Universidade Federal do Rio de Janeiro
Centro de Ciências da Saúde
Instituto de Estudos em Saúde Coletiva
Mestrado em Saúde Coletiva
Ciranda da Saúde: um estudo de caso sobre
Educação em Saúde na Vila Olímpica da Maré
Mestrando: João Vinícius dos Santos Dias
Orientadora: Jaqueline Ferreira
Rio de Janeiro
Outubro / 2012
Ciranda da Saúde: um estudo de caso sobre
Educação em Saúde na Vila Olímpica da Maré
Dissertação de mestrado apresentada por João Vinícius
dos Santos Dias ao Programa de Mestrado em Saúde
Coletiva do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob a
orientação da Professora Doutora Jaqueline Ferreira,
como requisito à obtenção do título de Mestre em
Saúde Coletiva.
Rio de Janeiro
Outubro / 2012
Ficha catalográfica
D541 Dias, João Vinícius dos Santos.
Ciranda da saúde: um estudo de caso sobre educação em
saúde na Vila Olímpica da Maré / João Vinícius dos Santos
Dias. – Rio de Janeiro: UFRJ/ Instituto de Estudos em Saúde
Coletiva, 2012.
127 f.; 30cm.
Orientador: Jaqueline Terezinha Ferreira.
Dissertação (Mestrado) - UFRJ/Instituto de Estudos em
Saúde Coletiva, 2012.
Referências: f. 114-118.
1. Educação em saúde. 2. Antropologia cultural. 3. Áreas de
pobreza. I. Ferreira, Jaqueline Terezinha. II. Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva. III.
Título.
CDD 362.1
JOÃO VINÍCIUS DOS SANTOS DIAS
CIRANDA DA SAÚDE: UM ESTUDO DE CASO SOBRE EDUCAÇÃO EM SAÚDE
NA VILA OLÍMPICA DA MARÉ.
Dissertação de mestrado apresentada por João Vinícius
dos Santos Dias ao Programa de Mestrado em Saúde
Coletiva Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob a
orientação da Professora Jaqueline Ferreira, como
requisito à obtenção do título de Mestre em Saúde
Coletiva.
Aprovada em 31/10/12
Orientadora:
________________________________________
Profª Dr.ª Jaqueline Ferreira (IESC / UFRJ)
Banca Examinadora:
________________________________________
Profª Dr.ª Claudia Turra Magni (UFPEL)
________________________________________
Profª Dr.ª Regina Simões Barbosa (IESC / UFRJ)
________________________________________
Profª Dr.ª Neide Emy Kurokawa e Silva (IESC / UFRJ)
Avaliadores Suplentes:
________________________________________
Profª Dr.ª Elaine Reis Brandão (IESC / UFRJ)
________________________________________
Profª Dr.ª Cristiane Cabral (IMS / UERJ)
Dedico este trabalho a todos aqueles que cotidianamente
produzem saber e vida com alegria e criatividade.
AGRADECIMENTOS
Aos profissionais e frequentadores da Vila Olímpica da Maré, em especial aos que
passaram pela equipe de saúde por todo o apoio para a realização desta pesquisa.
A professora Jaqueline Ferreira pela dedicação e paciência durante os anos de
orientação.
Ao IESC e ao seu corpo de alunos, funcionários e professores por todo o suporte ao
longo dos anos.
Aos colegas do mestrado por todo o crescimento partilhado.
Aos companheiros de militância que lutam cotidianamente por uma saúde pública digna
e para todos.
A minha família pelo constante carinho.
RESUMO
CIRANDA DA SAÚDE: UM ESTUDO DE CASO SOBRE EDUCAÇÃO EM SAÚDE
NA VILA OLÍMPICA DA MARÉ.
O presente trabalho busca discutir a possibilidade de construção de uma perspectiva de
Educação em Saúde dialógica e popular, que tome como ponto de partida o indivíduo e
sua realidade. A partir da etnografia do “Ciranda da Saúde”, um grupo de Educação em
Saúde realizado na Vila Olímpica existente no Complexo da Maré no Rio de Janeiro, são
discutidos diferentes elementos da construção de uma proposta educativa em saúde em
um contexto popular, como as relações entre educação e comunicação e o atual processo
de precarização do trabalho em saúde. Para contextualizar a discussão é realizado um
breve resgate histórico da consolidação da pobreza urbana no Brasil e de suas relações
com a construção do campo da Educação em Saúde no país. Busca-se ainda discutir a
possibilidade de utilização de referenciais das Ciências Sociais, em particular da
Antropologia, na construção de uma postura dialógica e atenta às diferentes
representações de saúde e de mundo envolvidas no processo educativo.
Palavras-chave: Educação em Saúde, Etnografia, Pobreza Urbana.
ABSTRACT
CIRANDA DA SAÚDE: A CASE STUDY ON EDUCATION IN HEALTH.
This paper discusses the possibility of building a prospect of Health Education and
dialogical popular, which takes as its starting point the individual and their reality. From
the ethnography of "Ciranda Health", a group of Health Education, held in the Olympic
Village located in the Complexo da Maré in Rio de Janeiro, are discussed different
elements of the construction of a proposed health education in a popular context, as
relationship between education and communication and the current process of precarious
work in health. To contextualize the discussion is conducted a brief historical
consolidation of urban poverty in Brazil and its relations with the construction of the field
of Health Education in the country. The investigation is still discussing the possibility of
using benchmarks of Social Sciences, in particular anthropology, in the construction of a
dialogical approach and attentive to different representations of health and world
involved in the educational process.
Keywords: Health Education, Ethnography, Urban Poverty.
SUMÁRIO
1- INTRODUÇÃO 12
Da revisão bibliográfica à etnografia: a construção de uma abordagem socioantropológica 13
Definindo o objeto da pesquisa 13
A estrutura do trabalho 15
2 – DISCURSOS, REPRESENTAÇÕES E INTERVENÇÕES EDUCATIVAS SOBRE A
POBREZA. 18
As intervenções sobre a pobreza no plano mundial 19
Os primórdios das intervenções sanitárias sobre a pobreza 21
As intervenções históricas sobre a pobreza no Brasil 24
Do cortiço à favela: a construção da marginalidade 25
A invenção das favelas 27
As intervenções na saúde 30
A Revolta da Vacina 32
O campo da Educação em Saúde no Brasil 33
A valorização do saber popular: a perspectiva de Paulo Freire 39
3 – ASPECTOS METODOLÓGICOS 43
A implicação na pesquisa 43
Estabelecendo o desenho metodológico da pesquisa 45
Aspectos éticos da pesquisa em Ciências Sociais 47
Procedimento de análise 50
O Retorno dos Dados 50
4 – VILA OLÍMPICA DA MARÉ: UMA ETNOGRAFIA 51
O campo da pesquisa: O Complexo da Maré 51
A população 54
Chegando na Maré 56
A Vila Olímpica 57
Iniciando a observação na VOM 62
As Ações de Educação em Saúde na VOM 65
5 - CIRANDA DA SAÚDE: UMA EXPERIÊNCIA DE EDUCAÇÃO EM SAÚDE NA
VILA OLÍMPICA DA MARÉ 69
Algumas histórias 74
Os atores: a perspectiva dos profissionais 77
Os atores: a perspectiva dos usuários 82
O fim do “Ciranda da Saúde” 89
A precarização do trabalho em saúde 92
6 – CONSIDERAÇÕES FINAIS 98
Em busca de novas propostas para a Educação em Saúde 98
Dialogando com o saber do outro: contribuições da Antropologia 99
Educação em Saúde em contextos de pobreza e exclusão: caminhos possíveis. 104
Rumo à um modelo dialógico 107
Reflexões a partir do “Ciranda da Saúde” 110
7- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 114
ANEXO I - Termo de Consentimento para os participantes da pesquisa 119
ANEXO II – Roteiro de entrevista com os profissionais do Ciranda da Saúde 121
ANEXO III – Roteiros de Entrevista com os participantes do Ciranda da Saúde 123
ANEXO IV: Exemplo de metodologia usada no grupo Ciranda da Saúde 125
ANEXO V – Cronograma 127
12
1-INTRODUÇÃO
Este texto é fruto de uma investigação que já data de alguns anos, iniciada quando
eu cursava a Residência Multiprofissional em Saúde Coletiva no IESC / UFRJ e surgida
da demanda de uma monografia para a conclusão do referido curso.
A escolha do tema, formulado inicialmente como “Educação em Saúde em
contextos populares”, decorreu de um antigo interesse sobre os processos de Educação
Popular surgido ao longo de experiências em estágios de vivência nos quais tive a
oportunidade de entrar em contato com diferentes realidades e representações sobre
saúde. Daí veio o desejo de realizar uma investigação sobre a aplicabilidade e os
consequentes limites e possibilidades da Educação Popular em um contexto urbano,
multifacetado e marcadamente desigual, como o da cidade do Rio de Janeiro, o que me
motivou a buscar algum lugar que sintetizasse estas características como campo de
estudo.
Nesse contexto, a Vila Olímpica da Maré (VOM) se desenhou quase que
naturalmente como campo de investigação, tanto pela proximidade geográfica com o
campus da UFRJ, o que facilitava o acesso à região, quanto pelo o fato da minha
orientadora ter trabalhado como médica nesta instituição e conhecer os profissionais de
lá, dentre eles a nutricionista, que na época era responsável por um projeto de
complementação alimentar lá existente, e logo depois viria a assumir a coordenação da
área da saúde da VOM. A princípio a ideia de minha ida era desenvolver algum trabalho
junto ao projeto de complementação alimentar que pudesse ser sistematizado
posteriormente na forma de um trabalho de conclusão de curso para a Residência.
Assim, comecei a frequentar regularmente a VOM no primeiro semestre de 2010
por meio de uma parceria estabelecida entre a instituição e o IESC. A partir disso pactuei
com a coordenação da equipe de saúde os dias e horários que frequentaria as atividades
da Vila, principalmente às ligadas à saúde e a complementação alimentar: estabeleci que
cumpriria três turnos semanais de quatro horas cada. No segundo ano reduzi esse período
e passei a acompanhar atividades pontuais, conforme detalharei ao longo do texto.
Continuei acompanhando as atividades da VOM dessa forma até o fim do meu período de
observação em abril de 2012, período em que as atividades de saúde na instituição foram
interrompidas.
13
Da revisão bibliográfica à etnografia: a construção de uma abordagem
socioantropológica
O primeiro momento da investigação, ocorrido durante a Residência, foi
inicialmente pensado como uma pesquisa quali-quantitativa sobre as práticas de
Educação em Saúde na VOM. No entanto, devido à amplitude do campo e a escassez do
tempo, foi necessário readequar esta opção metodológica. Optamos então por fazer
durante a Residência, um trabalho de revisão bibliográfica não sistemática de uma
literatura internacional e nacional para analisar as principais transformações nas
intervenções educativas em saúde. Esta opção se revelou interessante, pois possibilitou
uma ampliação dos referenciais sobre o processo de construção do campo da Educação
em Saúde no Brasil e sua relação com os contextos populares. Para tanto, foquei os
processos de consolidação da pobreza urbana passando rapidamente pelo nível mundial
até chegar à realidade brasileira, mais especificamente à cidade do Rio de Janeiro e ao
surgimento das favelas.
Terminada a Residência e defendida a monografia, o desejo de continuar a
pesquisa foi fundamental para que eu escolhesse o mestrado acadêmico como
possibilidade de aprofundar as questões levantadas na Residência, principalmente no que
se refere à análise dos dados observados na VOM. Dessa forma a inclusão das
observações da minha participação nas atividades da VOM, as quais eu já vinha
registrando em diário de campo desde o período da Residência, foram sistematizadas e
organizadas com novas observações de forma a comporem uma etnografia. A partir disso
foi definido um novo objeto de pesquisa que abrangesse os elementos da observação na
VOM, mas que dialogasse com os dados já levantados na investigação anterior.
Definindo o objeto da pesquisa
Após um período de inserção, adaptação e mapeamento na VOM que durou
aproximadamente três meses, o espaço dos grupos educativos em saúde, que nessa
mesma época se consolidaram como atividades regulares da equipe de saúde da
instituição, foi definido como objeto de investigação. Cabe ressaltar que estes grupos
tinham como forte característica a heterogeneidade dos participantes onde a assiduidade e
a frequência de participação, em boa parte das atividades, não eram regulares. Assim,
optou-se como objeto prioritário de investigação o grupo chamado “Ciranda da Saúde”.
14
A escolha do “Ciranda da Saúde” se deu pelo caráter diferenciado deste grupo, o
qual buscava se aproximar mais claramente de uma proposta dialógica de Educação em
Saúde através da utilização dos referenciais da Educação Popular, o que se refletia na
própria dinâmica do grupo que, como veremos à frente, tinha características peculiares.
Outros fatores que levaram à observação deste grupo foram a maior regularidade na
frequência de seus participantes e o fato de ele ser composto exclusivamente por adultos,
o que foi identificado como um facilitador da pesquisa, principalmente em seus aspectos
éticos. Ainda o fato de eu ter acompanhando o grupo desde os seus primeiros encontros
também foi importante para sua escolha como objeto. A partir da definição do “Ciranda
da Saúde” como objeto de pesquisa passei a realizar a observação na VOM somente nos
dias e horários em que o grupo ocorria e pude definir com mais clareza os objetivos da
investigação.
Desta forma o objetivo principal da pesquisa foi definido como analisar como
ocorrem os processos de Educação em Saúde pautados em uma perspectiva dialógica e
popular na Vila Olímpica da Maré a partir da observação do grupo Ciranda da Saúde.
Algumas outras questões decorrentes deste objetivo principal surgiram ao longo
da pesquisa, dentre elas: analisar como ocorrem as trocas entre o saber técnico e o
popular no que se referem às concepções de saúde; investigar qual a concepção de
Educação em Saúde dos profissionais de saúde que conduzem o grupo “Ciranda da
Saúde”; analisar como é percebido e trabalhado o contexto de vulnerabilidade social da
Maré pelos profissionais e frequentadores da instituição e, por fim, conhecer como os
participantes do grupo apreendem os temas e conteúdos discutidos.
Com a definição deste objetivo, foi feita a opção por complementar os dados da
observação com entrevistas que seriam realizadas com os profissionais e participantes
que frequentavam o Ciranda da Saúde. Cumpre ressaltar que parte dessas opções teve que
ser redefinida ao longo da pesquisa devido às transformações do campo ocorridas durante
a observação. Estas transformações trouxeram desafios em termos de demandar
redefinições teóricas e metodológicas no decorrer da pesquisa, mas também conferiram
uma nova dinâmica ao texto, tornando-o um relato vivo do desenvolvimento de uma
pesquisa acadêmica em Ciências Sociais com todas suas “dores e delícias”, dificuldades e
possibilidades. Apresentar os resultados dessa investigação, assim como o percurso
realizado para chegar até eles, é o objetivo deste texto.
15
Cabe ressaltar ainda que meu interesse pela perspectiva dialógica deve-se às
minhas leituras e vivências como residente em Saúde Coletiva e militante de movimentos
sociais. Assim, cabia agora analisar empiricamente como esta proposta era ou não
viabilizada na prática. Evidentemente, a perspectiva de uma Educação em Saúde
dialógica me é particularmente atrativa e assim tive que exercitar constantemente um
olhar distanciado do objeto e a distinção de minha identidade enquanto pesquisador e
profissional de saúde. Nesse sentido a ida para a Vila Olímpica da Maré (VOM) se
revelou uma rica experiência onde pude atuar em conjunto com os demais profissionais
da instituição na construção de um trabalho que muitas vezes acabou se aproximando de
uma proposta de pesquisa-ação, ainda que este não tenha sido o modelo de pesquisa
adotado nesta investigação. Esta atuação na VOM foi decisiva no sentido de influenciar a
direção desta pesquisa e a redação deste texto o que, ao nosso ver, o deixa mais rico e
mais próximo da realidade, já que cada linha está permeada pelas vivências lá ocorridas.
A estrutura do trabalho
Para efeito de organização o texto a seguir está dividido da seguinte forma:
Em um primeiro momento são resgatadas, por meio de uma breve análise sócio-
histórica, algumas das representações e intervenções educativas sobre a pobreza. Para
tanto, há uma breve discussão sobre a pobreza e suas representações a nível mundial,
passando pela realidade brasileira do século XIX com a consolidação do modelo
capitalista e o início do processo de urbanização do país, até chegarmos à cidade do Rio
de Janeiro do início do século XX. Nesse período se concretiza de forma mais evidente e
dramática os conflitos advindos do processo de expansão e consolidação do capitalismo
no Brasil, por meio da urbanização empreendida no Rio de Janeiro por Pereira Passos.
Dá-se então o início do processo de favelização, como uma das consequências mais
radicais do conflito de classes na cidade e no país. Ainda neste capítulo, são abordados os
processos de Educação em Saúde no Brasil e sua relação com as camadas populares,
também partindo como ponto de referência do período de adesão do país a ordem
capitalista. São discutidos ainda o processo de higienização das cidades e as
transformações nas concepções de Educação em Saúde ocorridas nas décadas seguintes,
até chegarmos às atuais propostas pautadas no diálogo entre diferentes saberes e na
valorização do saber popular.
16
O capítulo seguinte é voltado para os aspectos metodológicos da pesquisa
apresentando os desenhos de investigação escolhidos e a forma como eles foram
implementados na prática, assim como os procedimentos empregados na análise e na
devolução dos dados. Neste capítulo são também levantadas algumas questões da
pesquisa em Ciências Sociais como, por exemplo, a questão da implicação do
pesquisador que é discutida a partir da problematização do ideal de neutralidade na
pesquisa antropológica, já que esta ocorre em contextos, invariavelmente, influenciados
por conjunturas sócio-históricas complexas e atravessadas por dimensões políticas,
ideológicas, econômicas, etc; Também alguns dos aspectos éticos da pesquisa em
Ciências Sociais são debatidos como, por exemplo, a questão da influência do referencial
biomédico na pesquisa social e as particularidades do uso do termo de consentimento
esclarecido (TCLE) neste tipo de investigação.
Já no quarto capítulo nos detemos na descrição mais detalhada sobre o campo de
pesquisa. Neste capítulo há informações e impressões sobre a Maré e sua população e
também sobre a Vila Olímpica e seus frequentadores. Há ainda a apresentação de alguns
dos dados colhidos a partir do método etnográfico na instituição, com ênfase na descrição
das atividades de Educação em Saúde lá desenvolvidas. Busca-se aqui contextualizar as
discussões posteriores através do relato vivo do campo e de seus atores.
No capítulo cinco há a apresentação da etnografia sobre o grupo de Educação em
Saúde “Ciranda da Saúde”. São apresentadas as principais características do grupo por
meio do resgate e descrição de um de seus encontros. Também são apresentadas as
perspectivas de profissionais e usuários em relação ao grupo, através das informações
colhidas por meio da observação e das entrevistas realizadas com alguns desses atores.
Neste capítulo é também discutido o processo contemporâneo de precarização do
trabalho e alguns de seus impactos sobre as atuais propostas de Educação em Saúde.
Por fim, no último capítulo é discutida a possibilidade de transformação de um
modelo de Educação em Saúde “clássico”, marcadamente informacional e prescritivo,
para um modelo pautado em uma perspectiva popular. São também levantadas algumas
possibilidades e desafios contemporâneos da Educação Popular em saúde. Ainda neste
momento há uma discussão sobre a possibilidade de utilização de metodologias da
Antropologia, em particular a etnografia, na construção de uma perspectiva de Educação
em Saúde dialógica.
17
Temos plena consciência da parcialidade e da incompletude deste texto, não só
por seu caráter provisório, já que o campo da Educação em Saúde está constantemente
em movimento, mas também pela dimensão do tema, que ultrapassa em muito o
enfoque desta pesquisa. No entanto, acreditamos que o presente texto possa contribuir
para a construção de uma perspectiva na qual as ações em educação e saúde tomem
como parâmetros o contexto cultural, político e social que influenciam as representações
e práticas individuais. Para tanto, parte-se da premissa de que as ações de Educação em
Saúde tornam-se estratégicas na construção de uma perspectiva que seja dialógica,
emancipatória, participativa, criativa e que contribua para a autonomia e a co-
responsabilização dos sujeitos na produção do seu próprio cuidado.
18
2 – DISCURSOS, REPRESENTAÇÕES E INTERVENÇÕES
EDUCATIVAS SOBRE A POBREZA.
As relações entre pobreza, educação e saúde não são novas, assim como as visões
e os discursos sobre estes fenômenos tem variado ao longo da história. Este capítulo tem
como objetivo fazer um breve percurso histórico sobre estes três temas: pobreza,
educação e saúde, procurando apontar suas relações ao longo de diferentes contextos
sócio-históricos. Cabe destacar que a formação do campo da Educação em Saúde e a
consolidação da pobreza em contextos urbanos são processos intimamente relacionados.
Daí vem à opção de empreendermos o resgate histórico desses dois campos em um único
capítulo, já que, olhando para a história vemos que ambos dialogam o tempo todo entre
si.
A consolidação da pobreza nos contextos urbanos é um fenômeno estudado por
vários campos de saber como a sociologia, a geografia e a Antropologia e tem se
caracterizado historicamente por marcar o ingresso de diferentes países na economia
capitalista. Ao longo da história a urbanização trouxe consigo significativas alterações
societárias tanto em termos demográficos, quanto na esfera política e econômica. A
urbanização também acentuou desigualdades entre diferentes classes econômicas /
sociais, assim como possibilitou a criação de tecnologias de intervenção sobre o cotidiano
da população pobre, que passou a ser considerada perigosa. Na presente discussão,
tomaremos como referência para discutir a questão da urbanização, da pobreza e das
propostas de Educação em Saúde, a cidade do Rio de Janeiro, tanto por ela sediar o
campo da atual pesquisa, quando pelo fato da cidade ter sido cenário de alguns dos
principais conflitos advindos do processo de expansão e consolidação do capitalismo no
Brasil por meio da urbanização.
Já as medidas de Educação em Saúde têm sido pensadas por atores distintos já há
vários séculos, se organizando de diferentes formas, de acordo com os diferentes
contextos sócio-históricos que se estabelecem: temos exemplos das posturas coercitivas e
autoritárias da polícia médica alemã, no século XVIII, até as propostas mais atuais que se
aproximam da ideia da promoção da saúde a qual busca estabelecer uma relação pautada
no diálogo horizontal entre profissionais de saúde e população. Na presente discussão
buscaremos apontar como a Educação em Saúde tem sido atravessada por vários
19
processos, com a inserção de diferentes disciplinas e profissionais de acordo com os
diferentes contextos sócio-históricos.
As intervenções sobre a pobreza no plano mundial
Tomando como ponto de partida o século XVIII percebemos como os filósofos
iluministas como Voltaire pregam a tolerância religiosa, a supressão da tortura, a reforma
das prisões, a educação e a saúde pública. Para estes pensadores o progresso social está
relacionado ao sentimento de solidariedade em relação à todo o ser humano e à
necessidade de desenvolver a instrução pública. A ignorância dos pobres e a falta de
solidariedade humana dos ricos são consideradas como as causas da pobreza. Assim, se
estabelece a coexistência complementar entre os movimentos filantrópicos e os
particulares com os princípios laicos da assistência pública onde cada um procura à sua
maneira contribuir para o bem estar social. Igualmente o desenvolvimento da filantropia
laica contribui a tornar mais enérgica a atividade caritativa cristã tanto individual quanto
institucional. O movimento filantrópico apoia-se na educação como base ideológica. A
miséria é considerada como consequência de um modo de vida desregrado e assim a
educação seria o meio para se impetrar o aprendizado da obediência, o costume ao
trabalho e o respeito às leis à população (Geremek, 1987).
Os séculos XVII e XVIII, período posterior às grandes descobertas, onde o
contato com outras sociedades foi marcante, se caracterizaram por um modelo
missionário onde a conversão era a principal motivação. As figuras emblemáticas deste
modelo eram o médico e o missionário, uma vez que as ações se centravam sobre a saúde
e a educação.
No século XIX, uma nova visão do pobre se impõe onde imagens carregadas de
valores afetivos serão substituídas por noções mais precisas de diferentes disciplinas
como a estatística e a medicina social, por exemplo. Este novo olhar induz a novos
comportamentos: da prática caritativa do século anterior à ação social que desenvolverá
novas instituições e profissões voltadas à intervenção aos pobres.
Neste século, marcado pela Revolução Industrial, o pobre é representado pelo
operário. Este, mesmo que valorizado enquanto produtor de bens, também é
responsabilizado pelos fenômenos de desordem e degradação social, ou seja, há uma
20
modificação da concepção do trabalho como redentor e portador da normalidade,
honestidade e dignidade. As intervenções caridosas diminuem consideravelmente graças
a uma melhora das condições de vida e pelo desenvolvimento de formas oficiais de
assistência social. A consciência de classe operária e a formação de organizações
sindicais igualmente passam a desacreditar o paternalismo da filantropia. A caridade dos
ricos aos pobres passa a ser vista com suspeita. Da mesma forma a pobreza se transforma
em uma preocupação das elites: engenheiros, médicos, advogados passam a estudar e
propor medidas de combate à mesma. Como refere Valadares:
“Nem nos países europeus, nem no Brasil a descoberta da
pobreza deve-se aos cientistas sociais. No século XIX, quando a
pobreza urbana se transforma em preocupação das elites, tanto lá
como cá, são os profissionais ligados à imprensa, literatura,
engenharia, medicina, ao direito e à filantropia que passam a
descrever e propor medidas de combate à pobreza e à miséria. Na
origem deste conhecimento impunha-se uma finalidade prática:
conhecer para denunciar e intervir, conhecer para propor
soluções, para melhor administrar e gerir a pobreza e seus
personagens. A ciência a serviço da racionalidade e da ordem
urbana, da saúde do país e de sua população” (Valladares, 2000,
06).
Enfim, mesmo que no século XIX muitas ações da Previdência Social ainda sejam
assistencialistas, elas pouco a pouco vão perdendo este caráter devido a uma mudança de
racionalidade.
Já os séculos XIX e XX assistiram ao desenvolvimento da ideia da universalidade
dos direitos humanos onde a ideia do próximo passa a ser compreendida em um sentido
amplo, ou seja, abrangendo todo o ser humano. Desta maneira a concepção que o
sofrimento deva ser aliviado não importa onde e quem seja a vítima, leva á tratar o
problema da pobreza no Terceiro Mundo como um problema global.
O século XX compreende que a assistência não é mais uma questão de doação,
mas um Direito, uma exigência de equidade por parte dos pobres e um dever moral dos
ricos. Sendo assim a assistência privada é preferível uma vez que ela pode agir ignorando
21
e até mesmo se opondo ao Estado. São estes os imperativos que animam as organizações
não governamentais que prestam ajuda aos países pobres, por exemplo (Geremek, 1987).
Os primórdios das intervenções sanitárias sobre a pobreza
Em relação ao campo da saúde, Foucault (1999) em sua conferência “O
Nascimento da Medicina Social” parte da hipótese de que, com o desenvolvimento do
capitalismo no final do século XVIII e início do século XIX, e com o crescimento das
cidades e o processo de urbanização, se socializou um primeiro objeto que foi o corpo
enquanto força de produção, força de trabalho. Assim, o controle da sociedade sobre os
indivíduos passa a se operar não só pela consciência ou pela ideologia, mas também
com o corpo. Dessa forma a medicina passa a ter um caráter bio−político e a partir
disso, surgem estratégias que podemos identificar como os “primórdios” das
intervenções de Educação em Saúde que serão hegemônicas nos séculos seguintes. Para
Foucault essas estratégias seriam a medicina de Estado, a medicina urbana e a medicina
da força de trabalho, as quais demarcariam o surgimento e a consolidação do campo da
Medicina Social ou Saúde Pública.
A medicina de Estado se desenvolveu, sobretudo, na Alemanha através da noção
de polícia médica a qual consistia em: 1) um sistema muito mais completo de
observação da morbidade do que os simples quadros de nascimento e morte, até então
utilizados 2) um fenômeno importante de normalização da prática e do saber médicos
no qual procuraria deixar às universidades e à própria corporação dos médicos o
encargo de decidir em que consistirá a formação médica e como serão atribuídos os
diplomas 3) uma organização administrativa para controlar a atividade dos médicos e a
consequente subordinação da prática médica a um poder administrativo superior 4) a
criação de funcionários médicos nomeados pelo governo com responsabilidade sobre
uma região, seu domínio de poder ou de exercício da autoridade de seu saber.
A ideia de polícia médica vai estar presente em vários países, inclusive no
Brasil. Ela deveria ocupar-se dos problemas referentes à limpeza urbana que eram
considerados os maiores responsáveis pelo surgimento de doenças nas cidades, assim
como seria responsável por educar, mas também punir a população através de medidas
de Educação em Saúde autoritárias e normativas.
22
A segunda direção no desenvolvimento da medicina social apontada por
Foucault (1999) é representada pelo exemplo da França, onde, no final do século XVIII,
aparece uma medicina social que não parece ter por suporte na estrutura do Estado, mas
sim em um fenômeno inteiramente diferente: a urbanização. Esta proposta surge do
objetivo econômico e político de constituir a cidade como unidade, de organizar o corpo
urbano de modo coerente, homogêneo, dependendo de um poder único e bem
regulamentado. Foucault cita também uma série de medos advindos da urbanização,
como o das revoltas populares e das epidemias, que vão culminar em uma inquietude
político−sanitária que se forma à medida que se desenvolve o tecido urbano. Para
dominar esses fenômenos médicos e políticos que inquietavam tão fortemente a
população das cidades, particularmente a burguesia, foi adotado o modelo médico e
político da quarentena. Nesse modelo todas as pessoas deviam permanecer em suas
casas para serem localizadas em um único lugar; a cidade devia ser dividida em bairros
que se encontravam sob a responsabilidade de uma autoridade designada para isso; os
vigias de rua ou de bairro deviam fazer todos os dias um relatório preciso ao prefeito da
cidade para informar tudo que tinham observado; os inspetores deviam diariamente
passar em revista todos os habitantes da cidade; se praticava a desinfecção por meio da
queima de perfumes em todas as casas.
Com isso, a medicina urbana tinha três grandes objetivos: 1º) Analisar os lugares
de acúmulo e amontoamento de tudo que no espaço urbano pudesse provocar doença,
ou seja, mapear os lugares de formação e difusão de fenômenos epidêmicos ou
endêmicos (em especial os cemitérios) 2º) o controle da circulação dos elementos,
essencialmente a água e o ar, mas também dos indivíduos. 3º) a organização da
distribuição e sequências de água e esgoto, de maneira que não entrassem em contato
uma com a outra.
Através destes elementos a medicina se socializou e passou a se preocupar com
as condições de vida e o meio de existência, ou seja, com a relação do organismo com
seu meio. A partir daí surge a noção de salubridade caracterizada pela preocupação com
o estado das coisas, do meio e dos elementos que afetam a saúde dos indivíduos. Junto a
essa ideia surge também a noção de higiene publica que pode ser definida como
técnicas de controle político-científico que visam modificar os elementos materiais do
meio que sejam suscetíveis a favorecer ou prejudicar a saúde. A higiene pública seria
23
um elemento chave das propostas de Educação em Saúde que seriam criadas a partir da
medicina urbana.
A terceira direção da medicina social pode ser analisada através do exemplo
inglês da medicina dos pobres ou da força de trabalho. O desenvolvimento industrial
inglês fez aparecer uma crescente classe pobre, plebeia e proletária que, em meados do
século XIX, passou a ser considerada um elemento perigoso para a saúde da população.
Foi já no segundo terço do século XIX, que se desenharam elementos que levaram a
crer que o pobre seria um perigo. Dentre eles podemos citar: 1) razões políticas, pois
enquanto força a população pobre poderia ser capaz de se revoltar ou participar de
revoltas; 2) No momento em que se constroem sistemas de comunicação, mas eficazes
(sistema postal e carregadores), tornam-se dispensáveis, em parte, os serviços prestados
por uma parte significativa da população pobre que, por conhecer bem o território da
cidade, trabalhava entregando mensagens, correspondências, encomendas, etc. 3) O
aparecimento da cólera de 1832 fez cristalizar uma série de medos políticos e sanitários
sob a população proletária, fazendo crer no perigo de suas presenças na cidade, surgindo
com isso a divisão do espaço urbano em bairros e habitações de ricos e pobres.
Foi na Inglaterra, país em que o desenvolvimento industrial, e, por conseguinte o
desenvolvimento do proletariado foi o mais rápido e importante, que apareceu uma nova
forma de medicina social. Para a socialização da medicina inglesa, elaborou-se a “Lei
dos Pobres” que tinha o intuito ambíguo de, tanto promover uma assistência controlada
aos pobres, através da intervenção médica, o que os beneficiava por um lado; como
também protegia as classes ricas, sendo a burguesia quem mais se interessava em
assegurar sua segurança política. Nas palavras de Foucault
“Com a Lei dos pobres aparece, de maneira
ambígua, algo importante na história da medicina social: a
ideia de uma assistência controlada, de uma intervenção médica
que é tanto uma maneira de ajudar os mais pobres a satisfazer
suas necessidades de saúde, quanto um controle pelo qual as
classes ricas ou seus representantes no governo asseguram a
saúde das classes pobres e, por conseguinte, a proteção das
classes ricas” (p.95).
24
Com isso ocorre a organização de um serviço autoritário, não de cuidados
médicos, mas de controle médico da população. Trata-se do sistema Health Service que
tinham medidas preventivas a serem tomadas, tais como a intervenção nos locais
insalubres, as verificações de vacinas, o registro de doenças, etc. No entanto, o controle
médico inglês, garantido pelos health officers (ou agentes de saúde) suscitou, desde sua
criação, uma série de episódios de resistência popular, como pequenas insurreições
anti−médicas na Inglaterra da 2º metade do século XIX. Formaram-se grupos de
resistência que lutavam contra a medicalização, o direito de querer ser atendido ou não
pela medicina oficial e, sobretudo, o direito sobre o próprio corpo.
Para Foucault
“pode−se dizer que, diferentemente da medicina
urbana francesa e da medicina de Estado da Alemanha do
século XVIII, aparece, no século XIX e, sobretudo na Inglaterra,
uma medicina que é essencialmente um controle da saúde e do
corpo das classes mais pobres para torná−las mais aptas ao
trabalho e menos perigosas às classes mais ricas” (p.97).
As intervenções históricas sobre a pobreza no Brasil
No Brasil a pobreza é um fenômeno conhecido desde o período colonial e que
passou por mudanças importantes do ponto de vista social entre os séculos XIX e XX em
virtude da passagem do modelo de sociedade escravista para o capitalista. No entanto, na
abordagem desse tema, tomaremos como ponto de corte, por questões de enfoque, a
relação da pobreza com o estabelecimento dos centros urbanos brasileiros e a questão
habitacional com o surgimento e desenvolvimento das favelas cariocas.
Valladares (1991) aponta a multiplicidade de discursos sobre a pobreza que, por
sua vez, guarda uma estreita relação com elementos como o processo de urbanização do
país, as transformações ocorridas no mercado de trabalho urbano e a inserção espacial /
residencial da população pobre nas cidades. De acordo com estas perspectivas, diferentes
atores são legitimados a intervir sobre a mesma. Assim no princípio do século XX o
discurso sobre a higiene com a ênfase no cortiço abriu caminho para os sanitaristas
realizarem intervenções sobre o corpo, o comportamento e moradia dos pobres. Já nos
25
anos 50-60 a pobreza foi reconhecida como questão social e seu novo porta-voz passa a
ser o cientista social e o educador.
Nos anos 70 com o regime militar a questão da pobreza passa a ser considerada
antagônica ao projeto de Brasil como o país do futuro e com a imagem de
desenvolvimento acelerado que se procurava construir: as favelas tornam-se
emblemáticas da pobreza, e as habitações populares voltam a ser alvo de políticas de
controle e remoção. Nos anos 80 com a abertura política do país, prevalece a política de
urbanização das favelas. Dos anos 90 até os dias atuais verifica-se uma aproximação de
variados atores e instituições como universidades e ONG’s, tanto da questão da pobreza,
propriamente dita, quanto das favelas como campo de pesquisa e intervenção.
Do cortiço à favela: a construção da marginalidade
Conforme aponta Valladares (1991) com a demanda da transformação das capitais
brasileiras em grandes centros urbanos, e com o fortalecimento da economia industrial, a
pobreza passa a ser alvo da intervenção direta de políticos e gestores em um contexto
sócio-histórico onde começa a vigorar uma multiplicidade de discursos dentre eles o
sanitarista, o econômico, o político e o jurídico.
O Brasil no final do século XIX e início do século XX apresentava, mesmo em
suas maiores e principais cidades (Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Salvador, etc.), uma
estrutura urbana antiga, herdada do período colonial. Isto dificultava o estabelecimento
de uma dinâmica capitalista na economia do país, o que já vinha acontecendo a mais de
um século nos países na Europa e nos Estados Unidos desde a Revolução Industrial. Na
cidade do Rio de Janeiro, então capital do país, isto era particularmente verdadeiro: a
precariedade dos portos inibia as atividades comerciais de importação e exportação; as
ruas estreitas e congestionadas dificultavam a circulação de pessoas e mercadorias dentro
da cidade; os esgotos a céu aberto eram ameaças à saúde da população (Silva, 2006).
Sendo a cidade a grande vitrine a ser destacada como o símbolo do avanço do país, a
demanda pela modernização e urbanização dos espaços públicos era crescente no
período.
Nesse contexto, a questão da habitação e da pobreza passa a se configurar como
problemática central no debate sobre a modernização da cidade: a existência de cortiços
26
que abrigavam milhares de pessoas em condições extremamente precárias de existência
saltava aos olhos da população e se revelava antagônica com a imagem de cidade limpa,
organizada e higienizada que se pretendia construir. Os cortiços eram considerados o
principal lócus de concentração de pobreza da cidade do Rio de Janeiro sendo lugar de
moradia tanto para trabalhadores quanto para os considerados vagabundos e malandros,
todos pertencentes a chamada classe de “pobres perigosos”, visão preponderante no
panorama mundial da época conforme aponta Bresciani (1982). Além da representação
de lugar da marginalidade, os cortiços eram também percebidos como um espaço
propagador de doenças e vícios, se constituindo em uma das mais agudas ameaças à
ordem social e moral na época (Valladares, 2005).
Dessa forma, as condições insalubres, historicamente existentes na cidade,
passaram a estar fortemente associadas à existência das habitações coletivas populares,
que deveriam dar lugar a novas moradias com padrões higiênicos e urbanísticos mais
aceitáveis. Assim, a insalubridade se configura como uma das maiores contradições a ser
superada no Rio de Janeiro do início do século XX. Pretendia-se com isso não só conter
as epidemias, mas, principalmente estabelecer o controle sobre a população pobre, pois
tais habitações eram vistas como redutos de desordeiros, malandros e facínoras. (Silva,
2006).
Vale destacar que neste período a elite brasileira estava impregnada pelos valores
europeus de ordenamento, organização e urbanização, já que as principais cidades
europeias passaram por processos parecidos em períodos anteriores. Estes valores se
refletiram na cidade do Rio de Janeiro também no nível de gestão.
O maior símbolo disso se encontra na administração de Pereira Passos;
engenheiro de formação que estudou na França onde assistiu a grande reforma urbana de
Paris empreendida pelo então prefeito Georges-Eugène Haussmann, ou simplesmente o
Barão Haussmann1, conhecido na época como o “artista demolidor”. Em 1902 Passos foi
1 Haussman foi o principal responsável pela reforma urbana de Paris no século XIX. Nomeado prefeito por Napoleão
III, cuidou do planejamento da cidade, com a colaboração de arquitetos e engenheiros renomados na época, entre os
anos de 1853 e 1870. Com ações como a demolição das antigas ruas, pequenos comércios e moradias da cidade e a
construção de grandes avenidas e boulevards, Haussman pretendia, além de tornar a cidade mais bela e imponente,
cessar com as barricadas, insurreições e combates populares, muito recorrentes na época.
27
nomeado, prefeito da cidade do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, pelo presidente
Rodrigues Alves e, inspirado nas reformas de Haussmann, em quatro anos transformou
profundamente a cidade: aos cortiços e às ruas estreitas e escuras, sobrevieram
grandes boulevards, com imponentes edifícios, dignos de representar a capital federal.
Nesse período, chamado na época de “bota-abaixo”, a demolição de morros, cortiços e a
remoção da população pobre para os subúrbios e áreas periféricas começaram a fazer
parte do cotidiano da cidade, modificando profundamente sua configuração urbana e,
consequentemente, sua organização social:
Ao término da administração de Passos, em 1906, mais de 1.600
habitações haviam sido derrubadas. Passos abriu novas ruas e
alargou outras, canalizou rios, criou espaços arborizados para o
lazer e o embelezamento da cidade, construiu palácios e
pavilhões. O governo federal, por sua vez, comandou a
campanha de saneamento, liderada por Oswaldo Cruz;
construiu o novo porto; e rasgou o centro do Rio para abrir a
Avenida Central. (Silva, 2006)
A partir de Pereira Passos o Estado passou a intervir diretamente na questão da
habitação e da pobreza com a criação de leis que impediam a construção de novos
cortiços, a destruição de cortiços existentes e a remoção da população pobre para áreas
periféricas. As reformas empreendidas no Rio de Janeiro cumpriram seu papel no que
tange ao embelezamento da cidade, alargamento de ruas, expansão das atividades
comerciais no centro, etc. No entanto, a ausência de uma política de habitação includente
e a escassez na construção de habitações populares expulsou a população pobre para as
áreas periféricas da cidade. É nesta época que se acentua a ocupação de morros e encostas
e surgem as primeiras favelas cariocas.
A invenção das favelas
A falta de políticas públicas que visassem acabar com a crise habitacional, que há
décadas marcava profundamente a cidade, pode ser apontada como um dos principais
fatores que favoreceu a formação e o crescimento das primeiras favelas. Outros fatores
também podem ser levantados como, por exemplo, a formação de uma nova classe sem
28
acesso ao mercado de trabalho, fruto do ainda recente processo de final da escravidão e a
extremamente desigual distribuição de renda que levou a população pobre a se descolar
para lugares impróprios à ocupação urbana, como áreas de risco ou regiões desprovidas
de serviços públicos básicos como esgoto, água tratada, saúde, educação, entre outros.
(Silva, 2006).
O simbólico Morro da Favella no centro do Rio, hoje conhecido como Morro da
Providência, pode ser apontado como o marco de quando o termo favela passou a
designar os morros, encostas e áreas periféricas ocupadas pela população pobre. Este
morro ficou conhecido por abrigar combatentes que voltaram da Guerra de Canudos2 que
se instalaram ali a fim de pressionar o governo a pagar seus soldos atrasados. Uma
hipótese para a adoção do termo favela para nomear o morro se deve a planta favella que
era comum na região do Arraial de Canudos na Bahia e também era encontrada na
vegetação que cobria o Morro da Providência. Com o tempo o nome favela estendeu-se a
outros morros e já na década de 1920 as ocupações de colinas que se caracterizavam por
barracos e casebres já eram conhecidas popularmente por este nome. (Valladares, 2005).
Também nesta época começa a se consolidar a oposição asfalto x morro onde a
favela assume a representação de “antítese” da cidade, papel antes atribuído aos cortiços.
No entanto, é na década de 30 que as favelas passam a substituir de forma definitiva os
antigos cortiços, como lugares privilegiados de exclusão da população pobre, fato este
que pode ser atribuído à consolidação das políticas de remoção das décadas anteriores
quando a população pobre foi retirada das áreas nobres e centrais da cidade.
Já na década de 60 a expansão das favelas no Rio aumenta vertiginosamente, fruto
das políticas populistas que caracterizam o período e da percepção do potencial eleitoral
da população que residia nessas áreas. Com isso as favelas viram verdadeiros “currais
eleitorais” onde melhorias contingenciais, como asfaltamento de ruas, distribuição de
insumos, etc. são oferecidas a população em troca de votos. Este fenômeno ainda existe
em muitas comunidades da cidade.
2 Guerra de Canudos ou Campanha de Canudos foi o confronto entre o Exército Brasileiro e integrantes de um
movimento popular de fundo sócio-religioso liderado por Antônio Conselheiro, que durou de 1896 a 1897, na então
comunidade de Canudos, no interior do estado da Bahia, no nordeste do Brasil.
29
Com o estabelecimento da ditadura militar ainda na década de 60, a política social
populista é substituída por um controle mais amplo e violento sobre as camadas
populares e pelo alinhamento mais explícito das instituições governamentais com os
interesses das classes dominantes. Isto se reflete na volta da política de remoção de
moradores de favelas para conjuntos habitacionais, o que era reconhecidamente contra os
interesses dos mesmos, mas bastante interessante ao Estado e aos empresários da
construção civil da época (Valla, 1986), fenômeno também presente na atual
configuração da cidade.
No final da década de 70 e nos anos 80, com o enfraquecimento e queda do
regime militar, os governos municipal, estadual e mesmo federal, adotam uma política
global de urbanização das favelas. Essa será a palavra de ordem até os dias de hoje.
Conforme aponta Valla (1986) a adoção dessa política é fruto da convergência de alguns
fatores, dentre eles o surgimento de novas favelas e o crescimento das já existentes, as
políticas sociais de instituições financeiras internacionais como o FMI e o Banco
Mundial, a crescente organização e conscientização dos moradores das favelas, o
crescimento destas comunidades enquanto redutos oposicionistas em termos eleitorais, o
interesse da indústria da construção civil no mercado de baixa renda, etc.
É interessante notar a relação direta entre urbanização de favelas e abertura
política: se durante períodos menos democráticos, principalmente a ditadura, a ordem era
a remoção, nos momentos mais populistas tendeu-se à legalização. Prova disso é que
durante a ditadura militar, entre 1964 e 1974, oitenta favelas, com 26.193 barracos, foram
removidas, deslocando uma população de 139.218 pessoas (Varella, Bertazzo, Jaques,
2002).
A partir da adoção da legalização e urbanização como políticas, uma série de
programas e iniciativas são criados para propor soluções a questão habitacional nas
favelas como o PROMORAR programa do governo federal que “visava solucionar o
problema das habitações subumanas, as favelas e as palafitas” (Valla,1986, p.141), o
Projeto Rio desenvolvido pela prefeitura do Rio de Janeiro a partir das intervenções no
Complexo da Maré e, já na década de 90, o Favela-Bairro, que trazia no nome o ideal de
urbanização das favelas.
30
Chegamos aos dias atuais com as favelas sendo alvo de inúmeros programas
sociais e intervenções, tanto governamentais quanto de entidades e instituições das mais
variadas naturezas (privadas, sem fins lucrativos, filantrópicas, etc.). No entanto,
observamos que, se por um lado as políticas de inclusão e urbanização são hegemônicas
em nível de discurso, na prática pouco se alterou em termos de redução das
desigualdades, desconstrução de estigmas, acesso a serviços básicos, etc.
É possível observar também que, se antes as políticas de remoções e destruição
das favelas eram a tônica do processo de urbanização da cidade, hoje, quando as favelas
se consolidam como única possibilidade habitacional de boa parte da população da
cidade, o caráter coercitivo das intervenções estatais permanece só que travestidas de
outras formas, como por exemplo, nas políticas de choque de ordem, na pacificação que
remete a uma militarização do cotidiano da população pobre e favelada, nas intervenções
truculentas das operações policiais e militares, etc.
As intervenções na saúde
Em termos de saúde o percurso histórico de formação das favelas foi também
marcado por uma forte tendência higienista, influenciada por correntes que nos séculos
XVIII e XIX se firmaram na Europa, e por uma intensa intervenção do Estado no
cotidiano da população, principalmente na vida dos cidadãos pobres.
Mais do que considerados como geradores de dificuldades para a manutenção da
ordem pública, os pobres eram também vistos como portadores potenciais de riscos de
contágios. Para os sanitaristas da época os hábitos da população pobre, principalmente os
referentes à moradia eram nocivos à sociedade, já que as habitações coletivas seriam
focos de irradiação de vícios de todos os tipos, tanto os biológicos, quanto os morais.
Além disso, a cidade do Rio de Janeiro era considerada uma das mais sujas e
insalubres do mundo devido a fatores como a rede insuficiente de água e esgoto, a
precária coleta de resíduos, os já citados cortiços super povoados, etc. Nesse ambiente
proliferavam muitas doenças, como a tuberculose, o sarampo, o tifo e a hanseníase. Na
época alastravam-se, sobretudo, grandes epidemias de febre amarela, varíola e peste
bubônica (Valladares, 2005). Aliavam-se a isso as necessidades econômicas, pois o país
tinha como principal pilar de sua economia o modelo de desenvolvimento baseado na
31
agro-exportação o que tornava o saneamento dos portos e espaços públicos uma
prioridade para a consolidação deste modelo (Smeke & Oliveira, 2001).
Neste contexto, seriam necessárias não só intervenções no sentido de limpar a
cidade e imunizar a população das doenças, mas também um tratamento moral, onde a
educação seria uma forma de garantir a adoção de hábitos mais condizentes com os de
uma cidade limpa e moderna. Ciente desta necessidade o então presidente Rodrigues
Alves designa Oswaldo Cruz, biólogo e sanitarista, para ser chefe do Departamento
Nacional de Saúde Pública, que juntamente com o prefeito Pereira Passos, seriam os
responsáveis pela reforma da cidade: se Pereira Passos foi o símbolo da transformação
urbana, Osvaldo Cruz pode ser considerado o principal responsável pela reforma sanitária
desencadeada na cidade.
Através de ações como a criação das Brigadas Mata Mosquitos visando acabar
com mosquitos transmissores da febre amarela, a distribuição de raticidas pela cidade, a
orientação a população quanto a necessidade de não jogar lixo e resíduos nas ruas, etc,
Osvaldo Cruz inseriu elementos da polícia médica e da medicina urbana no cotidiano da
cidade intervindo diretamente na vida do cidadão comum da cidade e obtendo certo êxito
no combate as doenças infecto-contagiosas:
“A polícia sanitária, liderada por Osvaldo Cruz, adotou
medidas de controle de enfermidades (febre amarela, peste,
varíola, tuberculose, sífilis, entres outras), mediante a vacinação
compulsória, da vigilância sobre atitudes e moralidade dos
pobres, da normatização arquitetônica do espaço urbano e dos
portos (demolições periódicas de estalagens e cômodos,
legislações municipais determinando a construção de vilas
operárias baratas e saudáveis em áreas pouco povoadas).”
(Smeke & Oliveira, 2001. p.118).
No entanto, as intervenções sobre a população se davam de maneira coercitiva e
autoritária atuando sobre os corpos e sobre a moral dos cidadãos, o que por sua vez
gerava um alto grau de descontentamento na população que, incentivada pela
participação de imigrantes europeus imbuídos de ideologias libertárias e anarquistas,
compunham uma cultura avessamente sensível às práticas de dominação e exploração
32
fortalecendo assim movimentos de resistência como a Revolta da Vacina (Smeke &
Oliveira, 2001).
A Revolta da Vacina
A Revolta da Vacina foi um episódio simbólico deste período: para erradicar a
varíola Osvaldo Cruz convenceu o Congresso a aprovar a Lei da Vacina Obrigatória (31
de Outubro de 1904), permitindo que brigadas sanitárias, acompanhadas por policiais,
entrassem nas casas das pessoas para aplicar a vacina, mesmo que à força.
Opositores e parte da mídia criticaram duramente a ação do governo e falavam de
supostos perigos causados pela vacina. Além disso, o boato de que a vacina teria de ser
aplicada nas "partes íntimas" do corpo (as mulheres teriam que se despir diante dos
vacinadores) agravou a ira da população, que se rebelou. Neste sentido, como refere
Carvalho (1987) a Revolta da Vacina fundamentou-se principalmente em razões
ideológicas e morais:
“Era a revolta fragmentada de uma sociedade
fragmentada. De uma sociedade em que a escravidão impedira o
desenvolvimento de forte tradição artesanal e facilitara a
criação de vasto setor proletário. A fragmentação social tinha
como contrapartida política a alienação quase completa da
população em relação ao sistema político que não lhe abria
espaços. Havia, no entanto, uma espécie de pacto informal, de
entendimento implícito, sobre o que constituía legítima
interferência do governo na vida das pessoas”. (Murilo de
Carvalho, 1987: 138).
Como apontam Sevcenko (1993), Chalhoub (1996); e Meihy e Bertolli Filho
(1995), é importante salientar que a oligarquia paulista da época apoiada por alguns
segmentos do exército, principalmente os cadetes da Praia Vermelha, buscaram canalizar
o movimento para a derrocada do governo republicano.
33
Ao final da revolta que teve o saldo de 30 mortos, 110 feridos, cerca de 1 000
detidos e centenas de deportados, o governo recomeçou a vacinação da população, tendo
como resultado a erradicação da varíola na cidade.
A Revolta da Vacina tornou-se emblemática da intervenção autoritária do Estado
na saúde e intimidade dos cidadãos. A metáfora do corpo orgânico para falar da
sociedade circula entre os médicos sanitaristas de forma que a medicalização da
sociedade serviria para criação de condições ambientais que favorecessem a formação de
corpos e mentes sadias condizentes com uma nação próspera e civilizada (Rago, 1985).
O campo da Educação em Saúde no Brasil
Para o sociólogo francês Pierre Bourdieu (1990), a ação social situa-se na
distinção em “campos”. Os campos se autonomizam como universos com dinâmicas
internas próprias, formadas por indivíduos com um conjunto de capacidades, poderes e
influências, definidos pelo autor como capitais. Assim, os campos configuram-se a partir
de certos interesses e dinâmicas, baseando-se em certos tipos de capitais. Os campos
relacionam-se entre si com certa hierarquia em uma relação de forças onde é
preponderante – mas não determinante – o campo econômico. Existem campos e
subcampos com diversas áreas, segmentos e subdivisões (Bourdieu, 1990).
Essas noções de Bourdieu, utilizadas em diferentes domínios do conhecimento,
apresentam ideias pertinentes para a leitura da constituição do campo da Educação em
Saúde no Brasil. A base da discussão do autor está na relação de forças e dos processos
que regulam as sociedades modernas, ou seja, na mediação entre os agentes sociais e a
sociedade. Nesse sentido, no que se refere ao campo da Educação em Saúde no Brasil,
várias áreas de conhecimento e diferentes profissionais influíram na dimensão
pedagógica da construção de um discurso hegemônico e normativo, caracterizando sua
formação entre o final do século XIX e o início do século XX.
Enquanto na Europa a discussão nesse mesmo período se voltava cada vez mais
para os determinantes sociais, por meio das relações entre condições de vida e saúde-
doença, prevalecia no Brasil do século XIX uma perspectiva autoritária, formadora de
normas e prescrições às quais os indivíduos deveriam se adequar, na qual o modelo
econômico do país teve grande influência. A construção dessa proposta de Educação em
34
Saúde, normativa e mesmo coercitiva, estava relacionada com a afirmação do modelo
agro-exportador como estruturante na economia do país, o que, como discutimos,
demandava a salubridade de portos e espaços públicos.
Tomando novamente como referência a cidade do Rio de Janeiro, então capital do
país no início do século XX, pode-se dizer que as intervenções visando a garantir a
limpeza dos espaços públicos ocorreram, sobretudo, nas classes pobres que habitavam as
regiões centrais das cidades e nas zonas portuárias, por meio de uma série de ações, como
a criação da polícia sanitária, a vacinação compulsória, a demolição de cortiços e a
expulsão da população pobre para as regiões periféricas da cidade.
Conforme apontam Valla e Stotz (1994), as reformas urbanas e sanitárias
empreendidas no início do século XX nas principais cidades do país emergiram da
necessidade capitalista de disciplinar corpos e espaços, a fim de garantir a acumulação de
condições favoráveis, tanto para a produção e circulação de mercadorias, quanto para a
formação de um contingente de trabalhadores disciplinados e sadios. No entanto, a
focalização no combate a algumas doenças, principalmente as transmissíveis e infecto-
contagiosas, ainda era a tônica da grande maioria das ações de saúde, em detrimento de
outros campos, como, por exemplo, a saúde do trabalhador:
“[...] combateu-se a febre amarela, principal causa de
mortalidade dos trabalhadores imigrantes – o maior contingente
da força de trabalho da indústria carioca – e deixou-se de lado
qualquer cuidado com a saúde dos trabalhadores brasileiros”
(Valla e Stotz, 1994, p.20).
Isso evidencia que a saúde do cidadão em si e a melhoria da qualidade de vida
geral da população não eram o objetivo final das ações em saúde empreendidas, pois elas
visavam ao estabelecimento de condições urbanísticas e higiênicas mínimas, que
possibilitassem o desenvolvimento econômico do país.
Até 1920, a estrutura sanitária brasileira estava concentrada em resolver
problemas específicos. A ideia de prevenção e educação no que se refere a doenças que
não tinham tratamento se fortaleceu, pois foram então introduzidas noções de higiene,
imunizações e cuidados individuais, cujo alvo principal era a criança. Para isso, vários
35
médicos brasileiros, financiados pela Fundação Rockfeller,3 foram se formar em Saúde
Pública na Universidade John Hopkins. Assim, o Movimento Sanitarista, que surgiu no
Brasil após os anos 20, teve forte influência da estrutura universitária norte-americana,
com o intuito de reduzir ao máximo possível o poder coercitivo da polícia sanitária.
Mesmo assim, segundo Mascarenhas (1973), esse poder coercitivo adquiriu novamente
força no governo Vargas, na forma de polícia sanitária.
Conforme aponta Cardoso de Melo:
“A saúde e a educação vão ser políticas privilegiadas nas
políticas sociais. A concretização dessas propostas (sanitária e
escola-novista) vai depender da correlação de forças na disputa
pelo poder político após a Revolução de 30... As políticas sociais
(de educação e saúde) vão ser formuladas em função do modo de
inserção dos trabalhadores na produção” (1981, p.34).
De acordo com o autor, a partir de 1942, os EUA formaram um acordo com o
Brasil, visando à exploração da borracha e minérios e ao aumento na produção de
alimentos. Consequentemente, a atenção da Saúde Pública voltou-se para o homem do
campo. Desse modo, novamente, médicos e cientistas sociais foram se especializar nos
EUA em Educação Sanitária, para trazer novas metodologias e técnicas para as práticas
de Educação em Saúde: educação de grupos e recursos audiovisuais com incentivo à
participação dos indivíduos.
Novas áreas de conhecimento foram incorporadas à Educação em Saúde, com
vistas à intervenção social, como o Serviço Social. Da mesma forma, à medida que a
nova concepção preconizava uma educação sanitária que levasse em consideração os
fatores sociais, econômicos e culturais que constituem “barreiras” para as boas práticas
de saúde, o conhecimento das Ciências Sociais passou a ser relevante. No entanto, apesar
da inclusão desses domínios que valorizam outros fatores além dos biológicos na noção
de saúde, esta ainda era percebida como uma responsabilidade individual.
Assim, a partir da década de 1950, dois movimentos se fizeram presentes: a
imputação da responsabilidade sobre a saúde aos indivíduos e a consequente isenção da
3 Sobre a importância da Fundação Rockefeller na formação e saúde da sociedade brasileira, ver Castro Santos
e Rodrigues de Faria (2003).
36
responsabilidade do Estado e das políticas públicas que interviessem nos condicionantes
mais amplos de saúde da população, como a educação, o saneamento, a moradia etc. Com
isso, as ações educativas em saúde ficaram restritas à programas e serviços destinados a
populações à margem do jogo político central, e continuou-se a priorizar o combate às
doenças infecciosas e parasitárias (Vasconcelos, 2001).
A partir da década de 1960, a Educação em Saúde no Brasil esteve basicamente
subordinada aos interesses das elites políticas e econômicas, voltando-se para a
imposição de normas e comportamentos considerados por elas adequados. Ganhou força
a ideia da Educação em Saúde como forma de extinguir comportamentos de risco e de
garantir a adoção de hábitos saudáveis (práticas higiênicas, vacinação, realização de
exames etc.). Essa lógica reforça a ideia de que o indivíduo é o maior responsável por sua
saúde ou o maior culpado por sua doença, e, com isso, deixou-se de discutir até que ponto
as soluções para problemas de saúde passam por ações socialmente sustentadas do ponto
de vista cultural, econômico e político (Vasconcelos, 2001).
Paradoxalmente ao desmonte da saúde pública estatal e a violenta repressão
impostas pela ditadura militar em meados da década de 60, houve o fortalecimento de
uma série de experiências comunitárias de Educação em Saúde no período, o que
significou uma verdadeira ruptura com o padrão que até então vinha se desenhando: o
contexto de coerção e agudização das desigualdades mobilizou diversos movimentos
sociais e comunitários que engendraram novas formas de resistências no campo da saúde
(Smeke e Oliveira, 2001). Isso ocorreu em decorrência da insatisfação de muitos
profissionais de saúde, intelectuais e acadêmicos com a política de saúde, que se voltava
para a expansão dos serviços médicos privados, especialmente hospitais e policlínicas
conveniados, nos quais as ações educativas não tinham espaço significativo. Esses
profissionais, insatisfeitos com as práticas mercantilizadas e rotinizadas dos serviços de
saúde, aproximaram-se da dinâmica de luta e resistência das classes populares e
engajaram-se no processo de formação de uma nova organização política da saúde, de
forma que, no vazio do descaso do Estado com os problemas populares, configuraram-se
iniciativas de busca de soluções técnicas construídas com base no diálogo entre o saber
popular e o saber acadêmico (Vasconcelos, 2001).
A partir desse momento, surgiram e se fortaleceram uma série de iniciativas e
movimentos, que impulsionaram a participação da população na discussão sobre saúde e
37
condições de vida, como associações de moradores, o movimento operário, as
experiências das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) etc. Nessa época também
ocorreram as primeiras experiências de Educação Popular inspiradas na metodologia de
alfabetização de adultos criada por Paulo Freire, a qual será abordada mais
detalhadamente adiante. As propostas de conscientização crítica e libertadora no campo
da educação também chegaram ao campo da saúde, cujas discussões começaram a se
aproximar mais das realidades locais das populações.
Nesse contexto, no ano de 1967, a Faculdade de Saúde Pública da USP inaugurou
o curso de Educação em Saúde Pública, para formar o Educador em Saúde Pública,
profissional preferentemente oriundo da graduação em Ciências Sociais. A introdução
desse profissional no país encontra barreiras para se difundir, devido ao regime
autoritário vigente. De acordo com Cardoso de Melo, é o “período negro” da educação
sanitária já que ela “Perde espaço para a nova racionalidade no interior do Sistema
Nacional de Saúde (reflexo do período também negro para a sociedade civil, em
particular para as camadas populares trabalhadoras)” (Cardoso de Melo, 1981, p.39).
Nos anos 70, os movimentos sociais ligados à saúde se fortaleceram e passaram a
fomentar experiências de ações e serviços comunitários desvinculados do Estado e
integradas a diferentes dinâmicas sociais locais. Com o início do processo de abertura
política, que ganhou força na segunda metade da década, movimentos populares, que já
tinham avançado na discussão das questões de saúde, passaram a reivindicar novos
serviços públicos e a exigir participação no controle de serviços e unidades de saúde
existentes. Conforme aponta Vasconcelos (2001), nessa época, a participação de
profissionais de saúde nas experiências de Educação Popular trouxe para o setor uma
verdadeira ruptura com a tradição autoritária e normatizadora, que vigorava até então em
relação às classes populares.
Analisando as transformações na concepção de sujeito a partir dos diferentes
momentos históricos vivenciados no país, Smeke e Oliveira (2001) mostram como o
surgimento de movimentos sociais e comunitários em um contexto de agudização das
desigualdades sociais se relaciona ao esvaziamento de partidos e sindicatos, à omissão do
Estado na garantia de direitos básicos e à noção de indivíduo que se assume como sujeito
de direitos, como cidadão. Por outro lado, o discurso incorpora a noção de participação
comunitária, com o intuito de aliviar as tensões sociais geradas pela deterioração das
38
condições de vida da população, conseqüentes do modelo político e econômico vigente
(Cardoso de Melo, 1981).
No decorrer da década de 80, com a consolidação da abertura política no país e a
criação do Sistema Único de Saúde (SUS), os movimentos surgidos nas décadas
anteriores ampliaram suas reivindicações para mudanças mais globais nas políticas
sociais, assim, algumas das muitas experiências locais que eclodiram nas décadas
anteriores perderam um pouco de seu protagonismo na luta por melhores condições de
saúde, como é o caso das Comunidades Eclesiásticas de Base (CEBs). No entanto, a
experiência de integração vivida por intelectuais e líderes populares e o saber daí
construído continuaram presentes, sendo inclusive levados para o interior de instituições
públicas, movimento que foi facilitado pela incorporação de militantes aos quadros
políticos e profissionais de serviços e instituições governamentais.
Os anos 90 foram marcados pelo avanço das ideologias neoliberais que, por meio
de pressupostos como a diminuição da regulação do Estado na economia, a exacerbação
da lei do livre mercado e a privatização de serviços estatais, representaram grande
retrocesso nas políticas sociais e, consequentemente, aumento da desigualdade
econômica e social. Esse movimento ocorreu em nível global e se acentuou no Brasil, a
partir do governo Collor. Nesse contexto, assistiu-se no país à expansão do chamado
terceiro setor, em áreas basais, como a educação e a saúde, principalmente mediante o
fortalecimento das Organizações Não Governamentais (ONGs), entidades que se
declaram com finalidades públicas e sem fins lucrativos, e passam a ocupar o vazio
deixado pela ausência das políticas do Estado, realizando ações sociais com o
financiamento do próprio Estado ou de entidades privadas. Discutiremos mais
detalhadamente este tema no capítulo V.
O fortalecimento do terceiro setor é uma realidade até os dias atuais e impõe
novos desafios à Educação em Saúde, já que a lógica do cidadão como portador de
direitos, que vinha se fortalecendo desde a década de 70, passou a ser substituída pela
lógica do indivíduo com direito ao consumo, o que resultou no esvaziamento do caráter
reivindicatório das organizações populares e na desmobilização de movimentos sociais,
que passaram a ser substituídos ou cooptados por relações de troca, como o clientelismo
(Smeke e Oliveira, 2001).
39
Concomitantemente a isso, permanece o desafio de incorporar no cotidiano dos
serviços e instituições de saúde metodologias que valorizem o saber popular e o
protagonismo do cidadão. Nesse sentido, a Educação Popular passou a assumir papel
central, conforme aponta Vasconcelos (2001, p.28):
“[...] na luta pela democratização do Estado, [...] o método da
Educação Popular passa a ser um instrumento para a construção e
ampliação da participação popular no gerenciamento e reorientação
das políticas públicas”.
Ainda na década de 90, o movimento de organização de profissionais e
educadores em saúde criou a Articulação Nacional de Educação Popular em Saúde
(ANEPS). Esse é um marco importante a ser destacado, pois indica que, apesar da
conjuntura desfavorável, o período também foi marcado pela resistência de atores que
acreditavam numa perspectiva de educação e saúde mais crítica, participativa e engajada.
A valorização do saber popular: a perspectiva de Paulo Freire
As primeiras experiências em Educação Popular surgiram na década de 1960, a
partir do método de alfabetização desenvolvido e aplicado por Paulo Freire com classes
populares. É importante ressaltar que se usa aqui a concepção de Freire, entendendo-se
popular como sinônimo de oprimido, aquele que vive sem as condições elementares para
o exercício de sua cidadania e que está fora de posse e uso dos bens materiais produzidos
socialmente (Freire, 2005).
O método desenvolvido por Freire preconizava tomar as representações dos
sujeitos acerca de sua própria realidade para a ação educativa, e alcançou resultados
significativos na alfabetização de adultos em curtos períodos de tempo. No entanto, o
método ia além da alfabetização, e se constituía como uma verdadeira proposta de
Pedagogia da Libertação das classes oprimidas, na tentativa de elucidá-las em relação às
condições de opressão presentes na sociedade e conscientizá-las de sua potência política.
Dessa forma, a valorização dos múltiplos saberes existentes, para além das
fronteiras e delimitações do saber formal ou acadêmico, constituiu-se como um dos
principais pilares da Educação Popular em saúde. Nesse sentido:
40
Um elemento fundamental do método da Educação
Popular é o fato de tomar, como ponto de partida do processo
pedagógico, o saber anterior do educando. No trabalho, na vida
social e na luta pela sobrevivência e pela transformação da
realidade, as pessoas vão adquirindo um entendimento sobre a
sua inserção na sociedade e na natureza. Esse conhecimento
fragmentado e pouco elaborado é a matéria-prima da Educação
Popular (Brasil, 2007).
Freire propunha a afirmação da educação enquanto prática de liberdade em
oposição ao modelo pautado na educação bancária, termo usado pelo autor para definir
os processos educativos que depositam, como nos bancos, conteúdos desconectados do
contexto dos educandos, os obrigando a decorarem sem compreender, sem problematizar.
Como vimos, esta forma de educação foi durante muito tempo hegemônica também no
contexto da saúde, tendo ainda fortes influências nas atuais propostas de educação neste
campo.
Esta forma de educar não criticiza e não qualifica a leitura de mundo dos
educandos. Assim, não os movimenta para a transformação, mas para a alienação e para
a manutenção da ordem hegemônica estabelecida. A educação bancária não
conscientiza, enche os educandos de conteúdos, considerando-os meros recipientes
vazios que necessitam serem preenchidos pelos “comunicados” dos educadores.
Portanto, “não comunica, faz comunicados” (FREIRE, 2005). Quanto mais se transfere
conhecimento, menos se desenvolve a crítica. Esta falsa concepção de educação, que se
baseia no depósito de informes nos educandos, constitui, no fundo, um obstáculo à
transformação.
Enquanto a educação bancária dá ênfase à permanência, a concepção de
educação problematizadora reforça a mudança (FREIRE, 2005). Paulo Freire afirma
que o papel da educação, compreendida em sua perspectiva verdadeira, é o de
humanizar o homem na ação consciente que este deve fazer para transformar o mundo.
Desta forma, a prática educativa tem potencial transformador da realidade concreta,
enquanto prática libertadora. “A ideia da liberdade somente terá plena significação,
quando comungar com a luta concreta dos homens e mulheres por libertar-se”
(FREIRE, 1983, p. 9). Assim, a educação é um instrumento de superação dos obstáculos
da realidade e deve possibilitar a libertação dos homens.
41
Outro aspecto da Educação Popular bastante ressaltado por Freire (2005) é o
reconhecimento e valorização das potencialidades das diversas populações, e não só de
seus aspectos negativos. Considera-se que esse é um elemento estratégico
particularmente no trabalho em áreas faveladas ou comunidades de baixa renda, já que,
no olhar para essas áreas é comum que o negativismo prevaleça, sendo quase sempre
focados elementos como a pobreza, a violência e a escassez, de forma geral. No entanto,
esses espaços são territórios permeados de vida, onde estratégias de sobrevivência são
elaboradas a todo o tempo e usa-se a criatividade, para lidar com a escassez de recursos.
Além disso, dimensões como o prazer, a solidariedade e o lazer também são muito
presentes nesses lugares, embora dificilmente sejam reconhecidas por um olhar externo.
Freire (1980) fala ainda de um componente fundamental da prática educativa, que
é a conscientização: a experiência de realidade ou de construção da realidade se dá
enquanto movimento de aproximação do homem com o mundo, no entanto, a
conscientização seria mais do que isso, seria o processo de aproximação, juntamente com
o de significação, a partir da qual se torna possível a construção de uma consciência
crítica de mundo, que é necessariamente histórica, pois implica que os homens assumam
seu papel de sujeitos na construção de sua realidade.
Nas palavras de Freire (1980, p.35), trata-se de:
“uma educação que procura desenvolver a tomada de
consciência e a atitude crítica, graças à qual o homem escolhe e
decide, liberta-o em lugar de submetê-lo, de domesticá-lo, de
adaptá-lo, como faz com muita frequência a educação em vigor
num grande número de países no mundo, educação que tende a
ajustar o indivíduo à sociedade, em lugar de promovê-lo em sua
própria linha”.
Nesse sentido, Freire acredita na educação como instrumento transformador da
sociedade, defende a docência como instrumento de liberdade e o respeito ao
conhecimento trazido pelos educandos e ao senso comum, em resposta ao autoritarismo
muitas vezes presente na educação bancária.
42
A educação com a ênfase “Popular” é, portanto, necessariamente um espaço de
mobilização, organização e capacitação técnica e científica, em que o conhecimento do
mundo é feito por meio das práticas dos indivíduos e da problematização das relações de
classe que sustentam o modelo societário, que privam as pessoas em situação de opressão
de seu pleno desenvolvimento.
Tomando como ponto de partida a perspectiva de Paulo Freire, e sabendo que
muitos educadores em saúde assumem este discurso como o mais adequado ao trabalho
junto aos grupos populares, como se dá a aplicação do mesmo na prática? Observamos
que, atualmente, um dos maiores desafios da Educação em Saúde no Brasil é a superação
do fosso cultural ainda existente entre os profissionais e a população. Se por um lado, o
processo educativo na área da saúde muitas vezes se consolidou como um veículo de
dominação ou mesmo de violência através de práticas de transmissão, coerção,
messianismo, superioridade e invasão cultural, por outro a Educação em Saúde pautada
no diálogo e no respeito ao saber anterior da população, muitas vezes é descrita em livros
e manuais como o modelo ideal, mas com frequência não aparece na prática cotidiana dos
profissionais, o que remete a uma contradição muitas vezes existente nos processos
educativos entre discurso e prática.
Alguns desses desafios também se tornaram presentes durante a pesquisa na Vila
Olímpica da Maré, conforme discutiremos nos capítulos a seguir.
43
3 – ASPECTOS METODOLÓGICOS
Neste capítulo, apontaremos o percurso metodológico da presente pesquisa
apresentando o processo de escolha do tema, a definição do campo e a construção do
objeto de investigação. Também serão problematizados aqui alguns aspectos da
pesquisa em Ciências Sociais como, por exemplo, a subjetividade relativa à implicação
do pesquisador com o objeto investigado. Outro elemento importante o qual
discutiremos são os aspectos éticos da pesquisa social, principalmente no que se refere à
necessidade do estabelecimento de referencias para além do modelo biomédico que
possam ser usados como parâmetros na regulação deste tipo de pesquisa.
A implicação na pesquisa
Conforme aponta Merhy (2004) no campo da epistemologia e DaMatta (1978) no
da Antropologia, não há pesquisa desinteressada nem pesquisador neutro. Desta forma, a
escolha do tema geral dessa pesquisa, Educação em Saúde em Contextos de pobreza,
dialoga com elementos da minha trajetória profissional, acadêmica e pessoal.
Minha atuação como profissional de saúde, a militância em movimentos sociais, a
participação em estágios de vivência, onde pude conhecer não só outras realidades, mas
também outras perspectivas de saúde e doença, a identificação com as propostas de
Educação Popular, etc; todos esses elementos foram importantes para a definição dos
rumos da presente pesquisa, tanto no que se refere ao tema / objeto, quanto as opções
metodológicas escolhidas.
Um dos grandes desafios do processo de observação e escrita foi unir estas várias
inserções (ora como militante, ora como técnico, ora como acadêmico) em uma nova
categoria: a de pesquisador. Para tanto, foi necessário (re)aprender a olhar a realidade em
um exercício de estranhar o que até então era familiar e familiarizar-se com o
estranhamento de forma a viabilizar a ocorrência de novos olhares e conhecimentos.
Somente dessa forma foi possível me deslocar da questão da neutralidade em pesquisa,
sempre tão discutida no campo das Ciências Sociais, para a categoria que Merhy (2004)
denomina de “sujeito implicado”.
44
Na definição de Merhy o sujeito implicado é
“(...) o sujeito que ambiciona ser epistêmico está
explicitamente subsumido na sua implicação, na sua forma
desejante de apostar no agir no mundo de modo militante, não
se reduzindo ao sujeito subsumido ao poder e à lógica
ideológica, como o sujeito epistêmico imaginado pelos
procedimentos científicos contemporâneos” (p.5).
Ao contrário do suposto “pesquisador neutro em relação ao objeto de pesquisa”,
este é um sujeito marcadamente ideológico, que tem certas concepções de mundo e outras
não, que opta por determinadas opções em detrimento de outras. No entanto, é importante
destacar que se a implicação na pesquisa está ligada a opções e concepções ideológicas
do pesquisador, ela não significa uma relação tendenciosa com o objeto de pesquisa.
Para Merhy (2004) na Saúde Coletiva há dois grandes caminhos científicos para
conformar os processos de investigação e, consequentemente, o processo de implicação
do pesquisador: um deles, o mais consagrado, é composto por estudos que obedecem a
desenhos investigativos, nos quais é claro e fundamental a separação entre o sujeito do
conhecimento e o seu objeto de estudo; já o outro é o conjunto dos estudos que
reconhecem a íntima relação entre sujeito e objeto, criando métodos de pesquisas que
transformam esta relação em componente dos procedimentos epistemológicos. No
primeiro, a possibilidade de positivar a relação sujeito e objeto é dada pela conformação
de um método científico que garanta a objetividade do conhecimento produzido; no
segundo, a incorporação do subjetivo, como constitutivo da íntima relação entre sujeito e
objeto, deve ser operada pelos métodos de estudo para permitirem o seu tratamento como
componente qualitativo fundamental, mas objetivável (p.4).
Tendo em vista a necessidade de se considerar a existência do pesquisador como
fator circular no diálogo entre sujeito e objeto na pesquisa em Ciências Sociais, o desafio
que se coloca é a possibilidade de operar a produção de saberes que sejam considerados
verdades em um contexto de militância, mas que possam ser considerados legítimos
também em outros contextos mediante um processo de validação que passe pelo diálogo
com interlocutores do campo científico e acadêmico, mas também pela coerência com a
realidade do contexto observado.
45
Estabelecendo o desenho metodológico da pesquisa
A partir da definição da Vila Olímpica da Maré como campo de investigação e do
registro das observações lá desenvolvidas, a etnografia foi escolhida como principal
método de investigação, tendo assim como técnicas de pesquisa a observação participante
e as entrevistas semi-diretivas.
Sobre a etnografia, Clifford (1998) aponta que ela pode ser definida como um
método para pesquisa social que agrupa a análise de dados empíricos selecionados
sistematicamente para a pesquisa, provenientes de contextos situados e de uma gama
complexa de fontes, embora o foco seja relativamente estreito, envolvendo grupos
pequenos de indivíduos. A etnografia se caracteriza eminentemente como um trabalho de
campo, cuja observação do objeto de estudo ocorre por um período prolongado, seguido
da produção de dados, expressos por vias textualizadas, influenciadas pelo olhar do
pesquisador / etnógrafo.
Vale ressaltar que no caso da presente pesquisa, o exercício etnográfico
possibilitou a percepção sobre qual a postura em campo era necessária ao bom desenrolar
deste tipo de estudo o que ia ao encontro com as propostas de Educação em Saúde
pautadas em uma perspectiva dialógica, conforme discutiremos nos capítulos seguintes.
Já a observação participante conforme apontam Schwartz & Schwartz (1955) sob
a luz de Malinowski, é uma técnica de coleta de dados onde o observador participa de
situações sociais cotidianas dos observados estando em relação direta com estes o tempo
inteiro. Ao participar da vida deles, no seu cenário cultural, colhe informações
procurando interferir o mínimo possível na dinâmica da relação. Ainda para os autores,
na observação participante o observador é parte do contexto sob observação, ao mesmo
tempo modificando e sendo modificado por este contexto (Schwartz & Schwartz, 1955).
Os relatórios e os diários de campo são as fontes mais habituais de registros das
informações colhidas durante a observação participante. Dessa forma, desde o início da
observação etnográfica mantive um diário de campo onde registrava as informações
observadas no cotidiano da VOM. Neste diário foram relatados a maioria das atividades
acompanhadas, as falas e comportamentos dos atores, bem como minhas impressões
enquanto pesquisador, conforme preconiza Da Matta (1981).
46
Conforme apontamos anteriormente, o grupo de Educação em Saúde chamado
“Ciranda da Saúde” foi escolhido como objeto prioritário desta investigação. A escolha
do “Ciranda da Saúde” se deu pelo caráter diferenciado deste grupo o qual buscava se
aproximar mais claramente de uma proposta dialógica de Educação em Saúde através da
utilização dos referenciais da Educação Popular. Além disso, devido a sua regularidade
semanal o grupo permitia uma observação mais aprofundada por parte do pesquisador
diante da diversidade das demais atividades existentes na VOM.
Após a definição do objeto, submeti o projeto de pesquisa ao comitê de Ética do
IESC / UFRJ a fim de iniciar uma coleta mais sistemática de dados. Decidi também
utilizar o método de entrevistas semi-diretivas com os profissionais de saúde e
frequentadores do grupo, para complementar os dados obtidos através da observação
participante.
As entrevistas foram inicialmente pensadas para serem realizadas com todos os
profissionais que atuavam no Ciranda da Saúde (na época da investigação eram seis)
com o objetivo de colher dados sobre suas formações profissionais, experiências e
concepções sobre Educação em Saúde. Foram realizadas entrevistas com alguns dos
educadores/educandos que participavam do grupo para conhecer suas representações de
saúde e saber qual a avaliação que eles faziam sobre o Ciranda da Saúde. O critério para
a seleção dos mesmos seria a sua aceitação para participar das entrevistas assim como
ter frequentado, no mínimo, dois encontros do grupo. As entrevistas começaram a ser
realizadas por meio de um roteiro semi-estruturado (vide anexo II e III) que teve a
aprovação do Comitê de Ética do IESC no segundo semestre de 2011. No entanto, as
entrevistas foram realizadas com apenas quatro profissionais e uma frequentadora do
grupo durante o período da pesquisa. A grande rotatividade de profissionais e de
frequentadores e a descontinuidade do “Ciranda da Saúde” limitou o número de
entrevistas. Tomamos este aspecto como um dado importante a ser analisado para os
grupos de Educação em Saúde, posto que pode ser considerado como um indicativo da
descontinuidade com que as experiências de Educação em Saúde que possuam a
proposta de se aproximar de uma perspectiva dialógica, vem ocorrendo (Vasconcelos,
2001). Esta discussão será melhor detalhada nos capítulos V e VI.
47
Aspectos éticos da pesquisa em Ciências Sociais
Ao longo da pesquisa, algumas questões dignas de reflexão se apresentaram no
processo de submissão do projeto de pesquisa ao Comitê de Ética. O padrão biomédico
que muitas vezes parece homogeneizar o processo metodológico de diferentes áreas de
saber, até mesmo inviabilizando o surgimento de propostas metodológicas inovadoras,
foi uma dificuldade constatada. A questão da influência do referencial biomédico na
pesquisa social é um tema que está na agenda de discussões de pesquisadores da área
social conforme apontam os trabalhos de Macrae & Vidal (2006) e Cardoso de Oliveira
(2004). Consideramos pertinente trazer aspectos deste debate para este texto, já que nos
deparamos no decorrer da pesquisa com algumas das questões que são atualmente
discutidas.
No decorrer da pesquisa, durante a realização das entrevistas, quando o termo de
consentimento livre e esclarecido (TCLE) foi lido e apresentado aos entrevistados,
percebi que se inseriu de maneira bastante evidente uma formalidade que não havia
anteriormente na minha relação com entrevistados. É difícil dizer até que ponto esta
mudança influenciou ou não nas respostas que obtive, no entanto, me chamou a atenção
a influência de um modelo de ética em pesquisa fortemente baseado no referencial
biomédico que é utilizado como parâmetro para validar pesquisas na área social.
A regulação da pesquisa em saúde no Brasil foi realizada pela Resolução do
Ministério da Saúde de número 196 do ano de 1996. Nessa resolução são estabelecidas
as “normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos” (Brasil, 1996).
Embora a resolução tenha a pretensão de ser um documento válido para todas as áreas
disciplinares, sua inspiração normativa e metodológica é claramente pautada no
referencial biomédico, o que imprime características disciplinares muito específicas e
até mesmo estranhas à prática investigativa das Ciências Humanas, em um exemplo do
que poderíamos chamar de “etnocentrismo” no referencial antropológico. Um exemplo
disso é que, de acordo com a resolução, o passo inicial do estabelecimento de contato
com o sujeito pesquisado é a leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (TCLE), o qual deve conter todos os aspectos referentes aos objetivos,
hipóteses, métodos, riscos, benefícios e questões referentes ao anonimato e sigilo dos
sujeitos da pesquisa.
48
Na pesquisa social, principalmente as baseadas da observação participante, este
tipo de contato inicial não só pode comprometer, como até mesmo inviabilizar a
construção de um vínculo entre pesquisadores e pesquisados. Vale destacar também que
não é possível, e nem mesmo desejável, que pesquisador da área social possa definir ou
prever com total precisão todos os seus interesses (presentes e futuros) de pesquisa, no
momento recomendado pela Resolução nº 196/96 para a obtenção do consentimento
informado, já que um dos pressupostos desse tipo de pesquisa é justamente sua
possibilidade de transformação a partir da realidade do campo pesquisado.
Para Cardoso Oliveira (2004):
“Quando o antropólogo faz a pesquisa de campo ele tem
que negociar sua identidade e sua inserção na comunidade,
fazendo com que sua permanência no campo e seus diálogos
com os atores sejam, por definição, consentidos.” (p. 34).
Conforme apontam Macrae & Vidal (2006) a Resolução nº 196/96, ainda não foi
plenamente apreciada em suas implicações para os estudos das Ciências Sociais. Os
autores apontam que essa resolução parece ter sido concebida com o propósito central
de proteger os sujeitos envolvidos em pesquisas de natureza biomédica por meio da
instituição de uma série de formalidades que as rejam. Mas, devido à costumeira
generalização dos valores e padrões da biomedicina para todas as outras disciplinas
científicas relacionadas à saúde, essas estipulações foram estendidas a outras áreas de
estudo, como a Antropologia, passando a ameaçar a plena utilização de alguns de seus
métodos, como a observação participante.
Para Luna (2008), o TCLE é um instrumento criado com o intuito de evitar
abusos na pesquisa e estabelecer uma relação ética com o sujeito pesquisado. A autora
ressalta que o termo é valioso por expressar o direito do sujeito pesquisado de obter
informações precisas sobre a pesquisa e o pesquisador, além de oferecer respaldo aos
pesquisadores de possíveis processos, pois esclarece e publiciza os termos da pesquisa,
assim como explicita o caráter voluntário da participação dos sujeitos. No entanto, é
importante não perder de vista a complexidade de normatizar campos disciplinares
distintos como, por exemplo, o biomédico e o social, a partir de uma única visão.
49
Nesse sentido, Cardoso de Oliveira (2004) destaca a diferença entre pesquisas
em seres humanos, como no caso da área biomédica, e pesquisas com seres humanos,
que caracterizaria a situação das Ciências Sociais, principalmente a da Antropologia. A
pesquisa em seres humanos parte do pressuposto do lugar passivo do pesquisado o qual
é um objeto de intervenção e muitas vezes vai emitir respostas a nível biológico (como
por exemplo, nas pesquisas medicamentosas). No caso da pesquisa com seres humanos,
diferentemente da pesquisa em seres humanos, o sujeito da pesquisa deixa a condição de
“cobaia”, ou de objeto de intervenção para assumir o papel de ator (ou de sujeito de
interlocução).
Assim, entendemos que o principal desafio de uma avaliação ética de um projeto
de pesquisa em Ciências Humanas não deve ser o de enquadrá-lo na matriz de análise já
existente, mas entender que cada desenho metodológico pressupõe uma nova
sensibilidade ética. É preciso reconhecer que não há, e nem deve haver, uma fórmula de
julgamento da ética em pesquisa que seja metadisciplinar.
No caso de nossa pesquisa a saída encontrada para o cumprimento das
exigências éticas foi a adoção, para o período de observação participante, da
comunicação verbal sobre a pesquisa e de uma versão simplificada do TCLE e
indagação verbal sobre a concordância em participar da pesquisa. O TCLE por escrito
foi apresentado aos sujeitos que participaram das entrevistas, assim como foi feita uma
leitura do documento em conjunto com os entrevistados para esclarecer eventuais
dúvidas.
Cumpre ressaltar que o processo de revisão pelo Comitê de Ética da instituição
de pesquisa foi bastante produtivo, na medida em que incitou o debate a respeito de
certos aspectos éticos rígidos que puderam ser flexibilizados tomando como principal
referência o compromisso primordial com o bem-estar e livre-arbítrio dos sujeitos da
pesquisa. Nesse sentido os debates sobre o projeto de pesquisa com integrantes do
Comitê de Ética do IESC / UFRJ ocorridos em disciplinas do curso de mestrado foram
bastante elucidativas em relação aos processos de avaliação e critérios do Comitê.
50
Procedimento de análise
A pesquisa etnográfica é uma experiência compreensiva que busca envolver a
totalidade da pessoa e de um determinado contexto sociocultural, o que torna mais
difícil apresentar uma metodologia articulada em torno de passos específicos a serem
seguidos visando assegurar um produto final. Nesse sentido a análise dos dados
colhidos durante a pesquisa teve um caráter multi-referencial, posto que foram
produzidos a partir de materiais variados – as notas de campo e as entrevistas
semiestruturadas com profissionais e frequentadores do grupo “Ciranda da Saúde”.
Levando-se em consideração as diferenças entre os instrumentos de coleta de
dados utilizados, os quais geram informações com significados distintos, deu-se
especial atenção para que tais nuances não se perdessem no processo de organização e
interpretação dos dados. Nesse sentido, o material resultante da observação participante,
referente às notas de campo, foi o “fio condutor” para todo o processo analítico.
O Retorno dos Dados
Em relação aos resultados da pesquisa, alguns elementos que eram esperados se
referiam à contribuição com o processo de reflexão e crítica das ações de Educação em
Saúde desenvolvidas em contextos populares assim como fornecer apontamentos para a
construção de uma perspectiva de Educação em Saúde dialógica, participativa e
emancipatória. Para tanto, foi pensada a devolução dos dados para os implicados na
pesquisa e demais interessados por meio da entrega do manuscrito final à direção da
VOM e aos profissionais que participaram dos grupos. Nesse sentido também foram
pensadas outras ações como a divulgação do trabalho por meio de conferências abertas
aos profissionais e frequentadores da VOM e eventualmente em oficinas de Educação
em Saúde que possam ser solicitadas por eventuais interessados.
Vale ressaltar que algumas atividades de divulgação e discussão do projeto
pesquisa foram desenvolvidas, tanto com os profissionais da VOM quanto em
atividades das disciplinas do mestrado acadêmico, durante a sua construção, o que
trouxe importantes elementos que auxiliaram na reflexão deste trabalho como, por
exemplo, as possíveis contribuições da Antropologia e da Educação Popular.
51
4 – VILA OLÍMPICA DA MARÉ: UMA ETNOGRAFIA
Neste capítulo há informações e impressões sobre a Maré e sua população e
também sobre a Vila Olímpica e seus frequentadores. Há ainda a apresentação de alguns
dos dados colhidos a partir do método etnográfico na instituição, com ênfase na descrição
das atividades de Educação em Saúde lá desenvolvidas. Busca-se aqui contextualizar as
discussões posteriores através do relato vivo do campo e de seus atores.
O campo da pesquisa: O Complexo da Maré
Situado entre as linhas Vermelha e Amarela e a Avenida Brasil, duas das
principais vias de acesso ao Rio de Janeiro, o Complexo da Maré é hoje considerado um
dos maiores conjuntos de favelas do Brasil.
Assim chamada por causa dos mangues e praias que dominavam sua paisagem há
algumas décadas atrás, a Maré se localiza as margens da Baía de Guanabara, o que lhe
conferiu algumas características marcantes: durante muitos anos sua paisagem foi
dominada por residências de palafitas, com um grande número de habitações precárias
suspensas por madeiras sobre a lama e água que havia em abundância na região. Esta
imagem é ainda muito forte na memória dos moradores, principalmente os mais antigos:
muitos até se emocionam quando lembram da época em que as marés da Baía de
Guanabara invadiam as casas nos tempos de chuva. Com o passar dos anos e com a
intervenção dos moradores e do poder público quase toda a região foi aterrada, ganhando
assim o aspecto de grande aterro que até hoje lhe é característica.
Desde o período colonial a região da Maré foi um importante espaço de circulação
de pessoas e mercadorias, chegando a abrigar dois portos ao longo de sua história. Com a
construção da Avenida Brasil na década de 40, houve a implantação de um cinturão
industrial às margens da avenida que, somado ao isolamento dos terrenos na orla da Baía
de Guanabara e à facilidade de acesso a tais áreas, criou condições bastante favoráveis
para o crescimento da ocupação da área (Silva, 2006).
A ocupação da região atingiu seu auge na década de 1970, tendo se espraiado
sobre as águas da Baía de Guanabara, como um impressionante aglomerado de
habitações construídas sobre palafitas. Na década de 1980, por meio do chamado Projeto
52
Rio 5, houve a erradicação desse tipo de habitação. Foram realizados grandes aterros e
construídos conjuntos habitacionais na região para o reassentamento das famílias
removidas das áreas palafitadas.
As figuras abaixo mostram algumas das transformações ocorridas nas últimas
décadas nas habitações e no aspecto geral da região, com o aterramento de grande parte
de sua área.
Vista parcial da região da Maré em 1971
Vista da região da Maré na atualidade
Na década de 1990, a Maré foi objeto de outro processo de reassentamento
promovido pela Prefeitura, destinado principalmente às populações desabrigadas e aos
53
moradores de áreas de encostas e margens de rios, consideradas de risco. Todas estas
intervenções desenvolvidas na Maré ao longo dos anos tiveram características políticas e
arquitetônicas muito peculiares, deixando marcas urbanísticas muito visíveis e distintas
entre si nas diferentes comunidades que compõe o Complexo e o tornando um dos
maiores laboratórios urbanos de habitação popular do país. Conforme destacam Varella,
Bertazzo, Jaques (2002).
“A pseudo-semelhança entre as mais diversas favelas
cariocas pode ser desmentida em um rápido passeio pela Maré. A
diversidade de formas está patente nas diferentes comunidades
do complexo. Quase todas as morfologias urbanas e tipologias
arquitetônicas referentes a habitações populares têm ou tiveram
um exemplar na Maré: da favela labiríntica de morro ao mais
cartesiano conjunto habitacional modernista, passando por
palafitas em áreas alagadas e conjuntos habitacionais
favelizados. Vai-se do padrão mais informal ao mais formal, que
acaba se informalizando também” (p.19).
Ainda na década de 90, ocorreu na região o fortalecimento do chamado “poder
paralelo” que consiste no crime organizado financiado pelo tráfico de drogas e armas. A
região chegou a estar dividida entre três facções criminosas que rivalizavam entre si e
dividiram territorialmente a Maré, o que culminou em um histórico recente de frequentes
conflitos armados, em dificuldades no processo de integração das localidades do
Complexo e em uma marginalização ainda maior da região, que passou a ser também
estigmatizada pela violência. A polícia também é outro elemento desta complexa trama,
já que suas atuações na região são historicamente marcadas pela truculência e por abusos.
Hoje a região ainda se encontra dividida entre duas grandes facções que frequentemente
disputam territórios de maneira violenta o que, aliado a intervenção muitas vezes tão ou
mais violenta da polícia, têm reflexo direto no cotidiano da população, como
discutiremos mais detalhadamente ao longo deste capítulo.
Vale destacar que no momento da pesquisa se discutia ainda a chamada
“pacificação” da região: uma política de segurança da Secretaria Estadual de Segurança
Pública do Rio de Janeiro implementada em outras comunidades do município pelas
chamadas UPP’s (Unidades de Polícia Pacificadora) que pretende instituir polícias
54
comunitárias em favelas como forma de desarticular quadrilhas que antes controlavam
estes territórios como estados paralelos. Com isso as incursões policiais no Complexo
passaram a ocorrer com frequência cada vez maior, o que também aumentava a
possibilidade de conflitos armados.
A região ganhou status de bairro em 1994 tomando alguns dos contornos
territoriais que permanecem até a atualidade. No entanto, mesmo este reconhecimento
em termos legais e urbanísticos não foi suficiente para que a Maré tivesse sido de fato,
integrada ao projeto de “cidade maravilhosa” idealizado por gestores, mídia e boa parte
da população. Nesse sentido Varella, Bertazzo, Jaques (2002) ressaltam que:
“A Maré, como a grande maioria das favelas, muito
raramente aparece nos mapas da cidade, e, apesar de situar-se
em uma área extremamente movimentada (entre a Linha
Vermelha, a Linha Amarela e a Avenida Brasil) e de ser
habitada por milhares de pessoas, é praticamente desconhecida
da maioria dos cariocas, que ainda não a consideram parte
integrante da ‘cidade maravilhosa’” (p.14).
A população
Segundo o último censo de 2010 a Maré possui uma população de
aproximadamente 139 mil habitantes4. O complexo é dividido em 16 comunidades:
Marcílio Dias, Praia de Ramos, Roquete Pinto, Parque União, Rubens Vaz, Nova
Holanda, Parque Maré, Nova Maré, Baixa do Sapateiro, Morro do Timbau, Bento Ribeiro
Dantas, Conjunto Pinheiros, Vila dos Pinheiros, Novo Pinheiros, Vila do João e
Conjunto Esperança.
Vale ressaltar que a maior parte das informações demográficas sobre a população
da Maré são advindas de um grande censo realizado no bairro no ano 2000 pelo Centro
de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM), uma organização não-governamental
localizada no conjunto de favelas da Maré, assim como pelo censo de IBGE realizado no
4 Estimativas extra-oficiais de organizações não-governamentais que atuam na Maré apontam para um número total
entre 150 e 200 mil habitantes.
55
mesmo ano. Atualmente estes dados estão sendo atualizados pela consolidação dos dados
colhidos pelo censo do IBGE em 2010 e pela realização de um novo censo-Maré que está
sendo realizado na região em 2012 por organizações do terceiro setor.
Grande parte da população é composta por pessoas negras, com baixa
escolaridade, baixa renda e precárias condições de trabalho (CEASM, 2000). Segundo o
IBGE em 20005 o rendimento nominal familiar per capita na Maré era de R$ 214,00, dez
vezes menor se comparado com o Leblon, bairro de classe média alta, que era de R$
2.800,00. A população encontra-se inserida, principalmente, no mercado informal de
trabalho, em atividades autônomas chamadas “bicos”. Acrescenta-se ainda que cerca de
70% das famílias são chefiadas por mulheres. (REDES Maré).
Em relação a estes dados demográficos, vale destacar um curioso episódio: certa
vez fui convidado a fazer uma apresentação sobre Educação em Saúde na VOM para os
profissionais que lá atuam, dentre eles professores de educação física, músicos,
administradores, profissionais da saúde etc. Em determinado momento da apresentação
citei os dados demográficos da Maré e prontamente fui interrompido por alguns
profissionais, que também eram moradores da região, que afirmaram incisivamente que
os dados não correspondiam à realidade do bairro. Um dos exemplos que eles deram foi
sobre a existência de uma classe média alta dentro da própria Maré, o que diferia muito
dos dados apresentados. Após isso conversamos sobre a questão da generalização que
muitas vezes os dados estatísticos podem promover, quando não acompanhados de outros
tipos de análise. Este episódio foi marcante para mim, pois simboliza a recusa destes
moradores / profissionais em serem “quantificados” através de levantamentos e
estatísticas que, muitas vezes, não representam suas realidades, ou a forma como eles a
vivenciam. Neste sentido, autores como Fonseca (2004) apontam a necessidade de
superar o olhar pautado no chamado “reducionismo econômico”, que centra sua atenção
nas respostas às condições de pobreza, renda e emprego e que muitas vezes deixa de fora
da análise os modos de enfrentar as adversidades, a complexidade das relações e a
condição de sujeito que os indivíduos assumem diante da realidade que vivem.
Outra característica marcante da comunidade é a presença maciça de imigrantes,
principalmente das regiões Norte e Nordeste do país, que vieram e ainda vem em busca
5 Essas informações demográficas serão futuramente atualizadas com os dados do Censo de 2010.
56
de melhores condições de trabalho e de vida, o que confere uma multiplicidade cultural
muito significativa à região. A aglomeração é outro fator importante para se definir
alguns aspectos da área como a verticalização das residências e a intensa circulação de
pedestres (REDES Maré). No Censo Maré (CEASM, 2000) foram contados 38.273
domicílios na região com uma média de 3,45 habitantes por domicílio, número que se
aproxima da média nacional, que é de 3,55 habitantes por domicílio. No entanto,
enquanto no Brasil a taxa de densidade populacional é de 232,7 hab / 100 em
comunidades que compõem a Maré como o Parque Maré, por exemplo, esta taxa é de
965,9 hab / 100 o que confirma a grande aglomeração populacional na área.
A taxa de analfabetismo na região é de 11,4%, quase o triplo da taxa do município
do Rio de Janeiro, que é de 4,4%. (IBGE, 2000) A rede de ensino apresenta uma oferta
bastante reduzida. Ela é composta por 16 escolas públicas de ensino fundamental, 7
creches comunitárias e 3 escolas públicas de ensino médio.
A Maré ocupa a terceira pior posição (129° lugar) na classificação por Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH), em relação aos outros bairros da cidade, com IDH em
torno de 0,722. A esperança de vida ao nascer na região, segundo o IBGE em 2000 era de
66,58 anos.
Chegando na Maré
Antes de atuar na VOM já havia tido contato ou efetuado trabalhos em algumas
outras comunidades do Rio de Janeiro, no entanto, ainda não conhecia a Maré e a
imagem que tinha do Complexo não diferia muito da representação que o lugar tem no
senso comum da sociedade carioca: um lugar violento e com forte presença do tráfico.
No primeiro ano da observação, ia duas vezes por semana à VOM e sempre chegava na
Maré pela Vila do João um dos principais e mais movimentados acessos ao Complexo.
Ficava esperando a Kombi que fazia o trajeto de aproximadamente 10 minutos até a
Baixa do Sapateiro, local próximo à VOM. Já nesse momento, percebia que era
observado pelas pessoas que trabalhavam no ponto de moto-táxi que ficavam nessa
entrada da comunidade e pelos próprios motoristas das kombis. Com o tempo e a
regularidade das minhas idas, acabei ficando conhecido como “trabalhador da VOM” e
cheguei a fazer “amizade” com alguns dos motoristas que por vezes diziam coisas sobre
57
a comunidade ou conversavam banalidades. No entanto, sempre tinha o cuidado de, ao
chegar na entrada da favela, tirar os óculos escuros. Evitava roupas pretas ou vermelhas,
cores relacionadas às facções criminosas que atuavam na região. Assim que entrava na
Kombi tirava os fones de ouvido, para ficar mais atento a qualquer possibilidade de
evento mais problemático. Não usava o telefone celular dentro da favela para não
levantar qualquer tipo de suspeitas.
Ao começar a transitar pela comunidade percebi que kombis, motos, carros,
pessoas, bicicletas, animais se espremiam em ruas estreitas em um arranjo
aparentemente caótico para quem olhava de fora. As normas de trânsito “do asfalto”
parecem não existir. Era razoavelmente comum visualizar situações que constituiriam
graves infrações ou mesmo não ocorreriam em outros contextos ou lugares (como
crianças guiando motos e carros, carros andando na contra-mão, pessoas ostentando
armas dentro ou fora dos veículos, etc), já indicando, a partir da entrada no primeiro
quarteirão da favela, que outras lógicas de locomoção, sociabilidade e convivência
funcionavam ali (diferentes das do “asfalto” que se encontrava a apenas alguns metros)
No caminho até a VOM era comum passar por algumas “bocas de fumo” e ver
pessoas armadas, muitas vezes com fuzis e metralhadoras, no entanto, nunca tive
problemas no acesso ou na saída da favela. As situações de maior tensão que presenciei
foram com operações policiais, quando me deparei com comboios de carros da polícia
que passavam fazendo mira com as armas ou com o “Caveirão”, o carro blindado usado
pelo batalhão de operações policiais especiais da Polícia Militar do Estado do Rio de
Janeiro em incursões nas favelas na capital fluminense. O Caveirão era sempre
sinônimo de uma tensão eminente na comunidade, pois indicava que operações policiais
estavam sendo realizadas e que consequentemente havia a possibilidade de tiroteios
entre policiais e traficantes.
A Vila Olímpica
Inaugurada em 1999 e fruto de um projeto que visava criar opções de cultura,
lazer e espaços para a prática de esportes em regiões da cidade marcadas pela pobreza e
pela violência, a Vila Olímpica da Maré (VOM) surgiu por meio da parceria entre a
prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, algumas das associações de moradores da Maré e
58
entidades do Terceiro Setor. A VOM foi construída na confluência das comunidades
Baixa do Sapateiro e Nova Holanda Atualmente estas duas comunidades demarcam a
divisa entre as duas facções que disputam o controle do tráfico no Complexo da Maré, o
que torna a região da VOM palco de frequentes conflitos entre traficantes e de rotineiras
operações policiais. A região é chamada por alguns moradores de Faixa de Gaza, em
uma alusão aos frequentes episódios de violência. Em relação à localização da instituição
Melo (2005) afirma que
“A VOM localiza-se numa espécie de fronteira
imaginária, constituída por um ‘valão’ e por uma rua que corta
as duas comunidades delimitando facções rivais que controlam a
venda de drogas na Maré. A constituição da VOM passou a
representar um espaço ‘neutro’ em relação aos conflitos entre as
facções e onde haveria a possibilidade de convívio entre pessoas
de todas as comunidades” (p.280).
A VOM fica também às margens da Linha Vermelha que é uma das principais
vias expressas do Rio de Janeiro e é o caminho mais utilizado por quem chega do
Aeroporto Internacional Tom Jobim, o principal da cidade. De frente para os dois portões
principais da Vila se localiza também a região conhecida como “casinhas” que é
reconhecidamente pelos moradores e profissionais umas das áreas mais pobres e
vulneráveis do Complexo da Maré.
Melo (2005) aponta que a criação de uma Vila Olímpica na região era uma
demanda das associações de moradores desde meados da década de 90 e que esta
mobilização ganhou força com o pleito da cidade do Rio de Janeiro de sediar os Jogos
Olímpicos de 2004. Nesta época se chegou a cogitar a construção de um muro que
encobrisse a Maré, já que, como descrito anteriormente, a região fica às margens de
alguns dos principais acessos à cidade. No entanto, devido à articulação de líderes
comunitários, de representantes da ONG Viva Rio, de membros da prefeitura Rio e da
Escola de Educação Física da UFRJ foram realizados no final da década de 90 vários
eventos esportivos no local que tiveram grande repercussão, inclusive na mídia e
consolidaram politicamente o projeto de construção de uma área fixa para a prática de
atividades físicas, esportivas, culturais e educativas.
59
Construída em um grande terreno, a VOM conta com uma estrutura que inclui um
grande ginásio poliesportivo o qual é usado para atividades como ginástica, dança, karatê,
etc. No ginásio também acontecem os grandes eventos da VOM (festas, apresentações
dos alunos, competições, etc), assim como reuniões gerais com os alunos e responsáveis.
Abaixo das arquibancadas do ginásio e no seu entorno ficam uma série de salas que são
usadas como escritórios e espaços para oficinas. A área da VOM abrange também um
grande campo de futebol o qual abriga abaixo de suas arquibancadas uma série de salas
que são destinadas a guardar, materiais, a sala da aula de percussão, a sala da pedagogia,
e o espaço saúde, composto por uma série de salas utilizadas para as atividades da equipe
de saúde. A VOM conta ainda com três quadras externas (duas delas usadas para o
futebol, o vôlei e o basquete e uma para o tênis, o alongamento e o skate), uma cantina (a
qual produz lanches para os alunos inscritos no programa de complementação alimentar,
o qual detalharemos a frente) e duas piscinas, sendo uma delas semi-olímpica. A área
toda é bastante ampla e arborizada, sendo necessários alguns minutos de caminhada para
se deslocar entre as instalações. Há ainda uma significativa parte do terreno da VOM que
não possui construções. No momento se discute a possibilidade de construção de uma
escola técnica e um centro de saúde nessa parte do terreno.
Para a operação da VOM, foi criada em 1999 uma ONG para receber a concessão
da administração da Vila Olímpica, a UEVOM (União Esportiva da Vila Olímpica da
Maré). A criação da UEVOM tinha como fundamento possibilitar a ampliação das
fronteiras de financiamento da instituição, já que a participação financeira da Prefeitura
do Rio de Janeiro deveria ser temporária, até a VOM ser sustentável com a receita
advinda das “parcerias” com empresas estatais e privadas. Em 2000 a UEVOM
conseguiu também o apoio da Petrobras por meio do financiamento de ações e projetos.
Dessa forma, até o momento, Prefeitura e Petrobras dividem os custos da operação da
Vila Olímpica da Maré, sendo assim seus principais parceiros. A VOM conta ainda com
o apoio de dezenas de empresas e entidades não-governamentais que a apoiam através da
doação de materiais, alimentos, etc. Algumas áreas possuem orçamentos advindos de
projetos específicos, como é o caso da saúde que recebe uma verba por meio de um
projeto junto a Petrobrás que é renovado periodicamente.
Segundo a direção da instituição, atualmente a atuação da VOM tem como
prerrogativa o desenvolvimento da cidadania, tendo os esportes como vetor de atração da
60
grande massa de crianças e jovens (VOM, 2011). Nesse sentido algumas das atividades
oferecidas são os esportes (futebol, basquete, ginástica, karatê, etc), a dança (ballet,
folclórica, street dance, etc), a música (coral, violão, percussão, etc) e o teatro. Há
também oficinas educativas nas áreas de linguagem, matemática e lógica para alunos
matriculados na rede pública de ensino da região. Há ainda um projeto de educação física
adaptada para pessoas com deficiência (PCD). Desde o ano de 2009, parte das atividades
da VOM estão integradas à proposta do Projeto Educar, que conta com o apoio da
Petrobras. Trata-se de uma proposta de trabalho que busca imprimir às atividades
desenvolvidas na VOM um foco desenvolvimentista pautado na concepção de diferentes
habilidades das crianças e jovens.
No momento da pesquisa a VOM oferecia atividades culturais e esportivas para
mais de 8000 inscritos. A ênfase nos esportes a qual marca a VOM desde sua
inauguração atrai um público majoritariamente de crianças e adolescentes. São, em
grande parte, moradores da própria Maré, estudantes, advindos de famílias de baixa-
renda. Há também uma população de adultos em menor número e uma parcela
significativa de frequentadores da terceira idade, os quais procuram atividades culturais
ou atividades específicas como alongamento, hidroginástica, etc. Várias escolas
públicas da região levam seus alunos para a VOM para que eles pratiquem atividades
esportivas com os profissionais locais, assim como para frequentarem atividades de
reforço escolar. Há também populações específicas que frequentam a VOM como o
caso de portadores de deficiência física, motora, visual, etc, que são vinculados a
atividades específicas ligadas ao Programa para Pessoas com Deficiência (PCD) que
envolve ações ligadas a reabilitação.
A VOM conta com profissionais das mais variadas áreas em seus quadros. Desde
profissionais nas áreas de limpeza e conservação, passando pelos professores dos
diversos esportes, os profissionais de saúde, até os da área administrativa a instituição
emprega quase cem profissionais.
Em relação ao papel dos profissionais na instituição, Melo (2005) aponta que:
“No início dos trabalhos da VOM, as atividades eram
desenvolvidas por pessoas da Maré que, de alguma forma, já
atuavam com esportes, seja em ‘escolinhas’ de futebol,
61
organizando campeonatos ou mesmo na condição de diretores de
esportes nas associações de moradores. Por serem conhecidos no
local, também tiveram a função de trazer alunos para o projeto”
(p.283).
Atualmente os vínculos trabalhistas, em sua grande maioria, são feitos por meio
de uma cooperativa que organiza e administra os recursos recebidos da Prefeitura e das
entidades que apoiam a instituição. Há também servidores do município do Rio de
Janeiro que são cedidos para atuarem na VOM (principalmente os professores de
educação física). Vale ressaltar que sob a aparente mudança na natureza da inserção no
mundo do trabalho, já que teoricamente em uma cooperativa não haveria relação de
subordinação entre empregador e empregado, e sim uma relação entre iguais,
configurava-se um mecanismo explicito de precarização das relações de trabalho, sem os
direitos trabalhistas garantidos pela CLT. Assim, direitos como férias remuneradas, 13º
salário, licença maternidade, dentre outros, não faziam parte do cotidiano de grande parte
dos trabalhadores da VOM o que tinha como reflexo a alta rotatividade de profissionais.
Há ainda um direcionamento da direção da instituição para que os moradores da região
ocupem os postos de trabalhos disponíveis, o que ocorre com mais frequência nos cargos
de nível médio (áreas administrativas, segurança e limpeza), mas também em cargos do
nível superior (professores, profissionais de saúde, etc)
Além das atividades esportivas e educativas, a VOM conta com uma unidade de
Saúde e Nutrição que assiste às crianças, adolescentes e adultos que a frequentam. A
unidade é formada por algumas salas de atendimento e uma equipe de profissionais de
diferentes áreas ligadas à saúde como a Enfermagem, a Nutrição, a Medicina, a
Psicologia e o Serviço Social. O caráter multiprofissional da equipe visa possibilitar a
construção de um olhar mais amplo sobre os indivíduos e seus processos de saúde e
doença com um enfoque voltado para a promoção da saúde.
Ainda na esfera da Saúde e da Nutrição, existia na VOM na época da pesquisa um
projeto de complementação alimentar criado em 2005 pela equipe de Nutrição o qual
fornecia alimentos fortificados e hipercalóricos para crianças e adolescentes em situação
de baixo peso ou desnutrição. Também os alunos em situações de risco social como
dificuldade de acesso a alimentos, situações de trabalho infantil e dificuldades de
62
habitação eram incluídos no projeto a partir de uma avaliação da equipe
multiprofissional.
Durante o período da investigação as equipes de Nutrição e Saúde foram
unificadas sob uma única coordenação, o que viabilizou a ampliação tanto do enfoque,
quanto das ações voltadas para a saúde. Nesse sentido a Educação em Saúde foi adotada
como perspectiva central de trabalho com o objetivo de estimular a co-responsabilização
dos frequentadores da VOM na produção do cuidado.
Após aproximadamente dois anos de inserção no campo de pesquisa, as equipes
de saúde e nutrição interromperam suas atividades devido ao encerramento do projeto
que financiava suas ações e o pagamento dos profissionais. Este projeto tinha o
financiamento da Petrobrás e possuía a duração de três anos, tendo a possibilidade de
renovação ao fim desse período. O encerramento do prazo do projeto ocorreu no início de
2012 e até o momento da conclusão da pesquisa, no segundo semestre do mesmo ano, as
atividades de saúde estavam suspensas e os profissionais aguardavam a renovação do
projeto para retornarem à VOM.
As características deste projeto serão descritas com mais detalhes no próximo
capítulo.
Iniciando a observação na VOM
Nos quatro primeiros meses que estive na VOM, ainda como residente em 2010,
iniciei minha observação a partir do projeto de complementação alimentar que existia na
instituição e era destinado a crianças e adolescentes em situação de risco nutricional. O
objetivo da observação neste primeiro momento era desenvolver alguma produção
relacionada ao projeto. Assim, fiquei observando sua dinâmica de funcionamento de
forma a mapear possíveis questões a serem investigadas. Cabe ressaltar que, na época,
era intenção da coordenação da equipe de saúde a implementação de atividades
educativas no espaço da cantina de forma que havia a expectativa que minha pesquisa
pudesse contribuir nesse sentido. Assim, passava a maior parte do tempo na cantina
conversando com os profissionais de lá e com os alunos inscritos no projeto.
63
A cantina se localizava em uma área central dentro do espaço da VOM, ficando
próxima a principal entrada da instituição e entre o ginásio, as piscinas e as quadras
poliesportivas. Era um espaço independente dos demais, composto por uma área
cercada por uma tela de metal onde eram preparados os alimentos. Ainda havia na
estrutura física da cantina uma sala que era usada como espaço de administração e um
banheiro. Os lanches eram distribuídos por meio de uma janela na tela de metal de
forma que os frequentadores da cantina não tinham acesso a sua área interna, que era
reservada somente para profissionais. Durante o período em que estive na VOM foi
construída, em resposta a uma demanda da coordenação da saúde e da nutrição, uma
área coberta, também cercada com telas de metal, em anexo a cantina que passou a ser
utilizada como refeitório e espaço para atividades educativas e oficinas sendo ocupada
com cadeiras e mesas.
Durante o período que estive na cantina observava a entrega do lanche para
algumas crianças, assim como o processo de pesagem e avaliação nutricional. Quando
necessário ajudava em alguma atividade, como em situações que acompanhei a equipe
em passeios com as crianças. Conversava bastante com os profissionais e com as
crianças do projeto de complementação, no entanto, não tinha muito contato com os
demais profissionais e frequentadores da VOM, pois passava bastante tempo no espaço
da cantina (nessa época passava em torno de 12 horas semanais em campo, divididas em
dois dias na observação). Como a princípio não tinha um objeto definido, por vezes
tinha a sensação de que não tinha o que fazer ou me sentia inadequado por estar vendo
os profissionais trabalharem sem ter muito como contribuir.
Ao que tudo indica isto é um aspecto relativamente comum ao processo
etnográfico: em algum momento é até mesmo esperado que o pesquisador sinta-se
desconfortável na sua posição de “simples observador”. Malinowiski (1976) já apontava
como este tipo de dificuldade pode aparecer principalmente nos momentos iniciais da
investigação quando o observador ainda não se apropriou inteiramente do universo
simbólico dos observados e não possui uma função ou papel social definido junto a eles.
O projeto de complementação alimentar era conhecido também como “Pão da
Vida” atendendo crianças e adolescentes na faixa etária de 2 a 18 aos de idade em
situação de baixo peso. Para ingressar no projeto a criança ou adolescente passava por
uma avaliação nutricional realizada na própria cantina pela nutricionista responsável
64
pelo projeto. Quando diagnosticada a situação de baixo peso ou desnutrição a criança
era inscrita e passava a receber diariamente um lanche nutritivo e fortificado para
auxiliar no ganho de peso e na prevenção de hipovitaminoses. Além desta ação, os
jovens e suas famílias também eram acompanhados por uma profissional do serviço
social e participam de atividades educativas e de promoção à saúde com equipe
multidisciplinar, bem como de atividades interativas e culturais promovidas pela VOM.
Ao longo da observação tive a impressão de que muitas crianças, mesmo em
situação de peso ideal, buscavam “o pão da vida” por uma situação de escassez, que
algumas vezes não era só a material, embora essa visivelmente fosse bastante presente.
As próprias profissionais da cantina identificavam que havia também uma demanda de
cuidado, já que ao irem pegar o lanche as crianças eram recebidas com atenção. Essa foi
uma das principais questões que pude observar nos meses em que fiquei na cantina.
Neste período tive dificuldades de participar ou mesmo organizar atividades regulares
de Educação em Saúde pela própria dinâmica do espaço, já que as crianças iam quase
que diariamente pegar os lanches, mas ficavam pouco tempo lá.
Nesse mesmo período começaram a se estruturar algumas atividades regulares
na equipe de saúde com a chegada de novos profissionais e o direcionamento com foco
na promoção e Educação em Saúde dado à equipe pela nova coordenadora. Com isso,
comecei cada vez mais dividir o tempo que passava na VOM entre a observação na
cantina e a participação de algumas atividades e discussões acerca das ações de
Educação em Saúde pensadas pela equipe. Embora reunidas sob a mesma coordenação
a equipe do projeto de complementação e a equipe de saúde ocupavam espaços físicos
diferentes. Este foi um período interessante onde passei a circular bastante na
instituição, o que me permitiu me aproximar de outros profissionais e usuários da VOM
e, consequentemente, a criar vínculos que facilitavam minha participação no cotidiano
deles.
Nos meses seguintes foram se definindo algumas das atividades regulares de
Educação em Saúde na VOM, em um processo em que pude participar ativamente
sendo até mesmo solicitado pela equipe a dar ideias e contribuições, o que me fez ter
uma grande sensação de pertencimento à equipe. Com isso passei a frequentar alguns
dos grupos regulares de Educação em Saúde que eram realizados pela equipe como o
65
grupo de nutrição e o Ciranda Saúde, além de participar ativamente do cotidiano dos
profissionais na instituição.
A partir deste momento, o processo se inverteu: se antes me sentia “deslocado”
devido a ausência de uma função definida junto à equipe, agora participava ativamente
de seu cotidiano a ponto de me identificar quase que como um membro da própria
equipe. Este tipo de imersão tornou imperativo que eu começasse a realizar um processo
de “estranhamento” do campo no mesmo sentido que indica o conhecido relato de
Velho (1979) sobre “estranhar o familiar”. Para o autor a ideia de tentar pôr-se no lugar
do outro captando suas vivências e experiências exige um mergulho em profundidade
difícil de ser precisado e delimitado, pois envolve as questões de distância social e
psicológica.
Nas palavras de Velho (1979)
“O processo de estranhar o familiar torna-se possível
quando somos capazes de confrontar intelectualmente, e mesmo
emocionalmente, diferentes versões e interpretações existentes a
respeito de fatos, situações” (p.45).
Neste sentido procurei ficar atento ao meu posicionamento em diferentes
situações e igualmente nas interações estabelecidas. Também o fato das atividades de
saúde da instituição terem sido interrompidas depois de alguns meses, como será
descrito adiante, terminou me impondo um afastamento físico do contexto observado,
favorecendo este distanciamento.
As Ações de Educação em Saúde na VOM
A equipe de saúde da VOM tinha como objetivo oferecer cuidado aos
frequentadores da VOM em uma perspectiva ampliada que incluia elementos físicos,
psicológicos e sociais. No entanto, conforme apontam Silva & Bornstein (2009), a VOM
não se propunha à prestação de serviços assistenciais que eram de responsabilidade das
unidades de saúde que fazem parte do SUS, mas sim em expandir as oportunidades de
cuidado à saúde da população, proporcionando atividades que possibilitassem novas
alternativas para o bem-estar da população assistida.
66
Como citado anteriormente, no momento da investigação, a equipe de saúde da
VOM adotou a Educação em Saúde como elemento norteador do cuidado dos alunos e
frequentadores da VOM, desenvolvendo uma série de atividades para além dos
atendimentos clínicos que já eram oferecidos através de consultas individuais realizadas
por profissionais de diferentes áreas.
Estas atividades, em um primeiro momento, foram voltadas para as crianças e
jovens participantes do projeto de complementação alimentar através de passeios, rodas
de conversa, dinâmicas em grupo, atividades culturais, etc. Posteriormente com a entrada
de novos profissionais na equipe de Saúde, essas ações se ampliaram incluindo
frequentadores de variadas atividades da VOM e de diferentes faixas etárias.
No momento da investigação pelo menos cinco atividades relacionadas à
Educação em Saúde eram realizadas regularmente na VOM:
O grupo de nutrição: era realizado duas vezes por semana com dois grupos tendo
como enfoque a obesidade e trabalhando questões relacionadas à alimentação e à
saúde, como o aproveitamento de alimentos, hábitos alimentares, etc. Participavam
deste grupo adultos e idosos, em sua maioria em situação de sobrepeso ou obesidade.
O grupo Ciranda da Saúde: realizada semanalmente com um grupo de adultos no
qual eram discutidos temas relacionadas à saúde em geral como estresse, sono,
violência, etc.
O grupo de adolescentes: realizado mensalmente com os alunos da companhia de
dança e que trabalhava temas relacionados à adolescência como, por exemplo, as
transformações no corpo e a sexualidade.
O grupo dos pais das crianças e adolescentes da complementação alimentar.
Voltado para os responsáveis das crianças de baixo peso ou desnutridas que
frequentavam o projeto de complementação alimentar. Neste espaço eram discutidos
temas como a desnutrição, o trabalho infantil além de serem tiradas dúvidas sobre
temas relacionados a benefícios sociais como o bolsa família e o PETI (Programa de
Erradicação do Trabalho Infantil).
67
O Bom dia caminhada Maré: realizado semanalmente com os idosos do grupo de
caminhada e que debatia temas variados referentes à saúde na terceira idade como
alimentação, sexualidade, etc.
Além dessas atividades regulares, outras ações voltadas para a saúde eram
desenvolvidas com uma periodicidade variável como, por exemplo, o grupo para as
crianças que eram desvinculadas do projeto de complementação alimentar ao saírem da
situação de baixo peso ou desnutrição. Os profissionais de saúde que coordenavam os
grupos eram fixos e possuíam diferentes formações como psicologia, nutrição, medicina,
enfermagem e serviço social. Embora com públicos e propostas distintas, duas
características principais estavam presentes em todas estas ações: o fato delas serem
realizadas por meio de grupos e de congregarem profissionais de diferentes formações
atuando em conjunto.
Durante a observação das atividades da equipe de saúde, dois principais entraves
aconteceram em relação ao campo de pesquisa: o primeiro foi a saída de alguns dos
profissionais da equipe que além de terem um papel central na organização do grupo,
possuíam um grande vínculo com os frequentadores; o segundo entrave foi uma série de
situações de violência que ocorreram na comunidade da Maré (operações policiais,
conflitos entre facções rivais do tráfico de drogas e armas, etc), o que culminou com a
suspensão temporária de algumas atividades da VOM e com a diminuição da minhas
idas ao campo de pesquisa.
A partir desses acontecimentos houve um significativo esvaziamento, tanto de
profissionais, quanto de frequentadores do “Ciranda da Saúde” que passou a ser
realizado irregularmente ou mesmo não ocorrer durante várias semanas seguidas. Como
só ia a campo nos dias e horários marcados para a realização do grupo, que por sua vez,
acontecia cada vez menos, perdi muito do contato e, consequentemente, do vínculo que
tinha com parte dos frequentadores e da equipe.
Diante dessas dificuldades, planejei retomar a observação do grupo e a
realização das entrevistas com os profissionais e frequentadores que participavam dele
no primeiro semestre de 2012, já incorporando as contribuições do processo de
qualificação do meu projeto de pesquisa que ocorreu em novembro de 2011. No
68
entanto, fui surpreendido não só com a interrupção dos encontros do grupo, mas
também com a interrupção das atividades da equipe de saúde da VOM devido à
suspensão do seu financiamento, processos que detalharei no capítulo a seguir.
69
5 - CIRANDA DA SAÚDE: UMA EXPERIÊNCIA DE EDUCAÇÃO
EM SAÚDE NA VILA OLÍMPICA DA MARÉ
Os encontros do grupo “Ciranda da Saúde” tiveram inicio em junho de 2010 com
a articulação e participação da equipe multiprofissional da área de saúde da VOM. O
nome do grupo foi pensado pela equipe em uma alusão a disposição dos participantes
(profissionais e frequentadores) durante o grupo, já que todos sentavam em roda. O grupo
era realizado na sombra de uma grande árvore que fica próxima a principal entrada da
Vila Olímpica, sendo facilmente visualizado por todos os que entram ou saem da Vila. A
árvore se situa também em uma região de acesso para alguns dos principais espaços da
Vila como a piscina, o ginásio, o espaço saúde e a cantina; o que tornava o grupo visível
e acessível para os frequentadores de várias outras atividades. Desde o início a opção da
equipe era realizar o grupo em uma área próximo à entrada da Vila para facilitar sua
visualização e a participação dos alunos.
Inicialmente o espaço pensado para a realização do grupo, foi em uma área aberta
da Vila próxima a árvore, mas embaixo de tendas que visavam proteger do sol e da
chuva. Os primeiros encontros do grupo chegaram a ser realizados nessas tendas, no
entanto, já a partir dos encontros seguintes adotou-se a árvore como preferência e
referência do grupo. Embora próxima à entrada e em lugar de acesso para outras áreas, a
localização da árvore permitia que os participantes conversassem sem serem
incomodados ou interrompidos pelo barulho das outras atividades ou passantes.
Um pouco antes do horário marcado para o início do grupo, que sempre acontecia
semanalmente nas manhãs de quinta-feira, os profissionais buscavam cadeiras de outros
espaços de atividades (principalmente da cantina e do espaço saúde) para sua realização.
Por vezes, recebiam auxílio de algum aluno da VOM que participava do grupo, ou
mesmo de outras atividades, que ajudavam a carregar as cadeiras. Lá chegando, as
cadeiras eram colocadas em círculo formando uma roda embaixo da árvore, que oferecia
sombra, principalmente nos dias de muito sol, formando um espaço fresco e agradável.
A escolha do local e a disposição em roda dos participantes foi feita em consenso
pela equipe com a indicação de uma médica que trabalhou em um grupo de terapia
comunitária em outra instituição. Ainda em relação ao aporte teórico que embasava a
70
proposta do “Ciranda da Saúde”, a Educação Popular era sua principal referência, sendo
alguns dos textos de Paulo Freire utilizados para embasarem a construção metodológica
do grupo. Esta referência era trazida por alguns dos profissionais que já haviam estudado
/ trabalhado com a Educação Popular em outros espaços e também por meio de
discussões e estudos que ocorreram dentro da própria equipe.
A disposição dos participantes em círculo visava indiferenciar a localização de
profissionais e alunos, ou de um educador que está à frente e fala para seus educandos,
como os modelos pedagógicos clássicos de sala de aula. A ideia de trabalho em roda ou
círculo é também enfatizada por Freire (1983). O círculo substituiria o modelo escolar de
aprendizagem pautado na autoridade. Na formação em roda as pessoas poderiam assumir
o seu modo próprio de ser pelo exercício da liberdade e da crítica que seriam facilitados
pela disposição simétrica dos participantes. Como discutiremos adiante, o aprendizado
para Freire só pode efetivar-se no contexto livre e crítico das relações que se estabelecem
entre os educandos, e entre estes e o “educador”. No círculo os participantes poderiam
estabelecer um diálogo sobre a realidade respondendo e indagando às questões
provocadas por um eventual coordenador do grupo, aprofundando assim as suas leituras
do mundo.
Do ponto de vista sócio-antropológico, Edward Hall (1966), ao realizar a
Antropologia do espaço, igualmente observou como a disposição em círculo facilita a
interação entre os indivíduos. Isto pôde ser observado no “Ciranda da Saúde” onde a
formação em roda proposta pelos profissionais ia ao encontro da perspectiva de Martinez-
Henáez (2010) de se distanciar do que o autor denomina de “princípio da
unidirecionalidade”. Para o autor “a unidirecionalidade caracteriza a intervenção
monológica, ou seja, a existência de um fluxo comunicativo que se movimenta a partir
dos profissionais em direção à chamada “população-alvo”, mas não a partir desta em
direção aos primeiros”.
Ainda em relação à disposição do grupo, uma espécie de mural era também
pendurado em um dos galhos da árvore escrito “Ciranda da Saúde”. Inicialmente além
das cadeiras, era levado também um cavalete para baixo da árvore onde habitualmente
eram escritos o nome do grupo e o tema a ser abordado. Por vezes o cavalete também era
utilizado para algum tipo de apresentação que a equipe havia preparado em cartolinas,
papel, desenhos, etc com informações referentes ao tema a ser discutido. A utilização do
71
cavalete era discutida algumas vezes pela equipe, pois às vezes tornava as apresentações
muito pedagógicas, no sentido de que o profissional se posicionava, ou passando os
papéis com as informações ou escrevendo muito, o que diminuía o diálogo com os
participantes que nestes momentos ficavam como espectadores. Até que um dia um dos
frequentadores mais assíduos do grupo (o sr. Ricardo, o qual abordaremos mais
detalhadamente à frente) levou um mural feito por ele mesmo, com tábuas de madeira e
pregadores, o qual poderia ser pendurado em algum dos galhos da árvore. Desde então
este mural passou a ser utilizado no lugar do cavalete, o qual só passou a ser usado em
alguma atividade especial que necessitasse a demonstração de textos ou figuras.
A fotografia abaixo resgata um dos encontros do Ciranda da Saúde, assim como a
disposição dos participantes no grupo.
Em relação às discussões do grupo, algumas das temáticas debatidas durante o
período de observação foram: ‘controle do estresse’, ‘alterações do sono’, ‘controle das
emoções’, ‘violência familiar’, ‘discriminação’, ‘autoestima’, ‘relações familiares’,
‘costumes alimentares da antiguidade e da modernidade e práticas corporais - lazer e
prazer’, dentre outras. Vale ressaltar que, a princípio, a demanda de discussão girava em
torno de temas característicos do modelo biológico que, muitas vezes se foca mais nos
processos de doença. Nesse sentido alguns dos primeiros temas a serem discutidos no
grupo foram temas “clássicos” como sono, hipertensão, diabetes, etc. Com o passar do
72
tempo e o decorrer das discussões, observei que a discussão começou a girar em torno de
temáticas mais amplas que impactam na saúde como violência, família, trabalho, etc.
Esse processo de transformação de um discurso estritamente biomédico para uma visão
mais ampliada de saúde ocorreu visivelmente com os frequentadores mais assíduos e
pode ser indicativo da possibilidade de construção de uma perspectiva de saúde mais
global, a qual leva em consideração os variados determinantes sociais, culturais, etc que
compõem uma situação de saúde ou doença.
A ampliação dos temas discutidos no grupo pode também ser considerada uma
aproximação do que Freire (2005) denomina de leitura de mundo. Para o autor ler o
mundo, significa reconhecer que os fenômenos sociais estão vinculados à uma realidade
macrossocial que imprime neles sua marca histórica e os seus significados culturais. Isto
se aplica também para a compreensão das representações sobre um determinado
fenômeno como o caso do adoecimento. Tomando como referência a perspectiva
Freiriana, podemos afirmar que, quando a discussão do grupo se amplia para além do
fenômeno da doença em sí e passa a englobar determinantes sociais do processo saúde-
doença, ocorre uma superação da chamada consciência ingênua, para a realização de um
exercício crítico de leitura de mundo.
Os temas discutidos no “Ciranda da Saúde” eram acordados com os participantes
no fim de cada encontro para serem debatidos na semana seguinte. No entanto, por vezes,
ocorriam situações em que pessoas que escolheram os temas, não estavam presentes na
discussão da semana posterior ou havia a participação de pessoas que não tinham
participado do processo de escolha do tema, o que pode ser apontado como uma
limitação deste método de eleição dos temas.
Após essa escolha, os temas eram discutidos entre a equipe durante a semana para
a elaboração da dinâmica e abordagem adequada da temática. Geralmente era construída
uma metodologia para a discussão dos temas (vide anexo IV para exemplo de
metodologia). Nela era decidida qual o referencial teórico a ser utilizado e se haveria
alguma atividade em específico (dramatizações, uso de materiais para desenho, colagens,
etc). A construção da metodologia ocorria durante os períodos livres da equipe durante o
horário de trabalho ou por e-mail quando não havia tempo para desenvolvê-la na VOM
ou envolvia a pesquisa de algum material ou tema. Vale destacar que este processo de
discussão entre a equipe era um momento que mobilizava os profissionais a pesquisarem
73
e estudarem os temas coletivamente, sendo frequentemente citado por eles como um rico
espaço de troca e aprendizado.
O “Ciranda da Saúde” tinha uma frequência média de 8 a 10 participantes e de 3 a
4 profissionais. No entanto, estes números variavam bastante: houve encontros com mais
de 40 participantes, assim como ocorreram situações em que houve mais profissionais do
que participantes. Alguns fatores apontados pela equipe e pelos frequentadores para a
variabilidade na frequência eram: a violência (nos períodos em que havia muitos conflitos
na Maré, toda a VOM fica bastante esvaziada) quando havia a participação de algum
convidado de fora da instituição (situação em que o grupo costumava ficar mais cheio) e
os conflitos de horário com outras atividades (como, por exemplo, a hidroginástica da
qual muito participantes do Ciranda frequentavam e que em determinado momento
começou a ocorrer no mesmo horário de realização do grupo). Era comum também antes
do grupo iniciar, algum integrante da equipe de saúde fazer uma espécie de “busca ativa”:
caminhar pela área da VOM convidando as pessoas a participarem. Quanto ao perfil dos
frequentadores do grupo, a grande maioria era mulheres, em geral acima dos 40 anos,
com baixa escolaridade e sem uma profissão formal (aposentadas, donas de casa, etc).
Em relação a participação dos profissionais, estes se dividiam em facilitadores,
(geralmente dois) e relatores (um profissional). Os facilitadores não eram fixos, variando
de acordo com a disponibilidade do profissional em participar do grupo e do tema
discutido. Eles disparavam o debate, procurando mediar as falas e trazendo informações
sobre o tema abordado. O relator registrava as discussões em folhas que posteriormente
eram digitadas, impressas e guardadas em uma pasta com informações sobre o grupo.
A dinâmica do grupo apresentava algumas variações de acordo com os temas
discutidos e os participantes presentes, no entanto, normalmente ocorria da seguinte
forma: um momento inicial onde os profissionais lembram qual o tema que foi escolhido
na última semana. Nesse momento, chamado pelos profissionais de “quebra-gelo”, os
participantes eram convidados a falarem livremente sobre o tema a ser debatido. No
momento seguinte os profissionais traziam informações mais específicas sobre o tema a
partir do que foi mencionado pelos participantes nos comentários iniciais. A seguir os
participantes costumavam trazer depoimentos sobre experiências suas ou informações
adicionais sobre o tema discutido. Após isso, dependendo do tema e do tempo disponível,
podia ser proposta alguma atividade (dinâmica, leitura, produção de cartazes, etc.) para
74
aprofundar a discussão. Por fim, havia um momento de avaliação da discussão e a
escolha do tema a ser debatido na semana seguinte.
Algumas histórias
Para exemplificar a dinâmica da discussão do Ciranda da Saúde, descrevo a seguir
um encontro do grupo o qual fiz o registro integral no meu caderno de notas. O tema
discutido nessa ocasião era autoestima e foi escolhido pelos participantes no encontro
anterior. Para abordá-lo os profissionais construíram uma dinâmica na qual os
participantes tinham sua imagem refletida em um espelho dentro de uma caixa e a partir
disso tinham que descrever a pessoa que estavam vendo, tendo que relatar suas principais
características usando a terceira pessoa do singular.
“Novamente fizemos o grupo embaixo da árvore pegando as cadeiras do
anexo da cantina. Usamos também um cavalete onde ficaram expostas
cartolinas com perguntas referentes ao tema autoestima. Inicialmente só
havia profissionais na roda e aos poucos foram chegando os demais
participantes. No total participaram do grupo 5 profissionais da saúde, 3
profissionais de um Programa de Saúde da Família da região, 6 adultos e
mais 3 crianças / adolescentes que estavam acompanhado suas mães ou
avós. A assistente social Valéria6 iniciou o grupo falando da proposta de
discutir autoestima. Após isso a enfermeira Vanessa. explicou a dinâmica
do espelho, no entanto, fizemos uma alteração e os comentários sobre as
“fotos” só foram feitos após a caixa ter passado por todos. Durante a
dinâmica a maior parte do grupo achou engraçado ou riu ao perceber que
as fotos da pessoa especial na verdade era um espelho o qual refletia sua
própria imagem. Nos comentários boa parte do grupo respondeu a
indagação sobre quem era a pessoa especial que haviam visto citando
características próprias positivas como “uma pessoa legal”. Valéria
pergunta ao grupo o que é autoestima e aparecem repostas relacionadas ao
bem-estar (“estar de bem com a vida”), ao cuidado (“é cuidar de você
mesmo”) e a expectativas (“o que eu espero de mim mesmo”). Valéria e
6 Os nomes dos profissionais e participantes do Ciranda da Saúde aqui mencionados são fictícios.
75
Susana, também enfermeira, falaram da influência da mídia na construção
da autoestima e da imagem afirmando que não se deve prender a estes
modelos. Pergunto ao grupo que outros fatores influenciam na autoestima,
tentando minimizar o direcionamento das falas anteriores das profissionais
e fazer com que o grupo identifique e relate suas próprias percepções.
Aparecem relatos de situações e histórias de vida nas quais a opinião de
pessoas próximas influenciou na autoestima. M. (não lembrou o nome)
contou que evita ir a casa de sua mãe pois esta fala que ela está gorda e
feia e que isso a deixa triste. São falados pelo grupo exemplos de melhoras
na autoestima a partir do contato com pessoas de referência (foi citado um
atendimento com Vanessa), de mudanças na rotina (começar a fazer
atividades na VOM), na superação de problemas de saúde, etc. Também foi
discutida brevemente pelos profissionais a relação entre autoestima e
saúde. Já na parte do final foi solicitado a cada um dos participantes que
falassem de situações ou acontecimentos de sua história que tenham
influído positivamente na autoestima (surgiram exemplos como ter entrado
para a faculdade, estar trabalhando, etc). No final Vanessa solicitou que
todos dessem as mãos e resumissem o que sentiram no grupo em uma
palavra. Apareceram palavras como alegria, aprendizado, leveza, etc. O
grupo escolheu discutir sobre drogadição no próximo encontro”.
Este registro apresenta algumas características comuns do grupo Ciranda da
Saúde dentre eles a participação de profissionais de várias categorias no grupo.
Chama a atenção também a participação de trabalhadores de alguns serviços de
saúde da região, principalmente as unidades de Saúde da Família. Embora
esporádica, a participação desses profissionais, em geral enfermeiros e agentes
comunitários de saúde, favorecia o diálogo e a articulação das ações da equipe de
saúde da VOM com os demais dispositivos presentes no território, viabilizando
possíveis parcerias e ações inter-intituicionais.
O relato também demonstra a variabilidade dos frequentadores do grupo,
já que, fora os frequentadores que sempre vinham grupo (que giravam em torno
de dois ou três), os demais participantes compareciam de acordo com sua
disponibilidade e interesse no tema discutido. Também não era raro ocorrerem
76
situações em que algum dos participantes levasse parentes ou pessoas próximas,
como filhos/as ou netos/as, que acabavam participando das discussões do grupo.
Outro elemento que aparecesse no relato foi minha participação no grupo.
Por vezes eu era convidado a participar ou mesmo facilitar as discussões e, com o
tempo, passei também a participar ativamente da construção da metodologia das
discussões. Isto ocorreu fundamentalmente pelo vínculo que estabeleci com os
profissionais e com os frequentadores do grupo, mas também pelas minhas
vivências anteriores com a Psicologia e com a Educação Popular, onde tive
experiências de trabalho com grupos. Nessas ocasiões sempre procurava me
colocar de forma a não emitir opiniões pessoais ou técnicas, visando disparar o
debate entre os participantes por meio da problematização.
Alguns aspectos metodológicos de situações como esta já foram abordados
por Ferreira (2004). Sobre a dificuldade de distinção entre o papel de profissional
e o de pesquisador quando em um contexto etnográfico, a autora afirma que
durante sua pesquisa em um centro de saúde humanitário francês, frequentemente
sua posição de pesquisadora era difícil de ser diferenciada de sua posição
profissional de médica na observação de consultas.
“(...) minha identidade médica algumas vezes me
impediu de ser uma simples observadora. Assim, em
algumas situações eu não pude recusar de participar de
exames físicos e de opinar sobre diagnósticos. No entanto,
estes momentos, longe de ser um obstáculo à pesquisa, se
mostraram úteis para aprofundar minha interação com os
médicos (...) Nas ocasiões em que o médico saía do
consultório para buscar os medicamentos, eu aproveitava
para conversar com os pacientes sobre alguns pontos
mais específicos da consulta, para conhecer mais de sua
vida, família, trabalho, etc. Os médicos, observando esta
minha forma de proceder, procuravam obter comigo
informações suplementares dos pacientes”(Ferreira,
2004)
77
Assim, a autora aponta que mais do que obstáculos, estes momentos podem ser
úteis para aprofundar a interação com os sujeitos observados.
Os atores: a perspectiva dos profissionais
Os participantes do grupo “Ciranda da Saúde” se dividiam em duas categorias
principais: frequentadores / alunos da VOM e profissionais.
Os profissionais da equipe de saúde da VOM, por sua vez, se dividiam em dois
outros perfis: recém-formados que chegavam para as primeiras experiências de trabalho
ou moradores da região que tinham formação ou experiência na área da saúde. Os
médicos fugiam a esses dois perfis e o que parecia ser determinante na sua atuação na
instituição era a identificação com o trabalho em comunidades. Havia uma clara
indicação da direção da instituição para que eventuais vagas fossem preenchidas por
moradores da Maré, no entanto, nem sempre havia profissionais disponíveis na região
nas categorias demandadas, principalmente nas de nível superior. A grande maioria dos
profissionais eram mulheres.
Para ilustrar os perfis citados acima realizo a seguir um “retrato” de duas
profissionais que atuaram na VOM com importante participação no grupo Ciranda da
Saúde.
A Enfermeira Vanessa
Vanessa era uma jovem enfermeira na faixa dos 25 anos que foi trabalhar na
VOM alguns meses depois de formada, vinda de uma cidade do interior do estado do
Rio de Janeiro. Muito carismática e jovial, logo acabou criando vínculos com a equipe e
com os usuários da VOM, tomando a frente de algumas das principais atividades de
Educação em Saúde lá desenvolvidas, chegando a se tornar sub-coordenadora da equipe
de saúde. Ao longo do tempo Vanessa se dedicou com muito empenho no
desenvolvimento dessas atividades e foi uma das profissionais que mais participou da
concepção do grupo Ciranda da Saúde acompanhando-o desde os seus primeiros
encontros. Era também uma das profissionais que mais se pautava nos referências da
Educação Popular.
78
Vanessa foi minha “informante-chave” durante o período de observação, já que
desenvolvemos uma grande amizade e discutimos por várias vezes muitos dos aspectos
do trabalho de Educação em Saúde e do cotidiano da VOM.
Após um período de aproximadamente um ano e meio atuando na VOM,
Vanessa claramente demonstrava cansaço devido às inúmeras dificuldades que relatava
como presentes no seu cotidiano de trabalho. Perto de sua saída da instituição, época
próxima em que a entrevistei, era visível o seu desgaste por meio de uma marcante
expressão de esgotamento.
A entrevista com Vanessa, a qual destacarei alguns trechos abaixo, foi realizada
em uma das salas do espaço em que ficava a equipe de saúde, após a realização de um
grupo Ciranda da Saúde que teve que ser interrompido devido a passagem de vários
carros da polícia próximo à VOM e aos barulhos tiros que ouvimos a seguir. O grupo
foi finalizado rapidamente, os participantes foram embora e os profissionais ficaram na
sala da equipe de saúde conversando e esperando a situação “acalmar”. Antes de
realizar entrevista questionei se realmente havia disponibilidade em participar depois da
situação de estresse ocorrida e Vanessa concordou em falar (o roteiro utilizado na
entrevista é apresentado no anexo II).
“... a violência é uma coisa que marca muito, por que ela tá
muito presente, é muito forte... é... e a questão da falta, falta
muita coisa pra eles, então você vai discutir – ah, vamos
discutir, vamos problematizar - mas antes de problematizar a
gente tem que ter o que comer pra sair de casa, tem que ter uma
estrutura legal pra você estar aqui de coração aberto, pra ter
uma motivação pra tá”
“ao longo desse tempo eu percebi que... hã... não desmotivação,
uma desilusão assim... não sei... que é pensar que essa
intervenção tem condições de afetar... até que ponto tem
condições de afetar, de transformar, é uma coisa que me... que
me questiono né? Essa questão de como que as pessoas, até que
ponto essas práticas, elas realmente tem potencial de fazer
alguma coisa muito boa na vida da pessoa. Então, a minha
79
expectativa agora eu já diminuí um pouco, reduzi essa
expectativa”.
"então ali a pessoa encontrou um espaço legal, acolhedor, de
aprendizado, por que elas acham que aprendem e elas se sentem
valorizadas por que o que elas falam... a gente não valoriza por
que é bonito valorizar, mas por que realmente faz todo o
sentido."
“o que seria essa Educação Popular? Seria... em relação...
poderia ser em relação a postura profissional. Se for em relação
a postura profissional é de diálogo, de estimular a reflexão, de
tá dentro do contexto, a gente não faz dentro de nenhuma sala...
a gente tá dentro da proposta... mas também... o que se espera
dessas propostas né? Aí eu não sei mais por que, eu não sei se
os resultados nem as práticas tão de acordo... por que se você
ler sobre Educação Popular, começa a achar que aqui tá
faltando alguma coisa, por que é difícil você aplicar, entendeu?
Então não sei se a gente tá, a gente tá nessa proposta... de tá
trabalhando nessa proposta, agora se a gente conseguiu atingir,
eu creio que muita coisa ainda tem que ser feita, tanto aqui na
Vila, quanto aqui na Maré pra você tá fazendo essas práticas”.
Em suas falas Vanessa sinaliza algumas das dificuldades do trabalho de
Educação em Saúde não só na VOM, mas em regiões marcadas pela desigualdade social
e pela violência. Aponta também alguns desafios da proposta de Educação em Saúde
com um vertente popular, principalmente no que se refere à mobilização dos sujeitos.
Paulo Freire propôs através da Educação Popular um método pedagógico
assumidamente político, que tinha como um de seus princípios a conscientização para
transformação das situações de opressão. Para o autor, educação e conscientização
jamais se separam. No entanto, conforme descrito na fala de Vanessa, muitas vezes, a
mobilização necessária para se chegar ao processo de conscientização encontra
dificuldades em assumir maiores proporções além dos debates ocorridos nos grupos de
discussão devido às próprias condições matérias de opressão como a pobreza, a
80
violência, etc. Vanessa sinalizava muitas vezes a sensação de falta do básico em termos
de determinantes sociais de saúde, como a alimentação e a segurança, para que as
pessoas possam se engajar em processos maiores de mobilização.
Outro ponto mencionado pela profissional é a necessidade de respeito à fala do
outro. Para Freire (2005) não se pode, de maneira alguma, nas relações político-
pedagógicas com os grupos populares, desconsiderar seu saber advindo das experiências
cotidianas de vida. Constata-se no aporte epistemológico freireano a valorização do
saber do senso comum, da compreensão de mundo acumulada durante a vida pelas
pessoas, a qual ele denomina de ”saberes de experiência de fato”.
A educadora Fernanda
Fernanda era uma jovem técnica em enfermagem na faixa dos 20 anos, moradora
da Maré, que foi trabalhar como educadora em saúde na VOM após ter feito um
processo seletivo para o cargo de técnica em enfermagem da instituição. Fernanda até
então só havia feito estágios como técnica de enfermagem e na função de educadora em
saúde atuava principalmente auxiliando as atividades, oficinas e grupos relacionados à
Educação em Saúde (como o Ciranda da Saúde, o grupo de nutrição, etc).
Fernanda desde que chegou a VOM me pareceu sempre muito madura apesar da
pouca idade e nitidamente “cresceu” bastante durante o período em que esteve na VOM
como ela mesma refere, revelando grande interesse em pesquisar e aprender coisas
novas e mostrando uma crescente desenvoltura no planejamento e execução das
atividades educativas ao longo do tempo em que esteve na instituição.
A entrevista com Fernanda, a qual destacarei alguns trechos abaixo, foi realizada
em uma das salas do espaço em que ficava a equipe de saúde no mesmo dia em que
houve o episódio de interrupção de um dos encontros do Ciranda da Saúde, devido a
uma operação policial na região da Maré.
“trabalhando aqui na VOM mudou totalmente minha cabeça, né
que eu tinha esse cuidado mais da doença... do adoecer. Daí eu
soube de outra maneira de cuidar das pessoas, não só na hora
da doença.”
81
“Já tinha trabalhado com grupos de Educação em Saúde nos
estágios de técnico em enfermagem... era hospital... foi difícil,
uma roda de conversa onde só falava-se de doenças... nada
voltado pra educação, eram grupos pra falar o que tinha que
ser feito em termos de limpeza, de medicação.”
“Minha concepção de saúde mudou muito. Quando eu fazia o
técnico de enfermagem eu aprendi muito essa coisa formal de
medicação, tal... e agora não. Já tinha coisa de “ah, vou cuidar
da alimentação”, mas já voltado pra medicação... e agora não...
tem os grupos onde eu vejo pessoas pensando diferente.”
“A experiência tem sido maravilhosa! Muito, muito, muito
assim... de crescimento pessoal, intelectual, de crescimento
total. Fora a equipe... eu acho que a equipe é muito boa. Você
tem varias áreas... você tem psicóloga, médica, enfermeira e
todos conseguem ter ideias parecidas.”
Um elemento que aparece com bastante intensidade na fala de Fernanda é a
crítica ao caráter reducionista do modelo biomédico, onde muitas vezes a noção de
doença é mais discutida do que a própria ideia de saúde. Esta crítica dialoga com outro
elemento apontado pela profissional que é a dimensão pedagógica advinda do contato /
diálogo com os demais profissionais e com a população. Este processo remete a
afirmação de Freire (2005) de que o educador, não é o que apenas educa, mas o que,
enquanto educa, é também educado. Para o autor não existe separação entre docência e
discência uma vez que ambas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os
conotam, não se reduzem a condição de objeto, um do outro.
Comparando as entrevistas das duas profissionais, chama a atenção alguns
elementos como a ênfase que é dada para a questão da violência por Vanessa e que não
aparece em nenhum momento no discurso de Fernanda, o que pode apontar para uma
maneira mais natural de lidar com as situações de conflito e violência da comunidade,
fenômeno este que também parece acontecer com outros profissionais e frequentadores
da VOM que moram na região e que costumam se referir de forma muito mais tranquila
a estes episódios.
82
Também aparece igualmente nos espaços de observação e entrevistas, a
necessidade de maiores investimentos e discussões metodológicas de Educação em Saúde
para que suas ações sejam mais embasadas e qualificadas. Também é ressaltada a
importância da prática de monitoramento e avaliação das atividades para compreender e
qualificar o impacto dessas ações na qualidade de vida da população.
A contradição das representações de saúde dos profissionais também fica evidente a
partir das duas entrevistas: por um lado ambas as profissionais se descrevem como
formadas na tradição normativa, na chamada “educação bancária”. Por outro lado, a
própria praxis, o diálogo com a população, o contato com os problemas que a população
trás e com o saber popular, mediatiza muito isso. Se em algum nível, a referência é a
postura bancária, a postura dialógica aparece como horizonte a se alcançar.
Nesse sentido, Freire (1996) aponta o desafio da coerência na prática do educador.
Para o autor de nada adianta o discurso competente se a ação pedagógica é impermeável
a mudanças. Quando se vive a autenticidade exigida pela prática de ensinar-aprender se
participa de uma experiência política, ideológica, pedagógica, estética e ética onde existe
a necessidade da vigilância constante buscando e problematizando a coerência entre o
discurso e a prática (FREIRE, 1996, p. 10).
Os atores: a perspectiva dos usuários
O perfil dos usuários da VOM que frequentavam o grupo Ciranda da Saúde,
salvo algumas exceções, era parecido com o perfil geral dos frequentadores adultos das
demais atividades da Vila: a grande maioria do sexo feminino com faixa etária a partir
dos 40 anos. Trabalhavam com serviços domésticos, cuidando da casa, dos filhos ou
netos, ou no mercado informal de trabalho (vendendo roupas, alimentos em
barraquinhas, etc).
Seguem abaixo a descrição dos perfis de dois frequentadores do Ciranda da
Saúde que sempre participavam do grupo.
83
Dona Selma
Selma era uma assídua frequentadora das atividades da VOM, desde a sua
inauguração. Viúva, aposentada e já com os filhos criados, dividia seu tempo entre as
tarefas domésticas e as várias atividades que frequenta na VOM como dança,
hidroginástica, consultas de psicologia, nutrição, etc.
Selma conhecia e tinha amizade com boa parte dos alunos e profissionais da
VOM, sendo considerada por esses últimos uma “aluna-modelo” já que quando chegou
a VOM tinha bastante dificuldade de convivência e adaptação devido a um grave
período de depressão no qual ela mal conseguia sair de casa. Selma atribui sua melhora
do quadro depressivo devido à ida para a VOM, principalmente ao vínculo que
conseguiu estabelecer com alguns dos profissionais que lá atuam.
“Quando cheguei fui bem recebida, fiquei meio receosa
porque tinha umas complicaçõezinhas aí, mas depois fui me
sentindo bem... me aconchegando com todo mundo, aí ficou
tudo bem (...) não gostava muito de tá junto com ninguém, não
tinha negócio de abraço, essas coisas não era muito comigo...
aí conforme eu fui melhorando das... das coisas né, através da
psicóloga, aí eu fui aceitando mais, agora me sinto muito
bem.”
“Por que eu acho que as palestras que eles dão, são muito úteis
né, por que orientam bem a gente, coisas que a gente não sabe a
gente pergunta.”
“Cada pessoa que fala eles respeitam, ficam escutando... dão
opinião se tá certo, se tá errado. Cada um dá sua opinião, né. É
muito legal.”
“me orientou muito bem por que aí foi quando eu fiquei com
problema de pressão alta, colesterol, essas coisas e fui bem
orientada também sobre a família... assim de... problemas sérios
de família, entendeu? E... de tudo pra mim foi novidade e foi
muito bom.”
84
“Ah, eu acho que eu melhorei bastante, por que tinha coisas
que eu fazia que eu achava que tava certa e não era certo, tava
errado. Então com a orientação deles aí eu melhorei bastante.
Melhorei tanto o sistema nervoso, por que eu era muito tensa,
tensa demais... por que infelizmente eu tenho um filho viciado ,
entendeu? E eu era muito tensa, muito tensa demais... então eu
comecei a ir separando as coisas, assim... me ajudou muito,
nesse ponto aí, me ajudou demais.”
“é por que cada um pensa de um jeito né? Tem pessoas que
acham que meu jeito de pensar tá errado, o dela que tá certo e
dalí a gente colhe dalí, colhe daqui e acaba tirando proveito de
tudo... é, como se fosse uma reciclagem.”
O processo de realização da entrevista com Selma foi um exemplo da já discutida
influência do termo de consentimento na pesquisa em Ciências Sociais, pois a partir da
leitura do documento a frequentadora se mostrou portou de maneira muita mais formal do
que normalmente fazia. Outro elemento que pode ser identificado a partir da fala de
Selma é a referência ao grupo “Ciranda da Saúde” como um espaço de palestra, o que
pode apontar para uma indiferenciação por parte dos frequentadores da proposta
dialógica do grupo com o modelo informacional “clássico” de Educação de Saúde. No
entanto, a partir das palavras de Selma, pode-se pensar também o quanto no discurso
popular aparece a perspectiva normativa que está colocada como hegemônica. E, contra-
hegemonicamente, surge uma percepção da saúde mais experiencial e crítica, que discute
a saúde de uma maneira ampla, como decorrente de uma questão social, das condições de
vida, das consequências da escassez material, das dificuldades de acesso aos bens sociais.
A referência de Selma ao seu estado emocional por meio da evocação do sistema
nervoso remete ao que Duarte (1994) denomina de o fenômeno dos nervos o qual seria
privilegiado para compreender algumas das questões centrais da cultura ocidental
moderna, assim como seus limites e descontinuidades; estes fenômenos dificilmente
poderiam ser compreendidos através de uma estratégia puramente empirista que fosse
desconectada de uma teoria mais ampla acerca da mudança e diferenciação cultural.
85
Uma análise dessa categoria é necessariamente antropológica por esta se apresentar
como comparativa e relativista: “sua formulação depende de um radical estranhamento
em relação aos valores centrais da versão ‘moderna’ de nossa cultura, retendo de certa
forma apenas a disposição universalista” (p.5).
Nesse sentido, a leitura médico-antropológica do nervoso traria uma valiosa e
plural informação etnográfica: uma teoria biomédica (expressão de doença orgânica),
uma teoria psicologizante (expressão das emoções e do psiquismo individual) e uma
teoria sociológica (expressão de conflitos sociais de classes, gêneros, etc).
Ainda para Duarte (1994), a oposição entre cultura ‘leiga’ e cultura profissional
ganha novos contornos desde que se compreenda que o nervoso não é a cultura ‘leiga’,
mas uma das culturas ‘leigas’ possíveis, que se enfrenta com uma cultura profissional
afastada do nervoso e próxima ao saber psicologizado sobre o indivíduo. O autor afirma
que
“a compreensão dos embaraços (e perturbações) decorrentes
desse descompasso entre teorias da perturbação no confronto
entre terapeuta e paciente (mas também em alguns casos entre
agentes religiosos e fiéis demandando respostas à afiliação) é
sem dúvida uma das frentes de pesquisas mais urgentes e sérias”
(p.8).
Selma também indica o quanto a afetividade e o vínculo, tanto entre usuários e
profissionais, quanto entre os próprios usuários, parece desempenhar um papel
determinante na participação dos frequentadores da VOM nas atividades de Educação em
Saúde. Esta indicação dialoga com o conceito de apoio social destacado por Valla
(2005). Para o autor quando as pessoas sentem que contam com o apoio de um grupo de
pessoas (seja vizinhança, família, igreja, etc), esse apoio tem o efeito de causar uma
melhoria de sua saúde. Esse apoio normalmente se passaria entre pessoas que se
conhecem e se frequentam de forma sistemática, razão pela qual frequentemente estaria
envolvida uma instituição ou entidade. O autor denomina este tipo de vinculo / relação de
apoio social.
Ainda nesse sentido, Ferreira (2011), a partir de sua pesquisa em um centro
humanitário de saúde na França, refere como os serviços destinados à população
86
vulnerável, mais do que espaços de assistência oportunizam um espaço de sociabilidade e
de reparação moral. A autora sinaliza que muitas das demandas que surgem nesses
espaços não são necessariamente da ordem do cuidado biomédico e muitas das demandas
com esse caráter não são urgentes. No entanto, elas expressam um sofrimento que reflete
não só problemas físicos, mas também morais. “Em consequência, o trabalho desses
profissionais de saúde não implica curar, mas reparar trabalho de fato, mas que, no
quotidiano, é praticamente invisível, porque de reparação física e moral” (p.94).
Isto parece ser o que acontece com Selma na medida em que, mais do que
conhecimentos em saúde, ela frequenta o grupo por seu caráter de acolhimento que ao
que tudo indica, lhe dá suporte para o seu problema na esfera do “nervoso”.
Sr. Ricardo
Ricardo foi durante um período de aproximadamente um ano um dos
frequentadores mais assíduos dos grupos e atividades desenvolvidas pela equipe de saúde
da VOM. Aposentado, gostava de contar que teve uma vida muito ativa, tanto em nível
social, quanto profissional citando que trabalhou em vários lugares e que exerceu várias
funções, como presidente de associação de moradores, atuou em repartições públicas,
organizou blocos de carnaval, etc. Devido a um grave problema cardíaco Ricardo teve
que se afastar das suas atividades laborativas e passou a evitar atividades que lhe
exigissem demasiado esforço físico. Chegou a relatar que certa vez teve um princípio de
infarto fazendo uma simples caminhada.
Começou a frequentar a VOM trazendo o filho que na época tinha 11 anos para a
natação e, com o tempo, começou a se interessar e participar de algumas atividades.
Ricardo esteve presente em muitos dos encontros da Ciranda da Saúde, sempre
participando ativamente, dando opiniões e sugerindo temas. Gostava de fazer falas
“polêmicas” discordando de outros participantes e frequentemente monopolizava a fala
no espaço do grupo trazendo questões referentes aos problemas de saúde que teve ou
sobre sua história de vida, o que, em certas ocasiões, inquietava alguns participantes e
profissionais.
Por vezes também Ricardo estabelecia uma espécie de relação “tutelar” com os
próprios profissionais da VOM sinalizando quando alguém chegava atrasado ou faltava, o
87
que causava certo desconforto entre alguns profissionais da equipe. Certa vez uma das
médicas chegou a comentar em uma conversa informal que “era bom o Ricardo
participar das atividades, mas que não poderíamos dar muito poder a ele”. Em outra
ocasião, Ricardo surgiu com um material referente a uma proposta de tema de discussão
para o grupo Ciranda da Saúde e se propôs a ele mesmo organizar o espaço. A equipe
acolheu esta sugestão e o grupo da semana seguinte ocorreu com a condução do próprio
Ricardo.
Com o tempo a grande participação de Ricardo nas atividades educativas inseriu
na equipe a discussão sobre saber x poder. Este elemento pode, inclusive, ser analisado
pela fala já citada da médica. Podemos pensar se ela não está questionando o saber /
poder de Ricardo do qual ela seria, por sua posição social, uma “detentora legítima”.
Como vimos, as propostas de Educação em Saúde historicamente se pautaram em um
modelo fundado na autoridade do profissional de saúde, principalmente o médico, que
através de seu saber garante a legitimidade e o poder para intervir na vida da população
através de normas e prescrições. Essa relação remete a dialética “saber-poder” abordada
por Foucault ao longo de diferentes momentos de sua obra.
Foucault considera que saber consiste em entrelaçar o visível e o enunciável, já
o poder é a sua causa pressuposta, mas inversamente, o poder implica saber. Não há
relação de poder sem constituição correlativa de um campo de saber, nem de saber que
não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder. Assim, não existe
modelo de verdade que não remeta para um tipo de poder, não existe saber, nem mesmo
ciência, que não exprima ou não implique um poder em vias de se exercer (Foucault,
1999).
Nessa perspectiva, poder não é um sistema geral de dominação exercida por um
elemento ou grupo sobre o outro assim como não está restrito a uma instituição política
ou a um grupo de atores que têm um lugar privilegiado na vida social. Para
compreendermos o poder e sua materialidade é necessário nos determos no nível das
micro-práticas ou das micro-políticas onde as práticas se formam.
88
Nas palavras do autor:
“parece-me que se deve compreender o poder, primeiro,
como a multiplicidade de correlações de força imanentes ao
domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o
jogo que através de lutas e afrontamentos incessantes as
transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de
força encontram umas nas outras, formando cadeias ou
sistemas ou, ao contrário, as defasagens e contradições que as
isolam entre si (...) a condição de possibilidade do poder, em
todo o caso, o ponto de vista que permite tornar seu exercício
inteligível até em seus efeitos mais ‘periféricos’ e, também,
enseja empregar seus mecanismos como chave de
inteligibilidade do campo social, não deve ser procurada na
existência primeira de um ponto central, num foco de soberania
de onde partiriam formas derivadas e descendentes (...) o poder
está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque
provém de todos os lugares” (Foucault, 1980, p.88).
A partir dessa definição podemos pensar o poder como uma operação de
tecnologias através do corpo social. O funcionamento destes rituais políticos de poder é
exatamente o que estabelece as relações desiguais e assimétricas (reconhecidas no senso
comum como relações de dominação). A concepção de Foucault é importante no
sentido de romper com as teorias imobilistas que despotencializam os sujeitos ao
considera-los como meras vítimas de uma trama perversa engendrada por um grupo que
“detém” o poder: para Foucault o poder é uma relação essencialmente dialética.
Obviamente não há como negar, por exemplo, as relações de dominação de classe
presentes na sociedade, no entanto, é importante não perder de vista que o poder se
exerce tanto sobre o dominante quanto sobre o dominado.
Onde há saber, há poder. Mas é importante acrescentar: onde há poder, há
resistência. Se por um lado novos saberes, novas tecnologias ampliam e aprofundam os
poderes na sociedade em que vivemos, por outro há sujeitos que lutam cotidianamente
contra as forças que tentam reduzi-los a objetos, contra as múltiplas formas de
dominação que estão presentes na sociedade.
89
No campo da Educação em Saúde este embate também se faz presente, e fica
ainda mais claro quando observamos as recentes propostas de valorização do saber
comunitário no engendramento de novas formas de cuidado, como ocorre no grupo
“Ciranda da Saúde”. Através destas propostas o saber biomédico, antes incontestável,
passa a dialogar com as práticas e saberes cotidianos da população e com o contexto de
vida dos indivíduos, que deixam de ser considerados meros receptores das informações
dos profissionais de saúde.
Da mesma forma a própria representação de doença passa a ser considerada não
só a partir das alterações no corpo biológico, mas também em alterações no corpo social
na medida em que o indivíduo, ao se identificar enquanto “sadio” ou “doente”, vai se
relacionar de maneira diferente com o contexto que vive. Daí a necessidade das
representações serem consideradas, na Educação em Saúde, como fruto de um
compartilhamento de saberes.
Assim, a partir da valorização dos saberes populares engendrados no cotidiano
da população, podemos pensar na Educação em Saúde não só enquanto tecnologia de
intervenção no espaço público e nos corpos da população, mas como uma forma de
resistência que se articula em rede nas lutas pela auto-determinação e na construção de
uma perspectiva onde saberes e poderes estejam a serviço do "cuidado de si", do
"cuidado dos outros" e do "cuidado da vida".
O fim do grupo Ciranda da Saúde
Aproximadamente um ano depois do início do Ciranda da saúde o grupo começou
a sofrer um gradual esvaziamento. A princípio a principal justificativa para tal
esvaziamento encontrada, tanto pelos profissionais quanto pelos usuários, foram os
frequentes conflitos armados que estavam ocorrendo na Maré. No entanto, a saída da
instituição de alguns dos profissionais que participaram da concepção do grupo parece ter
desempenhado um importante lugar nesse processo. Começou a se fazer visível também
o intenso desgaste dos profissionais que continuavam na VOM. Muitos se queixavam das
condições de trabalho, principalmente no que se refere à questão da violência e da
precariedade dos vínculos empregatícios.
90
Desde o início do grupo até o final da observação, somente uma profissional (a
educadora em saúde) continuava fixa no “Ciranda”. No mais, os profissionais foram
revezando suas participações, muito em função da alta rotatividade da equipe de saúde da
VOM. Desde que iniciei a observação, praticamente toda a equipe, inclusive a
coordenação, foi renovada. A grande maioria dos profissionais que permaneceram desde
o início da observação (três no total) era moradores da Maré. As condições precárias
como os baixos salários, as constantes situações de violência e a precarização do vínculo
empregatício (como já foi descrito, os profissionais admitidos por meio de contratos e
sem direitos trabalhistas básicos como carteira de trabalho assinada e férias) eram alguns
dos fatores que apareciam nas falas dos profissionais como dificultadores de um vínculo
mais longo com instituição. A constante mudança de profissionais também parece ter tido
reflexo direto sobre os vínculos estabelecidos com os frequentadores do grupo e na
descontinuidade das atividades de saúde desenvolvidas na instituição.
O último encontro do Ciranda da Saúde ocorreu em dezembro de 2011. Após o
recesso de final de ano e de um hiato no começo de 2012 (os meses de janeiro e fevereiro
habitualmente na VOM eram diferenciados, já que parte das atividades regulares era
interrompida e o espaço da instituição passava a ser utilizado como colônia de férias com
atividades específicas, principalmente para crianças e adolescentes em férias escolares),
os encontros do grupo estavam programados para retornarem ainda no primeiro trimestre
do mesmo ano, no entanto, durante este período uma série de instabilidades sobre a
continuidade do financiamento das ações da equipe de Nutrição e Saúde começaram a
ocorrer. Como citado anteriormente, a equipe de saúde da VOM tinha um financiamento
específico advindo de um projeto da Petrobrás, o qual tinha um período de vigência de
aproximadamente 30 meses ou dois anos e meio. Ao fim desse período o projeto poderia
ser renovado ou não de acordo com a avaliação da própria Petrobrás.
Os episódios de término de contrato já haviam ocorrido anteriormente com a
equipe de saúde e com as demais áreas da VOM. Habitualmente, a renovação costumava
ocorrer, ainda que depois de alguns meses, no entanto, já houve situações em que os
trabalhadores ficaram vários meses sem remuneração devido à demora nesses processos
de renovação.
Conforme aponta Melo (2005) em pesquisa realizada sobre o papel da Vila
Olímpica da Maré sobre as políticas públicas de esporte do Rio de Janeiro, as situações
91
de atraso no pagamento eram comuns também em outras Vilas Olímpicas que
contratavam profissionais por meio do modelo de cooperativas. Haveria nesses processos
uma dimensão pedagógica que, em um contexto de desemprego estrutural, conformava e
limitava as possibilidades de contestação ou mesmo de apresentação de discordâncias
diante dessas situações, já que isso implicaria riscos à continuidade no emprego. Para o
autor, esses atrasos eram tolerados por meio de estratégias que combinavam coerção e
consenso para obter o consentimento ativo do conjunto dos trabalhadores.
Melo (2005) cita um exemplo dessa dinâmica corrido na própria VOM:
“Em 2003, os funcionários administrativos – quase em sua
totalidade moradores da Maré – ficaram aproximadamente três
meses sem salários. As causas do atraso foram atribuídas às
questões burocráticas na renovação anual do convênio com a
Petrobras. Isso implicou significativas discussões e até
movimentos de paralisação das atividades. Frente à ‘ameaça’ de
paralisação, os trabalhadores eram constantemente lembrados de
que o contrato realizado com os parceiros, no caso a Petrobras e
Prefeitura do Rio, previa a rescisão imediata caso houvesse
interrupção das atividades. Com isso, a própria continuidade do
projeto estaria ameaçada pela atitude dos reivindicantes. Assim,
o par coerção/consenso apresentava-se na tentativa de
desmobilizar qualquer reinvindicação por meio da
responsabilização dos trabalhadores pela eventual suspensão do
contrato” (p. 288).
No primeiro semestre de 2012 o contrato que financiava a equipe de saúde chegou
ao fim e não houve indicativo de renovação. Com isso, os profissionais da equipe de
saúde foram dispensados de suas atividades e as atividades de Educação em Saúde foram
interrompidas, com a exceção do projeto de complementação alimentar que passou a
funcionar em um período reduzido (ao final da pesquisa de campo, somente a
coordenadora da equipe de saúde e uma nutricionista continuavam indo à VOM e
atuando com carga horária reduzida).
92
A grande rotatividade dos profissionais de saúde e a precarização dos contratos de
trabalho parece ser uma constante em vários serviços conforme apontam Assunção,
Machado & Koster (2011). Tendo em vista que as atividades de Educação em Saúde
requerem continuidade para o seu desenvolvimento eficaz, torna-se importante
analisarmos alguns dos elementos que impactam sobre o seguimento e a sustentabilidade
destas ações.
A precarização do trabalho em saúde
Conforme já discutido, para Freire (2005) um dos passos iniciais do processo
educativo / transformador é a chamada leitura da realidade, processo onde é considerado
fundamental uma análise da conjuntura social, histórica, política e econômica de forma
a ter um maior entendimento da realidade que nos cerca. Dessa forma, avalio como
pertinente empreender um breve resgate do processo de construção da atual hegemonia
neoliberal a fim de apresentar com maior clareza algumas das origens do atual processo
de precarização do trabalho e seus impactos sobre a saúde.
O processo de “neoliberalização” que envolve as economias contemporâneas tem
revelado uma reconfiguração da organização societária com transformações evidentes no
processo de produção e reprodução da vida social, determinadas por elementos como a
reestruturação produtiva do capital, pela reforma do Estado e por novas formas de
enfrentamento da questão social. A orientação das políticas neoliberais, seguida pelos
organismos internacionais, fundamentalmente o Banco Mundial e o FMI, exigem
condições de inserção nesta dinâmica de reestruturação capitalista que combinem
atratividade, adaptação, flexibilidade e competitividade. Assim, a lógica do mercado
passa a ser a tendência dominante; o Estado desresponsabiliza-se da proteção social,
ocupando o espaço da mercantilização e transformando as políticas sociais em negócios.
Vale ressaltar que no contexto da redução dos direitos sociais, característica do
projeto neoliberal, surge um número significativo do que se convencionou chamar
"projetos sociais" esportivos e/ou culturais, sobretudo em bairros pobres e/ou favelas,
viabilizados por organismos privados e por políticas públicas financiadas e/ou executadas
pelo Estado. A Vila Olímpica da Maré (VOM) pode ser apontada como um exemplo
deste tipo de projeto. (Melo, 2005)
93
Para Melo (2005), a partir da criação da VOM ficam explicitas uma série de
características da nova face de atuação do Estado na concepção e execução de políticas
públicas e sociais, o que, no caso da VOM, se expressa na disseminação das ideologias de
responsabilidade social empresarial e do trabalho voluntário, assim como nas relações
entre Estado e ONG.
Dentro deste contexto, impõe-se ainda uma lógica que reduz o trabalho humano a
um simples componente do processo produtivo e a atenção à saúde a um mero
investimento que eleva a produtividade e melhora o desempenho econômico. Assim, a
precarização do trabalho que caracteriza episódios como os ocorridos na VOM, acontece
cada vez mais sistematicamente no contexto neoliberal e é marcada por mudanças em
relação ao mercado, nas condições de trabalho e na qualificação dos trabalhadores, se
concretizando através de perdas nos direitos trabalhistas decorrentes do retorno às ideias
liberais de defesa do Estado mínimo. No atual contexto societário o fenômeno da
precarização do trabalho é um elemento edificador, junto com o desemprego estrutural,
da dinâmica de expansão e consolidação do modelo neoliberal, atualmente hegemônico.
Nessa lógica, a flexibilização passa a ser associada a uma racionalização da
produção, possibilitando que o processo produtivo envolva trabalhadores submetidos a
diversas formas de contratação dentre elas a prestação de serviço, trabalho por tempo
determinado, assalariados de empresas terceiras, membros de cooperativas, e outras.
Para Valla (2005)
“simplesmente não existem mais empregos com garantias
sociais de saúde, férias, horas extras para um grande número
de brasileiros ou, se quiser, latino americanos. Até um trabalho
remunerado, mas sem garantias sociais, está ficando raro, o
que faz com que seu valor tenda a ficar baixo.” (p.77).
Pires (2008) ressalta ainda que o processo de ‘precarização do trabalho’, através
do surgimento de múltiplas relações contratuais, cada vez mais instáveis, tem
contribuído para aumentar as dificuldades de representação dos trabalhadores assim
como sua atuação sindical, deixando os trabalhadores desprotegidos e mais vulneráveis
às exigências gerenciais e patronais.
94
Podemos dizer que a adoção de uma lógica mercantil no campo da saúde
desresponsabiliza o Estado da execução de serviços, ao mesmo tempo em que legitima o
repasse de recursos públicos para subsidiar a contratação de serviços terceirizados,
disponíveis ao mercado da iniciativa privada Este quadro tem como consequência um
redirecionamento no campo da saúde, onde ganham força propostas como a de
focalização, que visa atender às populações mais vulneráveis através de uma “cesta” de
ações básicas para a saúde e, um forte incentivo à privatização, através do estímulo aos
seguros privados, da descentralização de serviços e das restrições às formas de
financiamento. (Souza, 2010). Prevalece ainda um ataque à universalidade do direito à
saúde, um dos pilares centrais dos sistemas universais de saúde. Em suma, a ênfase é
dada às propostas de parceria com a sociedade civil, bem como há uma forte tendência à
refilantropização da assistência à saúde.
Nesse cenário as ONGs, OS's e demais associações civis sem fins lucrativos que
compõem o chamado "terceiro setor" absorvem um contingente expressivo de força de
trabalho qualificada com formação em saúde, inclusive dos profissionais formados em
instituições públicas, o que acaba se revelando um contra-senso já que estas instituições
acabam formando profissionais que vão se inserir no mercado de trabalho por meio de
interesses privados. No caso do trabalho em saúde há em conjunto com essa lógica um
movimento de extinção da figura do servidor público que ocorre por meio da crescente
escassez de concursos públicos e da defasagem salarial e das condições de trabalho dos
atuais servidores.
Para Neves (2005) estes fenômenos têm como consequência a formação de um
contingente de "prestadores de serviços sociais" que se constituem, também,
potencialmente, em militantes políticos da “cidadania neoliberal”, já que, para
garantirem seu trabalho, acabam por seguir as ideias e ideais de seus empregadores.
Para a autora:
“As ONGs consubstanciam-se em espaço privilegiado de
difusão do trabalho precário no país, uma vez que absorvem
cerca de 14 milhões de trabalhadores informais, um contingente
da população majoritariamente urbana que, ao invés de
reivindicar coletivamente melhores condições de trabalho,
95
premidos pela falta de emprego acabam por viabilizar as
políticas neoliberais de superexploração da força de trabalho”
(Neves, 2005, p.123).
Nesse contexto, boa parte das atuais experiências de Educação em Saúde tem se
desenvolvido em nível local, atreladas a projetos e instituições do terceiro setor
(organizações não-governamentais - ONG’s, organizações sociais - OS’s, organizações
da sociedade civil de interesse público - OSCIP’s, etc) e muitas vezes baseadas no
discurso de ineficiência ou mesmo da falência do Estado, quando não da necessidade da
filantropia. Dessa forma, há de se atentar para o risco de que a expansão das fronteiras da
esfera privada influencie de forma definitiva o desempenho das funções de
responsabilidade do Estado alterando o tratamento político das necessidades sociais da
população.
Para Ribeiro (2005) esse risco se revela através dos seguintes elementos:
“(...) na desconsideração de compromissos históricos
com a cidadania; na modelagem tática do relacionamento com
os pobres, transformados em clientela de programas sociais; na
neutralização dos movimentos sociais, acusados de
incompreensão dos desafios do Brasil em face da globalização
da economia; no aumento do número de especialistas em
pobreza; na intervenção das agências multilaterias no
equacionamento de regras para as políticas sociais, em todos os
níves de governo.” (Ribeiro apud Valla & Stotz, 2005 p. 22).
No caso da VOM, a criação de uma ONG com representantes do executivo
municipal, de empresas e de representantes de associações de moradores, além de outras
ONGs, pode ser considerado um exemplo do chamado pacto social: um mecanismo de
diluição de antagonismo de classes, uma apresentação da adesão de forças entre
diferentes classes sociais que se unem para promover o “bem comum” no caso, a
implementação da VOM (Melo, 2005).
Valla (1999) aponta sobre a ambiguidade que as propostas de Educação em Saúde
em uma perspectiva popular podem assumir quando desenvolvidas em contextos como
96
este: por um lado podem ser vistas como formas de organização e politização da
população voltada para a mobilização diante da ineficácia das políticas públicas e da
inoperância do Estado; de outro também podem ser consideradas como formas de
substituir o Estado desresponsabilizando-o de suas atribuições e pactuando com a
redução de gastos e investimentos nas políticas públicas sociais.
Através do conhecimento da realidade da população pobre e favelada, do contato
com associações locais, do mapeamento de lideranças comunitárias, da identificação de
sistemas de informações, de resistência e sobrevivência, etc.; os órgãos públicos,
privados e mesmo internacionais ganham uma enorme capacidade de influência sobre
essas áreas. Esta influência, por vezes, permite a realização de melhorias a nível local, no
entanto, pode restringir a voz da população pobre a um nível distante das esferas de
decisão, já que, quando essas instituições assumem um papel de mediadoras entre as
reivindicações da população e o Estado, podem funcionar como amortecedores dos
anseios da população esvaziando suas reivindicações. Conforme afirma (Valla, 1986)
“legitima-se uma situação em que a sociedade civil é extremamente frágil, pois não
“toca” as áreas onde o poder se realiza” ( p.173).
O autor continua:
O grande número de programas e múltiplas instituições
que surgiram no decorrer dos anos demonstram, sem dúvida, a
insistência das autoridades em “educar” os moradores de
favelas; mas essas muitas mudanças demonstram também a
resistência da população favelada em aceitar as propostas e a
capacidade deles em obrigar as instituições e recriá-las. (Valla
(1986. p.167)
Dessa forma o autor ressalta que não devemos nos prender a falsa ideia de que a
Educação Popular vá empreender por si só uma ampla transformação social. Pelo
contrário, esta inclusive também pode ser uma ferramenta para a reprodução da lógica de
dominação e opressão (no sentido “Freiriano” do termo) dependendo da forma como for
desenvolvida. Variáveis como a conjuntura política e econômica, a organização dos
educadores e educandos assim como sua sensibilidade política e cultural são pontos
fundamentais para a construção da prática da Educação Popular voltada para um
97
redirecionamento da vida social visando a emancipação e o resgate do protagonismo da
população.
No entanto, vale ressaltar que para viabilização de uma perspectiva emancipatória
de Educação em Saúde são necessárias políticas de valorização do trabalhador o que
torna fundamental a existência de vínculos trabalhistas que possibilitem a organização
dos trabalhadores, assim como a criação de espaços de negociação para o debate de suas
reivindicações, os quais possam possibilitar a construção de formas de resistência às
atuais políticas de precarização.
98
6 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
De acordo com Bourdieu (1990), “campo” representa um espaço simbólico, no
qual diferentes atores lutam na determinação, validação e legitimidade de representações.
Como visto neste trabalho, a Educação em Saúde foi um campo que passou por uma
construção fortemente relacionada ao contexto social e histórico relativo às
representações de pobreza e consequentemente às intervenções sobre a mesma. Assim,
trata-se de um campo multifacetado, para o qual convergem diversas concepções, tanto
da educação quanto da saúde, as quais espelham diferentes compreensões do mundo,
demarcadas por distintas posições históricas, políticas, econômicas etc. sobre o homem e
a sociedade. Nessa diversidade, grande parte das ações educativas em saúde tem sido
marcada historicamente por um modelo autoritário e prescritivo.
Este capítulo visa articular algumas das informações levantadas na etnografia
sobre o “Ciranda da Saúde” com os referenciais teóricos sobre Educação em Saúde.
Pretende-se aqui discutir os caminhos possíveis, assim como os desafios, para a
construção de um modelo dialógico de Educação em Saúde, ou seja, um modelo pautado
na comunicação simétrica entre educadores e educandos que valorize as concepções não
só de saúde, mas também de mundo de cada um.
Em busca de novas propostas para a Educação em Saúde
Conforme apontam as palavras de Vasconcelos (2001, p.29) atualmente “uma
grande parte das práticas de Educação em Saúde estão voltadas para a superação do
fosso cultural existente entre as instituições de saúde e a população”. Isso acontece por
meio de experiências que, cada vez mais, reconhecem a diversidade e a heterogeneidade
das classes populares. Mesmo que esse processo venha ocorrendo ainda de forma
fragmentada, ele já sinaliza a busca de novos padrões de enfrentamento dos problemas de
saúde, caracterizados pela integração entre o saber técnico e o saber popular, pela via da
mútua colaboração e do diálogo. Nesse sentido, a Educação em Saúde deixa de ser uma
atividade a mais realizada nos serviços, para ser algo que atinge e reorienta a diversidade
das práticas ali realizadas (Vasconcelos, 2001).
Para Freire (1996), a valorização dos saberes populares, ou saberes socialmente
construídos na prática comunitária, possibilita trazer uma perspectiva centrada no
99
diálogo, na problematização e na ação comum entre profissionais e população. O autor
ressalta que, no processo de Educação Popular, é importante trabalhar a partir da
premissa de que tanto os profissionais (ou educadores) quanto a população (educandos)
sabem algo, mas também ignoram algo e, portanto, todos sempre têm algo a aprender ou
a ensinar a partir do diálogo e da troca de vivências. Assim, o processo educativo passa a
estar vinculado principalmente a elementos como a abertura, a disponibilidade e a
curiosidade dos sujeitos de explorar novos saberes e conhecimentos.
Essa perspectiva é também importante no sentido de apontar a necessidade de
horizontalização dos processos educativos, cuja consequência direta é o afastamento de
posturas autoritárias ou messiânicas do educador, por vezes comuns no trabalho com
segmentos populares, nos quais o profissional de saúde pode assumir o lugar de detentor
do saber ou de portador de uma verdade salvadora.
Dialogando com o saber do outro: contribuições da Antropologia
Algumas das propostas para uma nova perspectiva de Educação em Saúde são
resgatadas por Martínez-Hernáez (2010) que conjuga uma perspectiva que vai ao
encontro da proposta de Freire com uma perspectiva antropológica, ao defender um
modelo dialógico de Educação em Saúde. Para o autor, esse modelo deve incluir três
princípios: a multidimensionalidade, ou seja, as várias dimensões de risco ou dos
fenômenos de morbi-mortalidade; a bidirecionalidade, que diz respeito ao intercâmbio de
mensagens entre profissionais e os grupos sociais nos quais eles intervêm; e, finalmente,
a simetria, que busca o estabelecimento de relações recíprocas entre os diferentes atores
sociais envolvidos no processo educativo. Segundo o autor, é nesse sentido que a postura
do antropólogo, ao aplicar o método etnográfico cujo princípio é ir ao encontro de uma
visão holística e contextualizada, pode servir de inspiração ao educador em saúde. O
antropólogo busca um saber que é do outro, despoja-se de seu jargão técnico e de seus
valores, para assimilar o vocabulário e o universo simbólico de seus informantes. Nesse
sentido, o educador em saúde, ao assumir a mesma postura, contribui para uma maior
simetria no processo educativo visando a co-responsabilização do sujeito na produção do
seu próprio cuidado e o consequente “empoderamento” dos diferentes atores e grupos
sociais envolvidos neste processo.
100
Da mesma forma, torna-se cada vez mais consensual a ideia de que as
intervenções em saúde pública que ambicionam contar com a participação ativa das
populações devem apoiar-se nos saberes e práticas locais, conforme aponta Neves (2001)
ao problematizar as formas de enfrentamento à dengue na última década. Para tanto, é
necessário conhecer as construções simbólicas que estão envolvidas nas representações
dos indivíduos sobre saúde, educação, doença etc, considerando que não só os
condicionantes políticos e econômicos, mas também os históricos e culturais, determinam
os diferentes estados de saúde e doença da população. Essa proposta coaduna-se com a
postura preconizada pela Antropologia, que tem como pressuposto e método de
investigação a aproximação (ou mesmo imersão) em determinado contexto sociocultural
por meio da etnografia, como forma de conhecer seus códigos, suas crenças, suas
relações de poder, enfim, seu modus operandi.
O método etnográfico consolidou-se como o principal método de investigação da
Antropologia, muito em função das contribuições de Malinowiski e de sua obra
Argonautas do Pacífico Ocidental, publicada em 1922 e considerada até hoje uma das
principais etnografias na história da Antropologia. Nessa obra, Malinowski (1976)
descreve algumas de suas experiências e observações referentes aos papuo-melanésios
que habitavam a costa e as ilhas de Nova Guiné, procurando enfatizar as questões
metodológicas da pesquisa etnográfica e do desenvolvimento da técnica de observação
participante, como a importância de ir a campo e ter contato direto com as populações
investigadas, a necessidade de criação de condições adequadas para a pesquisa, a
observação minuciosa do ambiente e da população pesquisadas e a descrição detalhada da
coleta, manipulação e do registro de dados. Para Malinowski, mediante esses elementos,
seria possível descrever a constituição de determinada sociedade de maneira clara e
nítida, assim como distinguir suas leis e regularidades (Malinowski apud Durham, 1986).
As contribuições de Malinowski foram posteriormente discutidas e aprofundadas
sob diferentes pontos de vista e diversos autores. Dentre eles, Clifford Geertz foi um
nome proeminente, ao ressaltar o caráter interpretativo do método etnográfico. Para
Geertz (1989), a etnografia, mais do que uma questão de método ou de selecionar
informantes, mapear campos, manter um diário etc., é uma descrição densa. O autor
utiliza o conhecido exemplo dos garotos que piscam o olho por diferentes razões e
motivações, para apresentar a distinção entre descrição superficial e descrição densa. Na
101
primeira, o etnógrafo procede a uma codificação em que sua investigação é vista como
mera observação e descrição de códigos, e, na segunda, as situações produzidas são
percebidas, interpretadas e descritas.
Nesse sentido, Geertz (1989) aponta que a descrição etnográfica tem três
características fundamentais: 1) ela é interpretativa; 2) o que ela interpreta é o fluxo do
discurso social; e 3) a interpretação envolvida consiste em tentar salvar o “dito”, num tal
discurso de sua possibilidade de extinguir-se, e fixá-lo em formas pesquisáveis. Uma
quarta característica ainda seria seu caráter microscópico, já que o antropólogo aborda
características sociais mais amplas, a partir de um conhecimento extensivo de assuntos
extremamente pequenos. Por meio desses elementos, o autor discute o papel do
etnógrafo: cabe a ele construir essa descrição densa, assim como buscar compreender a
cultura de um povo, expondo sua normalidade sem reduzir sua particularidade. O autor
afirma ainda que:
O que o etnógrafo enfrenta de fato é uma
multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas
delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são
simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele
tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois
apresentar (Geertz, 1989, p.20).
No entanto, Geertz ressalta que a interpretação do observador não pode ser o
principal teste de validade de uma descrição cultural: ele lembra que todos os sistemas
sociais têm um grau mínimo de coerência, senão não seriam sistemas. Assim, o papel do
etnógrafo é “inscrever” o discurso social, e essa inscrição deve buscar o significado do
acontecimento de falar, não o acontecimento como acontecimento. Nisso consistiria a
interpretação antropológica: traçar o curso do discurso social e fixá-lo numa forma
pesquisável, como um discurso social elaborado (Geertz, 1989). Por meio dessa
“densidade” proposta por Geertz, constituída por uma interpretação apurada dos
múltiplos discursos presentes nos níveis microscópicos das relações, seria possível
adentrar um nível mais profundo dos saberes e representações de determinado contexto
sociocultural.
102
Para James Clifford (2008), um importante teórico da Antropologia
Contemporânea, a etnografia seria um meio de produzir conhecimento, a partir de intenso
envolvimento intersubjetivo entre o pesquisador e seu campo de estudo. Utilizando uma
analogia entre o método etnográfico e o cenário da escrita, Clifford fala da etnografia
como uma tradução, e aponta que ela é uma forma de lidar com a complexidade
decorrente das múltiplas subjetividades e de constrangimentos políticos que estão
presentes no campo de pesquisa e, muitas vezes, colocam-se acima do controle do
etnógrafo. O reconhecimento do envolvimento intersubjetivo proposto por Clifford opõe-
se aos ideais de neutralidade e isenção absoluta, que marcaram não só o discurso
etnográfico clássico, mas o próprio discurso científico. O reconhecimento de que há
envolvimento subjetivo na pesquisa etnográfica (tanto partindo do investigador em
direção ao campo quanto no sentido contrário) e que ela, em certa medida, é até mesmo
necessária é abordado por autores como Velho (1979) e DaMatta (1978).
Lembrando do caráter interpretativo do trabalho antropológico enfatizado por
Geertz, Velho (1979) afirma que o processo de conhecimento da vida social sempre
abarca elementos da subjetividade e, por isso, é necessariamente aproximado e não
definitivo. Conforme aponta o autor:
[...] a idéia de tentar pôr-se no lugar do outro e de captar
vivências e experiências particulares exige um mergulho em
profundidade difícil de ser precisado e delimitado em termos de
tempo. Trata-se de problema complexo, pois envolve as questões
de distância social e distância psicológica (Velho, 1979, p.37).
O método etnográfico exige esse mergulho ao qual o autor se refere. É por meio
da imersão que será possível ambicionar o acesso a distintas realidades, sem o olhar
estereotipado (ou mesmo preconceituoso) que permeia o senso comum. As distâncias que
o autor bem ressalta vão muito além de fronteiras geográficas, mas facilmente se aplicam
ao interior de uma mesma sociedade. Por exemplo, não é novidade que, em nossa
sociedade, há diversos segmentos, dos quais muitos são marginalizados, o que se deve em
grande parte às enormes desigualdades e contradições intrínsecas de nosso modo de
organização social. Nesse sentido, Velho (1979) aponta que o fato de dois indivíduos
pertencerem à mesma sociedade não significa que estejam mais próximos do que se
103
fossem de sociedades diferentes. O que define essa proximidade é o fato de partilharem
experiências comuns, que permitam determinado nível de interação.
Assim, o fato de dispormos de um “mapa” que nos familiariza com os cenários e
situações sociais de nosso cotidiano, dando nome, lugar e posição aos indivíduos, não
significa que conhecemos o ponto de vista e a visão de mundo dos diferentes atores em
determinada situação social nem as regras que estão por trás dessas interações. Daí vem a
importância do que DaMatta (1978) denomina de “transformar o exótico em familiar e o
familiar em exótico”, tarefa fundamental da etnografia, pela qual seria possível acessar as
diferentes realidades existentes dentro de nossa sociedade. Dessa forma, a realidade
(familiar ou exótica) sempre é filtrada por determinado ponto de vista do observador, ou
seja, ela é percebida de maneira diferenciada. Para o autor:
Este movimento de relativizar as noções de distância e
objetividade, se de um lado nos torna mais modestos quanto à
construção do nosso conhecimento em geral, por outro lado
permite-nos observar o familiar e estudá-lo sem paranoias sobre
a impossibilidade de resultados imparciais, neutros (Velho,
1979, p.43).
Já DaMatta (1978) aborda a questão do surgimento daquilo que pode ser
demarcado como o elemento que se insinua na prática etnológica, mas que não estava
sendo esperado, ao que ele denomina anthropological blues (em analogia com o ritmo
musical blues, em que a melodia ganha força a partir da repetição das frases). Os
sentimentos e as emoções despertos no pesquisador seriam exemplos de alguns elementos
não esperados ou “hóspedes não desejados”, decorrentes do envolvimento com o campo
de pesquisa. Assim, o autor aponta a etnografia como ferramenta de comutação e
mediação, pela qual é possível construir pontes entre diferentes universos de significação.
Essa característica de mediação da etnografia revela-se fundamental no campo da
Educação em Saúde que, como visto, muitas vezes, revela-se atravessado por discursos
paralelos que não dialogam entre si. Dessa forma, a postura preconizada pela
Antropologia na aplicação do método etnográfico pode inspirar profissionais de saúde
para a construção de uma Educação em Saúde mais dialógica. Ainda nesse sentido
Fonseca (1999) afirma que além de ser um instrumento importante para a compreensão
104
intelectual de nosso mundo, o método etnográfico também pode ter uma utilidade prática,
principalmente quando pensamos na educação enquanto ato de comunicação já que, para
a autora, o sucesso do contato educativo depende do diálogo estabelecido entre o agente e
seu interlocutor, e é justamente nessa área da comunicação que o método etnográfico vai
atuar.
Para Martínez-Hernáez (2010) a forma de Educação em Saúde que tem sido
hegemônica desde o seu surgimento reproduz um modelo que tem como forte
característica a desvalorização dos conhecimentos e práticas locais. Frutos desse modelo
são, por exemplo, as campanhas informacionais que partem do princípio que o “envio” da
informação “correta” e “científica” é suficiente para a transformação das normas de
comportamento. No entanto, como citamos anteriormente, hoje em dia assistimos a
emergência de uma série de propostas e experiências que ambicionem contar com a
participação ativa das populações e de seus saberes e práticas locais na construção de
intervenções não só em Educação em Saúde, mas em Saúde Pública como um todo. Para
tanto, é necessário conhecer as construções simbólicas que estão envolvidas nas
representações dos diferentes indivíduos sobre saúde, educação, doença, etc; Nesse
sentido reconhecer a existência das desigualdades sociais que impactam na determinação
dos processos de saúde / doença em diferentes populações é também um dos passos para
almejar a construção de um modelo de Educação em Saúde pautado em um discurso mais
equânime que esteja atento às diferentes realidades da sociedade e que,
consequentemente, seja dotado de mais permeabilidade junto à população, sempre
partindo do pressuposto de que as pessoas não são meros interlocutores passivos, mas que
elas a todo tempo desenvolvem estratégias e modos de negociar seus sentidos e suas
realidades, inclusive no que se refere à sua própria saúde.
Educação em Saúde em contextos de pobreza e exclusão: caminhos possíveis.
Uma série de estereótipos e preconceitos atravessam nossas concepções e
representações sobre educação e aprendizado: a crença de que o período ideal para a
educação ocorre na infância e adolescência, a eleição da escola como locus mais
apropriado senão único onde possa se desenvolver o processo educativo, a educação
como o processo ensino / aprendizagem onde o professor ensina e o aluno aprende, etc.
105
Quando falamos em educação em contextos de pobreza, ainda outros preconceitos
se revelam. Por exemplo, a ideia de deficit da população pobre, que ainda hoje tem força,
singularizando a questão da pobreza e colocando-a no campo do fracasso a nível pessoal.
Atualmente essa ideia também assume outro nível sendo a ideologia predominante da
grande maioria dos programas compensatórios desenvolvidos em favelas.
A população pobre, em geral é a que tem menos êxito se avaliadas através de
procedimentos convencionais e a mais difícil de ser ensinada através dos métodos
tradicionais, cujas bases são pensadas e estão voltadas pela e para as classes dominantes.
Sendo assim a população pobre, embora seja a grande maioria na realidade do país, é a
que têm menor poder nos espaços formais de educação, sendo os menos capazes de fazer
valer suas reivindicações ou de insistir para que suas necessidades sejam satisfeitas. Tudo
isso fortalece a chamada tese da “cultura da pobreza”, na qual a reprodução da pobreza de
uma geração para outra é atribuída às adaptações culturais do indivíduo pobre às suas
circunstâncias. Aliada a isso há a crença tradicional de que o indivíduo pobre simbolizado
na figura do favelado não é como o resto da sociedade, mas sim um cidadão de segunda
categoria, um “invasor”, representante de uma população potencialmente “ilegal”,
“perigosa” (Valla, 1986).
Com isto, espera-se que o educando pobre receba docilmente conteúdos que
incluem normas, prescrições e modos de vida que, não raro, são elaboradas em realidades
bem distintas da onde vão ser aplicadas e que muitas vezes partem do princípio de que o
que é feito no cotidiano dos “educandos” é errado e as informações que estão sendo
transmitidas, ou depositadas, são as certas ou as melhores.
O primeiro passo para transformar essas concepções é romper com a ideia de favela
como algo fora da sociedade, fora do lugar. A favela não é alheia à sociedade. Considerar
esta afirmativa é fundamental para um entendimento mais crítico e global da cidade e da
realidade onde vivemos. O processo de favelização ocorrido nas cidades é um produto da
dinâmica social contemporânea, e não sua causa. Não se pode deixar de considerar a
dimensão política, econômica, histórica de tal processo. Como afirma Valla (1986)
“Contrastadas com as grandes mansões, nada mais são as favelas do que a fiel
reprodução das desigualdades sociais, das desigualdades de classe”.
106
Ainda hoje uma parcela significativa da população ainda acredita que a condição
de miséria de milhares de pessoas espalhadas pelo território brasileiro é causada pela
preguiça, pela falta de interesse pelo trabalho, e que esta parcela da população se
acomoda à espera de programa sociais oferecidos pelo governo: em suma, acham que só
não trabalha quem não quer. No entanto, a análise sócio-histórica da realidade brasileira
nos mostra que o fenômeno da pobreza é muito mais complexo. A estratégia de moradia
na favela, por exemplo, não é uma estratégia pura e simplesmente de habitação, mas sim,
uma estratégia muito mais ampla de sobrevivência, da qual a moradia é apenas um dos
aspectos. Para Valla (1986) as favelas são
“(...) uma saída, uma iniciativa. Uma iniciativa que
levanta barracos contra uma ordem urbana desumana,
segregadora, capitalista. Uma iniciativa de bom tom: resgatar
uma cidadania usurpada. Desmitifica o mito de sua “apatia”.
(p.26).
A posição de Valla (1986) é importante na medida em que não culpabiliza a
população pobre pela sua condição, mas também não a considera como mera vítima
passiva, apontando para seu potencial de resistência e seu papel de sujeito na sociedade.
Como procuramos apontar ao longo deste trabalho, uma proposta de Educação em Saúde
dialógica de base popular pode desempenhar um importante papel na transformação das
concepções e representações da pobreza, resgatando o potencial de vida e apontando para
um horizonte de transformação, rompendo com as teorias imobilistas que difundem a
ideia de que “as contradições que, dia a dia, as camadas populares observam e padecem
na cidade – baixos salários, moradias precárias, falta de serviços básicos – são
superáveis dentro do sistema capitalista”. (Valla, 1986, p.170)
Não defendemos que a Educação Popular seja a única alternativa diante das
condições de iniquidade e disparidade que marcam nossa sociedade, mas acreditamos que
esta, justamente pelo caráter de mobilização que a marca desde seu surgimento, pode ser
uma potente ferramenta para alcançarmos um horizonte de superação dessas condições
do ponto de vista das intervenções em saúde.
107
Nesse sentido tomamos emprestadas as palavras de Vasconcelos (2001):
A Educação Popular não é o único projeto
pedagógico a valorizar a diversidade e a heterogeneidade dos
grupos sociais, a intercomunicação entre os diferentes atores
sociais, o compromisso com as classes subalternas, as iniciativas
dos educandos e o diálogo entre o saber popular e o saber
científico. Mas para a saúde pública brasileira, a participação
histórica no movimento da Educação Popular foi marcante na
criação de um movimento de profissionais que busca romper
com a tradição autoritária e normatizadora da relação entre os
serviços de saúde e a população.
Dessa forma a educação pode funcionar como processo contínuo, permanente nas
trajetórias de vida dos sujeitos, indo além da pedagogia clássica, e estando presente nas
menores dimensões do cotidiano, no processo de apreensão e ressignificação do mundo,
portanto, processo ativo de construção e desconstrução onde homens e mulheres à todo
tempo imprimem seu olhar à realidade transformando-a com alegria e com luta, como
sujeitos de sua história.
Rumo à um modelo dialógico
Como alternativa ao chamado “modelo monológico”, que embasa até hoje muitas
das práticas educativas em saúde, as propostas de Educação Popular em Saúde têm
emergido nas últimas décadas como correntes contra-hegemônicas. Conforme visto
anteriormente, tendo em Paulo Freire um de seus principais referenciais, a Educação
Popular propõe a valorização dos saberes populares – ou saberes socialmente construídos
nas práticas comunitárias –, o que viabilizaria uma perspectiva centrada no diálogo, na
problematização e na ação comum entre profissionais e população.
A partir de uma leitura da realidade marcada pela densidade e pela mediação,
como propõe o método etnográfico, e da busca do diálogo com diversos saberes,
advindos da Educação Popular, pode-se pensar na possibilidade de construção de uma
Educação em Saúde pautada em critérios inversos àqueles que definem o modelo
monológico. Nesse sentido, a postura do antropólogo, ao adotar o método etnográfico,
108
pode ajudar no aporte a um modelo de relação que seja mais dialógico, pois oferece uma
base epistemológica e metodológica para estar entre os coletivos profissionais e
populares. Pode-se afirmar ainda que a busca da alteridade é um dos elementos chaves
que guiam o trabalho tanto do etnólogo quanto do educador que trabalha na perspectiva
popular, como aponta Geertz (2007, p.91): “para entender as concepções alheias é
necessário que deixemos de lado nossa concepção, e busquemos ver as experiências de
outros com relação à sua própria concepção do ‘eu’”.
Dessa forma, como propõe Martínez-Hernáez (2010), o princípio da
unidimensionalidade seria substituído pelo da bidirecionalidade, que consiste em um
intercâmbio de mensagens, ideias, representações, informações entre os profissionais de
saúde e os grupos populares, sem que esses últimos assumam o lugar de leigos ou
ignorantes, mas passem a ser valorizados como produtores de múltiplos saberes,
construídos a partir de seu arcabouço cultural, vivencial, histórico etc. Nessa perspectiva,
também os profissionais deixam de ser vistos como meros reprodutores do discurso
biomédico hegemônico, e passam a ser considerados atores de uma reconfiguração de sua
experiência e de seu saber, a partir da proximidade com os saberes populares.
A unidirecionalidade daria lugar à referência multidimensional, que, por sua vez,
estaria ligada a uma ampla análise da situação saúde-doença, que tomasse como
referência as relações de multicausalidade, que estão por trás de condutas de risco ou dos
fenômenos de morbi-mortalidade. A contribuição da visão antropológica, nesse caso,
seria a preconização de uma visão holística e contextualizadora.
Já o princípio da hierarquia daria lugar ao da simetria, o qual propõe um modelo
que coloque os diferentes atores sociais em posição de maior reciprocidade, sem
desfigurar o papel ativo dos profissionais. O estabelecimento de um arranjo mais
harmônico entre esses atores visa também a estabelecer uma relação de co-
responsabilidade entre ambos.
109
Assim chegaríamos ao seguinte esquema:
Modelo livre criado pelo autor adaptado de Martínez-Hernáez (2010)
A partir dessas reconfigurações, poder-se-ia almejar a formação de um modelo
dialógico, no qual os múltiplos discursos envolvidos no entendimento e explicação da
saúde, doença, cuidado etc. não só convivem de forma orgânica, mas se complementam,
formando uma proposta de Educação em Saúde que considera os sujeitos como autores
de suas trajetórias de saúde e doença.
Nesse sentido, o educador em saúde, usando premissas próximas às recomendadas
ao antropólogo na aplicação do método etnográfico, pode contribuir para a melhor
efetividade de suas intervenções, ao possibilitar uma articulação entre o saber científico e
o popular. Assim, ele fornece uma base empírica para o desenho de investigações e
projetos ligados à saúde, propicia ainda a participação social nesse campo e uma
consequente diminuição da distância entre as propostas de Educação em Saúde e os
múltiplos saberes da população.
110
Reflexões a partir do “Ciranda da Saúde”
A observação do “Ciranda da Saúde”, mesmo com as limitações impostas pela
interrupção do grupo durante a pesquisa, trouxe importantes elementos para a análise e a
reflexão de alguns dos atuais desafios e possibilidades das propostas de Educação em
Saúde que buscam se pautar em uma perspectiva dialógica e popular.
Dentre estas contribuições podemos destacar a importância de considerarmos as
relações entre educação e comunicação, ou seja, os processos relativos aos planos
verbal, não verbal e simbólico, que estão envolvidos no processo de Educação em
Saúde. No processo de comunicação, todo ato de pensar exige um sujeito que pensa, um
objeto pensado, que mediatiza o primeiro sujeito do segundo, e a comunicação entre
ambos, que se dá através de signos linguísticos (Freire, 1983a). Nesse sentido:
“Um sujeito pensante não pode pensar sozinho; não pode
pensar sem a co-participação de outros sujeitos no ato de pensar
sobre o objeto. Não há um ‘penso’, mas um ‘pensamos’. É o
‘pensamos’ que estabelece o ‘penso’ e não o contrário. Esta co-
participação dos sujeitos no ato de pensar se dá na comunicação.
O objeto, por isto mesmo, não é a incidência terminativa do
pensamento de um sujeito, mas o mediatizador da
comunicação” (Freire, 1983a, p. 45).
Ao analisarmos a comunicação através desta perspectiva poderemos afirmar que
nela não há sujeitos passivos. Os sujeitos co-intencionados ao objeto de seu pensar se
comunicam através de seu conteúdo e o que passa a caracterizar a comunicação nessa
lógica é que ela é diálogo, assim como o diálogo é comunicativo. A comunicação,
portanto, não está na exclusiva transferência ou transmissão do conhecimento de um
sujeito a outro, mas em sua co-participação no ato de compreender a significação do
significado. Assim a educação é comunicação, é diálogo, na medida em que não é a
transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a
significação dos significados. Freire (1983a) afirma que estabelecer uma relação
dialógica é não invadir, não manipular. Ser dialógico é empenhar-se na transformação
constante da realidade. A ideia de dialogicidade remete a uma reflexão compartilhada a
111
partir da experiência da cotidianidade. Nesse sentido o diálogo é um instrumento
transformador do mundo porque possibilita / promove um pensar verdadeiro e crítico.
Daí que, no caso da Educação em Saúde, o diálogo problematizador, entre as
várias razões que o fazem indispensável, tenha esta mais: a de diminuir a distância entre a
expressão significativa do técnico e a percepção pela população em torno do significado.
A partir da observação do Ciranda da Saúde podemos afirmar que o descompasso
existente entre as teorias biomédicas e populares em relação à saúde poderia ser superado
com a construção de um intercâmbio de mensagens, ideias, representações, informações
entre os profissionais de saúde e os grupos populares de forma que estes últimos
deixassem de ser vistos como leigos ou ignorantes, mas passassem a ser valorizados
como produtores de saberes construídos a partir de seu arcabouço histórico, cultural e
vivencial.
Por sua vez, a possibilidade de aproximação dos universos de significação entre
profissionais e usuários de saúde e a consequente diminuição da distância entre estes
segmentos, remete as já discutidas contribuições da Antropologia à Educação em Saúde
por meio da utilização da postura etnográfica no processo comunicativo. Nas palavras de
Fonseca (1999):
“o antropólogo trabalha a base da premissa de que o
processo comunicativo não é tão simples assim — que, em muitas
situações, por causa de uma diferença em faixa etária, classe,
grupo étnico, sexo ou outro fator, existe uma diferença
significativa entre os dois universos simbólicos capaz de jogar
areia no diálogo. Em outras palavras, a Antropologia procura
criar dúvidas, levantando hipóteses sobre os hiatos e assimetrias
que existem entre nossa maneira de ver as coisas e a dos outros.”
Para além do campo comunicacional e de certa forma, em decorrência dele, a
observação do “Ciranda da Saúde” apontou também a importância do vínculo entre
profissionais e usuários, não só para a manutenção do grupo, mas também na percepção
de cuidado dos usuários: a descrição do grupo feita pelos seus frequentadores como um
espaço de escuta e acolhimento remete aos já referidos conceitos de apoio social e
reparação moral. No entanto, apontamos aqui a necessidade de uma pesquisa mais
112
aprofundada, principalmente no que se refere à realização de um número maior de
entrevistas, para ter um melhor retorno por parte destes dois segmentos (profissionais e
usuários) sobre os “efeitos” e desdobramentos de uma proposta nos moldes do “Ciranda
da Saúde”.
Além de apontar para a possibilidade de avanços nos campos da comunicação
entre profissionais e usuários, e na própria relação estabelecida entre esses atores, a
partir da adoção de uma perspectiva dialógica, simétrica e de respeito ao saber do outro,
a observação do grupo “Ciranda da Saúde” sinalizou alguns importantes desafios para a
consolidação de uma proposta de Educação em Saúde popular e emancipatória.
Um desses desafios se refere ao caráter transitório de experiências como a do
“Ciranda”, que muitas vezes dependem do envolvimento e da mobilização de um
determinado profissional, através de um modelo “pessoa-centrado”. Neste tipo de
situação, geralmente quando este profissional deixa o serviço por algum motivo, as
experiências perdem sua continuidade e terminam não mais ocorrendo. Conforme
relatado este fato ocorreu também na VOM o que inviabilizou, por exemplo, apresentar
o retorno dos dados da presente pesquisa para a equipe de saúde da instituição.
Outra limitação observada a partir da experiência do grupo é a dificuldade de
construção de ações que congreguem reflexão e ação em uma praxis transformadora. Na
proposta de Educação Popular pautada no pensamento de Paulo Freire, reflexão e ação
não se separam. Nesse sentido a praxis seria a transformação do mundo, a conquista de
sujeitos que se encontram para, em colaboração, exercerem uma análise crítica sobre a
realidade (Freire, 2005). A ideia central no pensamento Freire é de que “transformar é,
inscrever-se como sujeito numa ação de verdadeira transformação da realidade histórica
que é ao fim a transformação dos próprios homens” (FREIRE, 2005, p. 165). Nessa
perspectiva mudança e transformação social assumem um caráter de comprometimento e
engajamento nas lutas contra as situações de opressão. Ao analisarmos a experiência do
“Ciranda Saúde” sob esta perspectiva, podemos afirmar que muito dos limites
identificados no grupo se referem a dificuldade de levar às discussões para além do
espaço do próprio grupo, propondo ações afirmativas e transformadoras não apenas na
Maré, mas na sociedade em geral.
113
Nesse sentido, podemos questionar como uma experiência educativa em saúde
pode se consolidar como um projeto emancipatório em um contexto sócio-histórico onde
os próprios profissionais que atuam nessas experiências, muitas vezes, estão submetidos a
uma lógica de exploração, que se reflete na precariedade dos vínculos de trabalho. A
partir disso, cabe refletirmos como projetos nos moldes da VOM podem se concretizar
como verdadeiros mecanismos de obtenção de consenso, na medida em que fortalecem
concepções de mundo que não levam à problematização crítica das condições de vida.
Este é, inclusive, um dos riscos do atual uso indiscriminado do discurso da
Educação Popular e de Paulo Freire por vozes pouco coerentes com sua proposta de
conscientização: nesse cenário, manifestam-se mobilizações ditas “populares” em torno
de demandas específicas, aparentemente desvinculadas da organização da sociedade, em
que a luta conjunta por transformações sociais é abandonada em nome de um
pragmatismo que dificilmente ultrapassa a prestação de serviços.
Por fim, gostaria de relatar que a observação do “Ciranda da Saúde” me fez
problematizar o papel da própria pesquisa social, já que, no decorrer da investigação me
vi, por diversas ocasiões, diante da necessidade e do desafio de caminhar no sentido de
uma aproximação maior entre teoria e prática, discurso e ação, no engendramento de
novas formas, não somente nos processos da educação e da saúde, mas também nos
processos de produção de vida, seja na academia ou na minha trajetória enquanto
profissional e cidadão.
114
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119
ANEXO I - Termo de Consentimento para os participantes da pesquisa
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
Este documento visa sua permissão para participar da pesquisa Educação em
Saúde na Vila Olímpica da Maré: trabalhando a partir da circulação de saberes. O
objetivo da pesquisa é analisar o processo relacional/pedagógico nas atividades de
Educação em Saúde na Vila Olímpica da Maré (VOM).
Você está sendo convidado para participar desta pesquisa por coordenar / atuar
em algumas das atividades ou grupos de Educação em Saúde na VOM e sua
participação é voluntária.
Por intermédio desse Termo são garantidos os seguintes direitos: (1) solicitar, a
qualquer tempo, maiores esclarecimentos da Pesquisa; (2) sigilo absoluto sobre nomes,
apelidos, data de nascimento, bem como quaisquer outras informações que possam levar
a sua identidade pessoal; (3) você pode se negar a responder a qualquer pergunta ou a
fornecer informações que julgue prejudiciais à sua integridade física, moral e social; (4)
opção de solicitar que determinadas falas e/ou declarações não sejam incluídas em
nenhum documento; (5) desistir, a qualquer tempo, de participar da pesquisa;
A sua participação permitirá o maior conhecimento sobre a realidade do trabalho
realizado relacionado à Educação em Saúde podendo trazer subsídios para o
aprimoramento de técnicas e metodologias referentes ao tema. Não existem riscos para
os participantes, já que se trata de um estudo observacional onde serão seguidos todos
os preceitos éticos.
Durante a pesquisa há a possibilidade de utilização de registros e gravações
sendo que os grupos e atividades só serão gravados mediante autorização. As gravações
serão guardadas em local de acesso restrito aos pesquisadores e serão inutilizadas após
um ano do término da pesquisa. Os resultados serão disponibilizados para a VOM e ,
caso queira, serão também disponibilizados a você.
120
“Declaro estar ciente das declarações nesse “Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido”, e entender que serei resguardado pelo sigilo absoluto dos meus dados
pessoais e de minha participação na pesquisa. Poderei pedir, a qualquer tempo,
esclarecimento sobre essa pesquisa ao pesquisador João Vinícius dos Santos Dias
através do telefone 8203-4396 ou ao Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de
Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ que se localiza na Praça Jorge Machado Moreira,
Cidade Universitária – Ilha do Fundão/Rio de Janeiro – RJ - Sala 15. Tenho ciência
também que tenho resguardados os direitos de me recusar a dar informações que julgue
prejudiciais a minha pessoa, solicitar a não inclusão em documentos de qualquer
informação que já tenha fornecido e desistir, a qualquer momento, de participar da
Pesquisa. Fico ciente também de que uma cópia desse Termo permanecerá arquivada
com o Pesquisador responsável do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ e
outra será entregue ao entrevistado.”
Rio de Janeiro, ____de _____________de 2011.
Participante:
_______________________________________________________________
Assinatura do Pesquisador:
___________________________________________________
Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ
Praça Jorge Machado Moreira - Próximo a Prefeitura Universitária da UFRJ
Ilha do Fundão - Cidade Universitária
CEP 21944-970, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Comitê de Ética
Instituto de Estudos em Saúde Coletiva
Praça Jorge Machado Moreira, Cidade Universitária – Ilha do Fundão/Rio de Janeiro –
RJ - Sala 15
Tels: (21) 2598-9293 - www.iesc.ufrj.br
E-mail: [email protected]
121
ANEXO II – Roteiro de entrevista com os profissionais do Ciranda da Saúde
Roteiro de Entrevistas – Profissionais Ciranda da Saúde
Nome do entrevistado ........................................................
Idade:
Sexo:
Formação profissional:
Graduação:
Tempo de formado:
Outras especializações/ ano:
Realizou alguma formação em Educação para saúde? Descreva (ano de ingresso, qual
formação, linha de atuação, pontos positivos e negativos percebidos pelo entrevistado)
Experiência Profissional
Fale um pouco sobre sua opção por trabalhar com Educação para a Saúde
Você tinha algum emprego/atividade no Brasil antes de iniciar suas atividades na
VOM? Descreva as suas atividades
Você realizava anteriormente atividades de ES? (Buscar como o entrevistado percebia
tais atividades)
Poderia contar alguma experiência que considere importante em relação à grupos de
ES?
122
Destaca algum contato profissional ou institucional que considera relevante para sua
atuação como educador em saúde
Grupo Ciranda da Saúde
Inicio de ingresso:
Conte um pouco sobre seu ingresso no grupo:
Quais as suas expectativas em relação ao grupo antes de iniciá-lo? Elas estão sendo
concretizadas?
Quais as suas expectativas em relação ao futuro do grupo
Poderia contar alguma experiência que considere importante no grupo?
Que conselho daria a alguém que deseje iniciar um grupo de Educação em Saúde em
uma comunidade com as características da Maré?
Comentários sobre a entrevista:
123
ANEXO III – Roteiros de Entrevista com os participantes do Ciranda da Saúde
Roteiro de Entrevistas – Participantes Ciranda da Saúde
Nome do entrevistado ........................................................
Idade:
Sexo:
Cidade/estado origem:
Mora da Maré?
Há quanto tempo?
Participa de alguma outra atividade na VOM? Qual?
Escolaridade:
Grupo Ciranda da Saúde
Você já tinha participado antes de um grupo de Educação em Saúde?
Participa de alguma atividade na VOM além do Ciranda da Saúde? Qual?
Como você ficou sabendo da Ciranda da Saúde?
Por que resolveu participar?
Quando você começou a participar do grupo?
Conte um pouco sobre seu ingresso no grupo:
124
Quais eram as suas expectativas em relação ao grupo antes de iniciá-lo? Elas estão
sendo concretizadas?
Quais as suas expectativas em relação ao futuro do grupo?
Você se sente à vontade para falar no grupo?
Poderia contar alguma experiência que considere importante no grupo?
Percebe alguma diferença na idéia que você tem de saúde depois que começou a
freqüentar o grupo?
E nos seus hábitos? Algo mudou?
Você costuma levar as informações discutidas no grupo para sua família / amigos /
pessoas próximas?
Que conselho daria a alguém que deseje começar a freqüentar um grupo de Educação
em Saúde?
Comentários sobre a entrevista
125
ANEXO IV: Exemplo de metodologia usada no grupo Ciranda da Saúde
Tema: Violência no Rio de Janeiro
Facilitadores:
1) Material: Fotos, matérias de jornais e revistas sobre os últimos episódios de violência na cidade; cadeiras e mesa.
2) Metodologia:
Abertura
O grupo começa com a formação da roda e caso haja participantes novos, os facilitadores podem solicitar a um participante mais antigo que fale sobre a proposta do grupo.
Os facilitadores contextualizam sobre o tema a ser discutido e sobre a proposta de dinâmica.
Dinâmica das fotos e notícias
Os facilitadores colocam as fotos, reportagens, etc em uma mesa no centro da roda e pedem aos participantes que olhem e manipulem as fotos de acordo com o seu interesse. É comunicado ao grupo que, caso queiram, podem escolher algumas das fotos e reportagens e comentá-las (é também dado liberdade caso alguém queira ler alguns dos materiais).
Discussão
Após esse momento, os facilitadores indagam ao grupo como se sentem ao verem e manipularem as fotos e como vivenciaram as últimas situações de violência na cidade.
Iniciada a discussão o método da problematização será a principal ferramenta na mediação do grupo, através de perguntas semi-direcionadas que irão disparar o debate entre os participantes. Devido a complexidade do tema os facilitadores devem evitar ao máximo emitir opiniões pessoais do tipo “eu apoio essa ou aquela ação” ou “isso ou aquilo é certo ou errado”.
Caso haja necessidade (perda do foco da discussão, debate morno, etc) os facilitadores podem ler alguma das reportagens dispostas na mesa e debater com o grupo.
Sugestões de perguntas disparadoras:
- A violência é somente uma questão de segurança?
- Você acha que alguém se beneficia com toda essa situação?
- Quem são os maiores prejudicados?
- Como você avalia o papel da mídia diante das últimas situações de violência?
- Como você avalia o papel do Estado (políticos, leis, políticas públicas, etc) diante das últimas situações de violência?
126
- Quais são os impactos de toda essa onda de violência sobre a saúde da população?
- O que podemos fazer?
3) Encerramento: O grupo de pé e de mãos dadas tenta resumir em uma palavra ou frase o que a discussão mobilizou.
127
ANEXO V – Cronograma
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