Caetano.

11- Conforme ofício do Juiz de São Vicente da Beira,dirigido ao Corregedor da Comarca de Castelo Branco,em Junho de 1830.

12- Quadra cantada por António Caetano, falecido em1908, avô de José de Matos.

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Bibliografia

GAMA, Paulo, 1993 Consanguinidade Aparente emSão Vicente da Beira, “Antropologia- Portuguesa”, n°3, Editor Instituto de Antropologia da Universidade deCoimbra.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues , 1981, Plantar, Colher,Comer, Editora Graal, Rio de Janeiro, Brasil

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ALIMENTAÇÃO NA BEIRA INTERIOR E A EDUCAÇÃO PARA UMAALIMENTAÇÃO RACIONAL

por António Maria Romeiro Carvalho*

Neste estudo, tomou-se o Concelho de Idanha-a-Nova como região-base do trabalho. Consultaram-

se fontes escritas e fez-se trabalho de campo,nomeadamente na zona sul deste Concelho. Paracomparar e complementar, consultaram-se váriasmonografias da zona centro do País, bem como

outros estudos a nível nacional.

1. Alimentação no Interior Raiano: ApreciaçãoGeral a uma «Longa Duração» de Fome

Até meados do século XX, o Concelho de Idanha-a-Nova é uma região de população pobre, que comepobre, veste pobre e vive pobremente. Uma populaçãoque trabalha para a autosubsistência e vive reduzidaao espaço da sua aldeia.

A alimentação é essencialmente vegetal: pão,azeitonas, caldo de legumes e um naco de toucinhoou um «miguelho» de farinheira. O pão de centeio édominante. A carne é uma raridade na mesa da maioriada população. Ir ao talho comprar um quilo de toucinhoobriga a trazer também febra, para que o dono dotalho não fique com ela toda. A alimentação diária émuito fácil de resumir: sopa ao almoço, antes do nascerdo sol; gaspacho ou pão com azeitonas, maisazeitonas e um pedaço de toucinho, ao jantar; pão,azeitonas e um naco de queijo, à merenda; caldo delegumes temperado com duas gotas de azeite ou como unto do toucinho ou farinheira e uma talhada desteou desta, à ceia. Este caldo, se sobrasse, seriareaquecido, de manhã, para o almoço.

Dia de festa, almoço melhorado, principalmente noNatal e na Páscoa. Aqui entrava a carne. AosDomingos, o jantar poderia ser já constituído por doispratos: uma sopa de feijão vermelho com sopas depão e, como segundo, feijão vermelho cozido regadocom azeite e acompanhado com uma fatia de pão.Mas não nos iludamos. Este prato só se vulgarizou apartir da entrada em funcionamento do perímetro derega da Campina. Até então, o feijão grande era raro e

constituía a principal moeda de troca da louça de barroordinária idanhanse com os povos da «terra fria».

Não se olhe, apesar do que ficou dito, este universocom olhos de miserabilismo. Pelo contrário, estacapacidade e esta rijeza dos nossos avós enche-nosde espanto. A maioria da população não pode comermelhor, porque baixo é o poder de compra, «não haviao que comprar, como há agora» e mesmo estarudimentar alimentação não era suportada unicamentepelo simples salário. Dando provas de um secular eeficaz saber em gestão do lar e do orçamento famil-iar, recorriam a vários expedientes, entre eles autilização do mealheiro familiar: o porco, a cabra, oborrego ou a burra.

Vejamos um exemplo. Em Janeiro de 1889, ojornaleiro idanhense ganha $140 diários, a seco, ou$70 a comer. Isto é, metade da jorna vai para a suacomida individual. Em Junho do mesmo ano, passa a$500 ou a $300, respectivamente. Mantem-se arelação salário-alimentação. O quilo da farinheira custa$240 e o do chouriço, $600. Magro salário para tãocaros produtos! Se em Janeiro, Inverno, estes saláriossão os mais baixos do Distrito de Castelo Branco ePortalegre, passam a ser os mais elevados nos mesesda ceifa e da debulha. O que equivale a dizer que,passados os meses de Junho, Julho e Agosto, haviafalta de trabalho em todo o Concelho e as dificuldadesdas famílias dos jornaleiros e pequenos lavradoresagravar-se-iam. Estas balizas salariais mantêm-se aolongo dos tempos pois que, de 1915 a 1935,continuam os salários a ser os mais baixos, com aexcepção estival, referida.1

Uma família de quatro pessoas necessita de 4alqueires de cereais para o mês. Uns 2 alqueires (13pães) para a semana. Tirado o pão da poia da forneira,1,7 pães por dia não são demais, pois o pão é o grossoda alimentação: pão com azeitonas, pão com queijo,pão com toucinho, pão com sopa. Tudo se come compão. Às vezes, muitas vezes até, se come pão compão. O custo mensal deste andaria por (Quadro 1):

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O domínio do pão não é apanágio do campo. Acidade também não escapa a esta tirania do AntigoRegime. «O pão é inseparável do nosso sistemaalimentar. No campo ou na cidade, a gente de nívelbaixo limita-se, em algumas refeições, a acompanharo pão parcamente, de produtos não cozinhados:azeitonas, toucinho, uma lasca de bacalhau ousardinhas assadas sem tempero».2 Numa agriculturavoltada para a subsistência nacional, o cereal dominaa paisagem de cultura e a sua quantidade define aimportância do núcleo de povoamento.

O jornaleiro não come pão de trigo, salvo nasfreguesias onde ele abunda, casos de Rosmaninhal eZebreira. Mesmo assim, 78% a 83% do seu saláriovai para o pão quotidiano da sua família. Quanto àcompra de carne, mais longe ficam as suaspossibilidades. Quanto à compra de uma rês? Se oano corresse bem, se houvesse crédito na loja e nacasa do lavrador, poder-se-ia comprar uma cabrita ouuma ovelhita ou até mesmo um porquito para engordare depois vender. Com esta venda pagar-se-ia na loja,no talho e comprar-se-iam os sapatos para o maisvelho ou um vestido de chita para a mais velha.

Tentemos fazer um mês desta família de Jornaleiros,no período de 1863 a 1872, e com os valores mínimos,Quadro 2:

Sabendo que o casal ganharia cerca de 9$000,trabalhando todos os dias do mês, e sabendo quenão estão contabilizados os gastos com a habitação,o unto de porco e iluminação, o vestuário e o calçado,o sal... nada, mesmo nada, além do nível desubsistência. Qualquer acréscimo tinhaobrigatoriamente de vir da arte e manha do marido,

mulher e filhos. Da mulher, tesoureira do lar, graças àsua gerência e poupança, aos seus dedos de fada eà sua diligência de formiga. Do marido, chefe do lar,de algum surripanço de bolota, de uvas e azeitonas,que iam dando para engordar o bácoro, fazer um vinhitoe uns litritos de azeite. Dos filhos, que vão engordandoa cabrita ou o borreguito nos valados dos caminhosou nalguma seara menos guardada. Sim, porque ospais não são loucos; não desperdiçam este trabalhopouco...

O resto vem ainda de todos que, ao Domingo e aoferiado, dão um salto até à horta e, entre três pés decouve e cinco de tomate, junto ao poço ou junto aoRibeiro do Povo, fazem um jardim. Com estesuplemento melhoram a alimentação, oferecendo aosr. fulano de tal a primeira meia dúzia de tomates oua primeira alface. Deste modo investem no mercadode capitais da aldeia vindo a receber, em troca, umenchido ou meio quilo de toucinho, que bem falta fazpara acomodar o estômago, e ganham um não menorcapital que é a fama de «honestos e trabalhadores».É estabelecer e reforçar os laços de solidariedade nacomunidade, obter prestígio e mostrar ostentação.

Esta situação de má alimentação não melhora pelosmeios do século XX. J.L. Dias é claro quando afirmaque «come mal a gente do campo, sobretudo quandotrabalha longe do lar. Caldo ou papas de milho aoalmoço e à ceia, pão seco com azeitonas, umasardinha ou um pedaço de queijo pelo dia fora».3

Lembraremos que, com todos os braços empreguesna agricultura, o trabalho fora do lar era uma constantee, ultrapassados que eram os 5 km., ficava-se por látoda a semana dormindo em palheiros, choças ou aorelento. Não é diferente o que diz Mário M. Andrade,de Segura. A alimentação é sóbria. A base da suaalimentação é o pão de trigo, fabricado em casa. Comoconduto, umas azeitonas, um pedaço de queijo ou detoucinho. O trabalhador de Segura tem três refeiçõesdiárias: almoço, jantar e ceia. De Maio em diante, amerenda. O normal da merenda é o gaspacho.4

A situação não é diferente na «zonha do pinhal» doDistrito. A alimentação é «fraca». Não comem ovos,nem bebem leite. Os ovos são para vender e o leitepara fazer queijos. O dinheiro assim junto vai pagaras dívidas ou adquirir algo necessário. Comia-se pa-pas de carolo com azeitonas, couves com castanhas,nabos, almeirão e alguns feijões com azeite; sardinhasassadas na brasa, toucinho e farinheira, o enchidomais barato. No início deste século, comer batas éum luxo. A couve era a base da alimentação da gentepobre do concelho de Proença-a-Nova. Mais tardeacrecentavam-se batas que, depois de cozidas inteiraseram esborrachadas.5

Mais a norte, na «terra fria», a situação não édiferente. A alimentação é «sóbria». «O pão centeio,a batata, o feijão, o grão de bico, a castanha, couves,acelgas e alfaces são os principais alimentos de todo

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o ano, em poucas variadas combinações, a quedevemos acrescentar a carne de porco, algumasardinha e bacalhau. São quase vegetarianos no verão,quando a dispensa está quase vazia».6

Dê-se um salto até ao litoral, até à Gafanha de Ílhavo.A situação mantém-se semelhante. Eis a refeiçãohabitual de uma família de seis pessoas: ao almoço,apenas broa; ao jantar, calco com ou sem carne; àceia, batatas com ou sem peixe, às vezes com umacebola e um pinga de azeite. Muitas vezes, a ceia é asobra do jantar ou feijão e carolo deilho engrossandoo caldo que sobrou. Por dia, são 3,5 quilos de broa. Ovinho não vai à mesa, salvo as parturientes emconvalescência, que não o dispensam. Contudo,todos, homens e mulheres, rapazes e raparigas sejuntam nas muitas tabernas e comem, e bebem edançam. Uma taberna para cada trinta e cinco fogos.Muitos são os dias de trabalho em que o único alimentoque entra nestas bocas é broa aquecida nas brasas.7

O milho e o arroz eram de tal forma uma raridade naRaia, que são ainda hoje deliciosas sobremesas depapas de carolo e arroz-doce. O arroz é deitado sobreos noivos e sobre os objectos sagrados nasprocissões e sobre os noivos. Nos trabalhos violentosda debulha, melhorava a alimentação, tanto mais que,nesta altura, a superfície das searas e a rapidez daceifa, exigiam mais mão de obra. Havia obrigação dedar carne e cinco refeições diárias. Esta situação dedeficiente alimentação não é só de jornaleiros, mastambém de pequenos lavradores. A situação desteschega mesmo a ser pior que a daqueles que nadapossuem.8 Esta situação geral não terminou antesdas décadas da grande emigração deste século,décadas em que se deixou de aprender a tabuadadividindo a sardinha entre os irmãos!.

A situação dos operários portugueses não é melhor.Tomemos, como exemplo, uma família de quatropessoas: pai, mãe e dois filhos crianças. Trabalhamna indústria de calçado no Porto, corre o ano de 1910.Ao fim de 12 horas diárias, levam para casa qualquercoisa como $720, uns 18$720 mensais. As despezasda família, consideradas ao nível da subsistência, sãoquase desta importância, como se pode observar peloQuadro 3:

Continuando no Porto, um pedreiro ganha $420 pelas12 horas diárias de trabalho. A família de quatromembros gastará $640, num mesmo nível desubsistência que a anterior família. Não há carne.Predomínio absoluto do pão e dos legumes. Não sechega a referir o vestuário ou o calçado.

Apesar do peso enorme na alimentação dosportugueses, o pão é de má qualidade. Portugal temo consumo de trigo, per capita, anual, mais baixo daEuropa e de todo o mundo onde este é alimento base.Como exemplos, para 1912: Portugal, 84 litros; França,284; Inglaterra, 204; Itália, 160; Rússia, 95; E.U.A.,171.9 O pão de trigo é o pão dos ricos. De puro pão detrigo é o corpo de Cristo. Apesar de algumas imagensque se querem fazer passar, o trigo faltava, «às vezes,na aldeia, só em casa do padre aparece um trigo, quesalva a situação».10

Secularmente numa quase autarcia e numa vida deconsumo parco, uma fatia a mais é gula e a velhinha,que come a fatia de pão ao soalheiro, apanha todasas migalhas que caiem no colo e, num religioso gesto,leva-as à boca. Se deixar cair o pão, beijá-lo-á antesde o colocar no cesto, de barriga para cima. Gestos epensamentos só compreensíveis num mundototalmente envolto no sagrado.

2. Alimentação no Interior Raiano: ApreciaçãoGeral a uma Conjuntura de Sobrealimentação

Hoje, os tempos são outros. Há que comer, há quecomprar e o trabalho é menos duro. Mais comida,menos exercício físico, mais doenças. Em 1989/1990,os portugueses distribuiram, percentualmente, assimos seus gastos na alimentação. (Quadro 4)

Estes são dados a nível nacional. A nível do Concelhode Idanha-a-Nova, e um pouco a nível de toda a BeiraInterior, sabemos que o peso da carne e dos cereaisé maior, tal como é menor o peso do leite e do peixe.A base da alimentação são o pão e os enchidos ecarne de porco e outras carnes de talho e capoeira.Os fritos, os refogados e os molhos espessosdominam sobre os cozidos e os grelhados. Felizmente

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que os mais velhos não perderam o gosto pela sopa eé por este prato que consomem grande parte da águae legumes de que necessitam. Os riscos para a saúdesão enormes e bastam três indicadores parapercebermos esta realidade nas nossas aldeias: aobesidade dos adultos, as tromboses e a cada vezmaior procura do médico e da farmácia. Se tomarmos10 portugueses entre os 25 e os 64 anos (Quadro 5):

De 1986 a 1989, todos os distritos do Continenteportuguês têm uma percentagem de mortes pordoenças cardiovasculares mais elevada que paísestão diversos, como a Espanha, a França, a Alemanhaou os E.U.A. A taxa destas mortes, em 100 milhabitantes é de 223,2 para Viana do Castelo, amáxima, e 155,5 para Setúbal, a mínima. Para CasteloBranco, a taxa é de 178,8, um pouco abaixo do meioda tabela.

E a juventude? Para além do não gostar da sopa,os jovens estão, na sua maioria, rendidos às batatasfritas, aos hamburgers, aos doces e aos refrigerantes.A Escola, um lugar primordial de sociabilização paraos jovens, prova esta afirmação. E para os jovens, aironia é ainda maior: há de tudo e tudo do bom e oideal de beleza feminina (e masculina) é o magro.Para se compreenderem as nossas adolescentes,basta saber que, na geração de nossos pais, nosE.U.A., uma modelo pesava menos 8% apenas queuma mulher normal; hoje pesa menos quase um quartodo peso normal de uma mulher. Sabendo que o idealde beleza feminina é Naomi Campbel é impossívelnão sofrer.

E os problemas são graves e colocam-se a doisníveis: doenças derivadas do excesso de calorias, aobesidade, onde 30% dos nossos jovens são obesose doenças derivada de impiedosas dietas, a anorexianervosa e bulimia. A bulimia aparece entre os 16 e osvinte e tal anos. Para ambas as doenças, apercentagem para homens e mulheres é semelhante- 1/ 10, segundo registo no Hospital de Santa Maria.Nos E.U.A, morrem anualmente 150 mil americanosvítimas de anorexia. Muito mais do que o número demortes resgistado nos dez anos de guerra do Líbano.11

O problema é grave e a sua solução está bem paraalém das capacidades do médico e do nutricionista.

A alimentação tem vínculos emocionais profundos.Profundos no indivíduo, profundos na cultura. Aalimentação é um conjunto orgânico; é um sistema,um sistema no plano de valores, pelo menos a nívelda consciência do sujeito. Um problema social total.

Criaram-se alguns mitos e esteriótipos no respeitanteà alimentação de «antigamente» e de «agora». Cite--se meia página da monografia de Fornos de Algodresporque, ainda que escrita em 1938, contém o correctoe o incorrecto, a verdade e a mentira e a meia verdade,além de apresentar juízos de valor. «A alimentaçãoera muito diferente do que é hoje (...) A gentealimentava-se bem, de bom pão de centeio, capado,cabrito, galinhas, cordeiros, vinho, carne de porco,ovos, queijo, caldo de castanhas, verças de horta efilhós. Peixe não havia. Mais tarde generalizou-se ouso do feijão, arroz, bacalhau, batatas, migas e pa-pas de milho(...) Hoje, apesar da tão gabadapseudo-civilização, tudo neste ponto está mudado parapior». O pequeno almoço de outrora foi substituídopor uma «infusão de qualquer droga preta a quepomposamente se dá o nomede café». O pão de milhoe de centeio foi subtituído por farinhas falsificadas.Estas substituições são razão do actual«depauperamento físico». Voltanto à antigaalimentação, esta pesará menos no orçamento famili-ar e beneficiará mais a saúde.12

Quanto a se comer bem antigamente, já ficouprovado que não era bem assim: o peixe não entrava,como bem o autor refere, e a carne era manifestamenteinsuficiente na quantidade e no número das suasaparições. Toda a carne que o autor refere era manjarquotiodiano apenas da mesa dos ricos. O predomínioera vegetal e cereal. Tem razão ainda quanto àqualidade do pão e quanto à qualidade do actualpequeno almoço. Mas não é (só) da alimentação oactual depauperamento físico, se é que este é diferentedo anterior, e não é verdade que o peso da alimentaçãotenha diminuído ou aumentado no orçamento familiar.Neste caso, lembra-se a «lei» de Engel: quanto menoro orçamento familiar, maior o peso da alimentaçãonele.

3. Educação para uma Alimentação Racional

O problema apresenta-se tão grave quanto isto: aalimentação é indispensável à vida humana, mas,embora viver para comer seja morrer doente e maisdepressa, a mesa continua a ser um dos lugares demaior sociabilidade. Para milhares de pessoas, émesmo o único lugar.

Assiste-se hoje ao despertar em força da«consciência alimentar». Ouvem-se contínuos apelosaos cuidados a ter com a alimentação. Todos falamde dietas alimentares. Redigem-se tratados deeducação em alimentação. Assistimos hoje aodespertar das «massas» para a dietética.

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3.1. Que É Educação, Que É Alimentação?

Seja aquilo que for considerado por educação, háem todas as definições alguns pontos geralmentesaceites à partida. Educação significa mudança (paramelhor) expressa no tempo longo. De tal forma é longoe necessário este tempo que os resultados só sãovisíveis, isto é, revolucionários, após algumasgerações. Educar não é impigir informação ou procedera um discurso científico-racionalista esperando queas cabeças se abram à luz. Educar é ajudar aodesenvolvimento de capacidades. Educar é uma acçãotransformadora exclusiva da vontade do educando, nãodo educador, e nesta transformação tem forte peso ouniverso cultural que ambos envolve.

O homem alimenta-se porque precisa. O seu corponecessita de determinados componentes e dedeterminadas quantidades para se manter vivo. Istonão é verdade. Isto é mentira. Um homem almoça ejanta por todas as razões, menos por esta. Isso dese alimentar para viver não lembra a ninguém quecome, muito menos a quem com gosto se senta àmesa para um almoço de negócios, de amigos oufamiliar. Dos vinte usos que os alimentos podem terem sociedade, só um diz respeito à nutrição do corpo.13

Dizer que se come mal em Portugal e que énecessário mudar para uma alimentação racional éretundante. É coisa batida, é discurso já ouvido, éinútil. Fazer discursos deste tipo e pensar-se que semuda, seja o que for, dizendo e redizendo o que se

deve comer e porque se deve comer, é «chover nomolhado». Não há discurso promotor do consumo depeixe que consiga remover a teimosia cultural do«peixe não puxa carroça». Tal como não há nenhumdiscurso que remova o hábito de o comer bem serficar com a barriga a deitar por fora, como discursonão há para remover o moderno e urbano hábito de se(ter de) fazer do jantar a principal (que não a maior)refeição do dia, porque o emprego a isto obriga.

3.2. Afinal, para que É que se Come?

Para além de os alimentos serem usados para nutriro corpo, algo cada vez menos importante no contextosocial contemporâneo, são usados para iniciar, mantere esclarecer relações; significar status, poder eriqueza; expressar amor, carinho, pertença esentimentos morais; representar segurança; tratar eprevenir doenças.

Não oferece dúvidas a ninguém que a alimentaçãopossui então dois valores que se podem dicotomizarem valor nutritivo e valor protocolar. No dias de hoje, oque acontece é que o valor protocolar desenvolve-semais e em detrimento do valor nutritivo. Em quaisquerjornadas ou seminários, mesmo nos de educação parauma correcta alimentação, os cofee-breaks sãosempre constituídos por doces e o «porto de honra»é sempre alcoólico.

Na sociedade em que vivemos, a alimentaçãotransforma-se em situação. Ganha em função o queperde em substância.(14)

3.3. Educar Quem, o Quê e Contra Quê(m)?

Ficou dito que educar é ajudar à mudança e/oudesenvolvimento de comportamentos e atitudes dealguém face a algo, neste caso, face à alimentação.Ora, comportamentos e atitudes são os sinais visíveisde uma cultura e esta é, por definição, algo tãoenraizado que imutável. Por outro lado, a razão pelaqual um educando possui determinadocomportamento, não será a mesma pela qual um outropossui o mesmo comportamento.

Veja-se, por exemplo, há quanto tempo se vemdizendo que os portugueses comem mal: muitasgorduras e fritos, muita carne e pouco peixe, muitovinho e poucos legumes, muitos guizados e poucosgrelhados, muitas sobremesas e pouca fruta. Comerbem é comer muito, ficar de pança cheia e lançar umprofundo arroto: «comi que nem um abade». Certoque isto se passa mais na ruralidade que no urbano,mais nas gerações mais idosas que nos jovens, maspermanece um arquétipo alimentar português.

Este comer bem ser comer muito tem a haver coma secular e sazonal limitação de recursos alimentarespor parte do português. Na verdade, a agricultura é aactividade dominante em Portugal, até aos anos ’50

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deste século e a ruralidade, com os seus valores,permanece, mesmo hoje, nas nossas maiorescidades. Não só porque as cidades portuguesas nãosão urbano, como os seus habitantes, em grandeparte, são ainda aldeões, filhos de aldeões ou netosde aldeões. Na racionalidade do rural, éincompreensível o desperdício e o não aproveitamentoda quantidade proporcionada e da ocasião em que éproporcionada. Isto porque a imprevisibilidade é a únicacerteza que o aldeão-camponês possui.

O aldeão não come sozinho. Aliás, nem mesmo ocitadino se adapta a tal, gosta disso ou de comervoltado para a parede. A refeição não é um frete, nãoé um «tem de se comer qualquer coisa». A refeição éum ritual de integração do indivíduo no grupo e dealiança deste com o divino. Hoje, a dessacralizaçãodo quotidiano terminou com a oração na refeição e apresença comportamental desta aliança, maspermanecem gestos ritualizados do acto integradordo indivíduo no grupo e consequente fortalecimentodeste: pôr a mesa, partir o pão, trinchar a carne,sentarem-se todos, levantarem-se todos, ... De talforma este ritual de refeição em comum é importantena sua função integradora-fortalecedora que a suaperda pode ser apresentada como uma forte razãodos graves problemas familiares e educacionais dosdias de hoje.

Com a saída da aldeia e o fim do predomínio doPrimário, passou-se à recente concentraçãodemográfica no litoral e ao domínio do Terciário. Otempo deixou de dá-lo Deus de graça e passou a valerouro. Produzir muito e ter tulha farta foi substituídopelo ganhar muito e consumir tudo. Os come-rápido-de-pé-meia-dose impuseram-se ao almoço,mas, na verdade, pouco mudou na alimentação dogrosso dos portugueses. Se não são os alimentos epratos tradicionais (feijoada, cozido, fritalhadas), é oprato pequeno burguês (bife com batatas fritas) ou émesmo a refeição do aldeão na sua pureza constituitiva(sopa, pão e um naco de algo).

Já ficou atrás dito que «peixe não puxa carroça».Isto não significa, por exclusão de partes, que oportuguês seja animal de tracção. Nem tão poucosignifica que o Interior fica longe do Mar. Significa,isso sim, que o peixe deixa a barriga vazia, não enchecomo a carne, logo, dá fome mais depressa; logo,não alimenta. E nesta coisa do comer todo o portuguêsfaz questão: «pode não dar para mais nada, mas paraa comida há-de dar, se Deus quizer». Fome é ohorrendo cavaleiro do Apocalipse.

3.4. Comer numa Sociedade Sacralizada

Neste espírito de análise devem também serabordados os condimentos, nomeadamente o sal.Consumir sal é uma obrigação. Não havendo arcas efrigoríficos (e gerações há que se criaram e criam

ainda sem os conhecer), conserva-se a carne nasalgadeira. Neste fazer durar a carne ao longo dosmuitos dias do ano residia o maior dote da dona decasa. Consumir a carne salgada é pois umanecessidade, uma obrigação, um não ter outra forma.E porque geral e milenar, esta forma passa acomportamento cultural. Não se consegue comer semsal e quem come insonso não sabe o que é bom.Comida sem sal «não sabe a nada à gente».15 Dágosto observar como os portugueses despejam osaleiro na travessa de batatas fritas ou deitam umapitadinha de sal, pitadinha aí de meio alqueire, namalga da sopa.

Um outro condimento é o azeite. Embora sejaverdade, no dizer dos médicos, hoje, que o azeite é aúnica gordura que não faz mal, o seu consumoexagerado, que na linguagem popular é pôr o bacalhauou as batatas «a nadar», é uma realidade. Mude ounão mude lá a verdade científica dos médicos, o quenão muda é a verdade cultural do azeite em Portugal.Mais que um tempero, o azeite possui, na ruralidade,o valor de um óleo precioso. Um valor de arquétipocultural milenar mediterrânico. De tal forma que éalimento, medicamento e instrumento ritual. Possuirazeite é, na verdade e no mais pleno sentido do termo,ser rico.

Não condimento, mas acompanhante, é o vinho.Vinho, que «a água faz barrocas». Outroacompanhante é o pão. «Pãozinho de Deus» e que,até há menos de duas gerações, deixava de seracompanhante para ser, simplesmente, o prato único-principal: caldo de farinha, caldo com sopas, miga dealho, pão com azeitonas e pão com pão. Ambos osalimentos são elementos culturais mediterrânicos ecom o azeite constituem a trindade arquétipa doalimento material e espiritual da nossa cultura, que émediterrânica.

Um facto bem representado e incorporado pelareligião cristã-católica. Basta(va) entrar na igrejamatriz, prestar atenção à capela-mor, para disto sedar conta. O azeite na lamparina deixa de ser alimentohumano e passa a ser óleo do Divino Santíssimo; opão, de puro trigo, deixa de ser alimento humano, epassa a ser o corpo do Deus; o vinho, igualmente noaltar, deixa de ser alimento humano e passa a ser osangue do Deus: bem à maneira semita, ambos sãoalimentos de um banquete da aliança homens-Deus.

Destes banquetes e desta aliança é (também) feitaa religião popular portuguesa. As grandes festas têmsempre grandes orgias alimentares. Veja-se, a títulode exemplo, a festa do Espírito Santo no Ladoeiro e oalmoço dado por cada um dos sete mordomos, numDomingo do Pentecostes ao Corpo de Deus.

As entradas: martinis, vinho branco, águas e sumos,pastéis de bacalhau, lascas de presunto, queijo efiambre e palitos salgados. Segue-se o almoçopropriamente dito: sopa, bacalhau à gomes de sá ou

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com natas, carne de porco assada, frango assado,cabrito ou borrego, acompanhadas com batatas fritase cozidas, salada de alface e tomate, tudo regadocom vinho branco e tinto; finaliza-se com dezsobremesas diferentes, de pudins a bolos e saladade frutas; para «acamar», café e o digestivo escocês.Quanto à quantidade, o colocado na mesa dava parao triplo das pessoas comerem durante o dobro dotempo, seis horas.

Hoje, a sociedade dessacraliza-se. Pão é pão, vinhoé vinho e nada mais que isso. O gesto religioso debeijar o pão que cai ao chão ou colocá-lo no cestovirado para cima perderam significado. Permanece oarquétipo, mas já nada diz a muitos. Para estes, arefeição e a alimentação têm de ser vistas de umaoutra forma, de uma forma dessacralizada, nãoritualizada, mais próxima do consumismo. O trabalhodeixou de ser trabalho e passou a actividade; a festadeixou de ser festa e passou a ser ócio. Esta parece-nos ser a diferença essencial entre as duas refeições/situações, entre a dos pais e a dos filhos, não semque, entre as duas, uma permaneça que, não sendojá uma, ainda não é a outra.

A novidade da nova alimentação, do que é realmentenovo, está presente na alimentação da juventude. Aqui,como no resto do Mundo, batatas fritas com ketchup,hamburgers, empacotados e enlatados, ainda por cimacomidos de pé e em andamento, são novidadecompleta. São-no, porque são outra cultura. São-no,porque não «entram», «não dão» com a culturaportuguesa.

A sociedade portuguesa não repudia ostensivamenteesta nova alimentação por duas razões. Uma, porquemudanças profundas estão acontecendo na sociedadeportuguesa, no trabalho, na família e no meio.Segunda, porque é a juventude a portadora principaldesta mudança e os jovens, na cultura portuguesa,sempre foram olhados e desculpados com o sorrisoda complacência maternal. Porém, uma coisa parececerta e, se tal é permitido dizer, perigoso: as«hamburgarias» e as «pizzarias» estão durando bemmais tempo que as suas antecessoras«croissenterias» que, em Lisboa e em Portugal, foramsol de pouca dura...

4. Em Jeito de Conclusão

Nos dias que correm, assistimos a um assalto à«má» alimentação em Portugal. Exércitos de bemintencionados lutam pela generalização e imposiçãode uma alimentação correcta; o mesmo é dizer, deuma alimentação racional. Exclui-se daqui a semprepresente facção da «caridadezinha», isto é, a semprepresente posição da gente fina e educada que quer, atodo o custo, ensinar os labregos -«coitadinhos, nãotêm culpa»- a comer como deve ser.

Ao considerar-se a luta por uma alimentação

correcta como um processo educativo, nele seempenhando todo o Social, percorre-se o caminhocerto. Primeiro, processo educativo significa percursono tempo que envolve uma mudança no sujeito indi-vidual e social a nível da cultura, (para sociólogos eantropólogos), ou a nível das mentalidades, (parahistoriadores). Segundo, porque se parte do princípioque, não se conseguirá, de modo algum, (nem tal sejulga ou pretende), mudar o mundo, como ainda sesabe que os resultados só serão visíveis a gerações.Uma pequeníssima e insignificante alteração nos meushábitos alimentares pode ser a mola da mudança parauma alimentação saudável dos filhos dos meus filhos.

Porém, a alimentação tem vínculos emocionaisindividuais e colectivos profundos e as suas raízesmergulham nos (quase) imutáveis alicerces da cultura.Quando se passou fome toda a vida e quando umacultura justifica os mais «irracionais» comportamentosface à alimentação, falar de «alimentação racional»arrisca-se a ser recebido com um sorriso nos lábiosde tonalidade condescendente ou trocista. É que nistode razão, não há ninguém que a não tenha e nisto dealimentação racional cada qual toma a sua. Masporquê tanta preocupação se um é magro é magro equem é gordo, para ser magro, passa fome? Não éverdade que «a vida são três dias» e as mulheresmagras também ficam solteiras?

* Investigador do Instituto de Estudo e DivulgaçãoSociológica - IEDS da Universidade Nova de Lisboa.Comité de redacção da «Forum Sociológico».

Notas

1 Dcf. Boletim da Direcção geral da Agricultura», n° 1, 6de 1889 e «Salários dos Trabalhadores Rurais», 1935

2 Orlando Ribeiro, «A Cultura do Trigo no Sueste daBeira...», p. 231

3 Jaime Lopes Dias, O Problema da terra e dos que aTrabalham, p. 19

4 Mário Marques de Andrade, Subsídios para aMonografia de Segura..., p. 208

5 M. Assunção Vilhena, Gentes da Beira Baixa..., pp.25-26

6 Joaquim Manuel Correia, Memórias sobre oConcelho de Sabugal, p. 80.

7 João Vieira Rezende, Monografia da Gafanha, pp.220-223

8 Idem, Ibidem, p. 169 Dcf. «A Agricultura», n° 32, 1912, p. 310 Joaquim Manuel Correia, Opus Cit, p. 81

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11 Dcf. Cláudia Moura, «Distúrbios do ComportamentoAlimentar - Um Flagelo do Fim do Século», p. 35-36

12 Pinheiro Marques, Terras de Algodres (Concelhode Fornos), pp. 176-177

13 Citado por Jesús Contreras, Antropologia de IaAlimentación, p. 51

14 Idem, Ibidem, p. 6915 Canção de Pedro Barroso

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Bibliografia

ANDRADE, Mário Marques de, Subsídios para aMonografia de Segura, 1988 (1949), 2° Edição, pp.405

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ESTUDANTES DO DISTRITO DE CASTELO BRANCO NAUNIVERSIDADE DE SALAMANCA (1580 - 1640)

por Joaquim Candeias Silva*

«No es possible comprender Ia historia de Ia culturade un pais sin conocer previamente el papel de IasUniversidades. Y en el caso de Portugal, podemosafirmar que no se puede prescindir de Iasuniversidades extrangeras a Ia hora de hacer balancede su historia cultural, por su importancia en Iaformacion de profesores e alumnos portugueses». Sãopalavras de Angel Marcos de Diós, inseridas no prólogoda sua Tese de doutoramento Portugueses en IaUniversidad de Salamanca (1580-1640), apresentadaem 1975 à Facultad de Filosofia y Letras - Cátedra deFilologia Românica da referida Universidade.

Esta obra, policopiada em três grossos volumes eque lamentavelmente continua inédita, é umainvestigação de grande interesse para nósportugueses (e mormente para nós “beirões do inte-rior”), já que desde muito cedo esta Universidadeexerceu grande atracção e influência sobre o nossopaís, tão grande que se pode mesmo considerar essaatracção como uma das razões que conduziram àfundação da Universidade portuguesa. Como afirmaMarcos de Diós, «Salamanca nunca fue unauniversidad extranjera para los portugueses; desdesu fundacion encontramos buen número deportugueses en el estudio salmantino, principalmentepor razones de proximidad geográfica. (...) Todas Iasuniversidades europeas en conjunto no alcanzan Iasaltas cotas que Salamanca consigue en atracciónsobre los portugueses.»(1)

São palavras, é o ponto de vista de um historiadorespanhol, é certo, mas que conferem em absolutocom a óptica historiográfica tomada do ânguloportuguês: Leia-se Veríssimo Serrão, por exemplo,que categoricamente e sem rebuço afirmou ter sido oestudo de Salamanca aquele que manteve laços maisíntimos com Portugal, tanto pelo número deestudantes, como pelo valor das doutrinas quetransmitiu, acrescentando que, das universidadeseuropeias, foi ela que exerceu maior influência, extensae intensa na Cultura nacional(2). E noutro local: «Nuncahouve em Alcalá de Henares «Estudo Complutensede Madrid» uma nação lusíada, como sucedeu emSalamanca no Renascimento e na época damonarquia dualista».

Dir-se-á que esta atracção não se exerceu sempreao mesmo ritmo e que o período em análise (1580-1640) privilegia um momento alto e excepcional dasrelações luso-espanholas, já que decorria a chamadaunião ibérica, com os dois países sob a mesma Coroa.Sim, é um facto indesmentível que sob o governofilipino a saída de escolares portugueses para Espanhafoi muito mais intensa, constituindo quase um êxodomassivo. Antes de 1580 os monarcas portugueseschegaram a impedir essas saídas, recorrendo mesmoa ameaças (caso de D. João III), com vista a protegero periclitante Estudo de Lisboa-Coimbra; e obviamenteque a partir dessa data Filipe II vai não só anular taisembargos, como até incrementar as relações e ointercâmbio entre Coimbra e Salamanca. Assim, dos779 portugueses que entre 1500 e 1550 demandaramo Estudo salamantino, passou-se praticamente parao dobro num só ano, o de 1581; enquanto a partir de1640, com a restauração da independênciaportuguesa, tal afluência decaiu acentuadamente,chegando o rei D. Pedro II ao ponto de proibir a ida deestudantes lusos para lá. Mas também é verdade quenunca os portugueses deixaram de para lá ir, mesmoproibidos, como foi o caso, entre tantos outros, doilustre penamacorense António Ribeiro Sanches, queem Salamanca se doutorou em Medicina, depois deter frequentado Coimbra.

Razões para isso podem ser enunciadas várias, deacordo com a tese de Angel de Dios. Em primeirolugar, a proximidade geográfica. Depois, por umaquestão de prestígio: enquanto a vetusta cidade doTormes possuía a Universidade mais famosa deEspanha, com alta cotação mesmo a nível europeu,a do Mondego estagnava ou decaía até, sobretudoem cursos como Medicina e Teologia; um títuloalcançado em Salamanca podia ser um trampolimpara uma excelente carreira, pois, como escreveuVeríssimo Serrão, “os graduados por Salamancaconstituíam uma verdadeira elite, ramificada nos maisaltos cargos da Nobreza e da vida eclesiástica. Terestudado em Salamanca era condição de êxito e deprometedor futuro”(3). Factores de peso eram tambémo bilinguismo da época e o papel nocivo da Inquisiçãoportuguesa. Segundo Angel de Diós, era bastantemenor a influência eclesiástica e a censura inquisito-

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rial sobre Salamanca, podendo afirmar-se que a partirde 1580 elas deixam praticamente de se exercer, emvirtude do controlo da Universidade ter passado parao Estado. Com efeito, para o período em questãoparece não se ter encontrado nenhuma exclusão deingresso por o estudante não ter “limpeza de sangue”,ou seja, pelo facto de se ser mouro ou judeu; e ésabido que uma boa parte dos estudantes portuguesesera de ascendência judaica - Angel de Diós calculouque eles seriam mais de 70% no curso de Medicina!

Esta questão sugere-nos ainda algumas reflexõesmais, por esta nossa região ter sido desde muito cedouma área de refúgio e inserção hebraica por excelência.Não havendo naquele tempo protocolos para aextradição de judeus entre os dois países, a fuga eraum expediente usual, sempre que a ocasião a talobrigava: Francisco Morão, natural do Fundão,licenciado em Medicina por Salamanca (1592), andoufugido ao Santo Oficio; ainda exerceu na sua vila na-tal, mas em 1612 fugiu de novo para Espanha(Valverde), com sua mulher Catarina Rodrigues e seufilho Diogo. Ao médico albicastrense FranciscoAntunes Morão, filho do boticário e cirurgião DiogoAntunes Orta, tal como a vários outros seus colegasde Castelo Branco, Covilhã e Penamacor, sucedeuperseguição idêntica. Já menos afortunado terá sidoo fundanense Manuel Lopes, apodado “o romano”,médico cristão-novo formado em 1591, que nãoconseguiu escapar ao cárcere de Lisboa(4). Na verdade,o exercício da Medicina era uma tradição judaica, queem parte se vem mantendo até aos nossos dias - ésabido que cerca de 50% dos prémios Nobel destaespecialidade foram parar a mãos de judeus ou delesdescendentes... Talvez por isso naquele tempo, e umpouco ao contrário do que sucede hoje, a carreiramédica fosse bastante subestimada e até depreciadapelos “cristãos-velhos”, que preferiam para os seusfilhos uma formatura em Direito.

Mas voltemos a Salamanca e à sua Universidade. Aela acudiram neste período beirões de todas asproveniências e de todas as condições sociais:sobretudo nobres e ricos, mas também gentemodesta; jovens na flor da idade, mas também homensde cabelos brancos, como Francisco Bueno, deCastelo Novo, que em 1623 se matriculou em Leiscontando já 67 anos (se não houve engano no registo);bastantes irmãos, como os “Leitão” da Soalheira;algumas vezes pai e filho, como António Moura e seufilho Duardos, de Caria (Moimenta da Beira?, bispadode Lamego).

Tal como em Coimbra, o Direito Canónico (ouCânones) era o curso que ocupava então o primeirolugar, bem destacado, na preferência dos estudantesportugueses (cerca de 40% do total de matriculadosem Salamanca); seguiam-se-lhe, por ordemdecrescente, Artes (c. 16%), Leis (15%), Gramática(12%), Medicina (11%) e Teologia (de 5%). Cirurgia,

Retórica e Matemática eram de frequênciainsignificante (menos de 1%). Quanto ao nossodistrito, ele não se afasta desta tendência nacional,verificando-se mesmo uma grande aproximação dosvalores percentuais, como se pode observar no quadroseguinte:

Cânones 316 = 35,6 %Artes 185 = 20,8 %Leis 139 = 15,6 %Gramática 133 = 15,0 %Medicina 68 = 7,7 %Teologia 42 = 4,7 %Cirurgia 5 = 0,6 %

Frisa-se, no entanto, que os índices obtidos pelocurso de Leis-Direito Civil são um tanto fictícios, umavez que a maioria dos alunos que nele se inscrevia ofazia simultaneamente no de Direito Canónico,acabando a breve trecho por seguir este e anularaquele; já o de Medicina conhecia poucos abandonos,sendo geralmente concluído com sucesso. Importatambém esclarecer que a matrícula em Artes, queprecede frequentemente certos cursos (comoMedicina), se deve ao facto de aquele ser uma espéciede curso propedêutico; durava três anos e só depoisdele concluído os escolares podiam prosseguir, a nãoser que fossem portadores de habilitação idêntica deoutras escolas.

Por grandes centros, a Guarda (com 163 estudantesmatriculados) ocupava um lugar de relevo a nívelnacional, pois vem logo a seguir à capital (Lisboa,com 336). A Covilhã com 115, Castelo Branco com81, Idanha-a-Nova e Penamacor com 63 cada, Fundãocom 58 e Alpedrinha com 43, eram as vilas da BeiraBaixa e deste distrito que detinham maiorescontingentes na Universidade de Salamanca noperíodo considerado (veja-se o QUADRO 1).

Houve, contudo, uma grande variação da frequênciados nossos escolares ao longo dos sessenta anosda «união ibérica»:

1580-1590 181 (= 28,3 %)1591-1600 109 (= 17,1 %)1601-1610 50 (= 7,8%)1611-1620 110 (= 17,2%)1621-1630 118 (= 18,5 %)1631-1640 71 (= 11,1 %)

Assim, se nos primeiros anos, mercê dasexpectativas douradas criadas por Filipe II em tornoda nova situação política (que afinal também haviasido desejada durante mais de um século pelosmonarcas portugueses), a deslocação de beirões paraEspanha atingiu o auge, já nas décadas imediatas osnúmeros acusam um decréscimo notório; ainda seregistou uma considerável recuperação entre 1610 e

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1630, mas a crise geral do último decénio tornariairreversível a Restauração e com ela o afastamentoprogressivo dos portugueses relativamente a Sala-manca. Sem que isso significasse, todavia, um virarde costas total, conforme atrás fica dito.

Anota-se ainda que nem todos os matriculadosconcluíam os seus cursos. Ontem como hoje, haviamuitos estudantes que não passavam do primeiro ano.No caso dos naturais deste distrito o seu número/percentagem ascendeu, no período em análise, a43,4%, quase metade...

Seguem, em apêndice, as listagens dos estudantes,ordenadas pelos concelhos de que eram originários.Nem sempre essa ordenação foi fácil, em virtude dafalta de dados e de certa confusão motivada pelaexistência de bastantes homónimos. Mesmo assimdetectámos algumas identidades repetidas nas fichasde Angel Marcos de Diós, razão por que os nossosnúmeros nem sempre coincidem com os seus.

Enfim, cremos que muitas mais ilações econclusões se poderão retirar deste levantamento. Nãofoi nosso objectivo esgotá-las, sequer enunciá-las.Contentámo-nos por dar a conhecer um trabalhoinédito, em que o nosso distrito surge a cada passocom representantes seus, constituindo uma plêiadedigna de público registo.

* Mestre em História. Investigador

Infelizmente, não dispomos para o período anteriora 1580 de inventários organizados, tal como para este.O único estudo sério que lhe foi dedicado deve-se aonosso prezado Mestre, Prof. Joaquim VeríssimoSerrão, cobrindo o tempo que medeia entre a fundaçãoda Universidade e os meados do séc.XVI. Quantosestudantes do nosso distrito demandaram o Estudosalmantino nessa longa etapa? Seria sumamenteestranho que apenas daqui saísse a escassa dúziade indivíduos que Veríssimo Serrão conseguiu arrolar.Mas, a falta de dados acerca da maioria dos escolares,mormente a sua naturalidade, impossibilita que sechegue mais longe.

Para que conste, foram estes os identificados:- João Rodrigues de Castelo Branco (Amato

Lusitano), de Castelo Branco, em Medicina, de 1526a 1529 (?);

- Rui Luís, diácono, de Castelo Novo, bacharel emCânones em 1545;

- Jorge de Andrade, da Covilhã, bacharel em Leisem 1539;

- Simão Rodrigues, de Penamacor, bacharel emArtes em 1546;

- António Nunes, de Penamacor, estudante legistaem 1551-52;

- Francisco Lopes, de Penamacor, estudante legistano mesmo ano;

- Pedro da Fonseca, de Proença a Nova, emCânones, em 1546147;

- Pedro Rodrigues, do Rosmaninhal, em Cânones,em 1538;

- André Gomes, de Salvaterra do Extremo, emCânones e talvez Teologia, antes de 1540;

- João Fernandes, de Sarzedas, bacharel em Leisem 1539;

- Manuel Jorge, de Sobreira Formosa, em Cânones,de 1537 a 1539;

- Talvez (?) Gaspar Manso, de Oleiros, bacharel emCânones.

Notas

1 Op. cit., vol. l, pp. 5 e 72 Cf. Portugueses no Estudo de Salamanca (1250-

1550), Lisboa, 1961, cap.V3 Op. cit., p. 914 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc.º n.° 12.038

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SALAMANCA E OS LUSITANOS

por Alfredo Rasteiro*

As ligações de Castelo Branco a Salamancaexistem desde tempos remotos e foram destacadaspor Amato Lusitano na XIII Memória da TERCEIRACENTÚRIA, Ancona, 1554, na afirmação: «Sabemosque em todos os climas há lugares temperados edestemperados, pois Castelo Branco, minha pátria, aque Ptolomeu fez referência, a igual distância deLisboa e de Salamanca (a Universidade mais célebrede toda a Europa), é de clima temperado.»

Armando de Jesus Marques em «PORTUGAL E AUNIVERSIDADE DE SALAMANCA. Participação dosescolares lusos no governo do Estudo. 1503-1512,Ediciones Universidad de Salamanca, 1980, traça aslinhas gerais dos contactos dos portugueses comSalamanca, cidade devastada nas guerras com osmouros, repovoada pelo conde Raimundo e pela reginaUrraca com gentes de Coimbra que deram origem àsfreguesias de S. Paulo, S. Tomás Cantuariense e S.Estevão de los Godínez. Estiveram em Salamanca oprimeiro rei português, que era sobrinho de Urraca emais tarde Dinis, que era neto de Alfonso X. Foi emSalamanca o casamento da filha de João III com FilipeII e este assistiu à chegada da noiva em casa do Dr.Olivares, mestre de Amato Lusitano.

Após o encontro de 1231 entre Fernando III e SanchoII, no Sabugal, a fronteira oriental da Beira Interior foifixada em 12 de Setembro de 1297 pelo Tratado deAlcanizes, sem que fossem destruidos laços queaproximam os povos dos dois lados da fronteira,nomeadamente quando se manifestam pela afluênciade escolares portugueses à Universidade de Sala-manca, uma das mais antigas do mundo, fundadacerca de 1230 por Alfonso IX, casado até 1218 comuma princesa portuguesa que lhe levou em dote aregião de Ribacoa com o Sabugal, Castelo Rodrigo,Almeida, etc. Na Universidade de Salamanca, oepónimo «portugués» acrescentado no acto dematrícula, identifica os alunos portugueses.Constituíram confraria na margem esquerda do rioTormes, na igreja Santa Maria de la Vega e enviavamrepresentante ao colégio que elegia o Reitor. Mesmodepois de fundada a Universidade portuguesa, depoisde 1288, a cidade «Del color de la espiga madura»era procurada pelos escolares portugueses,encantados com «as águas alouradas do Tormes» e

com o ambiente estudantil diferente de Lisboa ouCoimbra, porque gastavam menos e brincavam mais,porque «alongaria(m) os seus passeios pela margemdo Tormes, por entre as frescas hortas e pomares davasta campina, onde muito ao longe, na luz escassado crepúsculo, se esbatia o azul fino da serra deBéjar. Depois, já candeias acesas, subiria(m) as ruasestreitas da velha Salmantica, recolhendo-seprudentemente a casa, e revendo ahi os seus themasde grego, ou as Summulae logicales do mestre PedroHispano, fazendo assim vida honesta e buena, comoqueria o sábio rei» (Alfonso X) e o imaginavarelativamente ao início do século XVI Francisco Manuelde Mello Breyner (1837-1903) na biografia GARCIADA ORTA E O SEU TEMPO. E este sentimento míticoem relação à cidade do Tormes pode ter passado doConde de Ficalho para Eça de Queiroz, quandodesignou Santa Cruz do Douro como TORMES, nolivro póstumo A CIDADE E AS SERRAS.

As íntimas relações existentes no passado entreescolares portugueses e os sábios de Salamancapossibilitaram contactos com Abraham bar Samuelbar Zacut e o acesso, desde 1473 ou 1478 àsprimeiras versões do ALMANACH PERPETUUMCOELESTIUM MOTUM, seguido de comprovaçãoprática realizada em 1485 nos mares da Guiné por«mestre Rodrigo e mestre Josepe, judeus, ambosmédicos, e um Martim de Boémia», «Os quaisacharam esta maneira de navegar por altura do sol,de que fizeram suas tavoadas para declinação dele,como agora se usa entre os navegantes, já maisapuradamente do que começou, em que serviam estesgrandes astrolábios de pau», na descrição de Joãode Barros, PRIMEIRA DÉCADA, IV, II. Mestre AbraãoZacuto fugiu à inquisição espanhola em 1492, fugiuda inquisição portuguesa em 1496 e viu o fim aosseus dias na Turquia, em 1522. Mestre Diogo Rodrigoe mestre José Vizinho, juntamente com António deLucena, foram os médicos que assistiram aos últimosmomentos do rei João II, em 25 de Outubro de 1495(Garcia de Resende: VIDA E FEYTOS DEL REY DOMJOÃO II, CCXIII ). José Vizinho, que talvez fosse deVizeu, publicou em 1496, em Leiria, o livro de AbraãoZacuto.

Em 1507 Salamanca foi devastada pela peste e,

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com o regresso à normalidade, será frequentada pelosmaiores vultos da cultura portuguesa dos primeirostrês quartos do século XVI: Aires Barbosa, André deResende, Pedro Nunes, Luis Nunes, Tomaz Rodriguesda Veiga, Martim Afonso de Sousa, Garcia d’Orta,Amato Lusitano, ....

Nos livros de matrícula «portugués» qualifica osestudantes portugueses e em 1534 o antigo escolarAndré de Resende acrescentará ao seu nome oepónimo «Lusitano». Pouco sabemos dos Lusitanos.Pensa-se que os Lusitanos são franjas de CivilizaçõesHallstatt e La Tène que se fixaram no século V a.C.na Península Ibérica, entre o Douro e o Tejo. Deixaramvestígios em Castro Daire (Lamas de Moledo),Sabugal (Cabeço de Fráguas), Cáceres (Arroyo dePuerco), Santa Olaia, e outros locais. Viriato, heroilusitano assassinado em 139 a.C., tem estátua emVizeu, aliviada da espada. Foram massacrados em133 a.C. em Numância, nas nascentes do Douro.Desaparecidos do mapa, ressuscitaram no final doséculo XV em Salamanca, com Élio António de Nebrija(1444-1522) e pouco faltou para no século XVI se criaruma NOVA LUSITÂNIA, de «cristãos-novos», nacapitania brasileira de Pernambuco, de Duarte CoelhoPereira. Nebrija refere os Lusitanos na «Elegia de patriaantiquitate et parentibus authoris», de que existe ex-emplar na Biblioteca Municipal do Porto, edição de1534 que antes estivera na Biblioteca do Mosteiro deSanta Cruz de Coimbra. Américo da Costa Ramalhoem «Estudos sobre o século XVI», Imprensa Nacional,1983, mostra como a partir das palavras Lusum eLyssam de um Texto de Varrão transcrito por Plínioforam construídas Lusiades e Lusitânia no textopóstumo «DE ANTIQUITATIBUS LUSITANIAE, 1593de André de Resende. André de Resende (1500-1573)adoptou o epónimo Lusitano em 1 de Outubro de 1534na «Oratio pro rostris pronunciata, in UlisiponensiAcademia» e a nova moda foi seguida por HieronymoCardoso Lusitano (1536), Georgii Coelii Lusitani (1540)Emmanuelis Costa Lusitani (1552) e outros, até queem Julho de 1551 L Andr Resendii deixou de utilizar oepónimo Lusitano na «Oratio habita Conimbricae ingymnasio regio», enquanto que por toda a Europa oepónimo Lusitano passou a ser legítimo título deorgulho da cultura Sefardim de origem portuguesailuminada em Salamanca e honrada no vasto mundopor gente como Joanne Roderico Castelli Albi Lusitani(1536) posteriormente Amatus Lusitanus (1549), DiogoPires Lusitano, Rodrigo de Castro Lusitano, Rodrigoda Fonseca Lusitano, Brudo Lusitano, ZacutoLusitano, Filipe Montalto Lusitano ... EmanuelConstantino Lusitano na «Oratio habita Roma», 1588e no elogio funebre de Filipe II, 1598, é excepção queconfirma a regra. Isto é, o epónimo Lusitano usadopela primeira vez pelo eborense André de Resendedeixou de usar-se na terra portuguesa, porque osSefardins portugueses o puseram a correr Mundo. Em

outro contexto, o epónimo Lusitano será adoptado pelopintor Vieira Lusitano (1699-1783). Mais tarde o Dr.Salazar (1889-1970) e os seus «viriatos», inventarão«lusitos» e «lusitas» (LIVRO DA PRIMEIRA CLASSE,Livraria Sá da Costa, 1941, p.34).

As expressões «Lusitanus» para português e«Lusitânia» para Portugal tinham sido utilizadas porD.Garcia de Menezes, bispo de Évora, em 31 deAgosto de 1481 numa saudação ao papa Sisto IV, naqualidade de comandante de uma armada enviadacontra a Turquia. (Ramalho, A.C.: Latim Renascentistaem Portugal,INIC,1985). Até então os portuguesesdiziam-se «Portugalenses», eram «Hispano-portucalenses», como Pedro Julião Rebolo, o papaJoão XXI ou eram «portugués», como os escolaresportugueses de Salamanca. O autor da HISTÓRIA DACIVILIZAÇÃO IBÉRICA, 1879, Oliveira Martins (1845--1894) dirá a este propósito na HISTÓRIA DE POR-TUGAL, 1879: «No fim do século XV o nome delusitani começa a substituir o de portucalenses, noslivros; mas essa inovação, perpetuando-se entre oseruditos, torna-se por fim uma crença nacional e quasepopular. Que valor merece a inovação? Nenhum: epor vários motivos...». A intolerância, ofundamentalismo e o proselitismo desencadeadospelas inquisições peninsulares, precipitaram adecadência e a fuga de cérebros. Salamanca, maisliberal do que Coimbra, acolherá como professoresde Medicina: Ambrosio Nunes em 1555, HenriqueJorge Henriques autor do RETRATO DEL PERFECTOMEDICO, 1595, Luis de Lemos, comentador deHipócrates e Luis Rodrigues Pedrosa; professores deTeologia: Pedro Fernandes Sardinha, Nicolau Coelhodo Amaral; professores de Canones: BartolomeuFilipe, Miguel da Costa, Manoel Soares da Ribeira eFernandes Ayres de Mesas; professores de Leis:António Soares, Manoel da Costa, Ayres Pinhel, HeitorRodrigues e Francisco Caldeira; professores de Artese Humanidades: Henrique Jorge Henriques e Luis deLemos, já citados e ainda Henrique Fernandes, Fran-cisco Homem de Abreu, Sebastião Gomes deFigueiredo e Francisco Martins. O prestígio de Sala-manca continuou a atrair médicos como AntónioNunes Ribeiro Sanches(1699-1782), natural dePenamacor, doutorado em 1724. Porém, quando poropção ou por obrigação os povos peninsulares setornaram como corpo morto que de si não temmovimento, ou como o bordão de um cego nas mãosdo chefe da Igreja Católica, segundo os ensinamentosde Inácio de Loyola (1491-1556) a Universidade deSalamanca resiste às reformas de Carlos III declarandoque: «Nada enseña Newton para hacer buenos logicosó metafísicos; y Gassendi y Descartes no van tanacordes como Aristoteles con Ia verdad revelada»,como constatava o grande Iberista que foi OliveiraMartins na HISTÓRIA DA CIVILIZAÇÃO HIBÉRICA,1879. E na longa noite «prohibiendo Ia piedad hazer

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observaciones en el Cerebro humano», como escreveuMartin Martinez (1684-1734) na ANATOMIACOMPLETA DEL HOMBRE, Madrid, 1728, os laçosentre os portugueses e Salamanca foram-se diluindo.

Para terminar, referências a dois Homens elembranças de dois Rios:

1. Amato Lusitano (1511-1568) e António de Nebrija(1444-1522). Na «Memoria C» da QUINTA CENTÚRIA,Salonica,1561, «in qua agitur de ulceribus renibus»,Amato descreve o dicrotismo, ou seja a existência deuma segunda pulsação de pequena intensidade,imediatamente a seguir à pulsação verdadeira. Natradução de Firmino Crespo, é assim o texto de Amato:«... tinha uma pulsação dicrótica, mesmo passandobem de saúde, isto é, que batia duas vezes, a qualproduzia a força robusta da faculdade vital e a tensãodas artérias, como Galeno deixou escrito nãoraramente nos dezassete livros De Pulsibus. Tinhatambém este tipo de pulsação António de Nebrija, sebem estou lembrado. É este António de Nebrija umoutro Varão hispânico nas belas letras (para em poucodizer muitíssimo). Ora, ao escrever isto, subiu-me àmemória lamentar a fortuna deste ancião tão sabedore virtuosíssimo. Com efeito foi ele vencido em con-curso público, na Universidade de Salamanca, pelojovem Castilho, seu discípulo e, o que é mais paraadmirar, quando ambos faziam em proeminente lugara interpretação dos rudimentos de Gramática que opróprio António de Nebrija compusera. Havia umprémio, o vencimento anual de trezentas peças deoiro, além das honras que os grandes homens muitoparticularmente apreciam. Por consequência estedoutíssimo varão retirou-se, vencido por um poucosabedor, repetindo frequentemente a frase de Scipiãoo Grande: ingrata pátria, não comerás meus ossos.Escrevi isto para que os leitores entendam que emtudo e por tudo a sorte manda, pouco valendo osconhecimentos literários e a erudição se não forpropícia a deusa da vingança.»

Armando de Jesus Marques no estudo PORTUGALE A UNIVERSIDADE DE SALAMANCA não esclareceesta questão, embora registe decisões de António deNebrija provavelmente relacionadas com problemasemocionais e de saúde ligados ao dicroismo do pulso,como seja a renúncia em 20/11/ 1503 à Cátedra deGramática de que tomara posse meio ano antes, em23/5/1503, propondo-se para a mesma Cátedra em10/4/1505, sendo empossado em 2 de Maio, para aabandonar de novo em Novembro de 1508. EstaCátedra será entregue ao aveirense Aires Barbosa em23/3/1509 e em 31/8/1509 Nebrija pede a Cátedra deRetórica, sendo provido 3 dias depois. Em 25/6/1511havia 3 Catedráticos de Gramática e Nebrija decidiuescrever «ARTE DE LENGUA CASTELLANA» «sobrelo que han de leer los lectores de Gramatica queconcurraen con los bachilleres y lectores de aquelaFacultad...» A questão com o «bachiller» Castillo será

posterior. Mais tarde António de Nebrija terá Cátedrade Retórica em Alcalá que será transmitida a sua filhaD. Francisca de Nebrija e regerá Botânica, sendocitado por Garcia d’Orta (1500-1568) nos COLOQUIOSDOS SIMPLES, Goa, 1563, Colóquio quinto, Doanacardo: «...Rva(no). Antonio de lebrixa no Dictionariodixe Anacardus herua frequentada acerca de Galeno.Or(ta). Verdade he que dixe isso Lebrixa, e que eramuy docto e curioso, mas enganouse no nome Grego,e sem mais oulhar dixe que Galeno ho dizia, foidescuido: e nam vos marauilheis disto, porque asvezes dorme ho bom Homero». Orta refere-se ao«Dictionarium latino-hispanicum», Salamanca, 1492,a que se seguiram o «Lexicon artis medicamentariae»,Alcalá, 1518 e o «Dictionarium Aelii AntoniiNebrissensis ...» editado por Luis Nunes em Antuerpiaem 1545 e em 1553, na casa de Ioannis Steelsio.Luis Nunes (1510?-1570) natural de Santarém e antigoescolar em Salamanca, professor em Lisboa depoisde 1529, substituirá Garcia de Orta em 1534 e seráprofessor em Coimbra de 1540 a 1544.

Aires Barbosa foi incorporado e agregado ao colégiodos doutores médicos e mestres artistas de Sala-manca em 11/9/1503 e em 20/4/1506 fará parte comNebrija da junta de doutores médicos e mestresartistas encarregados de elaborarem os estatutos dalicenciatura em Medicina. Em 1523 Aires Barbosa foisubstituido por Hernan Nuñez de Guzman, que AmatoLusitano recorda como seu professor no INDIOSCORIDIS ANAZARBEI DE MEDICA MATERIA,1553, III, XCIV: «viro doctissimo, et maximo Pliniiinstauratori, olim in bonis litteris apudSalamanticenses praeceptori nostro».

2. O rio Tormes e o rio Tejo - Nasci em 1936 e o quemais me impressionou quando aos 20 anos passei aprimeira vez por Salamanca, foram as metralhadasmargens do seu rio. Salamanca foi por essa épocauma cidade onde se concentraram ódios esofrimentos, onde Millan Astray gritava «Viva a Morte»e D. Miguel de Unamuno, silenciosamente, proclamavao direito à Vida. Unamuno, paladino da Razão e doDireito, autor de o «Sentimento Trágico da Vida» e«Por Tierras de Portugal e de España», chegou aofim dos seus dias em 31 de Dezembro de 1936, emprisão domiciliária. Miguel Torga (1904-1995), Iberistana linhagem dos Artistas que gravaram o Vale do Côae Siega Verde, calcorreando as penedias do lado decá da fronteira dependurado nos cornos de Endovélico,não o esqueceu: «Unamuno. D. Miguel.../ Faziapombas brancas de papel! Que voavam da Ibéria aofim do mundo.../ Unamuno Terceiro! / (Foi o Cid oprimeiro,/ D. Quixote o segundo).// Amante duma outraDulcineia,/ Ilusória, também/ (Pátria, mãe,/ Ideia / Enamorada),/ Era o seu defensor quando ninguém/ Lhedefendia a honra ameaçada! / Chamado pelo acenoda miragem,/ Deixava o Escorial onde vivia,/ E subia,subia,/ A requestar na carne da paisagem/ A alma

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que, zeloso, protegia.// Depois, correspondido,/Voltava à cela desse nosso lar/ Por Filipe Segundoconstruidol Com granito da fé peninsular.// E falavacom Deus em castelhano./ Contava-lhe a patéticaagonia/ Dum espírito católico, romano,/ Dentro dumcorpo quente de heresia.// Até que a madrugada oacordava / Da noite tumular./ E lá ia de novo o cavaleiroandante/ Desafiar/ Cada torvo gigante/ Que impediao delírio de passar.// Unamuno Terceiro!/ Morreulouco./ O seu amor, por ser demais, foi pouco/ Pararasgar o ventre da Donzela./ D. Miguel.../ Fazia pombasbrancas de papel/ E guardava a mais pura nalapela.»

«Unamuno morreu repentinamente, como o quemorre em guerra... Talvez contra si mesmo», escreveuAntónio Machado (1875-1939), o poeta de «AORILLAS DEL DUERO» «...tierra triste y noble,/ Iade los altos llanos y yermos y roquedas,/ de campossin arados, regatos ni arboledas;/ decrépitas ciudades,caminos sin mesones,l y atónitos palurdos sin danzasni canciones/ que aún van, abandonando el mortecinohogar,/ como tus largos rios, Castilla, hacia Ia mar!».Nesse difícil ano de 1936 Machado evocou Camões ecantou o Tejo, enquanto chorava um amor perdido:«De mar a mar entre los dos Ia guerra,/ más hondaque Ia mar. En mi parterre,/ miro a Ia mar que elhorizonte cierra./ Tú, asomada, Guiomar, a unfinisterre,// miras hacia otro mar, Ia mar de Espana(que Camoens cantara, tenebrosa./ Acaso a ti miausencia te acompana./ A mi me duele tu recuerdo,diosa.// La guerra dio al amore el tajo fuerte./ Y es Iatotal angustia de Ia muerte,/ con Ia sombra infecundade la llama// y Ia soñada miel de amor tardio,// y Iaflor imposible de la rama/ que ha sentido del hacha elcorte frio.» Mar de um lado e outro e no meio a guerra,/mais funda que o mar. Da minha cela/ olho no mar alinha que o cerra/ e Tu, Guiomar, sonhas à janela/ omar largo, o mar de Espanha,/ mar de trevas queCamões cantou./ Penso que a minha ausência te

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Oliveira-Martins: História da Civilização Ibérica,Guimarães ed. 1994

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1, (1250-1550), Lisboa, 1962

acompanha/ deusa e aperta-se-me o peito que te dou./A guerra lançou o meu amor no Tejo forte/ E é total aangustia da morte, / ensombreada por esteril chama,// mel sonhado de um amor tardio/ que floriu em secarama,/ cortada cerce a ferro frio.

* Professor da Faculdade de Medicina de Coimbra

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AS RELAÇÕES CULTURAIS ENTRE SALAMANCA E A BEIRA INTERIOR (Treinta años de experiencia personal)

por José Miguel Santolaya Silva*

Estamos asistiendo en Ias postrimerías del sigloXX a un fenómeno único dentro del entorno continen-tal y peninsular. Tanto España como Portugal se handado un Voto de confianza mutua que en días pasadosha sido refrendado en Ponta Delgada, capital delarchipiélago de Ias Azores, corazón atlántico de Por-tugal. (30-X-96).

Ambos primerosministros se han com-prometido a seguir im-pulsando mutuamenteIas relacciones Luso--españolas, estable-ciendo nuevos lazosde intereses comu-nes estratégicamenteestudiadas para definirsu actuación en losforos internacionalesespecificamente en laUnion Europea, elAtlántico y el Ibero-americano, con elcual les unen lazos eideales comunes. Elcontenido de la Cum-bre Ibérica se ha airea-do por la prensa na-cional e internacional,pero recordaré Iaspalabras finales delprimer ministro portu-guês, Antonio Gu-terres: “Tenemos unaapuesta común en laconstrucción euro-pea, la determinaciónfundamental de parti-cipar en la primera fase de la Unión Económica yMonetaria (UEM) y compartimos una nueva definiciónde la Unión Europea de Ias regiones ultraperiféricas.“palabras de un Beirão, paisano vuestro que apuestafuerte, como estratego con responsabilidadcompartida con el presidente del Gobierno español,José Mª Aznar, por una Europa acorde con los tiempos

actuales y de cara al siglo venidero, y que pondrán demanifiesto el próximo 10 y 11 de Noviembre ante laCumbre Iberoamericana de jefes de Estado e Gobiernoque se celebrará en Santiago de Chile y a la queasisten el Rey Juan Carlos I y José Mª Aznar por parteespañola y por la parte portuguesa el presidente Jorge

Sampaio y AntonioGuterres.

Esta introducción,sinópsis de lo queustedes ya conocen,es el espejo de lo quehace muchos anos;siglos, ha venidoocurriendo con nues-tros pueblos pertene-cientes a Ias comuni-dades de Galicia,Castilla y León, Extre-madura y Andalúciacon Ias correspon-dientes de Portugal.

Fue precisamenteCastilla y León y Por-tugal, qienes hacecerca de mil anos seunen para luchar con-tra el ejército invasordel Islam en la BajaEdad Media recon-quistando Hispania yLusitania a los ara-bes. Del romanoPortus Cale (actualOporto) toma el nom-bre el Portugal moder-no, que marcha para-lelamente con España

incluso en el devinir histórico, desde la Baja IdadeMedia.

Hay un dato poco estudiado y oculto por la nochede los tiempos y es la presiencia del Rey Visigodo D.Rodrigo en Egitania (Idanha a Velha), últimos pasosque da por tierras lusitanas, ocultándose de Ias huestesde Tarik y Musa, prueba fehaciente es la última

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moneda de oro encontrada y acurvada en Egitaniacon el rostro y nombre de D. Rodrigo, hoy en paraderodesconocido. Por otro lado y cimentado esta teoría,existe documentación que hubo una lápida mortuoriaen Viseu, recordándonos que en su iglesia estabaenterrado D. Rodrigo, último rey Visigodo.

Cuenta el Romance de la Penitencia que D. Rodrigodespués de la Batalla de Segoyuela de los Conejos,se internó en la espesura de la Sierra, que no seríaotra que la Sierra de Francia, pasando desde estacomarca salmatina a la Beira, refugiándose en laromana Egitania. Dicho Romance lo recopila Miguelde Cervantes en el capítulo X de su inmortal D. Quijotede la Mancha... que por cierto, parte del mismo, loescribe en Portugal cuando es protegido por el IncaGarcisado de la Vega en Lisboa.

Tomaremos como punto de partida de Ias RelacionesCulturales estos acontecimientos reflejados en Iasfuentes históricas y refrendados por un documentopétreo de una estela funeraria romana aparecida enEgitania a nombre de un indígena aborigen deHelmantica, y que forma parte de un estudiosociológico en el cual trabaja también el Dr. PedroSalvado.

Desde la creación de la primera universidad en laPenísula Ibérica, en la ciudad de Palencia y trasladada,dos décadas más tarde a Salamanca; Portugal tieneuna presencia fundamental en la capital del Tormes.

Pienso y sin temor a equivocarme, que la universidadse traslada a este punto geográfico, estrategicamentesituado en tierras de la Lusitania y hoy ya entoncesde la Castilla. Así los nacidos en Portugal tenían máscerca el Alma Mater, donde estudió vuestro granmédico Amato Lusitano, faro de luz, estudio y culturaque preside el corazón de la entrañable ciudad deCastelo Branco, y cuyo nombre lo ostenta el HospitalDistrital Albicastrense; gracías a todos, los queconformáis Ias jornadas y en ello al Dr. Castelo Brancoda Silveira y a mi buen amigo, incansable luchador yadmirado Dr. Antonio Lorenzo Marques, querido yadmirado por los españoles que conocen sus trabajoscientíficos y publicaciones. Nobleza obliga, miagradecimiento por estar aquí y poder hablar ante tanselectos profesionales investigadores de la ciencia dela cultura médica y salud Pública. Gracias Dr. LorençoMarques Gonçalves y en ello a todos los portuguesesde Pro que han aportado tan brillante idea, pero demanera especial, muy especial a su dignísima esposae hijos, espejo de familia y ejemplo para todosnosotros.

Primeros Pasos

Muchos portugueses dentro de los privilegiados quepueden Ilegar a la Universidad son los que estudianen Salamanca de entre ellos un alto porcentaje siguelos estudos religiosos, literarios o musicales o

médicos. De estos profesionales engresados de laUniversidad Pontíficia de Salamanca (así se llamóvarios siglos), salieron los cuadros educativos queimpartirán Ias clases en la Universidad de Coimbrasegunda en fundarse bajo el reinado de Don Dinis,nieto de Alfonso X, el rey Sabio.

En el compendio historico de la Beira Interior quedanreflejados los devenires culturales de sus hombres yde su historia que llega viva hasta nuestros días,mericiendo el estudio serio por parte de futurosensayos y tesis doctorales por los estudiosos actualesque tenemos y debemos apoyar desde Ias más altasinstancias administrativas de los dos países.

Mi experiencia en tres décadas desde que lleguéde Perú a Salamanca pude contar entre mis mejoresamigos a varios portugueses, siendo de los pocos -no portugueses - que participaba en todos los actoscívicos y culturales de los mismos. Aprendí mucho,casi todo lo que había que saber, conecer del queridoPortugal.

Pasaron los anos y desde la dirección provincial deCruz Roja y con el apoyo y aliento de su presidentaMª Rivero de Cembrano, empiezo a trabajar para crearel primer puesto de Socorro y de Primeros AuxiliosConjunto entre los dos paises hermanos (1976). Estesueño se hizo realidad en tiempos de la “OperatiónPiramide”. Amén, ejemplo para el mundo, fué el primeroque se realizó en los países donde existe y funcionaesta querida institución. Son muchos los quecolaboraron y compartieron mi idea, pero hoy quierorecordar a un gran hombre Beirano también: el Dr.Joaquim Antonio Ferreira Matos cofundador y primerpresidente de la Cruz Vermelha Portuguesa de Almeidaen Vila Formoso, así como al Dr. José de Andrade,gran impulsor de la misma, desaparecido a tempranaedad por un desgraciado accidente de circulación.

Si por parte de España tuvimos el apoyo total delPresidente de la Asamblea Suprema que presidia elbuen amigo Enrique de Ia Mata Goroz-Tizaga, por partede Portugal, el vuelco y la ayuda fue total gracias alpresidente nacional de la Cruz Vermelha Portuguésa,el Coronel Cabarrão, nacido en Castelo Branco.

Queridos amigos, me perdonarán que saque a relucirmi “pequeno o gran ego” al hablar de este episodiopositivo para todos, pero, os lo juro que me sientomuy, pero muy orgulloso de haber contribuido de formadirecta en su creación por los grandes beneficios quedeparó en especial a los emigrantes portugueses, conello se redujeron los accidentes de carretera, mortalesen su mayoría, dado el despliegue informativo y deáreas de descanso que organizamos a lo largo de lacarretera Nacional 620 llamada tristemente, la“carretera de la muerte”, y que hoy, desde aquí,nuevamente elevamos nuestras voces pidiendo queambos paises tomen cartas en el asunto, y prestenmás atención a la autovía que une, Francia, España yPortugal ... y que mas nuertos tiene en su asfalto con

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un 90% de ciudadanos portugueses. Por ello, pido alos directivos de estas VII Jornadas Medicas incluyanen sus conclusiones este tema de vital importanciapor los gravísimos y mortales problemas que acarrea,dentro de la problemática médica hospitalaria judicialetc, etc ...y que muy pocos conocen; temadelicadísimo que hay que poner remedio cuanto antesy merece un serio estudio por parte de la administratiónportuguesa que lo ignora o hace oídos sordos... losmuertos no habaln y sus deudos, prefieren olvidar loocurrido.

Las relaciones deportivo culturales, ocupan unaspecto muy amplio que van desde los campeonatosamistosos o de homenaje, entre los que me caberecordar los organizados por la Federación de Patinajeque presidía José Luis Diego y Díaz Santos cuandohermanamos la localidad de Seia, en plena Sierra deEstrela. Cuántos recuerdos! O los del artífice delcampo de Fútbol Augusto Pimenta de Almeida,Presidente de la Unión Desportivo de Salamanca, degrato y entrañable recuerdo en todos los círculossociáles y culturales de la ciudad, y hoy Director deCaja Salamanca y Soria en Lisboa. Con él y de sumano uno de los mejores jugadores, buena persona ybuen amigo... el de los guante negros: João Alves, ysu pléyade de Jugadores Portugueses que aunqueno soplaron vientos goleadores en su breve cargo deentrenador; los salmantinos aficionados Ilaman a laUnión Desportiva Salamanca: Unión SportivaPortuguesa.

Si el deporte ocupa un 75% del tiempo de la juventudno digamos en el campo musical, Madredeus, MªJoão, etc y muchos grupos musicales que han Ilenado“hasta la bandera” o han colgado el letrero “no haybilletes”. Servidor sufrió en carne propia, no poder entraral Palacio de Congresos, por no haber separado Iaentrada con antelación.

Muchos son los estudiantes que gracias a Ias becasy ayudas que da la comunidad europea pueden estudiarla carrera, o realizar intercambios para completarloscomo Ias becas: Mutis, Intercampus, erasmuslogrando con ello un conocimiento más cercano de larealidad de ambos pueblos. Soy testigo de varioscasos, en mi reciente estancia en Coimbra y al hablarcon vários estudiantes, me sorprendí gratamente delcambio positivo que habían experimentado conrespecto a su precario conocimiento sobre Portugal...confesándome el alto nível que habían encontrado ensus compañeros universitarios y por el domínio deideomas comunitarios. Hablo de estudiantessalmantinos en Coimbra, claro esta.

Por mi parte debo decir que todos los estudiantesde postgrado y doctorado que conozco, en un altoporcentaje son de la Beira Interior, todos ellos grandesprofesionales que han dejado una estela de saber ybuen hacer y como ejemplo de lo que apunto, es elúltimo reconocimiento de la Asociación de Castilla y

León de Técnicos en Seguridad Laboral, premiando atres albicastrenses, con la máxima distinción Asfaleyapor haber realizado una brilhante memoria final.

No quiero dejar en el tintero el logro de un puñadode entusiastas, que logramos traer el curso pasadolos Máster de Estudios Europeos y DerechosHumanos y el de Seguridad y Salud Laboral para quesi impartieran en Castelo Branco.

Fenomeno que ocurría por primera vez, desde losorígenes de la Universidad Pontifica de Salamanca,dicho convenio por ires anos se firmó con elISMAG-Universidad Lusófona, en cuyo professoradoha participado el Doctor António Salvado.

En mis constantes y gratificantes venidas a estasqueridas tierras de la Beira Interior he participado envários congressos y jornadas, invitado porpersonalidades del Mundo Cultural, verdaderosMecenas que han mantenido una constantepreocupación por los valores de esta tierra y el futurode sus habitantes. Ellos son los verdaderos Próceres,Héroes de la Paz, que poco a poco han derrotado almonstruo de la indeferencia, de la incultura y del nuevoanalfabetismo, ellos han logrado que muchosdespierten, se interesen y se preocupen muchosvalores de su querida tierra que los vió nacer y quedesconocían totalmente; ellos se han enfrentado alpoder estabelecido, habiéndose perjudicadotemporalmente, pero al foral salieron victoriosos,siendo la más grande victoria la Moral... Ellos, jamasse doblegaron y son todo un ejemplo digno a seguir...Sé que nos les gusta salir a la palestra, pero quien oshabla les debe mucho, mucho aprendi de ellos, muchonos enseñaron a los Beiranos y a los Salmantinos.

Permitiame que recuerde entre otros al Dr. AntónioSalvado, pionero desde el Museo Tavares ProençaJunior, de congresos, jornadas, encuentros entreEspaña y Portugal. Muchos catedráticos y alumnosde la Universidad de Salamanca, dan fé de ello;publicaciones y un sin fin de actividades culturalesirrepetibles, quedan en el tiempo como ejemplo paraIas generaciones venideras.

Todas estas actividades y otras muchas que se hancelebrado a lo largo de los últimos cincuenta anosquedan celosamente guardadas y resgitradas en esetesoro y paladín de la beira y de todo Portugal que esel Jornal do Fundão y por supesto de esse Guardiande los valores de Portugal y que admiro mucho comomaestro D. António Paulouro, monumento vivo, quecon su mano diestra y amiga, ha sabido conducirdurante cincuenta anos uno de los mejores periodicosde la union Europea, leido en los cinco continentes.

Precisamente, se han cumplido diez anos que estequerido Jornal do Fundão, en un gesto de noblecaballerodidad, de hidalguía e hermanamiento, dedicótodo un suplemento estraordinário a la monumentalSalamanca de oro, aconteciemento cultural e históricoque no se ha vuelto a realizar y en resumen a Fundão

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y la Beira Interior, y que muy pronto tendrá respuesta.Gracias D. Antonio Paulouro, gracias también a D.Fernando Paulouro, a D Joaquim Duarte, a D. PedroSalvado y a todos los que hicieron posible este pasode gigante en Ias relaciones de la Beira Interior conSalamanca.

En el mes de Abril se le rindió un merecido homenajepor parte del Instituto de Estudios Europeus de laU.P.S.A., con motivo del cincuentenario del J. do F. yde los mismos años a D. Antonio Paulouro como di-rector.

Muchas, muchisimas actividades culturales quedanen el recuerdo, siempre vivas, Ias cuales seria casiimposible enumerarlas, y perdonarme nuevamente,pero no que queria cansarnos con un interminableinventario. Creo que la más importante de todas sonIas relaciones humanas entre los habitantes de la BeiraInterior y Salamanca ... España y Portugal. Por ello

quiero y para terminar, recordáles la severa figura delcatedrático emérito de nuestra Universidad de Sala-manca Dr. Luís Sanchés Granjel, toda una instituicionen la vida académica y social, avalada por sus trabajoscientificos y publicaciones.

Por último reitiero nuevamente mi agredicimiento aun grande hombre el Dr. Antonio Lorenço MarquesGonçalves, quién en silencio, con su trabajo diario,con su incansable lucha y preocupacion, ha logradocon el Presidente da Câmara Municipal de Idanha aNova, D. Joaquim Mourão, hacer realidad estas VIIIJornadas de Estudo de Medicina na Beira Interior daPré-História ao Séc XX... para ellos y de corazón, elmás calido de los aplausos.

Muchas Gracias

* Jornalista

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OS ETERNOS ODORES DA MEMÓRIA

por Ribeiro Farinha*

Recorro aos aromas da memória e à experiênciavivida para esta minha comunicação sobre “AAlimentação”.

Na falta de tempo e propensão para vasculharbibliotecas, tentarei abordar o tema proposto sem sairde mim e das minhas recordações da infância e dajuventude.

Alguns aspectos da Alimentação na região ondenasci e vivi até aos 21 anos - Zona do Pinhal, noconcelho de Proença-a-Nova - deixei-os já afloradosna participação de há dois anos, “viagens no Tempo ena Memória”. Tentarei não me repetir muito.

Nasci em 33 e, como todos os filhos de famíliasnumerosas, acompanhei a luta dificil dos meus paispela sobrevivência e atravessei, com algumaconsciência, apesar da idade, os tempos duros daguerra. Como outros da minha idade, cedo aprendi a“Arte” de buscar alternativas que garantissem meios

complementares de aconchegar os estômagoscarentes do agregado.

Afinal de contas era só aproveitar, com perícia massem grandes custos, os “pitéus” que a Natureza punhaà nossa disposição em certas épocas do ano como,por exemplo, a apanha de cogumelos; a caça aostaralhões, rolas e tordos, a pesca improvisada nosribeiros, com muito trabalho e poucos resultados eàs vezes com a ajuda de umas bombitas de Carnaval,sempre nas costas dos Guarda-Rios; a apanha dascastanhas que caíam nos caminhos - a aldeia tinhamuitos e frondosos Castanheiros que, aos poucos,se foram perdendo. Havia, enfim, várias actividadesmarginais, digamos, que a lei do desenrascanço punhaem marcha, a suprir algumas carências.

Os cogumelos eram então, uma boa fonte de“pratos” extra. Por altura da Páscoa aparecem os“tubareiros” ou “tortulhos” que crescem debaixo do

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chão, tipo trufa, nas encosta de mato viradas ao sol ebatidas pelo gado. Hoje escasseiam, como osrebanhos que influenciam o seu aparecimento. Aoaumentarem de volume, fendem e elevam a terrapermitindo assim, a sua localização, quando aindafechados. Ao sairem da terra abrem, escurecem emurcham. Estes cogumelos são muito apreciadosassados ou fritos e, confeccionados com arroz fazemuma deliciosa refeição.

Pelo Outono, depois das primeiras chuvas, crescemos “fradinhos”, em forma de chapéu de sol com umaalça a meio do caule, nas terras ricas em matériaorgânica em decomposição. Tal como os “tubareiros”estes são muito apreciados e proporcionamexcelentes pratos, se encontrados em quantidade.

As épocas em que a rapaziada conseguia melhoresresultados eram aquelas em que se armava aostaralhões, às rolas e aos tordos. Com uma dúzia dearmadilhas de arame espalhadas pelos campos decultivo (com formigas de asas ou pequenas lagartasdo milho a servir de isco), conseguiam-se algumasdezenas de aves (galegos, piscos, ferreiras, cotovias,etc). Para as rolas e os tordos utilizavam-se asaboizes, compostas por uma vara de esteva com umfio na extremidade a fazer de laço. Ao piscar o isco(grão de milho ou azeitona) a vara, presa sob tensão,solta-se prendendo a ave pelo pescoço...

Hoje falo destas “caçadas” com algumconstrangimento. Mas as coisas são o que são. Entãoera assim: a lei da sobrevivência falava mais alto, osagricultores agradeciam a redução da passarada quelhes estragava as colheitas e não constava que asespécies caçadas estivessem em vias de extinção...

Para os menos favorecidos havia a fruta a desafiar amalta. E “roubar para comer” não era roubar, diziamalguns, contra a opinião dos donos que não apreciavamo “ditado”. O tempo dos figos era um tempo de farturae qualquer pessoa baixava um ramo para comer figosmesmo não sendo seus ... muito diferente era saltaro muro da vinha para apanhar uvas. Mas, para osjovens, as uvas, os melões e outras “novidades”, eramuma tentação e o muro não era problema...

Do tempo da guerra, da escassez do pão e dotrabalho na zona do Pinhal muito haveria para dizer,não só da Alimentação deficiente mas, também, dascondições médico-sanitárias, praticamenteinexistentes, nas zonas rurais. A maioria das criançasnão bebia leite nem tinha cuidados mínimos, alémdos que a mãe, tantas vezes sobrecarregada porproles numerosas, lhes podia dispensar, pelo que amortalidade infantil era muito elevada.

Para piorar as coisas, proliferavam oscandongueiros, uns tantos a enriquecer à custa damiséria de muitos. Neste panorama, o dinheiro era aúnica arma a utilizar para conseguir produtoscontrabandeados.

Havia famílias que nem sequer beneficiavam dos

bens da sua lavra. Vendiam-nos, aos domingos e nosmercados da vila (ovos, criação, queijos, cabritos),para comprar bens essenciais difíceis de conseguir.

A década de 40 foi terrível na Zona do Pinhal: o pão,racionado, não chegava para todos e originava grandesbichas nas padarias, desde as primeiras horas damanhã, ao frio e à chuva; muitos homens abalavampara os trabalhos sazonais no Alentejo, no Ribatejo eem Espanha, para amealhar algum dinheiro; nasaldeias perdidas na serra, sem estradas nem telefone,as pessoas viviam isoladas só descendo à vila pelasfeiras anuais, para comprar mercearia, tecidos, etc.Em caso de urgência, era quase impossível chegar láe até os mortos eram carregados no esquife, a braço,pelos moradores das aldeias, entre pinheiros e mato,por caminhos incríveis.

Muita gente vivia, praticamente, dos produtos dalavoura e da “salgadeira”. Valiam os moinhos e oslugares comunitários, onde iam moendo algum grãoe azeitona. Alguns desses engenhos ainda hoje estãono activo...

Aos poucos, as coisas foram mudando: pelanecessidade de escoamento das madeiras, surgiramalguns “caminhos vicinais” que muito facilitaram a vidaàs populações e foram as bases de algumas dasactuais estradas.

Contudo, mesmo com as dificuldades passadas,há ternas lembranças de odores vindos desses tem-pos em que, geralmente comíamos todos do mesmoprato à volta da mesa de pinho! ... pratadas de tomatecom batata e cebola, temperados com o bom azeiteda região; couves ou nabo com batata; salada dealmeirão com batata e cebola ou com feijão-frade, etc.A batata entrava em quase todos os “pratos”. Meu paidizia mesmo: “quem tem batatas tem pão”.

A refeição terminava com pão e algum conduto: umnaco de toucinho ou enchidos, sardinhas que váriasvezes eram divididas em duas ou três partes, azeitonasou apenas um pouco de azeite a untar o pão, conformeas posses de cada um ... Falo nestes aspectos nãopara puxar ao “choradinho” mas porque era assim. Esem dúvida, aprendi muito sobre a vida, a solidariedadee o valor relativo de certos bens materiais, naquelacomunidade que me ensinou a ser homem.

A falta de trabalho levava alguns a servircontinuadamente o mesmo patrão, que geralmenteera dono de lojas ou pertencia às “forças vivas” daterra, por onde tinham que passar aqueles queprecisassem de Atestados, Requerimentos, etc. Emuitos nem sabiam ler. O trabalhador caía numa teiade que era difícil escapar: tinha de comprar na loja dopatrão a preços superiores e nunca sabia o estadodas contas. No ciclo infernal, o dinheiro ganho tornavaaos cofres do patrão e, por vezes, acabava com assuas terras confiscadas para saldar contas duvidosas.Conheci alguns dos que foram esmagados pela“engrenagem”...

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Mas vai sendo tempo de abordar épocas maisagradáveis sobre o tema deste ano e falar dos pratosfavoritos dos dias festivos como a romaria anual, oNatal e a Páscoa, a matança do porco, a malha dopão, os casamentos, etc, onde imperava a riqueza evariedade de iguarias.

Enumerar os “cartões de visita” gastronómicos daminha região seria tarefa dificil. Destacarei alguns queem tempo de festa, são reis, como é o caso doMaranho. Há muito que este prato típico daquelaregião ultrapassou os Concelhos de Proença e daSertã e conta já com muitos prémios em concursosde gastronomia.

Popularizado nos restaurantes da zona e até emLisboa, continua a impôr-se, não havendo festa ouboda que se preze onde não seja servido. Éconfeccionado com carne de cabrito, presunto,chouriço, tudo cortado miudinho. Junta-se-lhe alho,vinho branco, arroz e um pouco de água, ficando amarinar para o dia seguinte. Antes de colocar opreparado nos saquinhos, previamente feitos de buchode cabra (são cosidos com linha branca deixando umaabertura), ainda se junta salsa picada e hortelã.Enchem-se e fecham-se os saquinhos e ficam prontospara cozer e servir com hortaliça cozida, salada ou oque se quiser. Bom apetite!

Falar da matança do porco é falar da seminata, dasoá, das assaduras na braza, do bucho, do paio e detantas e tantas outras especialidades; é falar doshomens experientes na arte de desmanchar e separaras carnes, conforme o fim a que se destinam; dasmulheres que as preparam e temperam, com esmeronas grandes masseiras para, mais tarde, iniciarem atarefa dos enchidos: chouriços, morcelas, paiosfarinheiras, plangaias, buchos, etc. E por toda a casa,o activo perfume dos molhos preparados comespeciarias próprias do evento, onde sobressaem oscominhos, o alho, o pimentão, entre outros. Pela suaimportância na economia doméstica, a matançatransforma-se num ritual simbólico que, hoje, perdeuo seu brilho.

Como a matança, o dia da malha do pão era,também, um dia muito especial que permitia levar“sangue novo” às arcas quase vazias. Não admira pois,que nesse dia, os pratos fossem excepcionais.

Recordo muito bem o tempo das malhas, no Verão,com a eira cheia de “rolhões”, grandes medas de trigoe centeio enfileiradas, separadas por ruas estreitinhas,à espera da sua vez. Os “rolhões”, pareciam casasde uma aldeia em miniatura. E mesmo ao lado, asombra agradável de sobreiros e castanheiros emcontraste com o sol escaldante na eira, que agradecia.

As gabelas de espigas de trigo ou de centeio eramestendidas às camadas no pavimento da eira,preparado de véspera com um banho de água e bostapara alisar e endurecer a superfície. Os malhadores,emparelhados, colocavam-se frente a frente e

começava o despique, com os manguais (oumangueiras) a alternar a batida, dando uma volta noar primeiro, e depois, volta e meia, atroando os camposem redor...

Ao meio-dia vinha o merecido e esperado almoço,composto de iguarias várias, à sombra dos sobreiros.Uma vez servi de ajudante aos malhadores a fornecerágua e vinho, a puxar a palha às mangueiras, a juntaro grão, etc. Comi uma sopa de carne que nunca maisesqueci, composta de grão, massa tipo “manga decapote”, batata cortada em pequenos pedaços, comcheiro a hortelã e poejos e acompanhada de chispe ecabeça de porco. Como o apetite não faltava, aquelasopa - assim chamada - foi uma consolação. Comitanto desse prato que mal toquei no segundo, ascélebres “sopas escaldadas”, prato muito usado peloCarnaval, composto por fatias de pão caseiro cobertode grandes rodelas de paio cozido, enfeitadas comraminhos de salsa e regadas com o caldo onde foracozida a carne! ...Tudo acompanhado com o vinhonatural da adega do anfitrião.

A festa anual, muito diferente das festas de hoje,durava dois ou mais dias. Dentro das possibilidades,todos se esmeravam na preparação dos melhoresmanjares para receber familiares e amigos de fora.

Convidados ou não, ninguém ficava na rua quando,à hora de jantar e antes do arraial “aquecer”, tocava areunir à volta das mesas recheadas.

Os pratos variavam, mas o cabrito no forno ouensopado era muito usual. Os Maranhos é que nuncafaltavam e na Doçaria, a variedade era grande: o pãode ló, as tortas de frutas, as broinhas de mel ebiscoitos vários. Mas o mais famoso doce da região,que como os Maranhos, nunca falta numa festa é aTigelada, espécie de pudim feito à base de farinha,ovos, leite, açúcar, etc e cozida lentamente no fornoem caçoulos de barro, para ficar porosa e leve. ATigelada deve ser servida gelada. Também o arroz--doce não faltava nestas ocasiões, e às vezes os“sonhos” e as “fatias paridas”.

O Natal seguia mais ou menos a tradição: asfilhozes, o bacalhau com couves, o peru ou o galo noforno. Minha mãe fazia, quando tinha, um caldo decastanhas que era uma delícia.

Da Páscoa recordo, sobretudo, o “bolo finto”, umaespécie de folar, o “bolo dos afilhados” em forma deferradura que os padrinhos ofereciam aos afilhadosmais novos, as amêndoas e os confeitos.

O prato principal da quadra continuam a ser osMaranhos.

Os casamentos, que hoje se realizam nosrestaurantes, eram então festas de arromba compratos ricos e variados. As melhores cozinheiras eramconvidadas para dirigir a cozinha e o festim chegava adurar três dias. No almoço de casamento de um primoem que participei com doze ou treze anos - acerimónia foi ao sábado e só regressei a casa na

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terça-feira seguinte - foram servidas quatro sopasdiferentes, antes dos pratos principais. Só me lembroda canja de galinha e duma divina sopa de peixe dorio ...e da frustação que era chegar à mesa uma sériede pitéus para os quais já não havia lugar. A partir daí,passei a resguardar-me para as surpresas finais,mesmo correndo o risco de ficar com fome.

Os batizados nas casas de posses, eram banquetesde casamento em formato reduzido onde não faltavamos pratos e os doces mais representativos da região.

No final da apanha da azeitona também havia repastoespecial. Era costume os componentes do ranchocomerem bucho e paio e beberem sem restrições dovinho do patrão. Depois da ceia cantavam e dançavampela noite dentro ao som da concertina e da gaita debeiços. Também “as desfolhadas” e “debulhas” erammotivos de festa e convívio que acabava com umbailarico, enquanto se comia e bebia até altas horas.

Impõe-se que termine a minha comunicação. Muitase belas ocasiões de partilha e franca camaradagem,à mesa ou na adega, ficaram por abordar, como osmagustos ao ar livre, as participações em comezainasquando alguém trazia caça grossa, etc. E, como seaproxima o S. Martinho, termino lembrando aexpectativa das provas do vinho nas adegas que paraalguns, acabava em desilusão com sabor a vinagre ...Era uma grande tristeza que, nas adegas dos amigosiam apagando com a esperança de que da próximacolheita fosse melhor.

Também eu tentarei fazer melhor no próximo ano.Muito obrigado a todos!...

* Artista Plástico

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1. Foi cabalmente respeitada aorientação que, desde as primeirasJornadas, sustenta a concretiza-ção destas sessões de estudo, noque em particular se refere aoprincípio interdisciplinar, capaz deaglutinar variados segmentos dasCiências Humanas. Nestaperspectiva, se apresentaram vintecomunicações originais, quedesenvolveram a temática,escolhida para este ano: 1 - Aalimentação na Obra de AmatoLusitano; 2 - A alimentação na Beira Interior; 3 - Asrelações culturais entre Salamanca e a Beira Interior.

2. A diversidade de abordagens que ao longo dosanos a Obra de Amato Lusitano vai permitindo, foicom relevo evidenciada, tornando-se geral a afirmaçãode um dos comunicantes: “ A leitura da Obra de JoãoRodrigues de Castelo Branco deixa caminhos abertospara uma contínua releitura”.

3. As comunicações que materializaram o 3° tema(As relações culturais entre Salamanca e a Beira In-terior) deram oportunidade a que fosse salientada aexigência no que se refere a uma continuidade nessasrelações. A presença de uma personalidade como aque define o Prof. Doutor Luis S. Grangel, Presidenteda Associação Espanhola de História da Medicina,

VII JORNADAS DE ESTUDO

sem dúvida que ajudou à formulaçãodeste propósito.

4. Mais uma vez, foi reafirmada anecessidade de se efectuar atradução para português de obrasde grandes escritores médicosnascidos na Beira Interior que,escritas em latim, não viabilizam umcontacto imediato com o seuconteúdo.

5. Participantes e comunicantescongratularam-se por, finalmente,as Jornadas se terem desenrolado

fora de Castelo Branco, considerando a sua genéricadesignação de “Medicina na Beira Interior”. Tal só foipossível em consequência do exemplar apoio da ExmªCâmara Municipal de Idanha-a-Nova.

6. Como vem sendo hábito as próximas Jornadasficaram marcadas para o 2° fim-de-semana deNovembro de 1997, com a seguinte temática:

- Amato Lusitano, a Beira Interior e as índias;- As relações culturais entre Salamanca e Beira In-

terior;- Outras comunicações de interesse para a história

da medicina.

Biblioteca Municipal de Idanha-a-Nova, 8 e 9 deNovembro

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