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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 22: 25-43 JUN. 2004

RESUMO

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 22, p. 25-43, jun. 2004

Pedro José Floriano Ribeiro

Este artigo busca, por meio de um processo de revisão e articulação de conceitos, elucidar as razões esignificados assumidos pelas campanhas eleitorais qua momentos decisivos das democracias de públicocontemporâneas. O uso intensivo de pesquisas e do marketing, a centralidade dos meios de massa, aprofissionalização dos participantes, a personalização e o uso de apelo publicitário sedutor-emotivo emer-gem como as principais características das campanhas eleitorais modernas; tais aspectos só podem sercorretamente apreendidos em seus atributos e fatores causais se se conferir especial atenção às alteraçõesmais profundas e significativas que as antecederam e que fizeram emergir o que aqui chamamos de “socie-dades midiáticas”. Nessas sociedades, a videopolítica sartoriana assume papel fulcral, inclusive para aoperacionalização da nova forma de governo representativo nelas dominante, qual seja, a democracia depúblico. Este artigo conclui – na contramão daqueles que enxergam as campanhas modernizadas comoobras de políticos apolíticos e publicitários oportunistas – que os novos modos do agir político represen-tam apenas a ponta de um iceberg que possui em sua base transformações de ordem societal, política etecnológica muito mais profundas.

PALAVRAS-CHAVE: campanhas eleitorais; democracia de público; mídia; política.

CAMPANHAS ELEITORAIS

EM SOCIEDADES MIDIÁTICAS:

ARTICULANDO E REVISANDO CONCEITOS1

1 Este artigo é parte da pesquisa de mestrado que desen-volvi sob orientação do Prof. Dr. Fernando Antônio Aze-vedo, no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociaisda Universidade Federal de São Carlos. Essa investigação,que contou com financiamento da CAPES – por meio deBolsa de Demanda Social –, inseriu-se no âmbito do Grupode Pesquisa em Comunicação Política da mesma institui-ção. Agradeço os comentários tecidos pelo Prof. Fernandoe pelos pareceristas anônimos da Revista de Sociologia ePolítica, que contribuíram para algumas importantescorreções e aprimoramentos do texto; as incorreções exis-tentes são, entretanto, de exclusiva responsabilidade doautor.

2 Quando nos referimos aos media, queremos dar a enten-der os órgãos e agentes dos meios de comunicação de mas-sa, ou seja: empresas de rádio e televisão, seus controladorese principais profissionais. Assim, media e meios de massanão se confundem: os primeiros são os agentes, enquantoos últimos representam os meios de difusão.

Recebido em 31 de outubro de 2003Aprovado em 8 de maio de 2004

I. INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, não poucos autores têm-sededicado ao estudo da problemática interação en-tre os media2, os meios de massa e os processospolíticos contemporâneos; grande parte das pes-

quisas desenvolvidas e dos trabalhos gerados pos-sui como objeto de estudo as campanhas eleito-rais, em suas múltiplas possibilidades de explora-ção científica. Esse interesse pelas campanhasexplica-se principalmente pela profusão de senti-dos e significados político-sociológicos que vêmà tona, de modo diáfano, nesses momentos críti-cos das democracias representativas contempo-râneas, abrindo amplas condições para o desen-volvimento de profícuas investigações por politólo-gos, sociólogos, antropólogos, jornalistas, teóri-cos da comunicação e publicitários, entre outros.

Em que pesem os excelentes níveis de pro-fundidade analítica atingidos nos trabalhos empre-endidos por estudiosos provenientes das diferen-tes disciplinas envolvidas na temática, alguma con-fusão tem sido feita no afã de explicar as novasformas assumidas pela comunicação política nasúltimas décadas.

Relegando a segundo plano os autores que hámuito vêm trabalhando sobre as mudanças opera-das nas sociedades modernas em decorrência daproliferação dos meios de massa, alguns cientis-

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tas parecem considerar o campo da política comosituado em uma redoma instransponível, em queos atores, em uma espécie de vácuo societário,deveriam atuar incólumes frente a alterações pro-fundas que atingem em maior ou menor grau pra-ticamente todas as esferas das sociedades atuais.

Talvez pela dificuldade em apreender de modocorreto significantes e, principalmente, significa-dos das novas mediações do jogo político, nãopoucos estudiosos têm buscado culpar, conferin-do-lhes maior poder do que objetivamente possu-em, atores que desempenham papéis de destaque– embora não sendo protagonistas – nessaintrincada relação. Quiçá por influência do sensocomum expresso em jornais e revistas, os assimchamados “marqueteiros” têm-se constituído emalvo preferencial dessas investidas; a autopromo-ção que esses “marqueteiros” fazem, como for-ma de elevação de seu “valor de mercado” nomundo da propaganda político-eleitoral, aumentaa tentação de considerá-los os novos “magos” dapolítica.

Este artigo busca, por meio de articulação erevisão de conceitos que fogem a essa pré-concei-tuação derivada do senso comum, explicitar queos novos modos do fazer político, mais do queconstructos resultantes de nebulosos conluiosentre políticos flibusteiros e publicitários oportu-nistas, resultam de alterações profundas queextrapolam o campo da política, afetando a totali-dade da sociedade. Procuramos, acima de tudo,demonstrar que as campanhas eleitorais moder-nizadas (MANCINI & SWANSON, 1996) repre-sentam apenas a cristalização, no campo político,de uma transformação que, ao alastrar-se por inú-meras esferas do cotidiano, já transformou associedades contemporâneas mais complexas em“sociedades midiáticas”.

Assim, a segunda seção do artigo procuraexplicitar a mutação que levou o visível a sobre-por-se cada vez mais ao inteligível; para opolitólogo Giovanni Sartori, o indivíduo contem-porâneo abandonou o mundus intelligibilis da es-crita para ingressar no mundus sensibilis moldadopela autoridade do real imagético (SARTORI, 2001,p. 31-37).

Em seguida, procuramos elucidar os efeitosdessa profunda alteração societária para o campoda política, principalmente por meio do conceitosartoriano de “videopolítica” (SARTORI, 1989;

2001). Nesse ponto, procuraremos explorar edelinear o círculo vicioso que se estabelece entreos partidos políticos – qua instituições regulado-ras e mediadoras centrais do jogo democrático –e os meios de massa, principalmente a televisão.Frente aos graves desafios impetrados àsagremiações políticas pelas condições intrínsecasàs sociedades midiáticas, efetuamos algumas re-flexões concernentes a funções que, conquantocontinuem sendo desempenhadas pelos partidos,passaram a contar também com outros agentesexecutores, notadamente os media televisivos;essa problemática relação levou alguns autores afalar em uma completa substituição dos partidospela televisão, em uma visão catastrófica comque não coadunamos.

Depois, o artigo estabelece um liame entre oconceito de sociedade midiática e o tipo ideal de“democracia de público” elaborado por BernardManin, demonstrando como esse novo modelo degoverno representativo só poderia surgir tendocomo estruturante as características das socieda-des midiáticas, expostas nos tópicos anteriores(MANIN, 1995; 1996). Torna-se diáfana, nesseponto, a convergência das diferentes análises paraa explicação das novas características das demo-cracias contemporâneas.

Por fim, todos os conceitos até então explora-dos tornam-se fatores explicativos dos novosmodos assumidos pelas campanhas eleitorais apartir do quartel final do século XX. Essas novasformas do agir político são expostas em cincotópicos, a partir do tipo ideal de campanha mo-dernizada elaborado por Mancini e Swanson: pes-quisas e marketing eleitoral; centralidade dos meiosde massa; personalização da campanha; profissio-nalização dos participantes e apelo publicitário se-dutor-emotivo (MANCINI & SWANSON, 1996,p. 4-9). Sob a luz dos desenvolvimentos anteriores,atentamos para os fatores causais que imprimiramessas novas características às campanhas eleito-rais das democracias contemporâneas.

Percorrendo esse caminho, não há como fu-gir à constatação de que essas novas formas defazer uma campanha eleitoral, mais do que inven-ções de agentes que com elas auferem enormeslucros, representam apenas a ponta mais visível eruidosa de um iceberg que traz em sua base pro-fundas alterações societárias, tecnológicas e polí-ticas: essa é, em resumo, a conclusão deste arti-go.

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II. MIDIATIZAÇÃO: SOCIEDADE, POLÍTICAE PARTIDOS

As campanhas eleitorais modernizadas desen-rolam-se tendo como pano de fundo sociedadesespetacularizadas ou até mesmo estadosespetacularizados (SCHWARTZENBERG, 1978;DEBORD, 1997). Postadas no proscênio do pal-co principal constituído pela televisão, as imagens,por meio de um auto-conferido caráter de autori-dade do real – já que faz ver ao mesmo tempo emque faz crer naquilo visto3 – intermedeiam as rela-ções entre indivíduos que pouco ou nada abstra-em a partir de elementos não-sensíveis visualmen-te, fazendo com que o visível sobreponha-se aointeligível.

Se até meados do século XV oralidade e gestualextrema e necessariamente personalizados preva-leciam na comunicação humana, com vozes,entonações, expressões faciais e gestos a serviçode uma persuasão sedutora que se dava por meiodo despertar de emoções na audiência, a prensatipográfica de Gutenberg surgiria em 1450 pararevolucionar os meios de difusão, fazendo comque o reino da palavra falada e da imagem pessoalfosse substituído pelo primado da palavra impressaem cada vez mais numerosos livros, panfletos,jornais e revistas que atingiriam o pináculo comomeios de expressão-intervenção na esfera públicana passagem dos séculos XIX para o XX. Essasegunda fase da comunicação humana mostrou-se extremamente favorável ao desenvolvimento dascapacidades cognitivo-intelectuais e críticas doindivíduo, na medida em que a palavra escritachegava ao receptor com maiores margens deneutralidade, tornando premente ao indivíduo ouso daquelas capacidades, não só para ler a pala-vra e compreendê-la, como também, e principal-mente, para abstrair, refletir e analisar criticamen-te o lido. Nesse estágio, o racional ganhou espaçofrente ao emocional e a comunicação humana ad-quiriu ares argumentativos, já que se estruturouao redor de idéias e não de homens.

Já no início do século XX notou-se o princí-pio da exaustão desse estágio, quando a fotogra-fia assumiu cada vez maior importância nos jor-nais, fazendo retornar a mitigada autoridade doreal imagética. Com a proliferação radiofônica, aoralidade da palavra também re-assumiu um pa-pel fundamental, deixando ainda, porém, uma certa

margem de subjetividade ao receptor, na medidaem que este abstraía a respeito daquilo que ouvia.Essa dose de subjetividade seria solapada com oadvento da televisão, que uniria em um só meio aautoridade do real imagética à oralidade, fazendoque o convencimento voltasse a dar-se por meiode rostos, gestos e vozes, em um claro retroces-so a formas emotivas de comunicação, necessa-riamente ultra-personalizadas e pouco afeitas aconstruções lógico-racionais.

Se une imagem e oralidade, a televisão privile-gia aquela em detrimento da palavra falada, namedida em que ela é, per si, autoritariamente real,não se inserindo em um universo simbólico mai-or, como o faz a palavra, cuja condição sine quanon para seu entendimento pelo receptor é o co-nhecimento do universo de signos de que faz par-te – qual seja, a língua específica daquilo dito. Asimagens apresentam-se assim como universais,podendo ser apreendidas de maneira muito seme-lhante em lugares extremamente díspares, enquan-to as palavras faladas enfrentam os limites dasclivagens lingüísticas nacionais ou intra-nacionais(SARTORI, 2001, p. 21-22). É nesse sentido queSartori afirma o caráter revolucionário da televi-são, rejeitando que ela seja continuação ou acrés-cimo em relação ao rádio, pois representou umaruptura radical por meio da substituição da pala-vra pela imagem (idem, p. 22).

Como fica o indivíduo frente ao novo meiotelevisivo? Sartori responde que o homo sapiens,formado pela palavra escrita, cujo conhecimentodesenvolvia-se na dimensão do mundus intelli-gibilis por meio de conceitos abstratos e repre-sentações mentais, cede lugar ao homo videns,que retorna ao mundus sensibilis pré-Gutenberg,ou seja, ao mundo percebido pelos sentidos, emque o simples ver obstaculiza a capacidade de abs-tração e, em conseqüência, de compreensão. En-quanto o homo sapiens era capaz de compreendere de explicar a partir da abstração – bases da pró-pria ciência –, entendendo sem ver, o homo vidensgerado pela televisão volta ao estágio pré-moder-no em que tudo tem correspondência com coisasconcretas, visíveis, observáveis, o que constituiimenso óbice à conceituação de noções necessa-riamente abstratas como “nação”, “soberania” ou“política” (idem, p. 31-37)4.

3 Bourdieu denomina essa autoridade imagética de “efeitode real” (BOURDIEU, 1997, p. 28).

4 “[...] O visível nos aprisiona no visível. Para o homemdiante da televisão é suficiente o que vê, e aquilo que não évisto não existe” (SARTORI, 2001, p. 71).

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Nesse universo, a imagem televisiva é o liameprincipal entre indivíduo e mundo real, constitu-indo-se em poderoso modelador de fenômenossociais e políticos que precisam adequar-se à suaestrutura; o fluxo imagético conforma-se comoum resumo simplificado do mundo real, em umritmo ditado arbitrariamente por outrem, confe-rindo assim um caráter de eterna surpresa quenão deixa tempo à reflexão (DEBORD, 1997, p.188).

Assim, Sartori enxerga a televisão não só comoinstrumento de comunicação, mas também comoinstrumento antropogenético, na medida em queé paidèia, moldando novos indivíduos que con-formarão gerações televisivas (SARTORI, 2001,p. 22-23). Moldando indivíduos, serve ao habitusbourdieuniano, concorrendo à reprodução socialda estrutura de dominação simbólica, sendo instru-mentalizada eficazmente para a imposição/manu-tenção da violência/ordem simbólicas, na medidaem que impõe aos dominados a visão de mundodos dominantes (BOURDIEU, 1997, p. 19-24)5.

Com a construção da realidade contemporâ-nea resultando basicamente de experiênciastelevividas pontuadas por experiências vividas, omeio televisivo aparece como configurante dasociedade, um espaço por onde necessariamentepassa a sociabilidade da maioria dos indivíduos(ALMEIDA, 2002). O ter, que substituíra o sercomo valor supremo ocidental desde a explosãoda sociedade de consumo de massa, no reinoimagético-televisivo só vale se parecer, ou seja, seconferir prestígio e reconhecimento instantâne-

os, independentemente da veracidade da posse(DEBORD, 1997, p. 18).

Essas sociedades “midiocentradas” exercemseu jugo também, como não poderia deixar de ser,sobre a esfera política, afetando tanto represen-tantes quanto representados da democracia depúblico.

II.1. A videopolítica

A videopolítica sartoriana refere-se ao papelfulcral exercido pela televisão na esfera políticacontemporânea, cujo centro de gravidade deslo-cou-se gradativamente da praça pública e das as-sembléias para a tela6 . Essa centralidade televisiva– inserida, obviamente, no processo maior de“midiatização” da sociedade – alterou o fazer po-lítico, já que seus agentes tiveram que se amoldarà linguagem televisiva e ao uso de técnicas cadavez mais sofisticadas, sob pena de situarem-seem posição marginalizada no jogo político(SARTORI, 1989).

Com o declínio da imprensa partidário-opina-tiva e o crescimento das redes privadas de televi-são em detrimento das emissoras públicas, já emmeados do século XX os media de massa con-formavam um centro autônomo de poder que,operando consoante suas lógicas específicas, oracompetia, ora cooperava com a esfera política.Porém, devido à existência de uma certainterdependência em alguns momentos, pode-seafirmar que as esferas política e comunicacionalmisturaram-se, sem o predomínio, entretanto, deuma sobre a outra. Dessa maneira, os media ope-ram hoje de acordo com suas próprias lógicaseconômica, tecnológica e simbólica, deixando osônus de adaptação a essas lógicas aos agentespolíticos que disputam o espaço midiático comoarena principal de inserção pública em sociedades“midiocentradas” (SARTORI, 2001; ALMEIDA,2002).

5 Como qualquer violência simbólica, esta que se vale datelevisão não é apenas imposta coercitivamente pelos do-minantes aos dominados, comportando uma parcela im-portante de aceitação tácita e inconsciente por parte dossubjugados. Da mesma forma, não se deve esquecer quegrande parte dos subjugantes não sabe que age dominandoe manipulando, já que muitas vezes são, eles também, ma-nipulados – como no caso dos jornalistas televisivos.Bourdieu afirma que a televisão pode, porém, serinstrumentalizada pelos dominados em sua luta político-social, trazendo à esfera de disputa política temas e ele-mentos antes tidos por naturais e inquestionáveis(BOURDIEU, 1997, p. 22-30). Nesse sentido, tanto elecomo Patrick Champagne notaram a dependência dos mo-vimentos e grupos marginalizados em relação à televisão,no sentido de que passam a ser praticamente inexistentesse não usam a tela como locus principal de suas açõesreivindicatórias (CHAMPAGNE, 1996, Introdução).

6 Sartori utiliza “vídeo” – como derivação do latim videre,que significa “ver”, “observar” – no sentido da superfícieda televisão em que as imagens podem ser vistas, que emportuguês costumou-se chamar de “tela”. É um sentidodistinto do atribuído pelos anglo-saxões, para quem “vídeo”significa o filme ou a fita onde as imagens são gravadas.Conquanto o mais correto em português fosse o termo“telepolítica”, preservamos “videopolítica” para manter ooriginal sartoriano. Mas vale destacar que há vários termospara descrever basicamente os mesmos fenômenos:“videocracia”, “teledemocracia”, “midiapolítica” etc.

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Em que pese o fato de este artigo não ter comoescopo um debate densamente crítico a respeitoda videopolítica e de seus efeitos à democraciarepresentativa, vale aqui comentar sucintamentetrês conseqüências nocivas do fenômeno queconsideramos as mais pertinentes.

A posição dos meios de massa como esferaautônoma de poder traz riscos à democracia comoresultado de sua natureza intrinsecamente ambí-gua. Por um lado, os media constituem-se em em-presas com fins lucrativos que possuem, conse-qüentemente, interesses políticos, econômicos esociais voltados à busca de resultados financei-ros, o que as torna agentes políticos e econômicosrelevantes da sociedade. Sob outro prisma, a tele-visão constitui-se em espaço público em que grandeparte do jogo político desenvolve-se, principalmen-te nos períodos eleitorais – mas não só nesses, jáque os atores políticos disputam espaço entre simesmo em épocas intereleitorais. Sendoconcomitantemente atores político-econômicos dasociedade e ambientes para as disputas políticas,os media acumulam grandes possibilidades de in-gerência sobre governos e processos políticos,em nome de interesses que caminham, na maioriadas vezes, na contramão dos da maioria da popu-lação que só possui o voto como armainfluenciadora da e interventora na esfera políti-ca.

Um segundo ponto a destacar é que a imagem,supostamente e autodenominada neutra, aoconfigurar-se com enorme autoridade do real nomundus sensibilis do homo videns, conforma-seem poderoso instrumento modelador da opiniãopública, substituindo a palavra escrita ou faladacujos autores e intenções eram mais facilmenteidentificáveis pelo receptor; o confronto entrediferentes posicionamentos mantinha a tomadafinal de decisão nas mãos do receptor, que acabava,ao fim e ao cabo, por escolher os veículos deimprensa que mais condissessem com suasconvicções (SARTORI, 2001, p. 53-55).

A autoridade imagética elimina a multiplicidadede autoridades cognitivas que concorriam para umcerto equilíbrio no primado da comunicaçãolingüística que, per si, mantém margens mais lar-gas de subjetividade aos receptores em virtude danecessidade de abstração; no reino da palavra,preservava-se uma certa dose de equilíbrio entreopinião autônoma e opinião heterônima – que éheterodirigida, ou seja: dirigida por outro que nãoo próprio indivíduo (idem, p. 54).

Com o efeito de real imagético, grande parteda opinião pública passa a ser moldada por aque-les que comandam as imagens, ou seja, os media.É por isso que Sartori afirma que a opinião públi-ca de quem a televisão apresenta-se como porta-voz é, na verdade, apenas o eco de sua própriavoz (idem, p. 56)7. Essa opinião pública forte-mente heterodirigida constitui um risco à saúdepolítica de uma sociedade quando consideramosa democracia representativa como o governo daopinião, já que baseada em um sentimento coletivoa respeito da realidade pública – sentire de re pu-blica (idem, p. 53-54); além disso, políticos epartidos dentro ou fora dos governos guiam-secada vez mais pelas pesquisas que supostamentedetectam essa opinião pública.

Um outro problema apontado por Sartori dizrespeito à “emotização” que a videopolítica trazaos processos políticos, já que a televisão, unindooralidade e, predominantemente, imagem, leva ocidadão-espectador de volta ao mundus sensibilispré-Gutenberg, em que suas emoções e sentimen-tos são despertos por gestos, rostos, expressõesfisionômicas, vozes etc.; o convencimento, antesracional-argumentativo, agora se torna emotivo-sedutor – conforme Habermas identificara há bas-tante tempo (HABERMAS, 2003). O problemabásico aí reside no fato de que a política deve ser,acima de tudo, eminentemente racional nas suasfunções de geração e manutenção de governos,governantes e políticas públicas, e não emocional(SARTORI, 2001).

Logicamente, os problemas que a videopolíticatraz à democracia não se resumem a estes trêsaspectos apresentados muito celeremente8; porém,não sendo essa discussão um dos objetivos do

7 Há alguns estudos no campo da recepção da comunica-ção política que indicam que a televisão não apenas contri-bui para a construção de atitudes políticas como também, eprincipalmente, serve de fonte fornecedora de exemplos aserem selecionados pelos cidadãos para justificar suas con-vicções e atitudes políticas pré-formadas. Para estudosdesse tipo, ver Aldé (2001a; 2001b).

8 Champagne é crítico ferrenho da videopolítica, afirman-do que ela foi forjada conscientemente pelos especialistasque dela mais tiram proveito, quais sejam, jornalistas, cien-tistas políticos com presença assídua nos media, publicitá-rios, relações públicas, assessores de imprensa, institutose especialistas em pesquisas eleitorais e de opinião e todosaqueles que fazem parte do que denominamos neste traba-lho de “profissionalização da política”, alcunhada por

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artigo, as últimas linhas foram apenaspropedêuticas para um debate mais voltado àsmetas deste trabalho: quais são os efeitos davideopolítica sobre os partidos?

II.2. Partidos e televisão: um círculo vicioso

A televisão é tanto mais influente nos proces-sos políticos contemporâneos quanto menoresforem a institucionalização do sistema partidárionacional e o desempenho das agremiações na ca-nalização e expressão de anseios, reivindicações ereclamações do eleitorado. Tal afirmação remeteà problemática da substituição dos partidos políti-cos pela televisão, aventada por alguns autorescomo consumada total e irremediavelmente e des-cartada por outros como infundada e desproposi-tada.

Para situarmo-nos de maneira ponderada nes-sa acesa discussão, urge percorrermos um cami-nho que começa por algumas considerações a res-peito de aspectos que contribuíram para o enfra-quecimento dos partidos políticos nas últimas dé-cadas do século XX; posteriormente, pode-se partirpara a análise da relação partido versus televisãono que tange a algumas das funções do primeiro.

Desafios gerados por profundas transforma-ções sócio-econômicas e tecnológicas foram pos-tados diante dos partidos políticos ocidentais noquarto final do século XX, abalando suas estrutu-ras; vejamos quais foram tais desafios.

Primeiramente – e esse é o desafio mais rele-vante –, constata-se que o substancial aumentoda complexidade social nas sociedades ocidentaisacarretou problemas diversos aos partidos, no quediz respeito a duas dimensões distintas. Em suadimensão estrutural, a complexificação social sig-nificou uma crescente diferenciação funcionalsocietária, multiplicando os interesses – cada vezmais conflitantes e complexos – presentes no seioda sociedade. Tal sociedade altamente segmenta-da por meio de linhas demarcatórias entrecruzadas,

sobrepostas e não ajustáveis a estratificaçõesclassistas tradicionais passou a organizar-se emsubsistemas específicos, em micro-agregações depessoas voltadas à consecução de objetivosparticularistas; ao invés de inclusão e aglutinaçãode interesses em estruturas tradicionais, desen-volvendo visões totalizantes da sociedade, ganha-ram espaço a exclusão e a fragmentação por meiode agrupamentos especializados, fluidos e neces-sariamente parciais (MANIN, 1995; 1996;MANCINI & SWANSON, 1996).

Tal fragmentação desfavoreceu sobremaneiraos partidos políticos, especialmente aqueles comfortes liames societários, como os de massa9 ,cujas bases operário-sindicais fragmentaram-segradativamente em vários subsistemas especializa-dos com interesses específicos e, por vezes, con-flitantes.

As dificuldades de posicionamento partidárioem relação a um eleitorado altamente fragmenta-do constituíram-se em um grande problema aospartidos, não só porque dificultaram o uso doscortes classistas tradicionais, mas também por-que abriram a possibilidade de que os candidatospassassem a propor políticas cada vez mais espe-cíficas, visando a atingir determinados nichos elei-torais, solapando as plataformas totalizantes an-tes comuns às agremiações (MANIN, 1995,p. 27-28).

O aparecimento de inúmeros subsistemasespecializados – grupos de minorias étnicas, fe-ministas, ecologistas, organizações não-governa-mentais diversas, entre muitos outros – aumen-tou a concorrência que os partidos já enfrenta-vam no tocante a aspectos relativos principalmenteà disputa por espaço público, à obtenção de re-cursos financeiros e à conquista de novos mili-tantes e simpatizantes, impelindo as agremiaçõesa modernizarem-se sob pena de perderem grandeparte dos recursos necessários à sua sobrevivên-cia (MANCINI & SWANSON, 1996, p. 7-9).

Em sua dimensão simbólica, a crescente com-plexidade social significou a ruptura das identida-des tradicionais mantidas com estruturas agrega-doras e includentes, como igrejas e partidos. An-tes espaços privilegiados de formação, agregação

Habermas de “cientifização” (CHAMPAGNE, 1996, p.30-34; HABERMAS, 2003, p. 252-273). Em nosso enten-der, essa é uma visão equivocada, na medida em que aproliferação e a valorização desses profissionais são con-seqüências da “midiatização” do subsistema político, queadquiriu tais feições por inserir-se não em um vácuo, masem um sistema societário de que os media constituíram-seem centro poderoso e autônomo; colocar os profissionaiscomo causadores de um processo tão amplo é argumentosobremaneira simplista.

9 Nesse sentido, os partidos do tipo catch-all (“pega tudo”)perderam menos, já que sua amorfa constituição mostrou-se bem mais flexível e maleável para abrigar diferentessubsistemas ideologicamente conflitantes.

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e manutenção de identidades e lealdades, tais or-ganizações mitigaram-se frente a novos subsis-temas especializados que formam identidadesmuito mais fluidas e efêmeras, na medida em queestão em permanente rearranjo com outras micro-estruturas com o fito de melhor defender seusinteresses particularistas. Nessa competição-co-operação entre subsistemas, o indivíduo vê-se àsvoltas com dessemelhantes, sobrepostas e, mui-tas vezes, conflitantes realidades simbólicas. É emtal emaranhado de interesses, subsistemas, reali-dades simbólicas e identidades que o indivíduodeve, não sem grande dificuldade, navegar (idem,p. 6-8).

Assim, a maior complexidade social tornouextremamente difícil a manutenção e/ou a cons-trução de laços duradouros de identidade e fideli-dade partidárias.

A evolução tecnológica e a difusão maciça dosmeios de massa, especialmente da televisão, abriuas portas a uma relação imediata10 entre políticose eleitores, prescindindo da mediação partidária etornando viável o sucesso de políticos sem ne-nhum respaldo partidário, mas com forte presen-ça nos meios de massa (MANIN, 1996, p. 281).Paralelamente ao avanço dos meios de massahouve, por questões econômicas e tecnológicas,o retrocesso da imprensa opinativa e partidária emprol de um modelo de jornalismo comercial,apartidário, neutro e informativo, fazendo que asagremiações perdessem importância como agentesformadores da opinião pública.

Todos esses media comerciais – não só ostelevisivos – tendem a conferir maior destaque àspessoas, privilegiando a construção de celebrida-des altamente rentáveis em termos de audiência-vendagem em detrimento da exploração de con-ceitos abstratos como “organizações” ou “parti-dos”, apreendidos com dificuldade pelo homovidens sartoriano (SARTORI, 2001).

A proliferação de publicitários originários docampo comercial no campo da política acarretouum aumento ainda maior da já intrinsecamentepresente personalização televisiva, na medida emque esses profissionais importaram do marketingcomercial técnicas que privilegiam apelos emoci-onais e pessoais, relegando a segundo plano pro-

postas, plataformas e as próprias organizações par-tidárias (HABERMAS, 2003, p. 252-255).

Assim como a imprensa, os modos de expres-são da opinião pública não-eleitoral igualmente sedespartidarizaram, na medida em que os institu-tos de pesquisa, supostamente neutros e objetivos,passaram a ser os atores principais de identifica-ção e divulgação do posicionamento da populaçãoa respeito de questões políticas ou não (MANIN,1996, p. 293).

Há também que se considerar dois óbices co-locados à construção de plataformas partidáriasdensas e complexas. De um lado, a instabilidadepolítica e econômica das últimas décadas impri-miu um ritmo acelerado às mudanças, trazendocomo conseqüência a percepção, por parte do elei-torado, da necessidade de manutenção de certadose de poder arbitrário nas mãos do governante,o que ao fim e ao cabo solapou a importância daconfecção de detalhados programas político-par-tidários, que poderiam engessar a atuação do líderescolhido pelo sufrágio. Sob outro prisma, o au-mento das atribuições governativas tornou maisdifícil a elaboração de plataformas partidárias, queprecisariam ser extremamente extensas e com-plexas para abarcar todas as funções exercidaspelos governos (idem, p. 281-283).

A queda dos regimes do Leste europeu foi outrofator que afetou seriamente muitas agremiaçõesde massa das democracias ocidentais –principalmente partidos socialistas e social-democratas, que perderam grande parte de seusreferenciais ideológicos.

No nível do indivíduo, pode-se dizer que umritmo mais acelerado de vida diminuiu as horaslivres que poderiam ser destinadas à vida públicae partidária; o tempo que não se consome com otrabalho passou a ser cada vez mais ocupado comatividades de lazer e entretenimento, comercia-lizadas por uma indústria agressiva e diversificada.Assim, a política perdeu centralidade para umagrande massa de cidadãos.

Por fim, sistemas eleitorais nacionais centradosno candidato e não nos partidos também deramsua contribuição ao enfraquecimento de muitossistemas partidários antes solidamente estru-turados11.

10 O termo “imediato” é usado neste artigo para designara falta de mediação, ou seja: é o contrário de “mediato” ou“mediado”. 11 Sobre esse ponto, ver Mainwaring (2001).

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Todos esses desafios geraram questionamentosfulcrais à existência dos partidos políticos enquantoatores relevantes da arena institucional democrá-tica. Esses questionamentos mostraram-se tantomais dramáticos quanto mais se percebia que àperda de efetividade dos partidos no desempenhode algumas de suas funções clássicas equivaliaum aumento correspondente da participação deum outro ator: a televisão. Funções antes desem-penhadas principal ou exclusivamente pelas legen-das passaram, a partir do último quarto do séculoXX, a ter nesse poderoso meio de difusão umagente concorrente. Discute-se a partir de agoraessas funções – a partir das elaborações apresen-tadas nos trabalhos de Paolo Mancini e DavidSwanson (1996) e de Eduardo Suárez (1998):

1. articulação e expressão de interesses: se an-tes os partidos possuíam papel fundamental naagregação, articulação, canalização e expressão deinteresses e demandas societários, tal preponde-rância nunca significara exclusividade, na medidaem que as agremiações competiam e cooperavam– com sucesso – com outras instituições, tais comosindicatos e grupos de interesses. Porém, hoje atelevisão assumiu parte dessas prerrogativas, nosentido de que seus agentes colocam-se comoidentificadores e divulgadores das demandas cita-dinas ao poder público, servindo inclusive – e tal-vez principalmente – como instrumento de pres-são sobre as autoridades governamentais, papelem que os partidos perderam grande parte de suaeficácia. Além da concorrência da televisão, ospartidos também passaram a ter que conviver comos novos subsistemas especializados que despon-taram como veículos de expressão de demandas.No entanto, os partidos permanecem ainda comoatores privilegiados no que tange à agregação e àorganização das demandas societárias – papéis quea televisão absteve-se de desempenhar.

2. Socialização política: os primeiros contatosque os cidadãos comuns – ainda crianças ou ado-lescentes – estabelecem com a política são, hoje,mediados pela televisão e/ou pela imprensa escri-ta, não se dando mais por meio das redes de co-municação pessoal dentro das agremiações.

3. Fonte de informação política: principalmen-te em períodos intereleitorais, o eleitorado posta-se como consumidor de notícias políticas televisi-vas, relegando a imprensa partidária ao círculorestrito de militantes; em períodos eleitorais, essaimprensa partidária tende a expandir um pouco

mais seu alcance como fornecedora de informa-ções políticas a não-militantes. Nesse sentido, atelevisão substituiu o partido em dois aspectos ab-solutamente relevantes: por um lado, como atalhopara a obtenção de informação política necessáriaàs simplificações cognitivas operadas pelo cida-dão comum, em períodos eleitorais ou não; poroutro, como principal agente formador e influen-ciador da opinião pública.

4. Mobilização popular: a capacidade da televi-são em chamar os cidadãos às ruas é cada vezmaior, na medida justamente em que ela conver-te-se em fonte principal de informação política.Nessa função, os partidos, que enfrentam ainda aconcorrência de subsistemas com elevado podermobilizador, perderam grande parte de sua com-petência; as mobilizações partidárias, quando acon-tecem, seguem elas mesmas critérios jornalísticosde “noticiabilidade” para que recebam ampla co-bertura dos meios de massa, obtendo assim maiorrepercussão.

5. Recrutamento político: os partidos, con-quanto ainda permaneçam em posição francamenteprivilegiada neste aspecto, deixaram de ser o seioexclusivo de onde saem os líderes políticos. Arelação direta candidato-eleitor via televisão tor-nou possível o sucesso de políticos outsiders, quenão possuem retaguardas partidárias sólidas ounem mesmo são filiados a qualquer partido. Alémdisso, a própria televisão constituiu-se, em mui-tos países, em fonte expressiva de recrutamentode líderes, já que apresentadores de programaspopulares que se reivindicam como “representan-tes do povo” são muitas vezes levados a incur-sões no campo político, em carreiras independen-tes ou sob legendas ávidas por aproveitar o cacifeeleitoral obtido por eles na tela.

6. Legitimação: se a televisão avança em detri-mento dos partidos no tocante à comunicaçãopolítica, a função legitimadora passa a ter outrosprotagonistas. A tarefa de articular e conquistarapoio e confiança populares em relação à credibi-lidade e legitimidade das regras do jogo democrá-tico passa a ser atributo, cada vez mais, dos mei-os de comunicação de massa, que legitimam e des-legitimam governantes, governos e sistemas polí-ticos perante os olhos dos cidadãos. Os partidos,não constituindo fonte de informação política paraa maior parte da população, vêem diminuído seupapel nesta função tão importante à vida demo-crática.

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É inegável que, em relação a essas seis fun-ções, a televisão ganhou terreno frente aos parti-dos políticos; porém, há duas funções nas quaisas agremiações continuam sendo imprescindíveise insubstituíveis – ao menos em relação à televi-são:

- traduzir interesses e demandas societários empolíticas públicas exeqüíveis e

- implementar o governo representativo, ouseja, representar o cidadão nas arenas institucionaise exercer as funções legislativas e governativas.

Vale ressaltar que, se em relação a essas duasfunções partidárias clássicas não há uma substi-tuição parcial dos partidos pela televisão, não dei-xa de existir em sua execução uma sua interferên-cia direta. As demandas traduzidas em políticaspúblicas por partidos ou governantes são, muitasvezes, formatadas, incentivadas, distorcidas ou atémesmo forjadas artificialmente pela televisão, quese advoga o direito de expressão da vox populi. Ogrande poder desse meio na configuração da agen-da-setting12 faz que entrem no debate público ape-nas temas e questões pré-selecionados por seusagentes. Por outro lado, algumas formulações depolíticas públicas visam, mais do que a traduzirem ações concretas demandas societárias reais,apenas a produzir efeitos positivos de “noticiabili-dade”, de modo a colocar em evidência partidos,representantes ou governos que se propõem a levá-las a cabo.

Com essa discussão, torna-se evidente que épreciso evitar os maniqueísmos que muitas vezespermeiam o debate a respeito da influência da te-levisão sobre os partidos; boas doses de pondera-ção e honestidade intelectual são necessárias parafugir tanto dos catastrofismos da substituição to-tal das agremiações pela televisão quanto da ce-gueira em relação a efeitos importantes demaispara serem ignorados. Os partidos não são, nemserão, substituídos pela televisão e seus agentes;

porém, algumas funções tipicamente partidáriasenfrentam uma concorrência que, em alguns ca-sos, chega quase à substituição completa – comono que tange às funções de socialização e de for-necimento de informações políticas.

A problemática maior nesse sentido reside noestabelecimento de um perigoso círculo vicioso:quanto menores a institucionalização e oenraizamento societário do sistema partidário,maiores são as chances de avanço televisivo so-bre as funções das agremiações (SARTORI, 2001,p. 91-95). Tal avanço faz, por seu turno, diminu-írem as possibilidades de institucionalização eenraizamento dos partidos nas sociedades ondeos sistemas partidários ainda buscam se consoli-dar. É sobre essa intrincada interação que a Ciên-cia Política pode – e deve – contribuir com suasreflexões.

III. A DEMOCRACIA DE PÚBLICO

Visando a descrever as peculiares condiçõesatuais da democracia representativa nos paísesocidentais, Bernard Manin realizou uma bem fun-damentada retrospectiva histórica da representa-ção, da qual emergem três tipos ideais de gover-nos representativos: a democracia parlamentar, ademocracia de partido e a democracia de público– sendo a última vigente nos dias de hoje13 .

Na democracia parlamentar – que vigorou doséculo XVIII até fins do século XIX – os repre-sentantes comumente eleitos eram “notáveis”,escolhidos por um eleitorado extremamente redu-zido – devido a restritivos requisitos censitários e/ou culturais – com base em laços pessoais de con-fiança derivados de relações locais. Devido a seucaráter de proeminência política, econômica esocial, constituindo-se em homem de confiançade seus eleitores, o eleito dispunha de total liber-dade de atuação política, não recebendo instruçõesou restrições de qualquer ordem; seguindo unica-mente as próprias consciências, os representan-tes faziam do Parlamento uma casa de profícuos

12 A agenda-setting é a soma da agenda dos media, que serefere aos temas mais destacados por eles, com a agenda dopúblico, que diz respeito aos temas mais discutidos e con-siderados mais importantes pelos indivíduos. Os estudosmais recentes indicam que os meios de massa possuemenorme influência sobre a agenda do público, formatandoprincipalmente sobre o que os indivíduos devem pensar,mais do que como o devem fazer. É nesse sentido que seafirma o grande poder da televisão em determinar a agen-da-setting (AZEVEDO, 2002).

13 Como qualquer construção de tipos ideais, esta nãoesgota as diferentes possibilidades de manifestação do fe-nômeno em estudo, qual seja, o governo representativo.Manin deixou isso claro, afirmando que em determinadaépoca de determinado país, dois tipos de governo represen-tativo poderiam combinar-se e até mesmo fundir-se; porém,sempre é possível determinar o predomínio de um tipo so-bre o outro (MANIN, 1995, p. 7).

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debates, sem sofrerem maiores influências exter-nas. A expressão não-eleitoral da opinião não co-incidia com aquela manifesta nas urnas – chegan-do até a serem conflitantes e opostas –, fato quese devia, de um lado, ao reduzido tamanho do elei-torado e, de outro lado, à necessidade de recorrera canais distintos de expressão quando a escolhade representantes baseava-se em relações pesso-ais de confiança de cunho eminentemente locais.Esses canais faziam muitas vezes com que o povochegasse “às portas do Parlamento” por meio demanifestações, protestos, petições, campanhas deimprensa, constituição de associações etc., queserviam de contrapeso à liberdade de atuação dosgovernantes (MANIN, 1995, p. 17-19; 1996, p.259-264).

No final do século XIX, a extensão do direitode voto rumo ao sufrágio universal incorporou aoeleitorado significativas parcelas da população,tornando premente a partidos e candidatos a ne-cessidade de atrair grandes massas populares asuas fileiras. Não sendo mais possível conquistareleitores valendo-se apenas dos laços pessoais deconfiança, criaram-se partidos de massa e elabo-raram-se completas plataformas político-partidá-rias com o fito de mobilizar a população que seinseria gradualmente no jogo político. Surgia, as-sim, a democracia de partido (MANIN, 1995,p. 19; 1996, p. 264-265).

A fidelidade partidária em seguidos pleitos des-pontou então como uma novidade, fazendo mui-tos críticos enxergarem nela uma crise de repre-sentação, devido à perda da confiança pessoal nosrepresentantes. Mais do que programas partidári-os, era um poderoso sentimento de pertencimentode classe que fazia que o eleitorado se mantivessepor gerações fiel a um mesmo partido, tornando arepresentação da democracia de partido um espe-lho fiel da estruturação societária, refletindo umarealidade muito anterior à política e trazendo paraa arena eleitoral os conflitos patentes na arenasocial; esses conflitos eram principalmente de clas-se, engendrados pela explosão industrial do sécu-lo XIX e pela ascensão do socialismo e do comu-nismo, que delimitavam com nitidez os camposconflitantes da sociedade. De certo modo, o votode confiança mantinha-se, mas com outro objeto:saíam os “notáveis”, entravam os partidos(MANIN, 1995, p. 20-21; 1996, p. 267-270).

Nesse contexto de fidelidade partidária, os re-presentantes perderam muito da liberdade de que

gozavam na democracia parlamentar; era a cúpu-la partidária quem decidia, cabendo aosgovernantes seguir à risca as determinações daagremiação que os elegeu. Dessa forma, o debateque geraria as decisões políticas foi transportadopara dentro dos partidos, cabendo ao Parlamentoo papel de fórum de negociação entre as cúpulaspartidárias, que conservavam um certo grau deliberdade de atuação, na medida em que eram elasas intérpretes das diretrizes traçadas no programapolítico-partidário14. Com os principais órgãos deimprensa – jornais, semanários, revistas etc. – con-trolados pelos partidos, os eleitores buscavam in-formações nos veículos que condissessem comsuas preferências partidário-eleitorais, o que aofim e ao cabo acabava gerando um reforço circu-lar de tais preferências. Dessa forma, a opiniãopública relativa a questões não-eleitorais foi tras-passada pelas mesmas linhas divisórias que de-marcam as preferências partidárias, fazendo queopinião eleitoral e não-eleitoral coincidissem per-feitamente. A expressão dessa opinião deu-se pormeio de mecanismos controlados pelo partido –manifestações, petições, passeatas e a própriaimprensa partidária –, transformando a liberdadede expressão de opinião em liberdade de oposiçãopolítica (MANIN, 1996, p. 270-278).

A partir de meados dos anos 1970, emergiu namaior parte das democracias ocidentais uma novaforma de governo representativo: a democraciade público. Esse novo modelo não marcou umaruptura com as formas anteriores de representa-ção, mas sim um rearranjo dos princípios básicosdo governo representativo, vigentes desde fins doséculo XVIII15. Tal rearranjo deu-se, principal-mente, pelo declínio das organizações partidárias,causado por fatores já apontados neste artigo.

O retorno ao voto de confiança pessoal emer-giu como uma das características principais dademocracia de público, em decorrência, por umlado, da transformação da televisão em locus pri-

14 Outro tipo de debate muito comum na democracia departido é o que se dava entre partido e grupos de interessediversos, como sindicatos, associações profissionais etc.,em uma relação que Manin alcunhou de “neocorpo-rativismo” (MANIN, 1995, p. 24-25).

15 Quais sejam: a) os representantes são eleitos pelosgovernados; b) os representantes têm independência parci-al de atuação; c) liberdade de opinião pública e d) as deci-sões políticas são tomadas após debates (MANIN, 1995,p. 8-17).

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vilegiado da esfera pública, que favoreceu ocontato direto entre candidato-comunicador e elei-tor-espectador – prescindindo da intermediaçãopartidária – e que se acentuou ainda mais com asintrínsecas características jornalístico-televisivasque tendem a realçar a personalidade e a imagemdo político em detrimento de suas propostas ouorganizações; por outro lado, a percepção do elei-torado a respeito da necessidade de manutençãode um certo poder discricionário nas mãos dosgovernantes faz que os políticos privilegiem oenaltecimento de seus atributos e qualidades pes-soais, apresentando-se como homens preparadospara enfrentar problemas novos e que se alteramceleremente (MANIN, 1995, p. 25-26).

Além disso, a queda dos regimes do Leste eu-ropeu enfraqueceu os alicerces ideológicos demuitos partidos socialistas e social-democratas,contribuindo para solapar o controle dasagremiações sobre representantes que, ao elege-rem-se por meio de imagens vagas e imprecisasque visam a conquistar a confiança dos eleitores apartir de seus currículos pessoais, têm ampla li-berdade para atuar conforme as circunstâncias eas próprias consciências, sem constrangimentospartidários16. A democracia de público é o gover-no do comunicador17, substituindo tanto o ativistaou líder partidário quanto o notável de outros tem-pos (idem, p. 26).

Além de a escolha eleitoral tornar-se majorita-riamente personalista, ela passa também a ser com-

pletamente reativa, já que os eleitores tendem aresponder, nas urnas, a questões apresentadas pe-los candidatos durante as campanhas. Com umacomplexidade social em que inúmeras linhasdemarcatórias entrecruzam-se, os políticos pas-sam a propor clivagens sócio-culturais que elesjulgam poder trazer-lhes maiores benefíciossufragistas, a partir de pesquisas de opinião queindicam essas possíveis fronteiras discriminatórias.Desse modo, “Os eleitores parecem responder (aostermos específicos que os políticos propõem emcada eleição), mais do que expressar (suas identi-dades sociais ou culturais)” (idem, p. 27; grifosno original). Reagindo a temas que lhe são pro-postos a cada eleição pelos candidatos18 , “[...] oeleitorado apresenta-se, antes de tudo, como umpúblico que reage aos termos propostos no palcoda política. Por essa razão, denominamos essaforma de governo representativo de ‘democraciado público’” (idem, p. 28; grifos no original)19 .

Se a escolha eleitoral é personalista e reativa àagenda de cada eleição – o que faz que os resulta-dos eleitorais tornem-se voláteis a cada pleito,mitigando a estabilidade eleitoral e umaprevisibilidade que se dava por meio da análise defatores sócio-econômicos do eleitorado, típicasda democracia de partido –, a não-coincidênciaentre expressões eleitorais e não-eleitorais da opi-nião volta a ser uma constante20 . Isso é conse-qüência, de um lado, do declínio da imprensa opi-

16 Essa liberdade de atuação dos parlamentares parece-nos bem adequada à situação brasileira, em contraposição àvisão oposta sartoriana, segundo a qual o representantetornou-se, nos últimos tempos, extremamente dependenteda pauta televisiva, das pesquisas de opinião e dos eleito-res locais que o elegeram (SARTORI, 2001, p. 96-99). Emnossa opinião, essa dependência em relação aos eleitoreslocais revela-se apenas nos sistemas eleitorais distritaispuros, que aumentam sobremaneira o contato entre repre-sentante e representados, reforçando a dependência daque-le em relação a estes.

17 Champagne é um dos autores que compartilham dessaopinião, afirmando que a sedução midiática da massaheterogênea pelos comunicadores substituiu o convenci-mento construído gradualmente por ativistas e líderes par-tidários por meio de mobilizações, comícios e interaçõesface-a-face (CHAMPAGNE, 1996, p. 143). Debord afir-mou que aqueles que possuem status midiático podemextrapolar seus campos específicos de atuação para impu-nemente atuar na esfera política ou em outra qualquer(DEBORD, 1997, p. 174).

18 Schumpeter foi um dos primeiros autores a ressaltar apostura reativa e passiva do eleitorado, muito antes do sur-gimento dos fatores apontados por Manin como causado-res da democracia de público; ele afirmava que as voliçõesdos eleitores eram, antes de tudo, fabricadas pelos políti-cos, não sendo, portanto, espontâneas (SCHUMPETER,1961, p. 320). Essa postura reativa do eleitorado acentua-se ainda mais com a impossibilidade de interferência naescolha dos candidatos a serem lançados pelas legendas, aocontrário do que acontecia na democracia de partido.

19 Schwartzenberg também fez uma analogia entre teatroe política, afirmando que o representante eleito assumecompletamente os dois sentidos da palavra “representar”:como mandatário que representa os mandantes e como atorque representa o papel mais apropriado à sua realidade e aomomento, conforme detectados pelas pesquisas (SCHWAR-TZENBERG, 1978, p. 292).

20 Em muitos aspectos, a democracia de público asseme-lha-se à democracia parlamentar, o que se explica basica-mente pelo fato de que o desaparecimento de fatores quetrouxeram o declínio da democracia dos notáveis seja justa-mente o motor do surgimento do modelo de democracia depúblico.

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nativa e partidária em prol da imprensa comercial,neutra e apartidária, que leva a todos os eleitores,independentemente de suas colorações ideológi-cas e preferências eleitorais, as mesmas informa-ções, fazendo que as opiniões formadas sejamdessemelhantes e independentes daquelas expres-sas em períodos eleitorais. Complementarmente,a despartidarização dos canais de expressão daopinião não-eleitoral, agora representados pelosinstitutos de pesquisa, também contribuiu sobre-maneira para a abertura dessa lacuna que não exis-tia na democracia de partido (MANIN, 1995,p. 30-32; 1996, p. 293-297).

Em relação ao debate, a democracia de públi-co caracteriza-se pelo enfraquecimento do Parla-mento como locus privilegiado de negociação econflito, em parte devido aos cada vez mais in-tensos e decisivos processos de discussão e con-sulta entre governos e grupos de interesse alta-mente organizados e poderosos, como associa-ções industriais, agrícolas, não-governamentaisetc. Por outro lado, o eleitorado, flutuante e ex-posto a opiniões conflitantes advindas dos media,é chamado a participar de um debate que tem comofórum a televisão, fazendo que a tela substitua apraça como locus principal de atuação política dapopulação – em seu caráter denunciador,reivindicatório ou de exercício de pressão pública(MANIN, 1995, p. 32-33).

É evidente a validade desse conceito de demo-cracia de público para descrever a situação brasi-leira contemporânea. O fato de a democracia bra-sileira adequar-se a esse conceito de governo re-presentativo não quer dizer, entretanto, que as duasetapas anteriores tenham sido cumpridas. Certa-mente, os interregnos autoritários impediram o de-senvolvimento de uma democracia de partido nopaís, o que faz que a situação brasileira seja suigeneris quando comparada à das democraciasocidentais mais tradicionais.

A passagem pelos três modelos de governorepresentativo deu-se em alguns poucos paísesda Europa ocidental, como Inglaterra, França eAlemanha – alguns dos países em que BernardManin busca casos que fundamentam a constru-ção de seus tipos ideais. A evolução tardia do go-verno representativo no Brasil torna-se clara quan-do se observa que o primeiro partido de massabrasileiro – o Partido dos Trabalhadores (PT) –surgiu com quase um século de atraso em relaçãoaos seus congêneres europeus. Mesmo com essa

lacuna de desenvolvimento, pode-se afirmar comsegurança que a democracia brasileira situa-se hojeem lugar muito próximo do esboçado por Maninem sua descrição arquetípica da democracia depúblico – opinião compartilhada por grande partedos autores pertinentes da área (cf. ALDÉ, 2001a;AZEVEDO, 2001).

IV. A MODERNIZAÇÃO DAS CAMPANHASELEITORAIS: EXPANSÃO, CONCEITUA-LIZAÇÃO E FATORES CAUSAIS

Paolo Mancini e David Swanson levaram acabo uma detalhada análise comparativa entre cam-panhas eleitorais recentes de onze diferentespaíses21. Apesar das enormes dessemelhanças his-tóricas, culturais e políticas, os autores identifi-caram nessas nações várias coincidências no quediz respeito aos modos de fazer-se uma campa-nha eleitoral competitiva. Assim, partindo de umconfronto que detectou similitudes e diferenças,chegaram a um constructo teórico-abstrato, emforma de tipo ideal weberiano, alcunhado de “cam-panha modernizada”. É sobre esse modeloarquetípico que o artigo debruça-se a partir deagora.

As técnicas da campanha modernizada surgi-ram nos Estados Unidos ainda na primeira metadedo século XX, difundindo-se posteriormente parasistemas democráticos de vários países; primei-ramente, atingiram aqueles países em que tais sis-temas eram consolidados e bem desenvolvidos,como Reino Unido e Suécia, para ulteriormentechegar às nações recém-democratizadas ou comsistemas políticos instáveis.

Tal expansão do modo americano de se fazercampanhas se deu por vários motivos, entre osquais se destacam (MANCINI & SWANSON,1996, p. 6):

- a importância geopolítica e econômica assu-mida pelos Estados Unidos após a Segunda Guer-ra Mundial transformou suas eleições presidenci-ais em motivo de grande atenção para países domundo todo, gerando cada vez maior coberturajornalística sobre tais acontecimentos;

- produtos culturais de massa exportados pelaindústria norte-americana, principalmente filmes,

21 Foram estes os países: Alemanha, Suécia, Reino Unido,Estados Unidos, Polônia, Rússia, Espanha, Israel, Itália,Argentina e Venezuela.

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geraram interesse em suas campanhas, tanto porparte de espectadores comuns quanto por partede políticos de diferentes localidades;

- ávidos por utilizar tais técnicas em seus pró-prios países, profissionais e políticos do mundotodo foram aos Estados Unidos para apreendê-las;

- especialistas norte-americanos publicaramguias, manuais e livros sobre os novos modos defazer campanhas, que rapidamente foram aplica-dos em eleições do mundo todo;

- agências publicitárias – que se expandiraminternacionalmente – e consultores individuaisnorte-americanos passaram a ser, cada vez commaior freqüência, contratados para prestar asses-soria política a candidatos em diferentes países e

- a expansão internacional dos media norte-americanos – como CNN, Fox etc. – não só au-mentou o destaque jornalístico conferido às cam-panhas eleitorais de seu país como também im-pôs um padrão de cobertura jornalística de elei-ções que, ao ser copiado pelos media de outrospaíses, contribuiu para tornar similares às norte-americanas as campanhas eleitorais de várias de-mocracias, na medida em que elas passaram a terque se adequar a esse novo padrão de cobertura.

Quais são as características dessa campanhaeleitoral modernizada, exportada pelos EstadosUnidos para o mundo, que chegou inclusive àseleições brasileiras? A conceituação desse tipo ideal,bem como a discussão a respeito dos principaisfatores causais envolvidos no desenvolvimentodessas novas técnicas, passa por cinco pontosprincipais, explorados a partir de agora.

IV.1. Marketing e pesquisas de opinião

Tradicionalmente, os argumentos presentes napropaganda político-eleitoral e as propostas eprojetos apresentados na plataforma eleitoral e noprograma de governo dos candidatos eramconstruídos a partir de contatos eminentementepessoais, ou seja: discussões intrapartidárias cal-cadas no programa político-ideológico daagremiação, contatos do candidato com as basessociais de apoio, principalmente aquelas ligadasao partido, e contatos com grupos organizadosde interesse. O aumento da complexidade socialtrouxe, entretanto, dificuldades de identificação doposicionamento de um eleitorado que não mais sedividia com base nas estratificações classistas tra-

dicionais, já que traspassado por linhasdemarcatórias entrecruzadas e diversas. Tais li-nhas de clivagens ofereceram a candidatos e par-tidos a oportunidade de abordagem de fragmen-tos específicos do eleitorado – como aqueles liga-dos aos subsistemas particularistas a que nos re-ferimos anteriormente (MANIN, 1995, p. 27;MANCINI & SWANSON, 1996, p. 9).

A despartidarização e a neutralização dos me-dia, que possuem papel fulcral na formação daopinião pública, fizeram que opinião eleitoral – ma-nifesta nas urnas – e opinião não-eleitoral deixas-sem de coincidir, tornando ainda mais nebulosa aidentificação dos anseios, demandas, medos e pre-ocupações de cidadãos que deixaram de expres-sar suas opiniões por meio de canais partidários –como a própria imprensa controlada pelasagremiações (MANIN, 1995, p. 30-32).

Esses fatores desencadearam uma explosão nouso das sondagens de opinião pública nos últimosanos, como instrumentos para partidos e candi-datos detectarem e compreenderem o que pen-sam os cidadãos da democracia de público; pos-teriormente, essas informações são utilizadas naconfecção das plataformas eleitorais e na cons-trução do discurso político. Esse processo, quevai das pesquisas de opinião à propaganda, é omarketing político-eleitoral22.

Por outro lado, o padrão de cobertura das elei-ções adotado pelos media baseia-se na visão dadisputa eleitoral como horse race23, fazendo queproliferem pesquisas de intenção de voto enco-mendadas aos institutos de pesquisas e divulgadaspelos próprios media; as campanhas eleitorais se-guiram estes passos, passando a encomendar, elaspróprias, sondagens de intenção de voto.

22 O marketing é, portanto, a obtenção de informaçõespor meio de pesquisas para posteriormente as utilizar naconstrução de plataformas e discursos, de modo que oscandidatos obtenham o maior sucesso possível na disputapelos votos. Essa noção vem do marketing comercial, queidentifica os anseios dos consumidores, por meio de pes-quisas, para então elaborar produtos que vão ao encontrode tais demandas. Muitos autores ainda confundemmarketing eleitoral com propaganda eleitoral; são concei-tos distintos, com a propaganda inserindo-se no marketingcomo sua fase derradeira; enquanto o marketing é algo rela-tivamente novo, a propaganda política existe desde aAntigüidade.

23 “Corrida de cavalo”, em inglês (nota do revisor).

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A centralidade assumida pelos meios eletrôni-cos de massa – principalmente a televisão, mastambém o rádio – em sociedades midiáticas fezdos programas eleitorais televisivos o centro refe-rencial das campanhas. Deste modo, os candida-tos passaram a valer-se cada vez mais de pesqui-sas de opinião que avaliam a qualidade e a eficáciadas emissões, antes – os pré-testes – ou depoisde suas transmissões. Com tais sondagens, geral-mente qualitativas, os publicitários buscam nãosó corrigir pontos estéticos e substantivos dasemissões televisivas e radiofônicas, como tam-bém procuram alterar aspectos da aparência e docomportamento do postulante, quando são malavaliados pelos telespectadores consultados24.

IV.2. Centralidade dos meios eletrônicos

As campanhas eleitorais tradicionalmente eramfeitas, de um lado, por meio de contatos imedia-tos entre candidato e eleitor, em um corpo-a-cor-po eleitoral que se materializava em atividadescomo comícios, carreatas, caminhadas, confra-ternizações, reuniões, panfletagens etc.; por ve-zes, tais contatos assumiam caráter de mobiliza-ções de massa, como no caso de grandes comíci-os. Por outro lado, encontros promovidos pelopartido, por associações diversas, grupos de inte-resse, sindicatos e outras instituições assumiam aforma de contatos mediados entre candidato e elei-tor, já que uma organização interpunha-se entreeles.

Tais formas tradicionais prestavam-se também,principalmente para os partidos de massa, àconscientização, mobilização e organização do elei-torado e não apenas à persuasão propriamente dita.No que tange a essa persuasão, a propaganda po-lítica assumia ainda as formas de jornais, panfle-tos, cartazes, inscrições em muros etc.

Porém, na medida em que as sociedades oci-dentais converteram-se em sociedades midiáticas,em que a televisão representa a arena mais impor-tante de disputa política e os media constituem

um centro autônomo de poder, as campanhas elei-torais também experimentaram um processo de“midiatização”. Comícios e outras formas de mo-bilizações de massa perderam importância e efi-cácia frente à propaganda veiculada no rádio e,principalmente, na televisão; ao invés depanfletagem na porta das fábricas, há programastelevisivos exibidos aos operários em suas casas,produzidos de acordo com pesquisas que identifi-cam suas demandas e preocupações específicas(MANCINI & SWANSON, 1996, p. 12-13). Nassociedades midiáticas, constata-se que, aospoucos, a praça pública sucumbe frente à telacomo locus privilegiado de atuação política emépocas eleitorais (MANIN, 1996, p. 279-281).

Dessa forma, as campanhas eleitorais passa-ram a estruturar-se ao redor da televisão. Técni-cas trazidas ao campo da política pelos publicitá-rios incentivaram essa tendência, já que esses pro-fissionais importaram da área comercial o con-ceito de que a propaganda televisiva é tanto maisefetiva quanto mais reforçada em outros meios.Assim, o discurso televisivo assumiu o papel dereferência modeladora de todo o discurso políticoda campanha, agindo como força estruturante daspropagandas via rádio, cartazes, jornais, panfle-tos e, até mesmo, comícios e demais mobiliza-ções de massa.

Tais mobilizações, por sua vez, transfiguraram-se em meros eventos midiáticos, acontecimentosvoltados não mais à conscientização, organizaçãoe mobilização populares, mas sim à geração, porum lado, de belas e empolgantes imagens a seremexibidas no programa televisivo e, por outro lado,de fatos noticiáveis positivamente pelos media quecobrem os movimentos eleitorais (MANCINI &SWANSON, 1996, p. 11-13; AZEVEDO, 2001,p. 9).

A centralidade da televisão na campanha nãose resume, assim, ao caráter referencial assumi-do pelos programas do horário gratuito depropaganda eleitoral em relação aos demaisformatos de comunicação política. O papel centraldesempenhado pelos media na sociedade acaba,ao fim e ao cabo, por fazer que toda a campanhaestruture-se ao redor dessa arena midiática central,com a participação dos candidatos em debates,programas populares e de entrevistas, com ainfluência da agenda temática dos media sobre aagenda temática de candidatos e partidos e com anecessidade de fabricação de fatos que sejam po-

24 Não é objetivo deste trabalho a realização de uma análisecrítica sobre a validade sociológica das pesquisas enquantoidentificadoras – ou forjadoras – da opinião pública – sobrea qual, inclusive, não deixam de haver dúvidas a respeito desua existência. Para tomar contato com este debate críticodeveras interessante, ver: Arendt (1972), Sartori (1989;2001), Champagne (1996), Bourdieu (1997) e Habermas(2003).

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sitivamente noticiáveis pela cobertura dos meiosde massa.

IV.3. Personalização

A centralidade da televisão nas campanhas elei-torais favorece o contato direto entre o candidatoe milhões de eleitores, dispensando a intermediaçãopartidária. Como já foi explicado, esse meio demassa é, de per si, essencialmente personalista eemotivo, pouco afeito a abstrações e mentalizações;nesse sentido, a imagem do político converte-sena própria mensagem, independentemente do dis-curso proferido. A lógica econômica dos mediadespartidarizados acentua esta tendência intrínse-ca ao meio, na medida em que preza por fabricarcelebridades com grande teor apelativo, facilmentevendáveis, em detrimento de uma abordagem queprivilegie idéias, projetos ou organizações (MA-NIN, 1995, p. 25-26; SARTORI, 2001, p. 92).

Características intrínsecas à democracia depúblico aumentam esse potencial televisivo depersonalização das campanhas eleitorais: a maiorquantidade de atribuições governativas solapou aconstrução de plataformas partidárias detalhadas;a instabilidade sócio-econômica e política do fimdo século aumentou a percepção da necessidadede manutenção de um certo poder discricionárionas mãos dos governantes, fazendo que os candi-datos passassem a propagar suas qualidades pes-soais em detrimento dos programas e projetospartidários; o fim dos regimes do Leste mitigouas bases ideológicas de muitos partidos ociden-tais, que passaram, então, a apostar no carismade seus líderes como forma de manutenção daforça eleitoral (MANIN, 1995, p. 25-29).

Por fim, pode-se afirmar que a entrada dospublicitários no mundo da política forneceu maiscombustível à personalização das campanhas, jáque, mestres nos artifícios persuasivos televisivos,tais profissionais esmeram-se em “emocionalizar”e ultrapersonalizar as atividades de convencimen-to dos eleitores. Porém, eles não foram os únicosespecialistas que se incorporaram às campanhaseleitorais modernizadas.

IV.4. Profissionalização dos participantes

Se antes as agremiações, notadamente as demassa, contavam com militantes, quadros parti-dários e voluntários como força de trabalho paraas atividades de campanha, hoje o cenário é ou-tro. As campanhas modernizadas contratam umbatalhão de profissionais, muito além dos publici-

tários: relações públicas, “preparadores de terre-no”25 , coletores de fundos, especialistas em pes-quisas de opinião, demógrafos, estatísticos, cien-tistas políticos, sociólogos, especialistas eminformática e banco de dados, redatores de dis-cursos, produtores de rádio e televisão, jornalis-tas, designers, modistas, atores, entre outros. Acontratação desses profissionais – fenômeno al-cunhado por Habermas (2003, p. 252-254) de“cientifização” – relegou a segundo plano os mili-tantes, voluntários e quadros partidários, excluí-dos principalmente dos cargos-chave da campa-nha, ou seja, dos cargos executivos e diretivos.

E por quais motivos tal substituição ocorreu?Em primeiro lugar, o enfraquecimento dos parti-dos no tocante ao desempenho de várias de suasfunções desestimulou antigos e novos militantes,diminuindo o potencial de militância antes decisi-vo para muitas agremiações, principalmente as demassa (SUÁREZ, 1998, p. 29-32).

Sob outro prisma, a utilização intensa da tele-visão e das pesquisas de opinião e de intenção devoto tornou premente a contratação de técnicospara lidar com tais instrumentos, já que os parti-dos não podiam prover essas necessidades espe-cíficas de recursos humanos em quantidade e/ouqualidade suficientes. Ao mesmo tempo, os altoscustos da realização de pesquisas e da produçãoda propaganda eleitoral para meios eletrônicos tor-naram as campanhas eleitorais modernizadas ex-tremamente dispendiosas, fato que aumentou anecessidade da contratação de arrecadadores defundos que se dedicassem em tempo integral àobtenção de recursos para as campanhas.

No Brasil, a redemocratização sob um forma-to multipartidário acentuou a profissionalização dascampanhas: tornando a competição eleitoral acir-rada e fragmentada, fez que partidos e candidatosse empenhassem em manter a competitividade pormeio do uso de técnicas de campanha cada vezmais sofisticadas.

IV.5. Apelo sedutor-emotivo

As técnicas levadas por publicitários e suasagências – com atribuições e poderes crescentes

25 São os advance men dos norte-americanos: profissionaisque chegam antes do candidato aos locais de visita paraorganizar a imprensa, verificar a segurança, contatar os lí-deres locais, preparar a estrutura física etc.

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nas estruturas das campanhas – da propagandacomercial à esfera política tornaram a comunica-ção das campanhas altamente emotiva, relegandoa segundo plano a argumentação crítico-racionalcomo forma de convencimento dos eleitores.

A centralidade cada vez maior da televisão tam-bém contribuiu para “emocionalizar” a retóricausada na comunicação política, na medida em queesse meio favorece a sedução pessoal-emotiva quese dá por meio de imagens, em detrimento da ex-posição de argumentos que exigem abstrações ementalizações por parte dos espectadores. Quan-do a imagem do político na tela passa a ser a pró-pria mensagem, a sedução toma o lugar da persu-asão argumentativa.

Jürgen Habermas foi um dos primeiros a iden-tificar essa transformação, ainda na década de1960. Para ele, a substituição da discussão racio-nal-argumentativa – exigência normativa para aformação da verdadeira opinião pública burguesa– pelo convencimento via técnicas sedutor-emotivas, importadas da propaganda comercial,traria efeitos desastrosos à vida democrática; se-gundo o filósofo alemão, esses publicitários “[...]são contratados para vender políticaapoliticamente” (HABERMAS, 2003, p. 252),despolitizando a discussão. Essa publicidademanipulativa usada pelo marketing político –substituindo o que ele chama de publicidade crí-tica – serve somente à formação de uma opiniãonão-pública, na medida em que não é formada pormeio da discussão racional de argumentos (idem,p. 270-273).

V. CONCLUSÃO

A transformação das campanhas eleitorais emdireção ao modelo de campanha modernizada nãoocorreu pari passu em todos os países analisadospor Mancini e Swanson, nem, muito menos, emtodas as democracias ocidentais em que se podevislumbrar traços desse novo modo de fazer cam-panhas. Como sói ocorrer com qualquer tipo ide-al, aspectos desse modelo são encontrados emgraus variados em diferentes países, tendo a cons-trução arquetípica salientado os pontos comunspresentes nos fenômenos empiricamente analisa-dos. Nesse sentido, as campanhas presidenciaisnorte-americanas são as que mais se aproximamdo tipo ideal acima esboçado; as dos demais paí-ses, incluindo o Brasil, possuem ao menos umaspecto em que as tintas da modernização devemser matizadas.

Nesse sentido, à guisa de conclusão, vale pas-sar celeremente pelos fatores contextuais nacio-nais que são determinantes da maior ou menorpropensão de modernização das campanhas elei-torais mais competitivas (MANCINI &SWANSON, 1996, p. 20-24); faremos, outros-sim, algumas considerações relativas à situaçãobrasileira.

1. Sistema eleitoral: o sistema majoritário é de-veras mais favorável à personalização das campa-nhas do que o sistema proporcional com lista fe-chada, que confere maior força aos partidos. Osistema proporcional com lista aberta, que vigorano Brasil, incentiva a personalização e o individu-alismo, ainda mais porque se combina com a can-didatura nata e a impunidade pela infidelidade par-tidária. A coincidência dos pleitos legislativos pro-porcionais com as escolhas majoritárias para opoder Executivo acentua ainda mais a tendência àpersonalização no Brasil, na medida em que a dis-puta legislativa passa a estruturar-se em torno dadisputa pelo Executivo; essa disputa, absolutamen-te personalista, atua portanto como forçaestruturante sobre aquela, nas esferas municipais,estaduais e federal.

2. Sistema partidário: embora a modernizaçãochegue igualmente a sistemas bi e multipartidários,ela dá-se com rapidez maior nos primeiros, poiscontam geralmente com uma competição entregrandes e amorfos partidos catch all, que utili-zam estratégias de comunicação para agregar vo-látil e temporariamente interesses distintos de umasociedade altamente fragmentada26 . No Brasil, osistema multipartidário consolidado em 1985 in-centivou o surgimento e o fortalecimento de agre-miações de fortes alicerces ideológicos, como PT,Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e PartidoSocialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU);isso fez que a modernização chegasse mais len-tamente ao sistema partidário nacional, na medidaem que estas siglas mantiveram-se, durante umbom tempo, reticentes ao uso de algumas ferra-mentas de campanha já bem difundidas entre osdemais partidos do espectro político nacional.

3. Regulamentação: quanto mais rígida a regu-lamentação das campanhas, mais restritas mos-tram-se as possibilidades de adequação local do

26 Nesse sentido, o sistema norte-americano, com suasmáquinas eleitorais democrata e republicana, éparadigmático.

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modelo modernizado; neste sentido, adquiremmaior importância as leis que versam sobre o usodos meios eletrônicos e o financiamento das cam-panhas. Quanto à legislação brasileira, pode-seafirmar que ela, por um lado, constituiu-se emcatalisador da modernização, no que concerne tan-to à gratuidade de acesso aos meios de massa,tornando-os locus preferenciais de atuação a to-das as legendas, quanto à não-restrição do finan-ciamento privado, que fez que os candidatos esuas siglas dispusessem de recursos suficientespara a implantação de ferramentas modernizantes.Por outro lado, o fato de que a distribuição dotempo gratuito de rádio e televisão dê-se entrepartidos e não entre candidatos – que tampoucopodem comprá-lo –, refreia as tendências àpersonalização excessiva que se observa nos EUA,por exemplo, onde candidatos com ou sem parti-do podem comprar tempo nos meios de massa.

4. Cultura política: obviamente, as práticas decampanha adaptam-se a cada cultura política na-cional, principalmente no que toca a aspectoscomo socialização política, participação cívica,estruturas de agregação social, efetividade doscanais de comunicação interpessoais e importân-cia dos grupos societais primários e secundários.As sociedades tradicionais – entendidas aqui comoaquelas em que as interações face-a-face consti-tuem-se ainda em meios predominantes de infor-mação e socialização políticas, quer nos bairros,locais de trabalho e igrejas, quer no seio das famí-lias tradicionais – mostram-se bem menos recep-tivas ao modelo modernizado do que as socieda-des em que a fragmentação enfraqueceu as estru-turas tradicionais de socialização, informação eparticipação políticas –alcunhadas por Mancini eSwanson (idem, p. 23-24) de sociedades “mo-dernas”. Nessas sociedades, candidatos e parti-dos apelam a canais comunicacionais externos aosgrupos básicos, valendo-se do uso intensivo dosmeios de massa para agregar inúmerossubsistemas de eleitores. No Brasil, a fragmenta-ção societária parece-nos um fenômeno evidente;além disso, o longo interregno militar contribuiuenormemente para desmobilizar o eleitorado, afas-tando o cidadão comum da participação política.

5. Sistema dos meios de massa: os sistemasmidiáticos nacionais avançados tecnologicamente,em que a televisão atinge quase a totalidade dapopulação como fonte – por vezes única – de en-tretenimento e informação, favorecem sobrema-

neira a modernização das campanhas eleitorais;ao contrário, os sistemas em que grande parte dapopulação não tem acesso aos aparelhos e/ou astransmissões não cobrem parcelas significativasdo território, constituem-se em um óbice à mo-dernização. No Brasil, o amplo acesso da popula-ção aos aparelhos de recepção e a coberturaefetivamente nacional dos media privados – pormeio de transmissoras próprias ou retransmissorasque atingem os mais longínquos rincões do país –conformam um solo fértil para a implantação deferramentas de comunicação política que possu-em na televisão e no rádio seu centro referencial.

Esperamos que este artigo tenha deixado claroque, mais do que uma invenção de políticos opor-tunistas, publicitários – os tão denunciados eautopromovidos “marqueteiros” – ou especialis-tas em pesquisas, as novas feições das campa-nhas eleitorais inserem-se em uma estrutura queconstrange, limita e incentiva: a “sociedademidiática”.

Aqui, cabe a pergunta que mais incomoda: emuma sociedade desse tipo, com uma democraciade massas, haveria modos mais eficientes de sefazer campanhas eleitorais?

Não se trata de indultar supostos culpados, massim de, em uma análise mais aprofundada, fazerver que a sociedade em que vivemos não é a mes-ma de algumas décadas atrás, o que acarreta, ob-viamente, formas dessemelhantes de comunica-ção política qua instrumento de convencimentode eleitores em contextos democráticos. Assim,este artigo buscou, acima de tudo, confrontar al-gumas interpretações que exigem um mea culpade atores que, mais do que propriamente culpa-dos, representam efeitos de fenômenos anterio-res e muito mais profundos do que eles.

Essa constatação, no entanto, não impede queteçamos algumas críticas contundentes a certaspráticas adotadas por campanhas eleitorais nacio-nais. A “emocionalização” da comunicação políti-ca televisiva, que se dá por meio do uso de técni-cas advindas da propaganda comercial, constituisério risco ao sistema democrático em que,normativamente, os atores deveriam se pautar porcritérios eminentemente racionais na escolha, sus-tentação e implantação de governos, governantese políticas públicas. Conferindo tons ainda maisemotivos à comunicação que se dá por um meioque, de per si, já é movido a emoções, publicitári-

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os e outros profissionais – atendendo a partidos ecandidatos – prestam um desserviço à consolida-ção da democracia nacional.

Sob prisma distinto, constata-se que a neces-sidade de construção de estruturas profissionaiscentralizadas, ágeis e eficientes fez que as cam-panhas eleitorais mais competitivas se tornassemaltamente dispendiosas para candidatos e partidos.A busca de vultosos recursos e a frouxidão dalegislação eleitoral no tocante a doadores jurídi-cos constituem sérios óbices à autonomia do cam-po da política frente aos interesses econômicos

27 Essa questão, ainda não muito debatida no Brasil, éespecialmente crítica e problemática nos EUA, onde adiscussão a respeito de soluções a serem implementadas ésobremaneira mais avançada.

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das corporações industriais, comerciais e finan-ceiras27. A limitação dessas doações ou, aindamelhor, a adoção de um modelo misto ou puro definanciamento público das campanhas podem sersoluções parciais – porém importantes – para evi-tar que a democracia torne-se refém de interesseseconômicos que caminham, no mais das vezes,na contramão dos anseios da maioria da população.

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