Chefes de grupo e grupos de chefes1
Guilherme Lavinas Jardim Falleiros
Doutor em Antropologia Social
Centro de Estudos Ameríndios (USP)
Discorro sobre as classes de idade a’uwexavante (povo Jê habitante do Mato
Grosso, Brasil), chamadas de da’utsu (grupo), evidenciando sua relação com o que se
convencionou chamar de “chefia ameríndia”, com a assimetria (e sua inversão) bem
como com noções de pessoa e magnificação.
Essas classes são dotadas, cada qual, de diversos cargos cosmopolíticos e
encargos de liderança – os chefes de grupo (transmitidos pelo parentesco, fazendo o elo
entre a política linhageira e a contrapolítica coletiva). Todavia, todos os membros de
uma classe são considerados, perante um grupo subalterno, como chefes: ‘roti’wa
(conselheiros) e idzu (termo que MayburyLewis entendeu como distinção política e que
os A’uweXavante relacionam à extensão e intensidade corporal). Sempre os mesmos
grupos se sucedem num ciclo de oito, revertendo a hierarquia numa “troca
generalizada”. Em sua relação com as mulheres e com a periferia da aldeia, lugar do
pleno parentesco, manifestam no pátio um panóptico invertido, sob vigilância. Tornarse
e engrandecerse como humano, sobretudo para o sexo masculino, passa pelo trabalho
ritual nesses grupos e cargos, engrandecendo também o próprio grupo. Em certo
sentido, o grupo faz as vezes de um “chefe”: guerreiro, serve ludicamente à pacificação,
deve ser generoso e entregase festivamente ao coletivo. O sistema de classes de idade
opera como uma máquina orgânica (de corporações corporais) de guerra e paz, fazendo
do jogo uma guerra atenuada.
1 Trabalho apresentado ao Grupo de trabalho “Chefia, Política e Hierarquia na América indígena”, X Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM), Córdoba (Argentina), 2013. Organizadores: Antonio Guerreiro Jr. (Unifal/Brasil), Helena Schiel (EHESS/Paris e UnespMarília/Brasil) e Diego Villar (CONICET/Argentina). Os itálicos serão utilizados para termos em língua a'uw xavante ou no portuguêsẽ falado pelos A'uw Xavante.ẽ
Com base em etnografia própria, tomo criticamente referências em reflexões de
MayburyLewis sobre a relação entre linhagens e classes de idade; Marcel Mauss sobre
dádiva, pessoa moral e a importância de classes de idade para organizações “entre a
anarquia e o Estado”; de LéviStrauss sobre reciprocidade, hierarquia, jogo, chefia e
desequilíbrio instável; enfim, de política ameríndia em autores que vão de Michael
Lowie a Renato Sztutman.
Classes de idade como corporações corporais
Os A'uw Xavante dividemse num sistema agâmico de oito classes de idade emẽ
que a participação feminina é mínima (como será considerado adiante), e essas classes
separamse em duas metades agâmicas, formando duas engrenagens de quatro dentes.
As classes de cada metade são solidárias entre si, sobretudo nas corridas de tora, e
antagônicas às da outra metade. A diacronia aparece na relação entre as classes mais
atuantes: a dos patronos dos adolescentes (danhohui'wa), que durante minha estadia em
campo era a dos t paẼ ẽ ; a dos jovens recém iniciados ('ritéi'wa), no caso os Abare'u; e a
dos adolescentes (wapté), Nodzö'u, afilhados dos t paẼ ẽ . A classe mais velha é
solidária à mais nova (que é apadrinhada por aquela) e a “classe” intermediária lhes é
adversária. Cada classe atualizase (conforme a ordem circular pré definida) quando
suas insígnias ( t paẼ ẽ , Abare'u, Nodzö'u etc.) encorporamse num novo grupo de
adolescentes no Hö, a casa dos solteiros. O Hö circula entre as oito classes como num
sistema de “troca generalizada” projetado diacronicamente, alternandose entre as
metades agâmicas opostas. A essas classes os A'uw Xavante dão o nome de ẽ grupos,
traduzindo o termo em sua língua da'utsu (radical: 'utsu).
Cada grupo teria uma existência prévia à iniciação dos jovens: os grupos
costumam ser sempre os mesmos, isto é, com as mesmas insígnias e na mesma ordem
em cadeia (ainda que esta cadeia apresente diferenças ao se comparar “Xavante
Ocidentais” e “Xavante Orientais” de MayburyLewis 1984 [1967] – sem, entretanto,
alterar a composição das metades agâmicas), constituindo um sistema cíclico, dotado de
temporalidade circular, de modo que, ao passar das gerações, as mesmas classes seriam
iniciadoras, antagônicas e iniciadas umas das outras. Em cada metade agâmica, a
mesma classe inicia uma outra e é iniciada por uma terceira, iniciada por uma quarta,
fechando o ciclo – sem interrompêlo – quando esta retorna à posição de inicianda.
Cada classe de idade recruta seus membros ou é reconstituída – “reencarnada” é
o termo usado por Maybury–Lewis (1984 [1967]: 207) a partir da passagem dos wapté,
pelo Hö. O período de sua formação, ou transformação em homens, durante sua
permanência no Hö, costuma ir de três a cinco anos, depois do que seus membros são
iniciados pela furação de orelha, saindo de lá com o status de 'ritéi’wa. Tal processo é
patrocinado pela classe de idade na categoria dos jovens adultos, ipredupté,
alternadamente mais velha que aquela. Ou seja, entre os wapté que habitam o Hö
(chamados de hö’wa) e a classe de idade patrocinadora, existe outra classe de idade já
formada e adversária à deles, na categoria de ritéi’wa. Essa categoria de idade não
suportaria mais de uma classe de idade durante o mesmo período, a não ser por um
curto tempo de transição ritual. As noções de categoria de idade não devem ser tomadas
como um quadro de classificação rígido, já que os A'uw Xavante possuiriam formasẽ
de se referir a subdivisões dele (Giaccaria e Heide 1972: 121), ou com sufixos do tipo
“mais novo”((a)pté) e “mais velho” ('rada).
Este esquema lista as categorias de idade mais ativas no sistema de classes de
idade, com as respectivas posições das classes:
Categorias de idade // Posição das classes // Classes que a ocuparam no momento
etnográfico
dapredupté ( dapredu ) // classe patrocinadora ( dañohui’wa ) dos hö’wa // t paẼ ẽ
'ritéi’wa // classe adversária aos hö’wa // Abare'u
wapté // classe dos hö’wa // Nodzö'u
As classes de idade se relacionam ciclicamente conforme o esquema a seguir,
uma “engrenagem” composta de duas “rodas dentadas” (que figuro na forma de estrelas
de quatro pontas), como sugere MayburyLewis (1984: 215–216), cuja posição dos
“dentes” é baseada no meu momento etnográfico:
Notese que cada uma das duas metades – que não são nominadas pelos A'uw ẽ
Xavante, pintoas nas cores branca e preta para fins didáticos – é composta por quatro
classes de idade – que simbolizei a partir das duas primeiras letras de seus nomes,
Nodzö'u, Abare'u, t pa, Tirówa, Hötörã, Ai'rere, Tsada'ro Ẽ ẽ e Anarowa (o leitor não
deve confundir as iniciais HÖ da classe Hötörã com a palavra Hö, Casa dos
Adolescentes). O eixo de encontro entre elas coloca em relação as três classes de idade
mais atuantes ritualmente, sendo que a seta indica, no gráfico, o sentido do movimento
geracional. Com base no período em que estive em campo, essas classes são, da mais
nova (encorporada ou “reencarnada” pelos habitantes do Hö) para a mais velha:
Nodzö'u, Abare'u, t pa, Tirówa, Hötörã, Ai'rere, Tsada'ro Ẽ ẽ e Anarowa.
MayburyLewis nota uma discrepância entre a relação destas metades agâmicas
no tocante aos “Xavante Ocidentais” e “Xavante Orientais”, havendo um descompasso
se se comparar a “roda dentada” preta dos “Ocidentais” com a “roda dentada” preta dos
“Orientais”, como se a metade preta “oriental” estivesse atrasada em uma geração em
relação à sua idêntica “ocidental”. Em minha experiência em Sangradouro e na aldeia
Belém, as classes organizavamse da maneira “ocidental”, ainda que em zonas
geográficas distintas. Isso se explica. Para MayburyLewis, os “Xavante Ocientais”
incluiriam aqueles das terras hoje conhecidas como Sangradouro, São Marcos,
Parabubure e Marechal Rondon, e os “Xavante Orientais” seriam os de Pimentel
Barbosa, Areões e Marãiwatséde. No entanto, como pude notar, os a'uwẽ
marãiwatséde, fundadores (dentre outros) da aldeia Belém, além de repovoadores da
terra de Marãiwatséde, organizamse hoje como os “ocidentais”, talvez devido às
décadas de convivência em Sangradouro e São Marcos.
Como já notara MayburyLewis a respeito do contato entre as diversas aldeias
a'uw xavantes, o descompasso é resolvido, na prática, equiparandose as classes queẽ
estão na mesma fase da vida. Ou seja, um membro dos Anarowa “oriental” que viajasse
para o “ocidente” descobriria que os Ai’rere “lá” eram o mesmo que os Anarowa “cá”,
segundo a explicação “nativa” (MayburyLewis 1984 [1967]: 191–209).
A equivalência aproximada do sistema de classes de idade entre as diversas
aldeias é muito importante para a capacidade de magnificação recíproca entre classes de
idade e aldeias: porque, para os grandes rituais, moradores das mais diversas aldeias
com quem tem contato são convidados para participar, sobretudo para as corridas de
tora que sucedem as cerimônias. A metade agâmica que for capaz de angariar mais
colaboradores terá mais condições de vencer a corrida de toras, já que esta – bastante
cansativa – envolve revezamentos e a quantidade de corredores por time é teoricamente
ilimitada. Estas pessoas parecem atraídas tanto pela obrigação de participar e ajudar
membros da mesma metade agâmica e pela possibilidade de engrandecer sua classe e a
si mesmas, quanto pela afluência da posterior distribuição de presentes alimentares
(bolos, carne, refrigerante).
Outro ponto também bastante comentado a respeito do prestígio adquirido pelos
homens são as relações destes com as mulheres. Dizem que, na medida que se participa
de rituais e jogos de futebol entre aldeias, vaise ficando mais famoso entre as mulheres.
Muitas vezes rapazes e jovens adultos mudamse de aldeia por causa da quantidade de
mulheres e namoradas que tenham lá. Aldeias grandes, com muitas mulheres (como
Marãiwatséde ou Sangradouro), costumam atrair ainda mais pessoas, mais homens,
inflacionandose.
Os grupos também acomodam outros sujeitos de maior prestígio, os velhos,
através do qualificativo 'rada. Por exemplo, os Nodzö'u tem como correlato entre os
velhos que sobreviveram ao ciclo, os Nodzö'umb'rada. E assim por diante. São grupos
que já fizeram a roda das classes de idade dar toda sua volta e, agora, observamna
recomeçando.
E o que circularia entre esses grupos? O grupo iniciado receberia dos mais
velhos, principalmente do grupo iniciador, ensinamentos rituais, técnicos e práticos,
cantos e a maturidade. Já os patrocinadores, além de adquirirem novos membros para
seu time, para sua metade agâmica (não para sua classe de idade), também seriam
presenteados com itens como bolos, carnes, enfeites etc. Uma das formas de transmissão
de conhecimentos é a dos cantos sonhados, que é geralmente intransitiva – apesar dos
cantos entrarem para uma memória atualizada em performances no pátio da aldeia, eles
não são retransmitidos pela classe que os recebeu de uma mais velha – e liga as classes
de uma mesma metade agâmica.
Várias atividades contribuem para a constituição de uma solidariedade
disciplinada entre as classes. O trabalho coletivo é uma delas (que inclui também a caça,
considerada como romhuri, “trabalho”). Em época de festas, é em classes de idade que
os A'uw Xavante fazem os preparativos, limpam os caminhos e o pátio da aldeia, numẽ
clima de competição entre classes adjacentes e metades opostas. É a troca de
provocações e os chamados por cooperação que disciplinam o trabalho, no qual
lideranças de cada classe tanto podem falar para fazer quanto fazer e dar exemplo, num
jogo que mistura exposição pública de trabalho a momentos de preguiça e indisciplina
em que não se dá ouvidos à ordem e à provocação.
Cada classe costuma comer junta, principalmente na casa dos adolescentes, onde
estes devem dividir entre si a comida que recebem de suas famílias e também alimentar
a seus padrinhos danhohui'wa. Outro momento de comensalidade são os fins de rituais
importantes, quando uma classe mais nova dá à mais velha (principalmente os
adolescentes para os danhohui'wa) bolos de milho, de feijão, de arroz etc., estes comem
um pouco e dão quase tudo, por sua vez, a uma classe ainda mais velha, que come junta
ou que divide o butim para ser comido em casa.
O sentarse junto também é um fator de manutenção dessa corporação. Membros
da mesma classe, mesmo as mais velhas, tendem a sentarse juntos no warã – pátio ou
assembléia aldeã –, em transportes coletivos como ônibus escolar e caçamba de
caminhão (onde é comum que mantenham seus corpos encostados) e na igreja:
presenciei uma missa católica na qual principalmente os homens das três classes de
idade mais ativas, mas também outros, sentavamse em locais previamente demarcados
para sua classe. Outro momento fundamental de constituição do corpo coletivo das
classes, principalmente devido à sua unidade rítmica e técnica, são os cantos e danças.
Além disso, banhos coletivos e expressões de luto (como a raspagem dos cabelos)
também grupais efetivam uma mistura dos corpos e expressões de sentimento.
Gostaria de deter a atenção no banho coletivo, que chega a congregar mais
membros de uma mesma classe de idade do que a própria dança. É comum que todos os
membros de uma classe de idade ativa nos rituais se junte para tomar banho de rio. Em
vários horários, já que os A'uw Xavante tomam banhos ao menos três vezes por dia, éẽ
comum que os companheiros de classe de idade chamemse uns aos outros para o
banho. Observei o mesmo ocorrendo inclusive entre os anciãos de uma mesma classe.
Por outro lado, classes adversárias, sobretudo as adjacentes e em época de rituais
importantes, evitamse no rio, uma classe espera a outra deixar a água para entrar.
*
A noção de grupos corporais foi formulada por Seeger (1980) com base em sua
etnografia e a fim de superar dificuldades existentes em noções como “linhagem” e
“descendência” para casos Jê que não correspondiam a linhas e heranças agnáticas (com
semelhanças e diferenças frente ao caso a'uw xavante, exposto abaixo). Seriam gruposẽ
unidos pela substância comum, fluidos corporais (sêmen, sangue), alimentação e
restrições alimentares. Proponho alargar o uso do adjetivo “corporais” para as classes de
idade a'uw xavante, tomandoas como ẽ corporações corporais, a partir dos aspectos
acima apresentados: na sua constituição é importante certa substancialização comum via
comensalidade; a técnica do corpo (das danças e cantos); a proximidade do corpo, a
aproximação do corpo, seja ao sentarse, seja ao combinaremse e misturaremse os
corpos no banho; e a expressão corporal do luto através do corte de cabelo.
“Esfera políticodoméstica”
Os A'uw Xavante se dividem em duas metades exogâmicas agnáticas, que sãoẽ
chamadas pelo nome dos dois “clãs” principais, Öwawẽ e Poredza'ono. “Clã” é palavra
introduzida por MayburyLewis como referência a um parentesco comum de origem
mítica e apropriada pelo vocabulário nativo em língua portuguesa. Öwawẽ traduzse por
“rio grande” ou “água grande”, referência também ao Rio das Mortes, que corta o atual
território a'uw xavante, e ẽ Poredza'ono quer dizer “girino” – o que coloca os dois “clãs”
numa relação complementar de “continente” e “conteúdo” (Vianna 2001). Haveria um
terceiro “clã”, segundo MayburyLewis, o Topdató ou Tob'ratató. Seu nome faz
referência ao círculo pintado nas faces de seus membros durante o Oi'ó, um ritual de
luta infantil entre os membros dos “clãs” opostos, que sinaliza a disputa e a rixa
presente entre as metades exogâmicas bem como entre suas frações menores (chamadas
por MayburyLewis de “linhagens”). Nesse ritual, além dos círculos em cada face dos
Topdató, as faces dos Poredza'ono seriam pintadas com desenhos semelhantes a girinos
e a dos Öwawẽ com uma forma abstrata que talvez tenha alguma relação com a de um
rio e suas margens:
Alguns a'uw xavante afirmam que ẽ Topdató é apenas o símbolo, que
“combinaria” com certas pessoas, famílias e linhagens minoritárias dentre os Öwawẽ. O
próprio MayburyLewis enfraquece um pouco o caráter de “corporação” das metades
exogâmicas ao mostrar que imigrantes de outras aldeias podem ser ocasionalmente
adotados por uma ou outra metade, indiferentemente de sua pertença clânica original.
Cita como exemplo uma família Topdató adotada pela metade Poredza'ono de uma
aldeia (1971 [1967]: 163). Enfim, quanto à misteriosa condição humana dos Toptadó e
seu poder de exceção em relação ao parentesco, ligado ao trikster a'uw Xavanteẽ
Ai'utémanhari'wa, dono do antigo ritual de nominação feminina – cargo transmissível
através da nebulosa cadeia de aparentamento a'uw xavante –, tentei dar conta dela emẽ
trabalho anterior (Falleiros 2011: 239259).
Enfim, evitando o problema dos “clãs”, MayburyLewis prefere a distinção feita
pelos A'uw Xavante entre ẽ waniwimhã (“os do nosso lado”) e watsi're'wa (os do outro
lado), que não anula a existência da distinção de ao menos duas classes genealógicas, já
que cada metade é tida como oriunda de uma mesma raiz (MayburyLewis 1971 [1967]:
165171]: datsina'rada, “a própria raiz”.
Compreendese que o autor tenha levado em conta os símbolos “clânicos”
porque aparecem numa situação ritual que exprime o que os A'uw Xavante apresentamẽ
a respeito das relações entre “clãs” e “linhagens” opostos: relações conflituosas, de luta
corporal ritualizada e até agressão direta. No Oi'ó são usadas bordunas feitas de uma
raiz irregular, mas outros rituais também envolvem lutas corpoacorpo entre membros
das metades exogâmicas opostas, como o Wa'i, na qual visase projetar o adversário ao
chão. Assisti o vídeo de um ritual de Oi'ó em que os pais de uma dupla de adversários
mirins entrava na briga, causando tumulto, chamado no vídeo de “guerra”, datsi'wapé, e
editado em câmera lenta, aumentando o peso dramático da cena. De modo que o Oi'ó
tanto encena quanto aciona o conflito que os A'uw Xavante vêem potencialmente naẽ
relação entre “clãs”, tanto coloca tal conflito sob controle, numa forma organizada de
luta, quanto pode produzir seu descontrole.
*
Aquilo que Mauss chamara de “esfera políticodoméstica”(Mauss 1981) pode ser
situada no campo delimitado por MayburyLewis como o dos “clãs”, “linhagens” e
“facções” formadas por uma “linhagem” e seus aliados políticos (o que inclui aliados
por casamento).
O termo “linhagem” foi mantido por etnografias mais recentes (como Lopes da
Silva 1986 e Vianna 2001) sendo utilizado para se referir a pessoas encadeadas por linha
paterna de mais ou menos quatro gerações, com ênfase nos homens adultos, sobretudo
em grupos de irmãos. Isso os a'uw xavante chamam, em português, de ẽ família e
linhagem. Levando em conta que o pertencimento não se dá somente em termos
genealógicos mas também dependendo da proximidade, do convívio, da comensalidade,
há uma “assimilação da distância genealógica à distância geográficosocial” (Viveiros
de Castro 2002: 121), que gradua e difere os parentes “de verdade” – uptabi – dos
parentes distantes (chamados também de watsiwadi) da mesma metade exogâmica.
Assim, a “linhagem” a'uw xavante está proxima de um ẽ fuzzy set ou “conjunto
nebuloso”, no qual ser membro não é um estado absoluto, mas uma questão de grau
(Seeger in MayburyLewis e Almagor 1989: 191208).
Além de seu caráter “nebuloso”, a “linhagem” a'uw xavante parece sofrerẽ
também um forte efeito do princípio radcliffbrowniano da “unidade do grupo de
germanos” (como já notara Seeger para os Jê (1980: 131)). E se para RadcliffBrawn
(1952) a transmissão de “propriedade” é algo fundamental na definição da linhagem,
podese dizer que para os A'uw Xavante existe um certo tipo de transmissão de possesẽ
através dos laços agnáticos que, inclusive, levou MayburyLewis a traduzir como sufixo
de “linhagem” o sufixo a'uw xavante para “dono”: ẽ tede'wa. Essas posses envolvem
no geral cargos e encargos rituais, transmitidas de pais para filhos mas também através
de outros meios, talvez mais caóticos. Aracy Lopes da Silva (1986) e Regina Polo
Müller (1976) notaram que tais posses não ficavam presas à linha agnática, podiam ser
transmitidas entre aliados. E tais transmissões podiam gerar dúvidas sobre a posse
legítima, gerando disputas e cisões. De modo que, nesse aspecto, a transmissão de
posses não delimita muito bem uma “linhagem”, mantendo seu caráter “nebuloso”.
Desse modo, os “donos” a'uw xavante, através da posse compartilhada entreẽ
“linhagens” de “clãs” opostos, apontam para algumas características desordeiras no
aparentamento a'uw xavante.ẽ
Entrei em detalhes com os A'uw Xavante acerca da transmissão de certosẽ
cargos e encargos rituais específicos, dos quais tratase a seguir.
Pahöri'wa, cargo cerimonial do “adorador do sol”, é posse de “linhagens”
Poredza'ono e só pode ser transmitida dentro deste “clã”. Tébe, cargo cerimonial do
“adorador da lua”, é posse de “linhagens” Öwawẽ e só pode ser transmitida dentro deste
“clã”. Ambos os cargos são oficializados em rituais após a furação de orelha mas
enquanto a classe de idade ainda permanece no Hö, a casa dos solteiros. Ambos operam
como nomes próprios. São os cargos dos líderes principais das classes de idade, sendo
que os Pahöri'wa são levados em mais alta conta que os Tébe.
Presenciei a “formação” de um rapaz para o cargo de Tébe. O garoto veio de
outra aldeia viver na casa de um avô materno que, por sua vez, vem de uma importante
família Pahöri'watede'wa (o que reforça o que dizem os A'uw Xavante sobre aẽ
preferência de casamentos entre membros de famílias de origem, que perpetuam em
suas posses personagens míticos como Pahöri'wa e Tébe, mais importantes e
englobadoras que as famílias comuns, isto é, gente de verdade – a'uw uptabiẽ –
casaremse entre si). O rapaz fazia as vezes de um serviçal doméstico para os trabalhos
mais difíceis. Seu destaque como trabalhador, rapaz forte e robusto, maior – e mais
velho – que a maioria de seus companheiros de grupo, também se dava nas atividades
coletivas. Acabou sendo, enfim, nomeado Tébe nos ritos de furação de orelha de sua
classe de idade. A influência familiar pesou tanto quanto a performance da pessoa.
Atualmente, escolhemse dois Pahöri'wa e dois Tébe para cada classe de idade.
A seleção é definida por conselhos, separados, reunindo todos os homens que já foram,
em cada um dos casos, Pahöri'wa e Tébé, bem como suas linhagens, o que inclui vários
graus de parentesco. Quem tem a palavra final são os mais velhos e os escolhidos são os
herdeiros diretos dessas linhagens que estiverem de acordo com o ideal moral e corporal
dos cargos: serem trabalhadores, terem boa oratória, liderança, pureza, respeito em
relação às mulheres (todos os adolescentes devem permanecer virgens até saírem da
casa dos solteiros) e força corporal, manifesta em corpos fortes e grandes. Assim como
a moral, a força e grandeza desses corpos é tão considerada como herdada
substancialmente dos pais quanto depende da performance da pessoa: o longo período
de bater água no rio que antecede a furação de orelha e que atualmente gira em torno de
um mês (durante o qual os adolescentes passam quase o dia todo parcialmente
mergulhados e atirando água para o alto com as mãos juntas, em movimento ritualizado)
serve para fortalecer os corpos e amadurecêlos mais rápido. Aliás, todo banho tem esse
fundamento, pois os A'uw Xavante dizem que ẽ öwahödzé dapredubdzé, “a água fria
amadurece”, e esse “amadurecer” não tem um sentido unidirecional, mas o de ápice da
maturidade, porque os banhos também retardam a velhice. No banho, os adolescentes
passam em si o wedenhõrõtõ, entrecasca de árvore responsável por fazer o cabelo
crescer mais rápido, mais liso e mais preto, como cabelo de gente (a'uwẽ) deve ser. Os
futuros Pahöri'wa e Tébé, sobretudo os primeiros, como observei, costumam tomar
liderança no incentivo às atividades aquáticas, clamando a todos para bater água. Nesse
processo tanto o corpo de cada um quanto o do coletivo é posto em evidência, e a
fraqueza de um, a preguiça, a falta de participação, coloca em jogo a reputação de todo
o corpo da classe de idade. O todo está em todas as suas partes.
Enfim, a escolha dos oficiantes do cargo para cada classe de idade envolve
disputas e arranjos entre diferentes linhagens possuidoras do mesmo cargo, o que varia
conforme a influência política de cada uma na aldeia, o que fora bem notado por
MayburyLewis, percebendo que os chefes de aldeia costumavam conseguir alocar seus
próprios filhos nesses cargos. Segundo o autor, esses cargos ajudam a treinar seus
herdeiros para um dia tomarem a liderança da aldeia ou de parte dela. Isso porque uma
aldeia pode ter mais de um “chefe”, o que hoje em dia, com as relações com o Estado
brasileiro e a Fundação Nacional do Índio, se traduz na presença de um “cacique”, um
“vicecacique” e de pessoas proeminentes que se comportam como chefes, como os
“presidentes” de associação indígena – dando muitos presentes à aldeia, atraindo
recursos de fora através de “projetos”, organizando reuniões entre diversas aldeias.
Recentemente em Sangradouro um conflito a respeito de quem seriam os
Pahöri'wa causou um racha de modo que foram eleitos quatro novos oficiantes, em dois
rituais separados, tendo também a liderança da aldeia rachada em duas, em dois
“caciques”!
Segundo MayburyLewis, o chefe faz as vezes de um mediador entre as “facções
políticas” por ser membro de uma “facção” mais forte. As “facções” não entrariam em
guerra durante a maior parte do tempo, segundo ele, devido a uma situação semelhante
à da relação entre superpotências modernas: uma “facção” forte, como uma
superpotência internacional, tem o poder de fazer guerra contra o resto da comunidade,
ameaça que mantém, de certa forma, a paz. O que nos remete a uma noção muito
corrente hoje nos estudos de relações internacionais, o de “anarquia internacional”
(Waltz 1979): nas relações internacionais não há um corpo soberano, ainda que a parte
mais forte alterne entre uma posição ameaçadora e uma posição de mediadora. Mas a
ameaça da “nação” mais forte é uma ameaça de hegemonia, de risco da supremacia de
um único sobre os demais, o que se aproxima da percepção maussiana de que a esfera
“políticodoméstica”, apesar de sua “anarquia”, pode afetar o surgimento de uma elite
em direção ao Estado através do monopólio dos cargos de chefia.2
Outro dos cargos muito disputados de liderança de uma classe é o de Aihö'ubuni,
que também serve como título ou nome próprio e se traduz por “veado virgem”. Isso
conota o fato de que os escolhidos como Aihö'ubuni são os primeiros a furarem as
orelhas, anos antes da furação dos demais, mas ainda assim devendo continuar virgens3.
A escolha dos Aihö'ubuni segue a mesma lógica dos cargos anteriores, mas com
algumas diferenças: podem ser de ambas as metades exogâmicas e são escolhidos vários
dentro de uma mesma classe de idade. Nesse ponto, há um nítido contraste com dados
mais antigos (confira Giaccaria e Heide 1972: 140), segundo os quais haveriam somente
dois Aihö'ubuni, membros somente do “clã” Poredza'ono. Isso é corroborado pelo que
dizem os próprios A'uw Xavante: teria havido uma mudança histórica. Mudança queẽ
aponta tanto para a intercambialidade das posses de cargos entre as linhagens e “clãs”
quanto para uma forma de dirimir as disputas por cargos, distribuindo o acesso ao poder
para mais pessoas. Ainda assim, tanto o cargo de Aihö'ubuni perde importância quando
são nomeados os Pahöri'wa e Tébé quanto é feita uma distinção entre o “primeiro” e o
“segundo”Aihö'ubuni e os demais oficiantes do cargo, expressa em sua liderança
cotidiana, seu lugar nas filas e sua maior maturidade e tamanho corporais. Em uma das
aldeias onde pesquisei, o primeiro Aihö'ubuni dos adolescentes que acompanhei era
2 Uma discussão que cruze as noções de “facção” e Estado não é novidade para a ciência política, e está na raiz de textos clássicos a respeito do Estado moderno, como O Federalista, de diversos autores, no qual se discute para a constituição da “federação” dos Estados Unidos da América um princípio de fortalecimento da União que dirima as disputas “faccionárias”, sendo essas facções formadas por grupos de interesse locais, interesses condicionados sobretudo pela propriedade, que podem levar tanto ao domínio não democrático de um grupo sobre os demais quanto ao fracionamento “anárquico” de uma federação democrática. Conforme Andrade (2012), o debate dos federalistas sobre facção estaria na base das considerações sobre faccionalismo e propriedade que viriam influenciar de alguma forma a história da antropologia, desde o americanismo de Morgan ao de MayburyLewis.
3 Esta anterioridade talvez encontre referência no mito a'uw xavante do roubo do fogo da onça, no qualẽ o veado é o animal mais veloz e o primeiro a roubar o fogo, passando a brasa quente para a anta, que passa para a capivara, que quase a derruba n'água, sendo a brasa salva pelo colibri (Sereburã et alii 1998).
filho (ĩ'ra uptabi) do vicecacique e o segundo, filho do cacique, de “clãs” opostos, e
ambos estão entre os mais altos, fortes e maduros de sua classe de idade.
Estes cargos de Pahöri'wa, Tébé e Aihö'ubuni são especialmente chamados por
MayburyLewis de “líderes cerimoniais”, que o autor distingue dos ĩdzu, líderes
políticos (MayburyLewis 1971 [1967]: 190204). Dicotomia semelhante à utilizada
posteriormente por Seeger, baseada na diferença feita pelos Suyá entre líderes políticos
(“donos”/“controladores” da “aldeia”, conforme o termo em língua nativa) e líderes
cerimoniais (“donos”/“controladores” das “cerimônias”) (Seeger 1981: 180205). Em
ambos os casos – A'uw Xavante e Suyá – há uma presença da noção deẽ
“dono”/“controlador” (para usar os termos de Seeger): datede'wa para os A'uw ẽ
Xavante e kande para os Suyá. Seeger faz referência à análise de Clastres sobre o poder
ameríndio, conectando sua própria percepção da noção de poder à da noção suyá de
kande.
A raiz do termo datede'wa é tede, que significa “consistência”, “dureza”, e pode
ser usada no sentido de “ter” – por exemplo, waratede é alguém que corre muito, que
“tem corrida”, como os A'uw Xavante traduzem. A partícula ẽ te, somente, é ajetivo
possessivo. De modo que posse e consistência, dureza, parecem conectarse à concepção
A'uw Xavante de poder.ẽ
Isso posto, informações que obtive junto aos A'uw Xavante contrariam aẽ
dicotomia feita por MayburyLewis entre líderes políticos e cerimoniais, conforme a
qual nem todo “líder cerimonial” seria um ĩdzu, mas somente os membros da “facção”
dominante (1971[1967]: 190204). O termo ĩdzu, segundo os A'uw Xavante com quemẽ
conversei, referese à corpulência ligada à idéia de liderança. Disseramme que ĩdzu é
quem tem “corpo grande”, “como o da anta”. Os “líderes cerimoniais” de Maybury
Lewis, como Pahöri'wa e Tébe, são, segundo me foi dito, ĩdzu, assim como outras
pessoas que assumem liderança em situações diversas – por exemplo, os danhohui'wa
em relação aos adolescentes. Dizse dos líderes em geral que eles têm o corpo grande ou
“são grandes”, tsa'et diẽ – termo que referese não só à extensão mas à intensidade
(uma atividade difícil, pesada ou rápida também tsa'et diẽ ). Sobre os animais, é dito que
seu chefe tsa'et diẽ , como me falaram a respeito da chefe das sucuris, em ocasião em
que foi morta numa aldeia uma sucuri não muito grande (sinal de que outras maiores
estariam por perto...). O maior dentre um grupo de animais é tido como chefe, como
presenciei no debate entre algumas crianças que escolhiam quem seria o chefe –
danhimihö'a, palavra traduzida por eles como cacique4 – dentre os bichinhos de plástico
em miniatura que lhes dei de presente: entre búfalo, rinoceronte, leão e girafa,
escolheram a girafa, por ser a mais alta.
Todos esses líderes cerimoniais e padrinhos – isto é, os membros de uma classe
de idade que patrocina uma outra –, bem como o cacique, são chamados de roti'wa,
“conselheiros”. Roti é um termo traduzido como “conselho”, “aconselhar”, “ensinar” e
também “ordem”, “ordenar”, “mandar fazer”. Os ĩdzu também são chamados de
'madö'ö'wa, “vigilantes”, “observadores”, “guardas”, “zeladores”.
Usando termos foucaultianos, dirseia que esses líderes são responsáveis não só
pela vigilância mas, para o caso da relação entre os danhohui'wa e os adolescentes, por
uma quase punição: podem darlhes pancadas com pedaços de pau quando não se
comportam direito. Essas pancadas são no geral únicas e fingidamente fortes, no que os
adolescentes respondem também com uma encenação da dor que deveras sentem e não
sentem. Elas são até mesmo esperadas e queridas pelos garotos que, apesar de algumas
fugas, muitas vezes oferecem o braço ou a perna para recebêlas, incentivando algum
padrinho a baterlhes. Por outro lado, alguns adolescentes chegam a revidar ou a
desafiar os padrinhos para lutas corporais. Há nisso tudo um misto de brincadeira e
seriedade que remete à noção de “jogo” de Huizinga (1980 [1938]). Muitas vezes a
agressão disciplinar é anterior a qualquer ato indisciplinado. Como, por exemplo,
quando um homem no estágio de guarda do Wai'a (ritual iniciático do xamanismo
coletivo a'uw xavante dividido em diversos estágios de passagem – confira Mayburyẽ
Lewis 1971 [1967]) pisa os pés de um puxador de canto, que deve aceitar a agressão sem
fugir ou reagir, adulto que é, justamente por ter assumido um lugar de destaque.
Em contraste com donatários desses títulos que procuravam portarse de maneira
exemplar – ou em contraste com esses momentos exemplares – notei titulares desses
cargos agindo com indisciplina. Seja dizendo para os outros fazerem o que eles não
4 MayburyLewis glosa a palavra a'uw xavante para “cacique” como ẽ hö'a. Palavra que significa, literalmente, “pele branca”. Danhimihö'a, conforme sua etimologia, significa “o hö'a das pessoas”, “o hö'a pertencente às pessoas” wanhimihö'a, por exemplo, significa “nosso hö'a”. Essa transformação do termo tem a ver com o uso corrente, atualmente, da palavra hö'a no sentido de “padre”.
estavam fazendo (trabalhar, bater água), seja portandose preguiçosamente no trabalho,
seja não participando dos cantos etc. Quanto a isso, cabe notar que muitas vezes a
ausência de atuação satisfatória em um requisito era muitas vezes compensada por outro
(outro tipo de trabalho, atuação como bom corredor de toras etc.) e também que, já que
esses títulos são vitalícios (ao contrário do cargo de cacique, que pode ser destituído
pela comunidade), alguns tendem a se acomodar e a não agir de acordo. Nesse sentido, a
indisciplina do líder pode tornálo alguém que não faz o que os outros fazem por ele,
aproximandoo de uma condição de descolamento do coletivo. Contudo, líderes mal
comportados tendem a perder prestígio e a serem marginalizados. Observei que um
importante Aihö'ubuni, que comportavase dessa maneira na água previamente à furação
de orelha, ocupava o último lugar da fila dos demais líderes, entre eles e os comuns
(mas ainda assim, antes dos Aihö'ubuni terciários).
Aqueles que não dançam são chamados de teirów 'õẽ – algo como “que não
querem o estar bem”, e que me traduziram como “que não gostam de festa”, estraga
prazeres. Sobre a obrigação de dançar, o cacique de uma das aldeias uma vez disse em
português: “é como na escola, tem falta, presença, as pessoas têm de cumprir”. Mas não
há fichários, planilhas, anotações, só a cobrança coletiva. E a a corporação corporal
inteira é cobrada. A classe dos Hötorã, padrinhos dos t pá Ẽ ẽ (atuais danhohui'wa),
questionava a ausência destes nos cantos antes das reuniões madrugais chamandoos de
padi – “tamanduás”, porque “tamanduá dorme muito”. Já a “corujinha vermelha”
(prorotóprére), disseramme, não dorme e mantém os olhos bem abertos “porque canta
a noite inteira”. Quem tem o canto vigiado deve cantar para ser também um vigilante.
Máquina orgânica
Qualquer presunção de mecanicismo que poderia advir do vocabulário maquinal
de MayburyLewis sobre a “engrenagem” das classes de idade deve ser evitada, em
referência a este modo de vida em que os corpos se afetam e se contagiam de maneira
tão caótica e ao mesmo tempo tão ordeira. Se o sistema de classes de idade não é uma
máquina isolada, mas depende de sua relação com outras relações, sobretudo com as
relações de parentesco, devese recuperar aqui algumas dessas relações.
Como sugerido, uma ferramenta teórica interessante para considerar a política
dessa maquinaria corporal pode ser encontrada nos textos de Mauss sobre o que
chamava de “coesão social”: “A Coesão Social nas Sociedades Polissegmentares” e
“Fragmentos de um Plano de Sociologia Descritiva”, publicados em 1931 e 1934
respectivamente (Mauss 1981). Neles são apresentadas considerações originais sobre a
importância das técnicas corporais para a “coesão social” no arranjo de “subgrupos” e
“esferas” “animadas de movimentos respectivos e solidários entre si, sem a necessidade
de “atos de autoridade abusiva” de tipo estatal, numa disciplina que mistura “coação” e
“espontaneidade” no ritmo da música e do rito (tomando “ritus” como “ordem”),
repartindo a “autoridade”.
Mauss trata a questão do que chama de “subgrupos” como compondo um tipo de
solidariedade “orgânica” que não é fruto de contratos entre “indivíduos”, vai além da
adesão “mecânica” de “indivíduos” à “sociedade” ou a “grupos”. Liga “subgrupos entre
si e não apenas indivíduos entre si” e “organizaos por meio de alianças”, “influências”
e “serviços”, “mais do que pela presença da autoridade suprema do Estado” (Mauss
1981: 105).
O primeiro ponto de seu argumento trata da “natureza políticodoméstica” da
coesão, superando a dicotomia público/privado a respeito do lugar de aparição do poder,
ao apontar para o estatuto doméstico, familiar, clânico, da transferência de cargos e
poder, que pode tender à formação de uma elite, um indício de uma ordem estatal,
“oposta à consciência difusa da opinião pública e da ação coletiva”. Fala a seguir de
“arranjos” de formações “secundárias” que operam “de outra maneira que não a da
descendência e da aliança”, que “compensam esta anarquia das pequenas comunidades
políticodomésticas e que [...] organizam a sociedade por outros meios”, órgãos “quase
soberanos” “animad[o]s de movimentos respectivos e solidários entre si” (Mauss 1981:
05106). Alguns dos exemplos dados por Mauss referemse às “sociedades dos
homens”, à divisão “por idades” e “gerações” e às classes de idade.
Vêse a aliança sociopolítica englobando o parentesco, bem como essas alianças
“organizandose” (no sentido discretamente sui generis que Mauss dá à “organização”)
em algum ponto além da “anarquia das pequenas comunidades políticodomésticas” e
aquém da “autoridade suprema” estatal.
As classes de idade a'uw xavantes não devem ser consideradas, contudo,ẽ
corpos coletivos equalizados, sem suas próprias hierarquias internas. Alguns dos
elementos mais marcantes do parentesco enquanto política – ou da “esfera político
doméstica”, para usar a formulação de Mauss (1981) – são adquiridos através da
passagem pela Casa dos Adolescentes: Pahöri'wa, Tébe e Aihö'ubuni. Correntes de
ligação política entre a máquina orgânica do paraparentesco e o parentesco.
Em se tratando da hierarquia entre as metades agâmicas, ordenadas num circuito
de reciprocidade (incluindo suas formas agonísticas) entre oito classes de metades
alternas, constituemse “assimetrias recíprocas” (LéviStrauss 1944) num circuito
alongado. Tais assimetrias se manifestam nas relações entre hierarquias ternárias de
classes atuantes ritualmente, mas pendulando entre duas metades, maneira centro
brasileira de lidar com a relação entre concentrismo e diametralismo (confira Lévi
Strauss 1975 [1958]), alternando e invertendo hierarquias. Ecos dessas inversões foram
apresentados a respeito das metades exogâmicas – Po'redza'ono como “conteúdo” do
“continente” Öwawẽ, porém donos de cargos ligeiramente mais importantes, e não
puderam ser tratados extensivamente aqui como alhures (Falleiros 2005, 2011, 2012).
Entre o caos e a ordem
A linhagem a'uw xavante como corpo coletivo do enredamento de corpos queẽ
participamse entre si, e sua relação com a chefia, também aponta para a noção de
pessoa magnificada tratada por Renato Sztutman (2005, 2006a). Sztutman percebe os
líderes como pessoas magnificadas, capazes de “atrair seguidores”, concentrar relações,
fazer com que outros façam. Entidades ligadas à “guerra”, o que é tão contra a coesão
quanto contraestatal, impedindo a “emergência de um poder separado”, também pode
fazer “brotar esse poder separado, por exemplo, [n]a formação de uma elite de
guerreiros” (Sztutman 2006b: 2).
Creio que também as classes de idade, como corporações corporais de atuação
técnica e política, podem ser compreendidas como pessoas estendidas, senão como
pessoas magnificadas. Mas sua magnificação e sua hierarquia são cíclicas e sua relação
com o parentesco é marcada, de tal maneira que não emergem enquanto poder separado.
Se a guerra acenaria para o perigo de uma elite, ela também constituiria
múltiplos pólos impedindo a criação de uma unidade de “formaEstado” (Sztutman
2009a: 19). Neste sentido, Mauss trata não só da guerra como da paz, apontando nos
“subgrupos” a multiplicação dos pólos e centros, “mais de um regime político, mais de
uma organização do poder” (1981: 110). Condições da possibilidade coletiva de
diferenciarse internamente sem se cindir, num “arranjo” de forças em movimento,
inibindo poderes estáveis. São vigilantes que vigiam vigilantes. Vigilância que se
manifesta num elemento de inversão hierárquica presente nas relações de gênero,
levando às mulheres e à periferia da aldeia uma potência de controle e predação sobre os
homens que estão no centro.
Quanto a isto um aparte de gênero: As mulheres não são confinadas na casa dos
solteiros, não passam por iniciações de classe e participam pouco dos rituais das classes,
ainda que tenham condição distinta em diversos deles. Por exemplo, nas danças
circulares mais comuns no pátio da aldeia, uma mulher que entra na roda está flertando
com um dos homens que toma pela mão, o que é ao mesmo tempo um gesto de
predação: dizse que a mulher atrapalha o dançarino e este fica lhe devendo alguma
prenda, comida ou mesmo objetos industrializados. Esse tipo de predação é feito contra
membros de classes de idade adversárias. Outro gesto de ataque feminino acontece
sobre os vencedores de uma corrida de tora: as mulheres da metade agâmica perdedora
que forem cunhadas dos vencedores sujamnos com farinha de surpresa, enquanto eles
fazem a dança da vitória, vingando seus colegas de classe masculinos. Todavia, as
mulheres também executam, em classes de idade, suas próprias corridas de tora. No
geral, sobretudo em relação aos ritos das classes de idade, dizse que “as mulheres estão
sempre de olho”. Na periferia da aldeia, lugar da inversão do panóptico, vigiam aqueles
que atuam no centro, cuidando não só da dança mas também da conduta pessoal e
corporal dos dançarinos. No cotidiano, é freqüente as provocações que mandam para os
membros masculinos de classes adversárias, chamandoos de preguiçosos e
namoradores, pouco dedicados ao trabalho ritual.
Enfim, as classes de idade são coletivos corporais de uma máquina orgânica que
visa a pacificação justamente porque constituemse como corpos coletivos de
guerreiros, tendo no jogo (o agonismo dos cantos rituais, das corridas e mesmo nos
jogos de futebol) como figura da guerra – guerra atenuada (LéviStrauss 1976 [1962];
Vianna 2001, 2008). Pacificar pela guerra é uma recorrência na fala e nos modos a'uw ẽ
xavante. Entretanto, a pacificação também se faz através de uma disciplina ordenadora,
unificadora, presente na constituição do corpo coletivo do grupo – tendência que
esbarra, contudo, no dualismo, tanto das metades agâmicas e até mesmo na discrepância
entre “Ocidentais” e “Orientais”. As classes são corpos coletivos que se relacionam
entre si através de uma hierarquia móvel, circular. A capacidade desta máquina de aliar,
concentrar pessoas e de magnificarse: de “federar” aldeias em torno de corridas de tora,
é contrabalanceada pelo agonismo constitutivo de sua própria engrenagem.
Além do que, como máquina de “disciplina litúrgica e corporal” (Sztutman
2006b: 3) sua ordenação coexiste com a indisciplina. Ou, conforme diria Mauss, “com
tipos opostos de disciplina” (1981: 110), já que as classes de idade, o parentesco e
mesmo outras ordens rituais, entrecruzamse nos mesmos corpos e nas pessoas
singulares, compondo corpos e almas a partir de eixos e solidariedades diversas.
*
“Em vez de conceber a chefia ameríndia apenas como posição política vazia”,
como o faria Pierre Clastres, Sztutman propõe “pensar como certas pessoas se tornam
chefes, líderes políticos e o que significa isso” (2009a: 20). Nesse sentido, a constituição
da pessoa coletiva a'uw xavante aponta não só para a guerra e para o parentesco masẽ
também para a paz e para uma ordem de alianças além do parentesco. Elementos que
constituem tanto a pessoa singular do chefe atrelado à linhagem, à “facção”, mas
também à classe de idade, quanto a pessoa coletiva desta corporação corporal agâmica,
com seu poder parcelado entre seus cargos de liderança.
Há aí um movimento pendular entre a a guerra e a paz, a disciplina e a
indisciplina, a anarquia e o Estado, nunca plenamente estabelecidos, conforme a
reconsideração da política ameríndia como situada entre o “contra Estado” e a “forma
Estado”, dois “vetores capazes de serem ativados a todo o momento” (Sztutman 2009a:
1516). Apresentase aí um “dualismo em perpétuo desequilíbrio” entre o poder e o
contrapoder, “jogo entre possibilidades antitéticas”, “[não] do isso ou aquilo, mas [...]
do isso e aquilo”, “no bojo do movimento contínuo de concentração e dispersão que
caracteriza a sociopolítica indígena” (PerroneMoisés 2006: 89), retomando a tese lévi
straussiana do dualismo em perpétuo desequilíbrio (PerroneMoisés e Sztutman 2009).
Nesse sentido, tanto o parentesco quanto o alémparentesco contém vetores da “forma
Estado” e do “contra Estado”.
*
Nesta análise não há uma identificação unívoca entre indisciplina, “anarquia” e
“caos”, ou entre disciplina e “Estado” e “ordem”. Apontase para o arranjo desses
processos que se misturam e se confundem em sua relação tanto positiva quanto
negativa com o poder cosmopolítico. Disciplina é, enfim, técnica do corpo. As técnicas
do corpo, os hábitos e os saberes sobre o fazer oscilam, como argumentei alhures
(Falleiros 2011), entre a captura do estrangeiro e o aprendizado do antepassado. Oscilam
entre a manutenção ritual que é sempre uma apreensão do passado a partir das
vicissitudes do presente e a inovação ritual a partir do outro que é justamente o que os
antepassados faziam. Variam entre os momentos de maior intensidade e os de maior
preguiça, os de maior entrega no pátio da aldeia e os de maior fuga nas expedições da
mata, ou viceversa. É um processo constante de busca, apreensão e distribuição, entre o
retorno e o desvio, dois pólos de um virar sempre instável, em movimento. Se não são
disciplinas unitárias, então, tampouco são disciplinas solitárias: elas demandam a
participação de outras disciplinas, a participação de diversas pessoas, a participação
coletiva e nos coletivos, a constituição da pessoa a partir da participação, nela, de
outras.
***
ANDRADE, André Drago
2012. Formas políticas ameríndias – etnologia jê. Programa de PósGraduação em
Antropologia Social, Universidade de São Paulo, São Paulo. Mestrado (dissertação).151p.
FALLEIROS, Guilherme Lavinas Jardim
2005. A dádiva e o círculo – um ensaio sobre reciprocidade a’uw xavanteẽ . Programa
de PósGraduação em Antropologia Social, Universidade de São Paulo, São Paulo. Mestrado
(dissertação). 136p.
2010. “Casas, corpos, nomes e outras dádivas – hipóteses sobre reciprocidade e tradição
a’uw xavante” in AMADO, Roseane de Sá (org.), ẽ Estudos em línguas e culturas MacroJê.
São Paulo. Paulistana. 243p.
2011. Datsi'a'uw dzé – Vir a ser e não ser gente no Brasil Central. ẽ Programa de Pós
Graduação em Antropologia Social, Universidade de São Paulo, São Paulo. Doutorado (tese).
398p.
2012. “Notas de mitohistória política a'uw xavante” Grupo de Trabalhoẽ Repensando
a política da América indígena: liderança, contraEstado, respostas às formas modernas, 28a.
RBA, PUCSP, São Paulo, Julho de 1012.
GIACCARIA, Bartolomeu e HEIDE, Adalberto
1972. Xavante – Auw Uptabi: Povo Autêntico. ẽ São Paulo. Editorial Dom Bosco.
HUIZINGA, Johan
1980 [1938]. Homo ludens. São Paulo. Perspectiva.
LÉVISTRAUSS, Claude
1944. “Reciprocity and Hierarchy”, American Anthropologist. New Series. American
Anthropological Association. 46, n. 2, part 1. 266268.
1975 [1958]. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro. Tempo Brasileiro. 456p.
1976 [1962]. O pensamento selvagem. São Paulo. Companhia Ed. Nacional.
1991. História de Lince. São Paulo. Companhia das Letras.
LOPES DA SILVA, Aracy
1986 [1980]. Nomes e Amigos: da prática Xavante a uma reflexão sobre os Jê, São
Paulo. FFLCH/USP. 313p.
MAUSS, Marcel
1981, Ensaios de Sociologia. Editora Perspectiva. São Paulo. 496p.
MAYBURYLEWIS, David
1971 [1967]. Akw Shavante Society.ẽ New York / London. Oxford Univesity Press.
1984 [1967]. A Sociedade Xavante. Rio de Janeiro. Francisco Alves Editora. 400p.
MAYBURYLEWIS, David e ALMAGOR, Uri
1979. Dialectical societies: the Gê and Bororo of Central Brazil. Cambridge. Harvard
University Press. 340 p.
PERRONEMOISÉS, Beatriz
2006. “Notas sobre uma certa confederação guianense”. Colóquio Guiana
Ameríndia, História e Etnologia. Belém. NHIIUSP/EREACNRS/MPEG. Outubro/
Novembro.
PERRONEMOISÉS, P., SZTUTMAN R.,
2009. “Dualismo em perpétuo desequilíbrio feito política: desafios ameríndios”.
XXXIIEncontro Anual ANPOCS. Caxambu.
POLO MÜLLER, Regina
1976. A Pintura do Corpo e os ornamentos Xavante: Arte Visual e Comunicação
Social. Dissertação (mestrado). Antropologia Social. UNICAMP
RADCLIFFEBROWN, A. R.
1952, Structure and Function in Primitive Society Essays and Addresses.
London. Cohen and West.
SEEGER, Anthony
1980. Os Índios e Nós, Editora Campus, Rio de Janeiro.
1981. Nature and Society in Central Brazil, Harvard University Press,
Cambridge.
SEREBURÃ, HIPRU, RUPAWE, SEREZABDI, SEREÑIMIRÃMI
1998. Wamreme Za’raNossa palavra: mito e história do povo Xavante, Senac,
São Paulo. 179p.
SZTUTMAN, Renato
2005. O profeta e o principal: a ação política ameríndia e seus personagens. (Tese de
doutorado). Programa de PósGraduação em Antropologia Social. Universidade de São Paulo.
2006a. "De nomes e marcas: sobre a grandeza do guerreiro selvagem". In XXX Reunião
da ANPOCS. Caxambu. p. 127.
2006b, “Cartografias xamânicas nas Guianas”, Colóquio Guiana Ameríndia
História e Etnologia, Belém. NHIIUSP/EREACNRS/MPEG.
2009a, “De caraíbas e morubixabas: A ação política ameríndia e seus
personagens”, Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGASUFSCar, v.1, n.1.
São Carlos.
2009b, “Religião nômade o germe do Estado? Pierre e Hélène Clastres e a
vertigem tupi”, Novos Estudos CEBRAP, n. 83. São Paulo.
VIANNA, Fernando
2001. A bola, os “brancos” e as toras: futebol para índios xavantes. Programa de Pós
Graduação em Antropologia Social, Universidade de São Paulo, São Paulo. Dissertação
(mestrado). 254p.
2008. Boleiros do cerrado – índios xavantes e o futebol. São Paulo. Annablume.
336 p.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo
2002. A Inconstância da Alma Selvagem. São Paulo. Cosac & Naify. 551 p.
WALTZ, Kenneth N.
Top Related