Manoel
Roseli Fontaniello
Cartas a
A autora é formada em Direito e concluiu o curso de pós-graduação em Arteterapia em Educação, tendo apresentando como a monografia com o tema “Laboratório de Criação”, na qual narra sua experiência com a abertura de um espaço voltado para o exercício da criatividade em suas diversas formas de expressão. Escreveu e ilustrou o livro infantil “O Reino de Popopipi”, onde narra com humor a necessidade da higiene no dia a dia. Sempre atuante em matéria de artes, participou de diversas exposições, tendo um trabalho selecionado pela Bienal Naif de Piracicaba em 2016, ano em que aposentou-se. No momento dedica-se à família, à arte e à escrita.
A Autora - Roseli Fontaniello
Cartas a Manoel
Há momentos na vida em que Deus nos mostra sua face, seu infinito estar no mundo. E esse foi um deles.Fiz um poema para o queridíssimo poeta Manoel de Barros – Por onde andas, Manoel?e enviei, por e-mail, para a Fundação Manoel de BarrosA resposta retornou dizendo que passariam ao poeta.Dias depois, uma mensagem foi enviada por sua Secretáriadizendo que o poeta queria muito meu endereço para responder-me.
Foi assim que recebi sua primeira cartinha, de próprio punho e delicadeza...
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Dedicado às insignificâncias e de-simportâncias
Tão desnecessárias ao mundo das realidades
1a Carta ao Poeta Julho de 2010
Poços de Caldas, MG
Poema dedicado ao poeta Manoel de Barros
Por onde andas, Manoel? Por onde andas, Manoel?Continuas a brincar de palavras?Tu que entendes o sotaque das águas,que comunga com a pedra,a lagartixa, os meninos e as rãs,que entende os passarinhos...
Por onde andas, Manoel?Continuas a frasear a vida, a compor o Tratado das Grandezas do Ínfimo?Imagino-te, agora, em teu jardim, sentado em uma lata,compondo teus poemas,a poesia navegando às margens tuas...Assim como a rã, que tem primazia sobre o rio Amazonas,que passa às margens dela...
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Como podes dar importância tal a um pente jogado no meio do quintale olhá-lo a ponto de dizerque o mesmo está em estado terminale próximo de não ser mais um pente?E ainda chamá-lo de desobjeto? Por onde andas, Manoel?Não quisestes sernem doutor de curar, nem doutor de fazer casas,mas o destino te reservou ser doutor-fraseador,e neste universo da poesia,és doutor de curar, sim. Curas nossa alma da desesperança.
És doutor de fazer casa, sim.Constróis edifícios dentro da gente quando dizesQue as cigarras derretem as tardes com seus cantos,Que o menino foi capaz de interromperO vôo de um pássaro botando ponto no final da frase,
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Que os rios eram verbais porque escreviam torto E que um sapo engole as auroras!
Manoel, digo que és um doutor-cientista-fraseador.Descobriu que para fazer pessoasninguém inventou nada melhor que o amor...
Por onde andas, Manoel?preciso de você para ensinar-meo dom de ser poesia.
Tu querias, Manoel, que a tua voz tivesseum formato de canto.Digo que ela tem mais. Tem formato de “encanto”,pois obedece aos despropósitos, às desimportâncias eà desordem, assim como o indiozinho guatóque aparecia em seu quintal,lembras-te?
Aprendi com você, Manoel, que buscar a beleza das palavras éuma solenidade de amor,que elas compõem silêncios,que a importância de uma coisanão se mede com fita métrica,há que ser medida pelo encantamentoque a coisa produz em nós.
Por onde andas, Manoel?Preciso de você, fraseador que levao verbo ao delírio, que vê a criançaescutar a cor dos passarinhos,transmutando o “ser” da coisa, emprestando-lhe seriedade poética. Brincador de palavras,festejas com elas como se possuíssem, juntos,um grande parque de diversões.Gangorreiam...Balanceiam...Rodam gigantemente...
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Saltam para o infinito...Vêm à terra e voltam ao céu...E, exaustos de tantas sapequices,tu e as palavras, ao final da frase,dormem e sonhamcom o dia feliz do reencontro.
Quem dera, Manoel, o ser humano,assim como você,tivesse abundância de ser felizdando respeito às coisasdesimportantes,prezando mais a velocidade deuma tartarugaque a dos mísseis!
Vamos, Manoel, apareça para comungarmosa delícia do simples, para mostrar-me as borboletas sentadasnos braços da manhã, para ensinar-me o dom de ser poesia.
Por onde andas, Manoel?13
Resposta do Poeta1 de novembro de 2010
Campo Grande, MS
Querida Roseli que é poeta Como é que eu vou responder por onde andas Manoel?Vou responder com o seu mais que formosopoemaEstou, cara poeta, agora tentando uma desbiogra-fia verdadeira de mim. Aliás de mim e do Bernar-do da Mata – o que não sabia desencostar-se da Natureza porque já estava uma pedra, um rio, umarrebolComo eu vou segurar esse cara para estar comigo na desbiografia? Sei que andava de luxúria com uma lesma.Agora esse Bernardo que foi amigo meu por 20 anos está enterrado debaixo de uma árvore a rego de passarinhos.E eu ainda estou aqui. E ainda posso amar o amor de seu poema! Seu poema me iluminou demais!Estou aqui ainda e te mando beijos e agradeci-mentos pelo seu belíssimo poema. Mande agora para mim o seu livro de poesia. Eu espero.Manoel.
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2a Carta ao Poeta Dezembro de 2010
Poços de Caldas, MG
PARA MANOEL DE BARROS MEU ETERNO ENIGMADE INDECIFRÁVEIS GOSTOSURAS
MA DE MÃE MÃE-TERRA MÃE-VIDA QUE ACOLHE ACARICIA TRANSCARICIA IMPLODE EXPLODE UM PONTO EM MIL OUTROS PONTOS E OUTROS MIL PON-TOS EM UNIVERSOS SE TRANSFORMAM... “E TODO DIA TEM EXERCÍCIOS DE VOOS”
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NOELDAS SETE ARTESDA PRESENÇADIVINAMENTE TERRENANOEL DO PRESENTE DOM DE TRANSMUTAR-SE NO ETERNO VERBO “SER” - ÉS EU AQUI- ÉS TU AÍ- ÉS ELE ACOLÁ- ÉS NÓS CÁ EMBAIXO- ÉS VÓS LÁ ADIANTE - ÉS TODOS ELES OS LÁ DE CIMA- ÉS UM RIACHO DE CARÍCIAS COSMOLÓGICAS DELÍCIAS TRANSCENDENTAL DESEJO DE ADMIRAR O APENAS ADMIRÁVEL
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“MILAGRE DO AMANHECER” Fiquei, Estou e Continuarei amanhecida, ensola-radamente amanhecida com seu gesto poético de
me responder ao poema.
DE BARROS E ASSIM A VIDA FOI FEITA...
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Haikais
Haikais enviados ao poeta
BEIJOScinema antespipoca durantebeijinhos enquanto
o coração geloua mão suoudesfaleci
suores intensosfebre noturnao primeiro beijo
subi aos céusdesci à terraao final
foi muito bomquando acabouficou gostinho de quero mais
pele a pelealma a almacalor a calor
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TRISTEZASa composição inacabadaamigo sugado pelas ondas do tempo
tarde ensolaradanoite escurasaudades azuis
FARRAnoturno céu de violãonotas despencamem cachoeiras
NOITEvem a noitea sede aumentade te encontrar
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LIBERDADEjeans, mochila,camiseta,tênis na estrada
blusa amarradana cinturapendurada liberdade
o dia é hojeo amanhã nem seifui...
glorioso temporalencharcou meu vaziome deixou nua
goma de mascarisolada solidãoploct!
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chinelo rasteirocompõe meu destinoem busca de paz
aos sábados recomponhoa saudade do sonodas seis da manhã
caminho pra escolacomo caminho pra vida:a pé
de mãos dadas seguimosem direção às estrelasrumo ao infinito de nós
cantada barataestragou o quaseconsolidou o nunca
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Namoroconfidências no portãolonga é a caminhadade volta pra casa
no banco da praçaamassadas lembrançasme trazem o luar
encontros marcadosafetos vividosdecantados sentimentos
PAIXÃOdesesperado coraçãoacalme-se!diimm... doomm...
a lua bisbilhoteirasussurra às estrelassegredos nossos
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na palestra exaustiva, o voointergaláticos hormôniosme prendem lá fora
SOFRIMENTOa ausência é a conjugaçãomais que perfeitadaquele passado
VAIDADEbanho de luatodo diaao pôr-do-sol
saltos ao alto rasgado cansaçoa festa acabou
CORPOa chapinhaestica meus sonhosme torna ideal
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SOLIDÃOsolidãonunca maisfiz poemas de mim
rodas giram gigantes à soltasão pedaços do tempo
rodoviárias me emprestemo destino de todos viajantes seguros de si
anotações suavesmomentos indestrutíveispela ferrugem do tempo
desenhei o passeioque deu certono caderno das lembranças
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solidão demarcadaapoderou-se do mapafez dele uma ilha
noturna solidãoespectros de vidascaleidoscópio de nós
ESTUDOSna doçura da tardesorrisos encontradosestudos à parte
adiada avaliaçãoadiados estudosempurrados dias
madrugadas inteiras,no quarto fechado,metade de mim
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matemática me pegougramática me derrubouminha história me salvou
matemática pegougramática derrubouestudos socorreram
falta a vontademosquito passapensamento voa
tabela periódica caiugabaritei
encontros marcadosafetos vividosdecantados sentimentos
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2a Resposta do Poeta Janeiro de 2010
Poços de Caldas, MG
Cara RoseliTudo que você me escreveuensolaradamente também meamanhece. Seus hai-kais meconvencem que você tempoesia. Não precisa inspiração,poesia é trabalho com palavras.É abstrato e não entra nosseus Hai-Kais que, porsinal, são belos. Você temo livro de Hai-Kais doManabu Mabe? Lá temum prefácio do Otávio Pazmagnífico que você vaigostar. Você tem uma naturezamuito bonita. Vi pelo livrinhoPopopipi que dei a umabisneta de presente de Natal.Vi bem nos Hai-Kais a poetaque você é. Meus parabéns. Osseus alunos são talentosose seus filhos são lindos; aliás,filhas. Agradeço as suaspalavras. Você é poeta, sim.Abraço afetuoso.Manoel de Barros
3a Carta ao Poeta Março de 2012
Poços de Caldas, MG
Querido Manoel sou aquela que um dia quis saberpor onde andava Manoel...
Descobri que estás em estado dedesbiografia, por não convir mais,imagino, a presença de invólucros,desnecessários a deuses inquietos
Estou aqui sentada na poltrona macia de seus versos, e nela me deleito,descansando na estampa pantaneirade seus poemas
O que direi ao deus das palavras desobedecidas,que não tem senão manias de inventar belezase desinventar monotonias?
Escrever-te-ia todos os dias para tecer contigo cumplicidades,e dizer a mim mesma uma oração
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em estado de letras,única maneira de te abraçar...
Manoel, sinto tão grandiosaessa presença distante do maior causador de despropósitose desimportâncias, que insisto, e escrevo e deliro...
Esta minha oração está em fase de três horas da manhãe o vento sopra pra lá da janela, quer a todo custo entrar...Ele escuta, atento, esses murmúrios desajeitados, arrumados em embrulho de cetime aguarda, inquieto, para com voz de veludoassoprá-las a você,onde estiveres,em seu mundo de palavras,de poéticas reinações,desbiografando...
Ele vai contar a você40
o quanto precisamos de construtores de amanhe-ceresdos enlatados e suculentos amanheceres.
Rode a manivela, Manoel,e construa para nós, também, dons de poesia, ofereça-osem frascos compactos de simplicidadesNa bula prescreva: devem ser consumidos bem devagarinho,com doçura...
Com esta oração planto um tempo de esperas...Com leituras vou regá-loCom entardeceres adubá-loCom canções embalá-lo
Até a volta tranquila daquele mesmo ventoque um dia levou, com mãos de veludos,murmúrios desajeitados acordados de um sonhosonhado com deuses poetasem estado de desbiografia...
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Resposta do Poeta 20 de maio de 2012Campo Grande, RS
Querida RoseliRecebi sua carta com as ternuraspor mim e pela minha poesia.Fiquei encantado e agora, de novo,biografável. Seus desenhos tão ingênuos,infantis, do jardim de P.C. também amim me encantou. Me lembrou dos meus18 a passear em volta do coreto para namorar.Achei um pouco apagado demais as suasfigurinhas em volta do coreto. A pinturame fez voltar . Achei muito apagadas, nãosei, talvez a cópia esteja de lugar impróprio.Mas eu não te imaginei pintora, mas umarevelação de poeta. Não sei, não melembro se te escrevi sobre o poema:Por onde anda Manoel? Mas é seubelo ser de amor o provou. Esta outra carta é linda também, maslhe faltou o dom da poesia. De qualquer maneira amo a poeta ea prosadora. Muito obrigado.Beijos Manoel
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4a Carta ao Poeta Outubro de 2012
Campo Grande, RS
Querido poeta, o telefone tocou no meu serviço, era minha filha Giovana. - Mãe, tenho uma surpresa pra você, adivi-nhe. Ela não ligaria se realmente não fosse tão esperada esta surpresa. Disse a ela que não sabia o que era, mas intimamente pressentia o motivo da ligação. Pedi uma dica. - Ah, mãe, tem barro na surpresa. Depois de diversas suposições proposital-mente erradas, disse que não sabia, para dar a ela o gosto da novidade. - Mãe, é uma cartinha do Manoel de Bar-ros... Demonstrei estar surpresa e feliz e pedi que a guardasse e que a abriria assim que chegasse em casa. Sonhei no vespertino do dia e tive que me conter e segurar a ansiedade. Encerrada a jornada que aquele dia pareceu durar meses, fui para casa sem qualquer “pinga--pinga”, excluindo do caminho toda parada como casa da mãe, padaria, supermercado, costurinhas.
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Cheguei em casa e fui ao encontro de meu prêmio. A minha felicidade repousava, alva, em cima de minha escrivaninha, e com letras bem pequeni-nas se via o meu nome. Percorri com o olhar cada pedacinho daquele retangular papel. Confesso que o flerte entre mim e o envelo-pe durou cerca de meia hora, o qual foi cheirado e acariciado, até que um corte lateral certeiro reve-lou-me o seu conteúdo: uma folhinha de papel “em branco”, inteiramente. Sacudi a folha azul clarinho na esperança de ter ali ocorrido uma brincadeira de letras escondi-das, que se balançada, dela desprenderiam versos voadores onde se leria um poema suspenso... Pensei que talvez meu poeta maior estivesse querendo demonstrar com este gesto uma atitude de “não tenho nada a te dizer, aspirante a poeta”, porém , logo deletei esta hipótese por não condi-zer com a alma grandiosa do destinatário de meu poema. Fiquei, ao final, com a terceira ideia que me
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veio à cabeça: aquele vento que levou murmú-rios desajeitados, ao retornar com notícias tuas, perdeu-se em algum lugar entre Mato Grosso e Minas Gerais e, em desespero total, tornou-se um enorme vendaval. Desorientado, perdeu ao longo do caminho todas as letras que compunham uma poesia de generosidade. Desmedidamente, germi-nou, por toda terra, sementes de palavras colhidas ainda fresquinhas, mas que tristemente não che-garam em meu quintal!! Bem, depois de tanto ventar e procurar seu norte, aquele mesmo vento chegou calmo ao seu destino, mas estava vazio e com um ponto de in-terrogação enorme em seu coração. De qualquer forma, o acontecimento deu-me a chance de novamente escrever-te, adentrar na intimidade de sua paz e conhecer Stella, pois em momento de desconserto e desorientação, assim como o vento da história, liguei para sua casa em pedido de socorro ao destinatário de meu poema, aquele construído em minha imaginação e que denominei “deus das palavras desobedecidas”, ou
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também, digo agora, “deus das ideias encaracola-das”, “plantador de concavidades” ... Digo a você que Deus, quando constrói, o faz de maneira grandiosa e te presenteou com um céu brilhante que tem uma estrela especialmente iluminada, que fica no norte de sua vida e que lhe serve de guia: STELLA. Em seguida a esta car-tinha, vou enviar a ela um presente de Poços de Caldas para que relembre o início de uma grande história recheada de poesias e se delicie com uma lembrança dessas águas sulfurosas e curativas. Espero que estejam bem, no calor do lar e dos familiares que o aquecem ainda mais. Abraços afetuosos e fraternos. Roseli.
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O encanto de um poema não se mede por palavras.
A grandeza da poesia vem da essência generosa
de quem a escreveUma alma, um estado de
Infinitude?Graça?
Um estado de Deus?