COMO AS SOCIEDADES RECORDAM
O PASSADO NO PRESENTE
Colecçäo coordenada por José Manuel Sobral
É objectivo desta colecçäo publicar obras no campo das ciênciassociais, com
particular destaque para a história e a antropologia, cujos temastenham relevância
para uma compreensäo processual da vida social. Os livros a editarcompreendem
tanto obras de carácter teórico, como investigaçöes sobre objectosempíricos.
OUTROS TíTULOS
Carol Fink
MARCH BLOCH - UMA VIDA NA HISTóRIA
Jack Goody
A FAMíLIA E O CASAMENTO NA EUROPA
Jack Goody
COZINHA, CULINARIA E CLASSES
PAUL CONNERTON
COMO AS SOCIEDADES
RECORDAM
TRADUÇÄO
MARIA MANUELA ROCHA
REVISÄO TÉCNICA
José MANUEL SOBRAL
OEIRAS, - 1993
O Cambridge University Press 1989
Título original
HOW SOCIETIES REMEMBER
COMO AS SOCIEDADES RECORDAM
Primeira ediçäo portuguesa - 1993
Traduçäo
MARIA MANUELA ROCHA
Revisäo técnica
JOSÉ MANUEL SOBRAL
Reservados todos os direitos para Portugal,
de acordo com a legislaçäo em vigor, por
CELTA EDITORA LDA
Apartado 151, 2780 Oeiras
ISBN: 972-8027-07-9
Ediçäo original: ISBN 0-521-27093-6, Cambridge University Press,Cambridge
Depósito legal
56598/93
Composiçäo
CELTA EDITORA
Capa
CELTA EDITORA
Com base em estudo gráfico de Joäo Belo
Impressäo e acabamentos
TIPOGRAFIA LOUSANENSE
Lousä
Na composiçäo deste livro foram utilizados um micro-computadorSCHNEIDER e uma impressora NEC,
distribuídos em Portugal por WS.
Indice
Agradecimentos............... vii
INTRODUÇÄO................... 1
1 A MEMORIA SOCIAL........... 7
2 CERIMONIAS COMEMORATIVAS... 49
3 PRATICAS CORPORAIS......... 87
Agradecimentos
Desejo agradecer ao Director e ao Director-Adjunto do Centro deInvestigaçäo
de Humanidades da Universidade Nacional da Austrália pelo convitede
Professor Visitante e pela disponibifizaçäo de condiçöesindispensáveis à
realizaçäo de parte do trabalho que conduziu a este livro. Devo umagradeci-
mento muito especial a Geoffrey Hawthorn, pelo incansável apoio aeste
projecto desde o seu início, com objectivos bastante diferentes doresultado
final, até à sua publicaçäo, e a Russell Keat, com quem discuti ospormenores
do trabalho, na maioria das fases por que este passou. O livro queagora se
publica beneficiou dos comentários críticos que ambos fizeram auma versäo
anterior, e também dos de Gregory Blue, Nicholas Boyle, PeterEdwards,
Ritchie Robertson e Elisabeth Stopp. Estou profundamente grato atodos eles
por me ajudarem a dizer o que queria com um pouco mais declareza.
Finalmente, desejo agradecer a Bobbie Coe e a Joyce Leverett que,com alegria
e eficiência, prepararam este manuscrito para publicaçäo.
Introduçäo
Pensamos geralmente na memória como uma faculdade individual.Há, toda-
via, um certo número de pensadores que coincidem em acreditarque existe
algo como uma memória colectiva ou social.' Eu partilho essasuposiçäo, mas
tendo a discordar quanto a saber onde é que este fenômeno, amemória social,
se pode mostrar mais crucialmente operativo.
Por isso, a questäo a que se dedica este livro é a seguinte: comose transmite
e conserva a memória dos grupos? O termo grupo é aqui utilizadonum sentido
generosamente lato e com alguma flexibilidade de significado, deforma a
incluir tanto as pequenas sociedades, em que todos se conhecem(tais como as
aldeias e os clubes), como as sociedades territorialmente extensas,em que a
maior parte dos seus membros näo se pode conhecerpessoalmente (tais como
os estados-naçäo e as religiöes mundiais).
Os leitores poderiam esperar, com alguma razäo, que a questäoassim
colocada - como é que a memória dos grupos é transmitida econservada?
pudesse levar à consideraçäo quer da memória social comodimensäo do poder
político, quer dos elementos inconscientes existentes na memóriasocial, ou de
ambas as coisas. Nas páginas seguintes esses temas säoocasionalmente refe-
ridos, mas evita-se propositadamente a sua abordagem de umaforma explícita
e sistemática. A importância do estudo dessas questöes, quanto amim, dificil-
mente pode ser posta em causa, porque näo há dúvida que ocontrolo da
memória de uma sociedade condiciona largamente a hierarquia dopoder. De
1 Em especial na obra de Maurice Halbwachs. Ver M. Halbwachs,Les madres sacia de la
mémoire (Paris, 1925); La mémoire collective (Paris, 1950); Latopographie légendaire das
Evangiles en Terre Sainte (Paris, 1941); `La mérnoire collectivechez les musiciens", Revue
Philosophique, 127 (1939), pp. 136-65. Uma série de estudosmais recentes devem ser
mencionados, em relaçäo com isto: E. Shils, Tradition (Londres,198 1); Z. Bauman, Memories
of Class (Londres, 1982); E. Hobsbawm e T. Ranger (eds.), Theinvention of Tradition
(Cambrídge, 1983); P. Nora, Les lieux de la mémoire (Paris,1984); R. Boyers, Atrocity and
Amnesia. The Political Novel since 1945 (Oxford, 1985); B. A.Smith, Politics and
Remembrance (Princeton, 1985); P. Wright, On Living in an OldCountry (Londres, 1985);
D. Lowenthal, The Past is a Foreígn Country (Cambridge, 1985);F. Haug, Female
Sexualization: a Collectíve Work ofMemory (tr. E. Carter,Londres, 1987).
tal modo que o armazenamento permitido pelas actuais tecnologiasda infor-
maçäo e, em consequência, a organizaçäo da memória colectivaatravés da
utilizaçäo de máquinas de processamento de dados, por exemplo,näo é apenas
uma questäo técnica, mas antes uma questäo que se relacionadirectamente
com a da legitimaräo, sendo o controlo e a propriedade dainformaçäo um
2
problema político decisivo. Mais uma vez, o facto de já näoacreditarmos nos
grandes "sujeitos" da história - o proletariado, o partido, o Ocidente -
significa näo o desaparecimento destas grandes meta-narrativas,mas antes a
sua duradoura eficácia inconsciente, como formas de pensar e deagir na nossa
realidade contemporânea: a sua persistência, por outras palavras,como memó-
3
rias colectivas inconscientes.
Se nem a dimensäo política da memória, nem a do inconsciente,säo
explicitamente abordadas neste livro, tal näo é devido, portanto, aquaisquer
dúvidas que o autor alimente quanto à sua importância, mas porquese avança
aqui uma proposta diferente. Uma proposta que näo é incompatívelcom a
manutençäo das posiçöes atrás expostas, mas que é susceptível deinvestigaçäo
independente. O objectivo dessa investigaçäo pode, talvez,explicar-se melhor
registando, à partida, dois pontos que säo consideradosaxiomáticos. Um diz
respeito à memória em geral, o outro respeita à memória social emparticular.
No que se refere à memória em geral, podemos observar que anossa
experiência do presente depende em grande medida do nossoconhecimento
do passado. Entendemos o mundo presente num contexto que seliga causal-
mente a acontecimentos e a objectos do passado e que, portanto,toma como
referência acontecimentos e objectos que näo estamos a viver aovivermos o
presente. E viveremos o nosso presente de forma diferente deacordo com os
diferentes passados com que podemos relacioná-lo. Daí adificuldade de extraír
o nosso passado do nosso presente: näo só porque os factorespresentes tendem
a influenciar - alguns diriam mesmo distorcer - as nossasrecordaçöes do
passado, mas também porque os factores passados tendem ainfluenciar, ou a
distorcer, a nossa vivência do presente. Este processo, devesublinhar-se,
penetra nos mais ínfimos e quotidianos pormenores das nossasvidas. É assim
que Proust nos mostra como as recordaçöes que Marcel tinha dorosto de
2 Uma importante correcçäo do discurso politicamente depuradordo pós-industrialismo pode
encontrar-se, por exemplo, nas obras de H. Schiller, Mass MediaandAmerican Empire (Nova
lorque, 1969); The MindManagers (Boston, 1973);Communication and CulturalDomination
(Nova lorque, 1977); Information and the Crisis Economy(Oxford, 1986). Ver também a obra
de A. Mattelart, Muitinational Corporations and the Control ofCulture (tr. M. Chanan,
Brighton, 1979).
¨ Ver F. Jameson, The Political Unconscious (Ithaca, 1981).
Swann estavam sobrecarregados de memórias adicionais, pois oSwann que,
na juventude de Marcel, era uma figura familiar em todos os clubesentäo na
moda, era muito diferente do Swann inventado pela tia-avó deMarcel - e
assim "visto", portanto, por Marcel - quando aparecia, à noite, emCombray.
Swann que era, nessa época, täo desejado em qualquer outro lugar,era tratado
pela tia-avó de Marcel com a rude simplicidade de uma criança quebrinca com
uma peça de coleccionador sem maior circunspecçäo do que se setratasse de
um objecto de pouco valor. Do Swann que construíram para sipróprios, os
familiares de Marcel haviam excluído, na sua ignorância, muitospormenores
da vida que entäo levava no mundo elegante, pormenores essesque faziam
com que outras pessoas, quando o encontravam, vissem todos osencantos
entesourados no seu rosto. Neste rosto, despojado de todo ofascínio, a família
de Marcel implantou um resíduo duradouro construido a partir dashoras de
convívio e de lazer que haviam passado juntos. O rosto de Swann,"o seu
invólucro corporal% fora täo bem preenchido com este resíduo dereminiscên-
cia que "o seu Swann especial" se havia tornado, para a família deMarcel,
numa "criatura viva e perfeita". Deste modo, mesmo um actoaparentemente
täo simples como o que atrás descrevemos - "ver alguémconhecido" - é,
em certa medida, e como nos lembra Proust, um processointelectual, pois
guarnecemos o contorno físico da pessoa que olhamos com todasas ideias que
já formámos a seu respeito e, no retrato global que dela compomosnos nossos
espíritos, essas ideias assumem o lugar mais importante. Por fim,"elas acabam
por preencher täo completamente a curva das suas faces, porseguir de forma
täo exacta a linha do seu nariz, misturam-se täo harmoniosamentecom o som
da sua voz, como se esta näo fosse mais do que um invólucrotransparente,
que, cada vez que vemos o rosto ou ouvimos a voz, säo essasideias que nós
OUViMOS,,.4
reconhecemos e
No que diz respeito, em particular, à memória social,constatamos que as
imagens do passado legitimam geralmente uma ordem socialpresente. É uma
regra implícita pressupor uma memória partilhada entre osparticipantes em
qualquer ordem social. Se as memórias que têm do passado dasociedade
divergem, os seus membros näo podem partilhar experiências ouopiniöes.
Esse efeito observa-se, talvez de forma mais evidente, quando acomunicaçäo
entre geraçöes é dificultada por diferentes conjuntos de memórias.De geraçäo
narrativas de fundo implícitas, opor-se-äo uns aos outros, de talmodo que,
4 M. Proust, Remembrance of Things Past (tr. C. K. Scott Moncrieffe T. Kilmartin, Londres,
1981), vol I., p. 20.
embora as diferentes geraçöes estejam fisicamente presentes,umas perante as
outras, num determinado cenário, podem permanecer mental eemocionalmen-
te isoladas, como se as memórias de uma geraçäo estivessem, porassim dizer,
irremediavelmente encerradas nos cérebros e nos corpos dosindivíduos dessa
geraçäo. Proust mostra-nos o desconcertante efeito de alienaçäo, asensaçäo
de choque mental, que resulta da intersecçäo de memóriasincomensuráveis.
Mostra-o na experiência de Marcel, quando este regressa àsociedade elegante
após uma longa ausência e tenta, através da Duquesa deGuermantes, estabe-
lecer conversa com uma jovem americana que ouvira falar muitodele e era
considerada uma das mulheres mais elegantes de entäo, mas cujonome Marcel
desconhecia inteiramente. Conversar com ela foi agradável, mastomou-se
difícil, para Marcel, pela novidade dos nomes da maior parte daspessoas de
quem ela falava, embora fossem exactamente as pessoas que naaltura forma-
vam o núcleo da sociedade elegante. E o contrário era igualmenteverdade: a
seu pedido Marcel contou muitas historietas do passado, masmuitos dos nomes
por ele pronunciados nada significavam para ela, jamais ouvira falarneles. Isto
näo se devia apenas ao facto de ela ser jovem. Como näo estavahá muito tempo
em França, onde, quando chegara, näo conhecia ninguém, sócomeçara a
mover-se na sociedade elegante alguns anos depois de Marcel sehaver retirado
dela. A conversa era ininteligível porque havia um intervalo de vintee cinco
anos entre a vivência dos dois no mesmo mundo social. Por isso,embora no
seu discurso normal ela e Marcel utilizassem a mesma linguagem,quando se
tratava de nomes - ou seja, quando se tratava de efectuar umatentativa de
permuta de memórias socialmente legitimada - os seusvocabulários nada
tinham em COMUM.5
Podemos afirmar, deste modo, que as nossas experiências dopresente
dependem em grande medida do conhecimento que temos dopassado e que as
nossas imagens do passado servem normalmente para legitimar aordem social
presente. E, contudo, estas questöes, ainda que verdadeiras, säoinsuficientes
quando colocadas desta forma. É que as imagens do passado e oconhecimento
dele recolhido säo, conforme pretendo demonstrar, transmitidos econservados
através de performances (mais ou menos rituais).'
5 M.Proust,RemembranceofThingsPast,vol.lll,pp.1007-9.
(NT) Optou-se pelo uso do anglicismo "perfomance", em lugardo vocábulo Mesempenho`,
para näo se perder a relaçäo daquele primeiro termo com osde "perfomativo" e
11 perfornatividade,` estrangeirismos que näo têmequivalente aceitável na língua portuguesa.
Procurando demonstrar aquela asserçäo, começarei porconsiderar um
exemplo paradoxal: o da Revoluçäo Francesa. É um casoparadoxal, porque
se há momento em que näo se esperaria encontrar a memóriasocial em acçäo,
esse deve ser seguramente o momento das grandes revoluçöes.Mas uma coisa
que tende a ser esquecida a respeito da Revoluçäo Francesa é que,como todos
os começos, envolveu recordaçäo. Outra, é o ter envolvido tambémuma
decapitaçäo e uma alteraçäo no vestuário usado pelas pessoas.Creio que estes
factos estäo relacionadas e que aquilo que podemos dizer sobreessa relaçäo é
generalizável. Creio, além disso, que a resposta para a questäoacima colocada
- como é transmitida e conservada a memória dos grupos - exigeque se
reúnam essas duas coisas (recordaçäo e corpos) de uma maneiraem que
poderíamos näo ter pensado antes.
Poderíamos näo o ter pensado porque a recordaçäo, ao sertratada como
actividade cultural e näo individual, tendeu a ser olhada como alembrança de
uma tradiçäo cultural. E tal tradiçäo, por sua vez, tendeu a serpensada como
algo inscrito. Mais de dois milénios - na realidade, toda a história da
actividade hermenêutica explícita - pesam a favor destepressuposto. É
verdade que, há já muito tempo, a unidade da hermanêutica temsido vista como
residindo na unidade dum procedimento que é, em princípio,aplicável a
qualquer objecto e a qualquer prática capaz de transportar sentido.Textos
legais e teológicos, obras de arte, actos rituais, expressöescorporais - todos
eles säo objectos passíveis de uma actividade interpretativa.Contudo, embora
as práticas corporais estejam, em princípio, incluídas como objectospossíveis
da investigaçäo hermenêutica, na prática a hermenêutica tomou ainscriçäo
como seu objecto privilegiado. Nasceu a partir dela e, ao longo dasua história,
regressou constantemente à relaçäo com a tradiçäo que se focalizana trans-
missäo do que ficou inscrito nos textos, ou, pelo menos, nostestemunhos
documentais que se considera terem um estatuto comparável aodos textos por
serem constituídos à imagem e semelhança de um texto.
É contra este contexto antitético que vou procurar explicar comoas práticas
de tipo näo-inscrito säo transmitidas na tradiçäo e como tradiçäo. Oleitor deve,
talvez, ser esclarecido acerca do método de abordagem utilizadopara este fim.
Aquilo que se segue é exposto menos sob a forma de tratado doque na de uma
investigaçäo analítica. O método é cumulativo. Apesar da variedadedos
tópicos em discussäo, existe entre eles uma relaçäo lógica estreita.Essa relaçäo
implicou um estreitar progressivo da focalizaräo. Argumentarei que,se a
memória social existe, é provável que a encontremos nascerimônias comemo-
rativas. Mas as cerimônias comemorativas provam sê-lo apenas namedida em
que säo performativas. A performatividade näo pode ser pensadasem um
conceito de hábito. E o hábito näo pode ser pensado sem umanoçäo de
automatismos corporais. Deste modo, procurarei mostrar que existeuma
inércia nas estruturas sociais que näo é explicado de formaadequada por
qualquer das ortodoxias correntes sobre o que é uma estruturasocial.
CAPíTULO I
A memória social
1
Todos os inícios contêm um elemento de recordaçäo. Isto aconteceprincipal-
mente, quando um grupo social faz um esforço concertado paracomeçar de
um ponto de partida inteiramente novo. Existe algo decompletamente arbitrá-
rio na própria natureza de qualquer início assim intentado. O inícionäo tem
absolutamente nada a que agarrar-se. É como se saísse do nada.Por um
momento, o momento do início, tudo se passa como se osiniciadores tivessem
abolido a própria sequência da temporalidade e houvessem sidoexpulsos da
continuidade da ordem temporal. Na verdade, os protagonistasregistam muitas
vezes o sentimento que têm deste facto, inaugurando um novocalendário. Mas
o que é totalmente novo é inconcebível. Näo é só por ser muitodifícil começar
de um ponto de partida inteiramente novo, por existirem inúmeroshábitos
velhos e lealdades que inibem a substituiçäo de umempreendimento antigo e
já estabelecido por um novo. Mais importante ainda é o facto de, emtodas as
formas de conhecimento, fundamentarmos sempre as nossasexperiências
particulares num contexto anterior para garantirmos que säo detodo inteligí-
veis, e que, antes de qualquer experiência isolada, a nossa mentese encontra
já predisposta com uma estrutura de contornos, de formasconhecidas de
objectos já experimentados. Compreender um objecto ou agir sobreele é
localizá-lo neste sistema de expectativas. O mundo do inteligível,definido em
termos de experiência temporal, é um corpo organizado deexpectativas
baseadas na recordaçäo.
Ao tentar conceber como seria um início histórico, a imaginaçäomoderna
tem regressado sistematicamente aos acontecimentos daRevoluçäo Francesa.
Esta ruptura histórica, mais do que qualquer outra, assumiu paranós o estatuto
de mito moderno, apossando-se desse estatuto muito rapidamente.Toda a
reflexäo sobre a história, no continente europeu, durante o séculoXIX, olha
para trás, para o momento dessa revoluçäo em que o própriosignificado de
revoluçäo se transformou ao seu uso para designar ummovimento circular,
7
substituíu-se o da identificaçäo com o advento do novo.' Aquelesque vieram
depois olhavam o presente como um tempo de queda na nostalgiade uma era
pós-heróica, ou como um estado de crise permanente - aantecipaçäo, por uns
esperada e por outros temida, de uma insurreiçäo recorrente .2 oimaginário
revolucionário estendeu-se para além do coraçäo da Europa.Vivemos o mito
da Revoluçäo desde finais do século dezanove, muito àsemelhança da forma
como as primeiras geraçöes cristäs viveram o mito do Fim doMundo. Já em
1798, Kant comentava que um fenômeno desta espécie jamaispoderia ser
3
esquecido.
Contudo, este início, que nos proporciona o nosso mito de uminício
histórico, serve também, e de forma ainda mais completa, para pôrem relevo
o momento de recordaçäo que existe em todos os começosaparentes. O
trabalho de recolecçäo operava de muitas formas, explícita eimplicitamente,
e a níveis muito diferentes de conhecimento. Mas o que tencionodestacar aqui,
para um comentário específico, é o modo como a recordaçäoactuou em duas
áreas distintas da actividade social: nas cerimônias comemorativase nas
práticas corporais.
2
O início que se buscava no julgamento e execuçäo de Luís XVI deFrança
ilustra este processo de uma forma particularmente dramática. Oslíderes da
Revoluçäo que julgaram Luís enfrentavam um problema que näo secolocava
apenas a eles. Era um problema com que se defronta qualquerregime - o que
foi inaugurado pelos Julgamentos de Nuremberga, por exemplo -que procure
estabelecer, de forma definitiva, a instauraçäo total e completa deuma nova
ordem social. O regicídio de 1793 pode ser visto como exemplo deum
fenômeno mais geral: o julgamento por decreto feito por um regimesubstituto.
Este julgamento é diferente de qualquer outro. Pertence a umaespécie diversa
dos que têm lugar sob a autoridade de um regime há muitoestabelecido. Näo
é como aqueles actos de justiça que reforçam um sistema deretribuiçäo
aplicando uma vez mais os seus princípios fundamentais, oumodificando os
1 Os termos desta transformaçäo säo expostos no artigo de R.Koselleck, "Der neuzeitliche
Revolutionsbegriff aIs geschichtfiche Kategorie", StudiumGenerale, 22 (1969), pp. 825-38.
2 Ver T. Schieder, `Das Problem der Revolution im 19.Jahrhundert", Historische Zeitschrift,
170 (1950), p. 233-71; G. Steiner, `The Great Ennu?, in InBluebeard's Castle: Some Notes
lowards the Redefinition ofCulture (Londres, 1971), pp. 11-27.
3 1. Karit, `Der Streit der Fakultäten" (1778), PhilosophischeBibliothek, 252, p. 87..
pormenores da sua aplicaçäo. Näo é um elo mais numa sequênciade determi-
naçöes através das quais um regime adquire maior solidez ouavança para a
desintegraçäo final. Aqueles que aderem mais resolutamente aosprincípios do
novo regime e os que sofreram mais severamente às mäos dovelho näo
desejam apenas a vingança de ofensas particulares e umarectificaçäo de
iniquidades específicas. O que buscam é algo de decisivo, em quea luta
persistente entre a nova ordem e a antiga acabou definitivamente,porque a
legitimidade dos vencedores ficará validada de uma vez por todas.É necessário
erguer-se uma barreira contra a transgressäo futura. O presentedeve ser
separado daquilo que o precedeu por um acto de demarcaçäoinequívoco. O
julgamento feito por um regime substituto é semelhante àconstruçäo de um
muro, indiscutível e permanente, entre os novos começos e a velhatirania.
4
Julgar as práticas do regime anterior é o acto constitutivo da novaordem
O julgamento e a execuçäo de Luís XVI näo foram o assassíniode um
governante, mas a revogaçäo de um princípio de governo: oprincípio segundo
o qual o poder dinástico era o único sistema político imaginável. Naverdade,
anteriormente fora pQssível enquadrar o regicídio nos parâmetrosdesse siste-
ma. Durante séculos os reis haviam sido mortos por candidatos areis, por
assassinos privados a soldo de candidatos a reis, ou, maisraramente, por
fanáticos religiosos como os que assassinaram Henrique III eHenrique IV da
França. Mas fosse qual fosse o destino que pudesse atingir os reiscomo
indivíduos, o princípio da sucessäo dinástica permanecia intacto.Quer se
devessem a causas naturais, quer fossem o resultado deassassinatos, a morte
dos reis e a coroaçäo dos seus sucessores eram episódioscompreensíveis no
continuem da linhagem. Por que razäo o assassínio dos reisdeixava a institui-
çäo da realeza intacta? Porque, como Camus afirmousucintamente, nenhum
5
dos assassinos imaginou alguma vez que o trono pudesse ficarvazio. Nenhum
dos novos governantes, por outras palavras, pensara jamais ser doseu interesse
pôr a instituiçäo da monarquia em causa. Uma vez coroados,procuravam
preservar para si próprios a autoridade real da pessoa cuja mortehaviam
instigado. Esta forma de regicídio deixava o sistema dinásticoincontestado:
os marcos temporais eram ainda as fases da ordem dinástica. Amorte de um
rei registava uma quebra nesse tempo público: entre um rei e oseguinte o tempo
parava. Havia um hiato - um interregno - que as pessoasprocuravam fosse
4 Sobre o julgamento por decreto realizado pelos regimessubstitutos, ver 0. Kirchheimer,
PoliticalJustice: the Use ofLegalProcedureforPoliticalEnds(Princeton, 1961), pp. 304 e
seguintes.
5 A. Camus, The Rebel (tr. A. Bower, Londres, 1953), p. 112.
o mais breve possível. Quando Luís XVIII de França datou a suaascensäo ao
trono a partir da execuçäo do seu predecessor, permanecia fiel aeste princípio
dinástico. Concebia o regicídio tal como este sempre foi concebível,no
contexto da soberania dinástica, um contexto em que osassassínios podiam
sempre ajustar-se como episódios na narrativa da continuidadedinástica. Um
contexto, na verdade, em que o assassinato näo era tanto umaameaça ao poder
da dinastia como uma homenagem implícita a este. O assassíniodeixava
intacto o princípio da soberania dinástica, porque deixava o reiinviolado,
enquanto pessoa pública.
Toda a essência do julgamento e da execuçäo de Luís residiu nasua
publicidade cerimonial. Foi isso que o matou na sua capacidadepública, ao
recusar-lhe o seu estatuto de rei. O princípio dinástico foi destruidonäo por
assassinato, nem por prisäo ou desterro, mas sim pela condenaçäoà morte de
Luís, como encarnaçäo da realeza, feita de tal maneira que arejeiçäo pública
oficial da instituiçäo da monarquia ficou expressa e testemunhadade forma
6
narios prec
indubitável Os revolucio ' ' isavam de encontrar umqualquer proces
so ritual através do qual a aura de inviolabilidade que cercava arealeza pudesse
ser explicitamente repudiada. Deste modo, aquilo que repudiavamnäo era só
7
uma instituiçäo, mas a teologia política que a legitimava. Essateologia
política, a crença de que o rei unia na sua pessoa um corpo natural,como
indivíduo, e um corpo representativo, como rei, era expressa muitoclaramente
na cerimônia da coroaçäo. Exprimia-se näo só no acto da coroaçäo,mas
também na unçäo realizada por um bispo da igreja com a frase, desuprema
importância, que anunciava que o rei ungido governava "pela graça,de Deus".
Esta dupla componente conferia ao ritual da coroaçäo o seucarácter quase
sacramental. Durante mil anos os reis da França haviam recebido,nas cabeças,
no acto da coroaçäo, näo só as coroas como o óleo sagrado, àmaneira dos.
sucessores dos apóstolos. Tal acto transformava os inimigos darealeza em
pessoas abertamente sacrílegas. Foi este o efeito que o regicídiopúblico de
Luís procurou contrariar. Residia aqui o elemento oximorónico desteregicídio:
a Luís seria feito um funeral régio para acabar com todos osfunerais régios.
6 Sobre a distinçäo entre o significado do assassínio privado e oda execuçäo pública dos reis,
ver M. Walzer, Regicide and Revolution (Cambridge, 1974).
7 Sobre a teologia política da realeza, ver, em especial, E. H.Kantorowicz, The Kings Two
Bodies: a Study in Medieval Political Theology (Princeton, 1957);M. Bloch, The Royal
Touch: Sacred Monarchy and Scrofula in England and France (tr.J. E. Anderson, Londres,
1973); L. Hunt, Politics, Culture, and Class in the FrenchRevolution (Berkeley, 1984). Ver
também E Kem, Kingship and Law in the Midd1e Ages (NovaIorque, 1970); M. Walzer,
Regicide and Revolution (Cambridge, 1974).
A cerimônia do seu julgamento e execuçäo destinava-se a exorcizara memória
de- uma cerimônia anterior. A cabeça ungida foi decapitada e oritual da
coroaçäo cerimonialmente revogado. Näo foi só o corpo natural dorei que foi
morto, mas também - e sobretudo - o seu corpo político. Nesteprocesso os
actos dos revolucionários apropriaram-se da linguagem do sagradoque, du-
rante tanto tempo, o poder dinástico tinha usurpado como sua. Avítima
compreendeu claramente que este era um acontecimento decisivopara a morte
da teologia política. Luís XVI, à semelhança de Carlos 1 deInglaterra, identi-
ficou-se explicitamente com o Deus morto ao falar da sua derrotacomo
8
Paixäo. Os procedimentos usados no julgamento e execuçäodestruirem
cerimonialmente o sentimento de sacrilégio que havia rodeado oassassínio dos
reis. Um rito revogou o outro.
Um rito que revoga uma instituiçäo só faz sentido se evocar, deforma
invertida, os outros ritos que até entäo a confirmavam. O fim ritualda realeza
era um ajuste de contas e uma exposiçäo daquilo que se repudiava.A rejeiçäo
do princípio do poder dinástico - neste caso a encenaçäo ritualdessa rejeiçäo
- continuava a ser uma exposiçäo e uma evocaçäo do poderdinástico agora
inútil. Este problema é semelhante ao que se levanta quanto àquestäo da
instituiçäo da propriedade. Algumas pessoas roubam as outras,defraudam-nas,
ou apoderam-se da sua produçäo. Podem adquirir de todas estasmaneiras
haveres por meios que näo säo sancionados pelos princípios dejustiça domi-
nantes, no que diz respeito à propriedade. A existência de umainjustiça passada
e a memória duradoura dessa injustiça levantam a questäo darectificaçäo das
injustiças. Na verdade, se a injustiça passada configurou a estruturadas
disposiçöes actuais de uma sociedade quanto à posse dapropriedade nas suas
várias formas - ou, analogamente, se se considera que a injustiçapassada
configurava a estrutura das disposiçöes que fundamentam asoberania duma
sociedade - coloca-se a questäo de se saber o que se deveria fazer,se é que
alguma coisa deveria ser feita, para rectificar as injustiças. Queespécie de
responsabilidade criminal e que obrigaçöes têm os autores dainjustiça passada
para com aqueles cuja posiçäo é pior do que teria sido se a injustiçanäo tivesse
sido perpetrada? Até onde se deve recuar no levantamento damemória da
injustiça passada, na limpeza do registo histórico das acçöesilegítimas?
Construir uma barreira entre o novo começo e a velha tirania érecordar a velha
tirania.
Os estilos de vestuário característicos do período revolucionáriocelebra-
vam, se näo definitivamente um começo, pelo menos umalibertaçäo temporá-
8 Ver Walzer, Regicide and Revolution, p. 18.
ria das práticas da ordem estabelecido. Eles marcaram a tentativade estabele-
cer um novo conjunto de práticas corporais típicas. Os participantesna
revoluçäo exibiam uma forma de comportamento que näo era umseu exclusi-
vo. Esse comportamento encontra-se em todos os carnavais quemarcam a
suspensäo da posiçäo hierárquica, dos privilégios, das normas edas proibi-
çöes.9 Durante o período revolucionário os estilos de vestuário, emParis,
passaram por duas fases. Na primeira, que dominou os anos de1791-94, as
roupas transformaram-se em uniformes. A culotte de corte simples ea ausência
de adornos simbolizavam o desejo de eliminar barreiras sociais naluta pela
igualdade: ao tornarem o corpo neutro, os cidadäos deviam ficarlivres para se
relacionarem uns com os outros sem a intromissäo das diferençasde condiçäo
social. Durante a segunda fase, que dominou os anos do Termidor,a partir de
1795, a liberdade no vestir veio a significar livre movimentocorporal. As
pessoas começaram, entäo, a vestir-se como que para exibir ocorpo uns aos
outros, na rua, e para expor os movimentos do corpo. Amerveilleuse, a mulher
da moda, usava panos de musselina leve que revelavamgenerosamente a forma
dos seios e näo cobriam nem os braços nem as pernas abaixo dosjoelhos,
enquanto a musselina permitia ver o movimento dos membrosquando o corpo
mudava de posiçäo. O seu correspondente masculino, o incroyable,usava um
fato em forma de cone com a extremidade virada para o chäo;calças muito
justas encimadas por casacos curtos que terminavam em colarinhosaltos e
exagerados, gravatas viscosamente coloridas e cabelodesgrenhado ou cortado
rente ao modo dos escravos romanos. Enquanto o estilo damerveilleuse
significava uma libertaçäo da moda, o do incroyable pretendia seruma paródia
ao alfaiate. O incroyable parodiava os Macaronis, alfaiates da modana década
de 1750, usando lornhöes e andando com passos amaneirados.Este foi um
momento na história de Paris em que as regras inibitórias estiveramsuspensas,
em que, tal como em qualquer carnaval, as pessoas agiam emconformidade
com a sua percepçäo de que a autoridade estabelecido era, narealidade, uma
questäo de prescriçäo local.10
Se os revolucionários rejeitavam as práticas de comportamentocorporal
dominantes sob o Antigo Regime, era porque sabiam que existe umhábito de
servidäo incorporado no comportamento do grupo servil- atravésdos seus
próprios hábitos de comportamento corporal. Era isto que queriamdizer os
9SobreoCamaval,verM.Bakhtin,RabelaisandhisWorld(tr.H.Iswolsky,Cambridge,Mass.,
1968), pp. 196-277; e, para uma exploraçäo mais recente dostemas sugeridos por Bakhtin, P.
StaIlybrass e A. White, The Politics and Poetics of Transgression(Londres, 1986).
10 A respeito das modas de vestuário durante a RevoluçäoFrancesa, ver Sennett, The Fall of
Public Man (Cambridge, 1975), pp. 183 e seguintes.
representantes do Terceiro Estado quando protestaram, em Maio de1789,
orimeiro contra o seu humilhante traje oficial e depois, quando issojá fora
alterado, contra a própria ideia de um traje que os distinguisse dosrepre-
sentantes da nobreza. Num panfleto datado de 2 de Maio de 1789,atacaram a
convençäo que exigia que os deputados usassem trajes diferentes,de acordo
com o estado a que pertenciam. Uma tal prática, declararam,perpetuava uma
desigualdade inaceitável que destruía a própria essência daAssembleia. O que
ela perpetuava era a desigualdade, sob uma forma incorporada.Essa tradiçäo
de prática corporal, de acordo com a qual os estratos mais altos dasociedade
saíam à rua com trajes requintados que, além de os destacar dosestratos
inferiores, lhes permitiam dominar a rua, era ainda reforçada pelasleis sump-
tuárias que estipulavam, para cada estrato social da hierarquia, umconjunto
de trajes adequados e proibiam que alguém usasse o vestuáriooficial e
publicamente declarado como conveniente para outro estrato social.Os repre-
sentantes do Terceiro Estado exigiam uma transgressäo autorizada,um acto
transgressor cujo objectivo näo entroncava simplesmente no iníciopremedita-
do de uma actividade política futura, mas também no exercício deimaginaçäo
retrospectiva que recordava uma época e uma ordem social em queas saídas
à rua eram indicadores precisos da hierarquia social." Tem-seargumentado
Burke é o porta-voz proeminente de um tal ponto de vista eOakeshott um seu
representante recente e exemplar - que a ideologia política "näo[deve ser]
entendida como um princípio, independentemente premeditado,para a activi-
dade política", mas sim como conhecimento, sob uma formaabstracta e
indefinida, Me uma maneira concreta de lidar com as configuraçöesda socie-
dade"; que as ideologias, tal como säo expressas, sob a forma deprogramas
políticos ou de princípios oficiais, nunca podem ser mais do quecompêndios
de alguma forma de comportamento concreto e que uma tradiçäode compor-
tamento consiste inevitavelmente num conhecimento detalhado,pois "o que
tem de ser aprendido näo é uma ideia abstracta, ou um conjunto decompetên-
cias, nem mesmo um ritual, mas um modo concreto e coerente devida em toda
12 -se frequentemente, é apa-
a sua complexidade" . Uma tal compreensäo, diz
nágio dos verdadeiros Conservadores. Mas os representantes doTerceiro
Estado, ao atribuírem uma tal importância aos pormenores dovestuário quo-
tidiano, mostraram-se täo conscientes como os seus opositores deque o
vestuário tinha a funçäo de dizer algo sobre a condiçäo da pessoaque o usava
e, o que é igualmente importante, de tomar essa informaçäohabitual.
11 Ver Sennett, The Fall of Public Man (Cambridge, 1975), pp. 64-72.
12 M. Oakeshott, Rationalism in Politics (Londres, 1962), p. 119.
Interpretar ou usar roupas é, num aspecto significativo,semelhante a ler ou
a compor um texto literário. Ler ou compor um texto literário e umtexto
pertencente a um gênero particular de literatura näo significaabordá-lo sem
uma ideia preconcebida. É necessário empregar uma compreensäoimplícita
das operaçöes do discurso literário que nos informa sobre aquiloque devemos
procurar, ou como iniciar a composiçäo. Só os detentores dacompetência
literária necessária seriam capazes de dar sentido a um novoencadeamento de
frases, ao lê-Ias como literatura de um determinado gênero.Analogamente, só
aqueles que possuíssem a competência social necessária seriamcapazes de
entender o vestuário do incroyable como uma paródia aosMacaroni. Tal como
um grupo interiorizou a gramática da literatura, que lhe permiteconverter
frases linguísticas em estruturas e significados literários, assimoutro inte-
riorizou a gramática do vestuário, que lhe permite converter peçasde vestuário
em estruturas e significados de vestuário. Alguém que näo possuatais compe-
tências, alguém näo familiarizado com as convençöes que orientama leitura
das obras de ficçäo ou a forma de vestir das pessoas, ficaria, porexemplo, assaz
perplexo se fosse confrontado com um poema lírico ou com umapessoa vestida
ao estilo de um incroyable. Ao ler literatura, atribui-se um gênero aoobjecto
em questäo. Ao interpretar o vestuário procede-se de maneirasemelhante. Uma
característica literária individual, ou uma característica de vestuárioindivi-
dual, tem significado porque é apreendida como parte de umconjunto global
de significados e, em cada caso, este tipo de conjunto deveconstituir uma
indicaçäo mais ou menos explícita sobre a espécie de afirmaçäo oude vestuário
que está a ser interpretada. A menos que os intérpretes possamconjecturar
sobre o tipo de significado que têm perante si, näo têm qualquermeio para
unificar os seus encontros passageiros com os pormenores. E estasubordina-
çäo da experiência particular a um tipo ou gênero näo é, pura esimplesmente,
um processo de identificar certas características específicas.Envolve também
um conjunto de expectativas em virtude das quais se acredita quemuitas das
características näo examinadas na nova experiência seräo idênticasàs carac-
terísticas próprias de experiências anteriores, ou, näo sendoidênticas, que
seräo descritíveis em termos do seu grau de divergênciarelativamente a esse
conjunto de expectativas. Esta estrutura de expectativas implícitas ésempre
componente de um tipo - um tipo de literatura, ou um tipo devestuário -
porque é em virtude delas que se pode classificar um novo exemploantes de
13
este ser completamente conhecido .
13 Para um debate sobre expectativas e estilos, ver, em especial, E.D. Hirsch, Validity in
Interpretation (New Haven, 1967). Pode encontrar-se um tratamentosintético destes temas
Nos dois casos que acabámos de observar - o do julgamento eexecuçäo
cerimoniais e o das novas práticas de vestuário desenvolvidas -encontramos
um traço comum. Atentativa de romper definitivamente com umaordem social
mais antiga enfrenta uma espécie de sedimento histórico e ameaçaafundar-se
nele. Quanto mais absolutas säo as aspiraçöes do novo regime,mais imperio-
samente este procurará introduzir uma era de esquecimentoforçado. Dizer que
as sociedades säo comunidades que se auto-interpretam é mostrara natureza
desse sedimento. Mas é importante acrescentar-se que entre asmais poderosas
destas auto-interpretaçöes estäo as imagens que as sociedadescriam e preser-
vam de si próprias como sendo continuamente existentes. E que aconsciência
individual do tempo é, em grande medida, uma percepçäo dacontinuidade da
sociedade ou, mais exactamente, da imagem dessa continuidadeque a socie-
dade cria. Sugeri, a respeito da Revoluçäo Francesa, que pelomenos uma parte
deste sedimento se encontra nos repetidos actos comemorativos epelo menos
parcialmente em práticas corporais culturalmente específicas. Essesedimento
era composto, como o mostra a cerimônia do regicídio, porsentimentos para
com o rei, ou melhor, para com a sua condiçäo real, que traziam amarca de
crenças passadas enraizados nas religiöes e em formas depensamento antigas
que deixaram atrás de si um sentido do inviolado e inviolável. É porisso que
a execuçäo pública de Luís foi sentida por todos os seuscontemporâneos como
um acontecimento täo terrível. Era também composto, como oilustram as
práticas de vestuário do primeiro período revolucionário e doTermidor, pelos
preceitos hierárquicos incorporados nas práticas corporaishabituais. Foi por
isso que os novos modelos da década de 1790 foram sentidospelos participan-
tes como uma libertaçäo täo inebriante. O regicídio foi umarevogaçäo ritual,
a licenciosidade do vestuário uma libertaçäo carnavalesca. Emambos os tipos
de acçäo vemos as pessoas tentarem demarcar as fronteiras de umcomeço
radical e, em nenhum dos casos, esse início, essa nova imagem dacontinuidade
da sociedade, é sequer imaginável sem o seu elemento derecordaçäo - uma
recordaçäo tanto explícita como implícita. A tentativa de estabelecerum ponto
de partida toma inexoravelmente como referência um padräo dememórias
sociais.
em G. Buck, "The Structure of Hermeneutic Experience and theProblem of Tradition", New
Literary History, 10 (1978), pp. 31-48.
3
É necessário distinguirmos a memória social de uma prática maisespecífica,
a que é preferível chamar actividade de reconstituiçäo histórica. Oconheci-
mento de todas as actividades humanas passadas só é possívelatravés do
conhecimento dos seus vestígios. Sejam os ossos sepultados emfortificaçöes
romanas, um monte de pedras que é tudo o que resta duma torrenormanda,
uma palavra numa inscriçäo grega cuja utilizaçäo ou forma revelamum
costume, ou ainda uma narrativa escrita pela testemunha de umacena qualquer,
aquilo com que o historiador trabalha säo vestígios. Isto é, asmarcas, percep-
tíveis pelos sentidos, deixadas por um fenômeno qualquer em siinacessível.
O simples facto de se apreenderem tais marcas como vestígios dealguma coisa,
como testemunhos, significa que já se ultrapassou o estádio da suamera
descriçäo. Considerar algo como testemunho é fazer uma afirmaçäoacerca de
outra coisa, nomeadamente daquilo que se considera testemunhar.
Tal significa que os historiadores agem dedutivamente.Investigam os tes-
temunhos de forma muito semelhante à dos advogados, quandoestes contra-
interrogam as testemunhas na sala de um tribunal, extraindo dotestemunho
informaçäo que este näo contém explicitamente, ou que contradizas próprias
afirmaçöes manifestas. Essas partes do testemunho constituídaspor declara-
çöes prévias näo säo privilegiadas em sentido algum. Umaafirmaçäo prévia
que reclama ser verdadeira tem, para o historiador, a mesmaimportância que
qualquer outro tipo de testemunho. Os historiadores säo capazes derejeitar
algo que lhes é dito explicitamente nos seus testemunhos esubstituí-lo pela
sua própria interpretaçäo dos acontecimentos. E mesmo queaceitem, de facto,
aquilo que lhes diz uma afirmaçäo prévia, fazem-no näo por essaafirmaçäo
existir e se considerar que tem autoridade, mas sim porque éjulgada de forma
a satisfazer os critérios de verdade histórica do historiador. Longede confiarem
noutras autoridades que näo eles próprios, e a cujas afirmaçöesdeveriam
ajustar o seu pensamento, os historiadores säo a sua própriaautoridade. O seu
pensamento é autónomo perante o testemunho, no sentido em quepossuem
14
critérios de referência nos quais assenta a crítica do testemunho.
A reconstituiçäo histórica näo está, pois, dependente da memóriasocial.
Mesmo quando näo chegou ao historiador qualquer afirmaçäo sobreum
acontecimento ou um costume, através de uma tradiçäo ininterruptaou a partir
de testemunhas oculares, contínua a ser-lhe possível redescobriraquilo que
14 Ver R. Collingwood, TheIdea offlistory (Oxford, 1946),especialmente as pp. 266 e seguintes;
e J. GoIdstein, Historical Know1edge (Austin, Texas, 1976),especialmente pp. 13-16 e 52-9.
fora completamente esquecido. Os historiadores podem fazê-lo, emparte, pela
análise crítica das afirmaçöes contidas nas suas fontes escritas -entendendo-
-se por fontes escritas aquelas que contêm declaraçöes quesustentam, ou
sugerem, alegados factos respeitantes ao assunto em que ohistoriador está
interessado - e em parte pela utilizaçäo daquilo a que se chamafontes
näo-escritas, por exemplo, o material arqueológico ligado ao mesmoassunto
- designando-se estas últimas como fontes näo-escritas com o fimde se
indicar que, dado näo serem textos, näo contêm declaraçöes jáfeitas.
Mas a reconstruçäo histórica continua a ser necessária mesmoquando a
memória social preserva o testemunho directo de umacontecimento, pois se
um historiador está a trabalhar num problema da história recente erecebe, em
primeira mäo, uma resposta imediata à própria questäo que está acolocar aos
testemunhos, terá, entäo, necessidade de questionar essaafirmaçäo para que
esta possa ser considerada como testemunho. E isto sucedemesmo quando a
resposta que o historiador recebe lhe é dada por uma testemunhaocular, ou
pelo autor daquilo que está a investigar. Os historiadores näocontinuam a
questionar as declaraçöes dos seus informantes por pensarem queestes os
querem enganar, ou foram eles próprios induzidos em erro. Oshistoriadores
continuam a questionar as declaraçöes dos seus informantesporque, se as
aceitassem pelo seu valor facial, isso equivaleria a renunciarem àsua autono-
mia como historiadores no exercício da sua profissäo. Teriam,entäo, renun-
ciado à sua independência relativamente à memória social. Umaindependência
baseada na reivindicaçäo do direito de decidir por si próprios,através dos
métodos próprios da sua ciência, quanto à soluçäo correcta dosproblemas que
surgem no decurso dessa prática científica.
Apesar desta independência relativamente à memória social, aprática de
reconstituiçäo histórica pode receber, de formas importantes, umimpulso
orientador da memória dos grupos sociais e pode, por sua vez, dar-lhe um
contorno significativo. Um caso particularmente extremo de uma talinteracçäo
ocorre quando um aparelho de estado é utilizado, de formasistemática, para
despojar os cidadäos da sua memória. Todos os totalitarismosagem deste
modo. A escravizaräo mental dos súbditos de um regime totalitárioinicia-se
quando as suas recordaçöes lhes säo retiradas. Quando umagrande potência
quer despojar um pequeno país da sua consciência nacional utilizao método
do esquecimento organizado. Só na história checa este olvidoorganizado foi
instituído por duas vezes, depois de 1618 e posteriormente a 1948.Os escrito-
res contemporâneos säo proscritos, os historiadores säo demitidosdas suas
funçöes e as pessoas, silenciadas e despedidas dos seusempregos, tornam-se
invisíveis e säo esquecidas. O que horroriza nos regimes totalitáriosé näo só
flor >
a violaçäo da dignidade humana, mas também o medo de que näofique
ninguém que possa, algum dia, testemunhar correctamente sobre opassado. A
evocaçäo por Orwell de uma tal forma de governo näo é menosperspicaz na
sua compreensäo deste estado'de amnésia colectiva. Contudo,verificou-se
mais tarde - na realidade, näo no Mil Novecentos e Oitenta e Quatro- que
existiam pessoas que compreenderam que a luta dos cidadäoscontra o poder
de estado é a luta da sua memória contra o esquecimentocompulsivo e que
fizeram sempre desta luta o seu objectivo, näo só para se salvarema si próprias,
mas também para sobreviverem como testemunhas para asgeraçöes vindouras,
tornando-se incansáveis arquivadores: os nomes de Solzhenitsyn eWiesel säo
um exemplo entre muitos outros. Em tais circunstâncias, a escritade histórias
da oposiçäo näo é a única prática de uma reconstruçäo históricadocumentada,
mas, precisamente por o ser deste modo, preserva a memória dosgrupos sociais
cuja voz teria, de outra maneira, sido silenciada.
A historiografia das Cruzadas é também um testemunhoeloquente quanto
ao papel dos escritos históricos na formaçäo da identidade política.Os histo-
riadores medievais muçulmanos näo partilhavam com os cristäoseuropeus
medievais o sentimento de estarem a assistir a uma grande lutaentre o Isläo e
a Cristandade pelo controlo da Terra Santa. Na vasta historiografiamuçulmana
dessa época as palavras "Cruzada" e "Cruzados" nunca aparecem.Os historia-
dores muçulmanos coevos referiam-se aos Cruzados chamando-lhes Infiéis ou
Francos e viam os ataques que eles desencadeavam na Síria, noEgípto e na
Mesopotâmia, entre os finais do século X1 e os finais do século XIII,como
sendo, em geral, fundamentalmente semelhantes às anterioresguerras travadas
entre o Isläo e os Infiéis: na própria Síria no século X; no Andaluz,durante a
Reconquista cristä; e na Sicília contra os Normandos. Näo épossível encontrar
uma história das Cruzadas nos escritos históricos muçulmanosdessa época.
Estes contêm apenas, no máximo, fragmentos daquilo que uma talhistória
poderia ser, incrustados em tratados sobre outros assuntos. Ahistoriografia
muçulmana medieval só acidentalmente é uma história dasCruzadas. Porém,
depois de 1945 um corpo crescente de escritos históricos árabestomou as
Cruzadas como tema. As Cruzadas tomaram-se, actualmente, umapalavra de
código para designar as intençöes malignas dos poderes ocidentais.Os histo-
riadores muçulmanos passaram a ver um certo paralelismo entre operíodo dos
séculos X11 e XIII e os últimos cem anos. Em ambos os casos, oMédio-Oriente
islâmico foi atacado por forças européias que conseguiram impor oseu
controlo sobre uma grande parte da regiäo. De um ponto de vistamuçulmano,
as Cruzadas passaram a ser consideradas como a primeira fase dacolonizaçäo
europeia, a prefiguraçäo de um movimento de longa duraçäo queincluiria a
expediçäo de Bonaparte, a conquista britânica do Egipto e osistema de
Mandato no Levante. Consideram que esse movimento culminou nafundaçäo
do estado de Israel e, em cada luta seguinte - a Guerra lsraelo-Arabe de 1948,
a Guerra do Suez, a Guerra dos Seis Dias - o estudo Muçulmanodas Cruzadas
ganhou ímpeto. Os historiadores muçulmanos vêem, agora,paralelismos entre
a ascensäo e queda dos principados dos Cruzados e osacontecimentos con-
temporâneos. Os Cruzados, que atravessaram o mar eestabeleceram um estado
independente na Palestina, tornaram-se proto-sionistas. 15
Um caso ainda mais paradoxal é o apresentado pelatransformaçäo da escrita
histórica no século XIX. O paradoxo reside em dois aspectosantitéticos, se
bem que igualmente essenciais, deste processo, tal como foiinterpretado por
aqueles que nele estiveram envolvidos. Insiste-se, por um lado, noestatuto
privilegiado das ciências históricas, que resultaria do isolamento daprática da
compreensäo metódica que tem lugar nas ciências históricas, faceaos proces-
sos de interpretaçäo que ocorrem de forma implícita e generalizadano decurso
da vida de todos os dias. Tal conduz ao sentimento de que a práticada pesquisa
histórica permite criar uma nova distância relativamente aopassado, libertando
as pessoas da tradiçäo - a qual, de outro modo, poderia terorientado as suas
opiniöes e o seu comportamento. Uma memória historicamentecontrolada
opöe-se a uma memória tradicional näo-reflexiva. 16 E,todavia, reconhece-se
também que este mesmo projecto é impensável fora do seuenquadramento no
contexto mais vasto de uma luta pela identidade política. Faz parteda história
do nacionalismo, pois a transformaçäo da escrita da história foi, emgrande
medida, obra dos grandes eruditos alemäes Niebuhr e Savigny,Ranke e
Moninisen, Troeltsch e Meinecke, todos eles intimamenteenvolvidos na vida
da sociedade política a que pertenciam. Aqueles autores rejeitaramqualquer
forma de universalismo político e, em particular, os princípios de1789 que
reivindicavam o estabelecimento de regras de vida comunitária e departicipa-
çäo nas actividades do estado, em princípio válidas para todos ospovos.
Afirmavam, em oposiçäo àqueles princípios, a necessidade de tratara lei näo
como uma maquinaria socialmente construída, mas comopersonificaçäo e
expressäo da continuidade de uma naçäo. Quer escrevessem sobrea sua própria
15 Ver E Gabrieli, `The Arabic Historiography of the Crusades", in B.Lewis e P. M. Holt (eds.),
Historians ofthe Middle East (Londres, 1962), pp. 98-107; B. Lewis,History: Remembered,
Recorded, Invented (Princeton, 1975); E. Sivan, `Modern ArabHistoriography of the
Crusades", Asian andAfrican Studies, 8 (1972), pp. 102-49.
16 Ver, por exemplo, A. Kohli-Kunz, Erinnern und Vergessen(Berlim, 1972) e J. Ritter, "Die
Aufgabe der Geisteswissenschaften in der modernen Gesellschaft",Schriften der GeseUschaft
zur Forderung der Westfalischen Wilhelms-Universitat zu Münster,Heft 51 (Münster, 1961).
época, quer sobre culturas distantes, é o comprometimento políticodestas
figuras proeminentes da escola histórica que introduz na sua obra osentimento
de que, ao construírem um cânone de pesquisa histórica,participavam, simul-
taneamente, na formaçäo de uma identidade política e davam formaà memória
duma cultura particular. 17
Nestes casos, a actividade de reconstruçäo histórica, quer sejasistematica-
mente reprimida, quer floresça expansivamente, leva à produçäo dehistórias
escritas, formais. Existe, contudo, um fenômeno mais informalprocessual-
mente e mais difundido culturalmente do que a actividade deproduzir histórias
deste tipo. A produçäo de histórias narrativas, contadas mais oumenos infor-
malmente, revela-se como uma actividade básica para acaracterizaçäo das
acçöes humanas. É um traço comum a toda a memória comunal.
Consideremos o exemplo da vida na aldeia. Aquilo que falta numcenário
aldeäo näo é apenas o espaço físico, mas também o espaço deactividade que
enfrentamos habitualmente num contexto urbano. Estamosacostumados a
mover-nos num meio de estranhos, onde muitas das pessoas quetestemunham
os actos e as declaraçöes dos outros têm habitualmente pouco ounenhum
conhecimento da sua história, e escassa ou nula experiência deactos e decla-
raçöes semelhantes no seu passado. É isto que toma difícil ajuizarse se pode
acreditar numa dada pessoa, e até que ponto o podemos fazernuma dada
situaçäo. Se queremos desempenhar um papel credível peranteuma audiência
de gente relativamente estranha devemos produzir, ou pelo menossugerir, uma
história de nós próprios: um relato informal que indique algo sobreas nossas
origens e que justifique, ou talvez desculpe, a nossa posiçäo eacçöes presentes
relativamente a essa audiência. 18 Mas esta representaçäo do euna vida'quoti-
diana é desnecessária quando, como acontece com a vida numaaldeia, as falhas
na memória partilhada säo muito menos numerosas e maispequenas. Em
Combray, a aldeia de Proust, uma pessoa cuja história "näo seconhecia de
todo" era um ser täo incrível como uma divindade mitológica. Nasvárias
ocasiöes em que uma dessas espantosas apariçöes havia ocorridona Rua de
Saint-Esprit, ou na Praça, ninguém se lembrava de as inquiriçöesexaustivas
que se seguiam näo terem, alguma vez, conseguido reduzir afabulosa criatura
às proporçöes duma pessoa a quem "na verdade se conhecia", senäo pessoal-
17 Ver, em especial, E Meinecke, Historism: The Rise of a NewHistorical Outlook (tr. J. E.
Anderson, Londres, 1972) e P. H. Refil, The German Enfightenmentand the Rise of
Historicism (Berkeley, 1975). Ver também 1. Berlin, Vico and Herder(Londres, 1976) e P.
Rossi "The Ideological Valencies of Twentieth-Century Historicism",History and Theory,
Beiheft 14 (1975).
18 Sobre o desempenho de papéis num grupo de estranhos, ver R.Sennett, passam.
mente pelo menos de um modo abstracto, como sendo aparentada,de forma
mais ou menos estreita, com alguma família de Combray.'9 ORegresso de
Martin Guerre mostra essa mesma característica de um ângulooposto. A
espantosa apariçäo do principal protagonista, que näo pode fazeroutra coisa
senäo fingir pertencer, é a última anomalia num cenário onde afraude é rara e
jamais praticada em larga escala, porque o espaço entre aquilo quetodos sabem
sobre uma pessoa e aquilo que desconhecem a seu respeito édemasiado estreito
para que o egoísmo e a perfídia possam levar à representaçäo deum papel. O
que mantém esse espaço unido é a bisbilhotice. A maior partedaquilo que
acontece numa aldeia durante o dia será contado por alguém antesque o dia
acabe, sendo esses relatos baseados na observaçäo directa ou eminformaçöes
em primeira mäo. A bisbilhotice aldeä compöe-se destes relatosdiários,
combinados com as familiaridades mútuas de toda uma vida. Umaaldeia
constrói, por este meio informal, uma história comunal contínua desi própria:
uma história em que todos retratam, em que todos säo retratados, ena qual o
acto de retratar nunca tem fim. Isto deixa pouco ou nenhum espaçopara a
representaçäo do eu na vida quotidiana, porque em grande medidaos indiví-
20
duos recordam em COMUM.
Mais uma vez, se considerarmos a educaçäo política dos gruposdirigentes,
näó podemos deixar de ficar surpreendidos com a diferençaexistente entre os
seus arquivos políticos e as suas memórias políticas. O grupodirigente utilizará
21
o conhecimento que tem do passado de uma forma directa e activa.O seu
comportamento e decisöes políticas basear-se-äo numainvestigaçäo do passa-
do, em especial do passado recente, conduzido pela sua polícia,pelos seus
departamentos de pesquisa e pelos seus serviços administrativos, eestas
19 M. Proust, Remembrance of Things Past (tr. C. K. ScottMoncrieff e T. Kilmartin,
Harmondsworth, 1981) vol. 1, p. 62.
20 Sobre a bisbilhotice na vida da aldeia, ver J. Berger, Pig Earth(Londres, 1979). Deve notar-se,
todavia, que vários estudos recentes assumiram como tarefa suaenquadrar a vida nas aldeias
num contexto mais vasto e nacional, o "exterior" económico epolítico, tendo esta abordagem
histórica como resultado passarem as aldeias a ser menosolhadas como entidades estáticas e
isoladas. Ver C. Bell e H. Newby, Community Studies: anIntroduction to the Sociology of the
Local Community (Londres, 1971); J. Boissevain e J. FriedI(eds.), Beyond Community: Social
Process in Europe (Haia, 1975); J. Ennew, The Western IslesToday (Cambridge, 1980); S. H.
Franklin, Rural Societies (Londres, 1971); A. Macfarlane, com S.Harrison e C. Jardine,
Reconstructing Historical Communities (Cambridge, 1977), sobreo "Mito da comunidade"; Aw
R. Schulte, Willage Life in Europe", Comparative Studies inSocíety andHistory, 27 (1985),
pp. 195-206.
21 Sobre a manipulaçäo da memória política através do controlodos registos, ver J. Chesneaux,
Pasts and Futures, or, What is History For? (Londres, 1978).
investigaçöes seräo levadas a cabo com uma eficiência que érevelada mais
tarde, ocasionalmente, àqueles a quem diziam respeito, quando osdocumentos
vêm à luz do dia após uma guerra, uma revoluçäo, ou umescândalo público.
Mas uma das limitaçöes das provas documentais é a de que poucaspessoas se
däo ao trabalho de pôr no papel aquilo que consideram óbvio. E, noentanto,
muita actividade política terá sido alicerçada "naquilo que é óbvio",tacitamen-
te aceite, o que pode observar-se de forma particularmente fácilnuma esfera
bastante técnica como a da diplomacia ou nos negócios de umaclasse gover-
iriante muito fechada. Neste sentido, e é um sentido importante, osarquivos
políticos do grupo dirigente estäo longe de esgotar a sua memóriapolítica. A
distinçäo torna-se particularmente evidente quando os seus líderesnecessitam
de tomar decisöes em crises que näo conseguem entenderglobalmente e em
que é impossível prever a consequência das suas acçöes. E entäoque teräo de
recorrer a certas regras e crenças assentes, sendo as suas acçöesdirigidos por
uma narrativa de fundo implícita que consideram óbvia. Destemodo, durante
todo o século XVIII os homens de Estado continuaram a acreditarque, acima
de todas as coisas, deviam impedir que qualquer outro poderganhasse alguma
vez um ascendente similar ao de Luís XIV, e relembravam a sipróprios que
näo se deveria permitir que algo de semelhante às antigas guerrasreligiosas
voltasse a suceder. 22 Durante o século XIX era habitual interpretar-se todas as
insurreiçöes violentas como sendo a continuaçäo do movimentoiniciado em
1789, de tal forma que as épocas de restauraçäo surgiam comopausas durante
as quais a corrente revolucionária se havia tornado subterrâneaapenas para
irromper de novo à superfície. Na altura de cada insurreiçäo - em1830 e
1832, em 1848 e 1851, ou em 1871 - tanto os apoiantes como osopositores
23
da revoluçäo viam os acontecimentos como consequencias directasde 1789 .
Mais uma vez, se queremos compreender as convicçöes de 1914precisamos
avaliar as ligaçöes entre os valores e as crenças inculcados naescola e os
pressupostos em que os políticos se basearam para actuar maistarde na vida.
Säo as ideias da geraçäo anterior que devemos tomar emconsideraçäo para
avaliarmos quäo literalmente a doutrina da luta pela existência e dasobrevi-
vência do mais forte era aceite por muitos líderes europeus emvésperas da
24
Primeira Guerra Mundial .
22 Ver H. Butterfield, The Discontinuities Between the Generationsin Histo@y (Cambridge,
1972).
23 Ver T. Schieder, "Das Problem der Revolution im 19.Jahrhundert", Historische Zeitschriftl
170 (1950), pp. 233-71.
24 Ver J. JolI, 1914: The Unspoken Assumptions (Londres, 1968).
Consideremos, por outro lado, o caso das histórias de vida.Afinal a maioria
das pessoas näo pertence às elites dirigentes, nem vive a históriadas suas
próprias vidas principalmente no contexto de vida dessas mesmaselites. Desde
há algum tempo, uma geraçäo de historiadores, nomeadamentesocialistas,
viram na prática da história oral a possibilidade de salvarem dosilêncio a
história e a cultura dos grupos subordinados. As histórias oraisprocuram dar
voz àquilo que, de outro modo, permaneceria mudo, ainda que näoficasse sem
vestígios através da reconstituiçäo das histórias de vida individuais.Mas
pensar o conceito de história de vida é já abordar a matéria com umquadro
mental prévio e, assim, sucede que, por vezes, a linha de inquiriçäoadoptada
pelos historiadores orais estorva a concretizaräo dos seus intuitos.Os histo-
riadores orais relatam frequentemente a ocorrência de um tipocaracterístico
de dificuldade no início das suas conversas. O entrevistado hesita efica
silencioso, protesta que nada há a contar que o entrevistador já näosaiba. O
historiador só irá exacerbar a dificuldade se encorajar o entrevistadoa envol-
ver-se numa forma de narrativa cronológica, pois isto introduz nomaterial um
tipo de modelo narrativo e, com ele, um padräo de recordaçäo queé estranho
a esse material. Ao fazer tal sugestäo o entrevistador está a ajustarinconscien-
temente a história de vida do entrevistado a um modelopreconcebido e alheio.
Esse modelo tem a sua origem na cultura do grupo dirigente. Éderivado da
prática dos cidadäos mais ou menos famosos escreverem livros dememórias
no final da vida. Esses escritores de memórias consideram as suasvidas dignas
de serem recordadas porque säo, a seus próprios olhos, pessoasque tomaram
decisöes, e que exerceram, ou se presume que tenham exercido,uma influência
mais ou menos vasta e que mudaram, de forma evidente, parte doseu mundo
social. A história "pessoal" do escritor de memórias confronta-secom uma
história "objectiva" incorporada nas instituiçöes ou na modificaçäo,transfor-
maçäo, ou mesmo no derrube de instituiçöes: um programa deformaçäo
educativa, um modelo de administraçäo civil, um sistema legal, umaorganí-
zaçäo particular da divisäo do trabalho. Foram inseridos naestrutura de
instituiçöes dominantes e foram capazes de mudar essa estruturapara os seus
próprios fins. E esta capacidade comprovada de fazer umaintervençäo pessoal
que permite aos escritores de memórias conceberem a sua vidaretrospectiva-
mente e, muitas vezes, encará-la prospectivamente como umasequência nar-
rativa na qual conseguem conjugar a sua história de vida individualcom o
sentido, que possuem, do decurso de uma história objectiva. Masaquilo que
falta nas histórias de vida dos que pertencem aos grupossubordinados säo
precisamente esses termos de referência que consolidam estesentimento de
uma trajectória linear e o conduzem a uma forma narrativasequencial: acima
de tudo, em relaçäo ao passado, a noçäo de origens legitimadorase, face ao
futuro, o sentido de acumulaçäo em termos de poder, dinheiro, ouinfluência.
A história oral dos grupos subordinados irá produzir um outro tipo dehistória,
no qual näo só a maioria dos pormenores será diferente, mas emque também
a própria construçäo de formas com sentido obedecerá a umprincípio diferen-
te. Iräo surgir pormenores diferentes, porque estes estäoincrustados, por assim
dizer, numa espécie diferente de ambiente narrativo. Para sereconhecer a
existência de uma cultura dos grupos subordinados é essencialvermos que se
trata de uma cultura em que as histórias de vida dos seus membrostêm um
ritmo diferente, näo sendo esse ritmo estabelecido pela intervençäoindividual
no funcionamento das instituiçöes dominantes. Quando oshistoriadores orais
ouvem com atençäo aquilo que os seus informantes têm para dizerdescobrem
uma percepçäo do tempo que näo é linear, mas cíclica. A vida doentrevistado
näo é um curriculum vitae, mas uma série de ciclos. O ciclo básico éo dia,
depois a semana, o mês, a estaçäo, o ano, a geraçäo. O sucessonotável que a
obra Working, de Studs Terkel, teve nos Estados Unidos deve-se,sem dúvida,
ao facto de fazer justiça a esta forma cíclica alternativa, podendoser lida
simultaneamente como epopeia popular e como pesquisa social.Eis aqui uma
forma narrativa diferente, uma estruturaçäo diferente de memóriassocialmente
25
determinadas .
Mesmo uma questäo täo fundamental como a da configuraçäodo século XX,
dependerá crucialmente do grupo social a que pertencemos. Paramuitas
pessoas, mas especialmente para os europeus, a narrativa desteséculo é
impensável sem a memória da Grande Guerra. A imagem dastrincheiras, desde
o Canal à fronteira suíça, está gravada na memória contemporânea.Enquanto
na Segunda Guerra Mundial a experiência comum dos soldados erao exílio
terrível e prolongado a uma inultrapassável distância de casa,aquilo que torna
única a experiência da Grande Guerra, e o que lhe confere umacarga especial
de ironia, é a proximidade absurda das trincheiras em relaçäo aolar. Esta
experiência das trincheiras, de que o primeiro dia no Somme éemblemático,
permanece como um arquétipo narrativo. Paul Fussell evocouvividamente esta
cena primordial e sugeriu que é a sua estrutura particular e irónica,a sua
26
dinâmica de esperança cerceada, que a faz assediar a memória.Contudo
e este é o facto notável - é possível imaginar-se que os membros dedois
grupos bastante diferentes podem participar no mesmoacontecimento, mesmo
25 S. Terkel, Working: people talk about what they do all day andhow they feel about what they
do (Londres, 1975).
26 P. Fussel, The Great War and Modern Memory (Nova lorque,1975).
um acontecimento täo catastrófico e devorador como uma grandeguerra e,
ainda assim, serem a tal ponto diferentes entre si que mal se podeconsiderar
que as suas recordaçöes posteriores desse acontecimento, asmemórias que
transmitem aos filhos, digam respeito ao "mesmo" acontecimento.Carlo Levi
27
deu uma perspectiva notável deste fenômeno. Em 1935, foiexilado como
prisioneiro político para a remota aldeia de Gagliano no Sul da Itália.No muro
da câmara municipal havia uma pedra em mármore onde estavaminscritos os
nomes de todos os aldeäos de Gagliano que tinham morrido naGrande Guerra.
Eram quase cinquenta nomes. Directamente, ou por laços deparentesco entre
primos ou de compadrio, nem uma só família fora poupada. Haviaainda
aqueles que regressaram feridos da guerra e os que voltaram säose salvos.
Como médico, Levi teve ocasiäo de falar com todos os aldeäos etinha
curiosidade em saber como viam o cataclismo de 1914-18-Contudo, em todas
as suas conversas com os camponeses de Gagliano, nuncaninguém mencio-
nava a guerra para referir feitos realizados, lugares vistos, ousofrimentos
suportados. Näo que esse assunto fosse tabu: quando interrogadossobre ele
respondiam näo só com brevidade, mas também com indiferença.Näo recor-
davam a guerra como um acontecimento memorável, nem falavamdos seus
mortos. Mas havia uma guerra de que falavam constantemente. Eraa guerra
dos salteadores. O bandoleirismo terminara em 1865, setenta anosatrás, e
muito poucos aldeäos eram suficientemente velhos para serecordarem dela
como participantes ou testemunhas oculares. Contudo, toda agente, tanto os
jovens como os velhos, as mulheres como os homens, falavam delacomo se
tivesse acontecido no dia anterior. As aventuras dos bandoleirosentravam
facilmente no seu discurso de todos os dias e eram comemoradasnos nomes
de muitos locais no interior e nos arredores da aldeia. As únicasguerras de que
os camponeses de Gagliano falavam com animaçäo e coerênciamítica eram
as esporádicas explosöes de revolta em que os salteadorescombatiam contra
o exército e o governo do Norte. Mas mal tinham consciência dosmotivos e
interesses em jogo na Guerra Mundial. A Grande Guerra näo faziaparte da sua
memória.
Podemos dizer, assim, de forma mais geral, que todos nosconhecemos uns
aos outros pedindo explicaçöes, fazendo relatos, acreditando, ounäo, nas
28
histórias sobre os passados e identidades uns dos outros. Aoidentificarmos
27 C. Levi, Christ Stopped at Eboli (tr. E Frenaye, Londres, 1963),especialmente as pp. 130 e
seguintes.
28 Para uni debate sobre as narrativas incrustadas no discursoquotidiano, ver A. Macintyre, After
Virtue (Londres, 1981), pp. 190-201.
e compreendermos com êxito o que outra pessoa está a fazerenquadramos um
acontecimento particular, um episódio, ou comportamento, nocontexto de
várias histórias narrativas. Identificamos, deste modo, umadeterminada acçäo
recordando, pelo menos, dois tipos de contexto para essa acçäo.Situamos o
comportamento dos agentes por referência ao seu lugar nas suashistórias de
vida e situamos também esse comportamento pela referência aoseu lugar na
história dos contextos sociais a que pertencem. A narrativa de umavida faz
parte de um conjunto de narrativas que se interligam, estáincrustada na história
dos grupos a partir dos quais os indivíduos adquirem a suaidentidade.
4
Existe uma disparidade chocante entre a omnipresença da memóriasocial na
conduta da vida quotidiana e a atençäo relativamente limitada, pelomenos no
que diz respeito a um tratamento explícito e sistemático e näo a umtratamento
implícito e disperso, que tem sido prestada especificamente àmemória social
29
na moderna teoria social e cultural . Por que será?
A resposta é bastante complicada e devemos começar porregistar que uma
das principais dificuldades no desenvolvimento de uma teoria damemória
como forma de conhecimento tem a ver com a variedade de tiposde memória
que accionamos e reconhecemos. O verbo "recordar" entra numadiversidade
de construçöes gramaticais e as coisas recordadas pertencem amuitas espécies
diferentes. E se a memória como fenômeno especificamente socialtem sido
relativamente negligenciada, isso sucede, pelo menos em parte,porque certos
tipos de memória têm sido privilegiados como foco de certas formasde atençäo
duradoura. Será, portanto, útil distinguir, em particular, entre trêstipos distin-
tos de memória.
Há, em primeiro lugar, a memória pessoal. Esta diz respeitoàqueles actos
de recordaçäo que tomam como objecto a história de vida de cadaum. Falamos
delas como memórias pessoais porque se localizam num passadopessoal e a
ele se referem. As minhas memórias pessoais podem exprimir-sedesta forma:
eu fiz isto e aquilo, em tal e tal altura, em tal e tal lugar. Assim, aorecordar um
29 Deve fazer-se mençäo, todavia, a uma série de trabalhosrecentes dedicados à questäo da
memória social: E. Shils, Tradition (Londres, 1981); Z. Bauman,Memories of Class:
Pre-History andAfterLife ofClass (Londres, 1982); S. Nora, Les lieuxde la mémoire (Paris,
1984); B. A. Smith, Politics and Remembrance (Princeton, 1985); P.Wright, On L iving in an
Old Country (Londres, 1985); F. Haug, Female Sexualization: aCollective Work ofMemory
(tr. E. Carter, Londres, 1987).
acontecimento estou também preocupado comigo próprio. Quandodigo "che-
guei a Roma há três anos", estou, num certo sentido, a reflectirsobre mim
mesmo. Ao fazer essa afirmaçäo estou consciente do meu presentereal,
reflectindo sobre mim próprio como a pessoa que fez isto e aquilono passado.
Ao recordar que fiz isto e aquilo vejo-me a mim próprio, por assimdizer, de
uma certa distância. Há uma espécie de duplicaçäo: Eu, aquele quefala agora,
e eu, aquele que chegou a Roma há três anos atrás, somosidênticos em alguns
aspectos, mas noutros somos diferentes. Estas manifestaçöes damemória
figuram significativamente nas descriçöes que fazemos de nóspróprios, por-
que a nossa história passada é uma fonte importante da ideia quefazemos de
nós próprios. O auto-conhecimento, a concepçäo do nosso própriocarácter e
potencialidades, é determinado, em grande medida, pela maneiracomo vemos
as nossas acçöes passadas. Existe, pois, uma ligaçäo importanteentre o
conceito de identidade pessoal e diversos estados mentaisretrospectivos. Os
objectos de remorso ou de culpa apropriados säo as acçöes ouomissöes
passadas realizadas pela pessoa que se sente com remorsos ouculpada. Através
de recordaçöes desta espécie as pessoas têm um acesso especiala factos sobre
as suas histórias e as suas identidades passadas, uma espécie deacesso que,
em princípio, näo podem ter às histórias e identidades de outraspessoas e
30
coisas.
Um segundo tipo de memórias - as memórias cognitivas -abrange as
utilizaçöes do verbo "recordar" em que se pode dizer querecordamos o
significado de palavras, de linhas de um poema, de anedotas, dehistórias, do
traçado de uma cidade, de equaçöes matemáticas, de princípios dalógica, ou
de factos sobre o futuro. Para existir uma memória deste tipo onosso conhe-
cimento pressupöe, de algum modo, a ocorrência anterior de umestado pessoal
31
cognitivo ou sensorial. Mas, ao contrário do primeiro tipo dememória, näo
necessitamos de possuír qualquer informaçäo sobre o contexto ouepisódio da
aprendizagem para sermos capazes de reter e utilizar este tipo derecordaçöes.
Aquilo que esta forma de recordar exige näo é que o objecto darecordaçäo
seja algo pertencente ao passado, mas sim que a pessoa que orecorda o tenha
encontrado, sentido, ou ouvido falar dele no passado.
Um terceiro tipo de memória consiste pura e simplesmente nanossa capa-
cidade de reproduzir uma determinada acçäo. Deste modo, recordarcomo se
30 Sobre a memória pessoal, ver R. Wollheim, The Thread of Life(Cambridge, 1984) e S.
Shoemaker, 'Tersons and Their Past", American PhilosophicalQuarterly, 7 (1970), 269-85.
31 Ver C. B. Martin e M. Deutscher, `Rernembering% ThePhilosophical Review, 75 (1966), pp.
161-96 e D. Wiggins, Identity and Spatio-Temporal Continuity(oxford, 1967), especialmente
as pp. 50 e seguintes.
lê, escreve, ou anda de bicicleta, é, em cada um dos casos, umaquestäo de
sermos capazes de fazer estas coisas, de forma mais ou menoseficiente,
quando tal necessidade surge. Tal como sucede com asmanifestaçöes da
memória empírica e cognitiva, faz parte do significado de "recordar"que o que
é recordado pertença ao passado. "Recorda", poderíamos dizê-lo, éum termo
que se refere ao passado. Mas no que diz respeito a este terceirotipo de
memórias, näo nos lembramos, frequentemente, de como, quandoou onde
adquirimos o saber em questäo. Muitas vezes é apenas pela própriaacçäo que
somos capazes de reconhecer e demonstrar aos outros que defacto nos
recordamos. A recordaçäo de como se lê, escreve, ou se anda debicicleta é
como o significado de uma liçäo cuidadosamente aprendida. Temtodas as
marcas de um hábito e, quanto melhor recordamos este tipo dememórias,
menos provável é lembrarmo-nos de uma ocasiäo anterior em quetenhamos
executado o acto em questäo. Só quando nos encontramos emdificuldades é
que podemos socorrer-nos das nossas@1recordaçöes como guia.
Os filósofos constataram a existência deste tipo demanifestaçöes da memó-
ria e agruparam-nas sob o título de "memória-hábito", em contrastecom a
memória cognitiva e pessoal. Porém, normalmente têm prestadopouca atençäo
à memória deste tipo. Defenderam ou assumiram muitas vezes que,na "ver-
dadeira" memória, o próprio acto de recordar, bem como aquilo quese recorda,
é sempre um acontecimento de alguma espécie. O acto de"recordar" é
frequentemente referido como sendo um "acto mental", ou uma"ocorrência
mental". Deste modo, Bergson distingue duas espécies de memória:a que
consiste no hábito e aquela que consiste em recordaçäo. Dá comoexemplo a
aprendizagem de uma liçäo de cor. Quando sei a liçäo de cor diz-seque me
"lembro" dela, mas isto só significa que adquiri certos hábitos. Poroutro lado,
a minha recordaçäo da primeira vez que li a liçäo, quando estava aaprendê-la,
é a recordaçäo de um acontecimento único que só ocorreu uma vez- e a
recordaçäo de um acontecimento único näo pode ser inteiramenteconstituída
pelo hábito, sendo radicalmente diferente da memória que é umhábito. Isto
leva Bergson a concluir que a memória de como fazer alguma coisaé apenas
a retençäo de um "mecanismo automático" e de que esta "memória-hábito" é
radicalmente diferente da recordaçäo de acontecimentos únicos, aqual cons-
titui a "memória par excellence". Só este tipo de recordaçäo éconsiderado
32
como verdadeira memória. Russell segue Bergson na distinçäoentre "memó
ria-hábito" e "verdadeira memória", sendo a última cognitiva,enquanto a
primeira o näo é. Ele reconhece, na verdade, que é mais difícilaplicar esta
32 Ver H. Bergson, Matter and Memory (tr. N. M. Paul e W. S.Palmer, Londres, 1962.
distinçäo na prática do que formulá-la na teoria. Isto aconteceporque o hábito
é uma característica intrasa da nossa vida mental, que está muitasvezes
presente onde, à primeira vista, näo parece estar. Deste modo,pode existir um
hábito de recordar um acontecimento único. Depois de termosdescrito esse
acontecimento uma vez, as palavras que utilizámos para o fazerpodem
facilmente tornar-se habituais. Contudo, Russell faz questäo eminsistir que a
característica distintiva da memória é ela ser um tipo especial decrença. Aquilo
que constitui a `inemória-conhecímento'5 crfz
lias imagens de acontecimentos passados dizem respeito aacontecimentos
passados`. Refere-se a isto como memória "verdadeira" para adistinguir do
33
simples hábito adquirido através da experiência passada. Tambémneste caso,
recordar" é entendido no sentido em que a recordaçäo - é um actocognitivo
que se considera ter importância filosófica.
É talvez mais fácil avaliar a importância do âmbito decomportamento
geralmente atribuído ao tipo de memórias-hábito através do examede casos
de amnésia, em que essas capacidades da memoria ja n äofuncionam eficaz-
mente, do que pela observaçäo do funcionamento mais ou menosregular
dessas capacidades na vida quotidiana. Temos a sorte de possuirum estudo,
feito pelo eminente neurofisiologista Luria, que relata um casonotável desse
tipo de amnésia e que, ao documentá-lo, demonstra corno amemória-hábito é
34
extensa e vital . Narra a história do ferimento que um soldado russo,de nome
Zazetsky, sofreu no cérebro, do estado de desordem psicológica emque se viu
obrigado a viver após o dano irreparável causado por uma bala quelhe penetrou
no cérebro e da sua luta por reconstituir uma explicaçäo para o seuestado de
confusäo psicológica e o combater.
Zazetsky sofreu uma perda devastadora da memória pessoal.Nas semanas
imediatamente a seguir ao ferimento era incapaz de se lembrar donome
próprio, do apelido, dos nomes dos seus parentes próximos ou doda cidade
onde nascera, e tinha muita dificuldade em recordar fosse o quefosse do seu
passado recente - incluindo a vida na frente de combate.
A sua perda da memória cognitiva era igualmente devastadora.Tinha
dificuldade em identificar as coisas à sua volta. Quando via ouimaginava
coisas - objectos materiais, plantas, animais, aves, pessoas - näoconseguia
recordar de imediato as palavras que as designavam- E vice-versa:quando
ouvia uma palavra näo conseguia lembrar-se imediatamente do seusignifica-
do. Esta perda cognitiva era tanto sintáctica como semântica.Exprimimos os
33 B. Russei, The Analpis of Mind (Londres, 1921), pp- 166 eseguintes.
34 A. R. Luria, The Man with a Shattered World (tr. L. Solotaroff,Londres, 1973).
Marli
relacionamentos através de certas partes do discurso - preposiçöes,conjun-
çöes, advérbios, etc'- de forma a que frases simples como "o cestodebaixo
da mesa` e "a cruz sobre o círculo" sejam perfeitamente óbvias paranós,
porque,utilizamos a faculdade necessária para dominar essasformas: a capa-
cidade para recordar elementos gramaticais e entender, rápida esimultanea-
mente, as relaçöes de palavras e as imagens individuais queevocam. Mas
Zazetsky já näo tinha a capacidade desse domínio instantâneo depadröes e
havia alguns padröes gramaticais - por exemplo, inversöes como aque se
encontra na distinçäo entre "irmäo da mäe" e "mäe do irmäo", ougenitivos
como em "irmäo do pai" - que ele já näo conseguia entender detodo.
Uma terceira área de perda tinha a ver com padröes habituais decomporta-
mento. Enquanto estava no hospital descobriu que tinha dereaprender aquilo
que antes era banal: acenar ou dizer adeus a alguém. Estavadeitado na cama
e precisava da enfermeira. Como conseguir que ela se acercasse?De repente
lembrou-se que se pode acenar a uma pessoa e tentou acenar àenfermeira, isto
é, tentou mover ligeiramente a mäo esquerda para trás e para afrente. Mas ela
passou por ele, sem prestar atençäo aos gestos que estava a fazer.Percebeu,
entäo, que havia esquecido completamente como se acena aalguém.'Era
manifesto que tinha até esquecido como fazer gestos com as mäosde forma a
que alguém entendesse o que queria dizer. Quando um médico lhequis dar um
aperto de mäo näo sabia qual das mäos devia estender. Quandoum instrutor
lhe deu uma agulha, um rolo de linha e um pedaço de tecidoestampado, e lhe
pediu para tentar alinhavar o desenho, limitou-se a ficar sentadocom a agulha,
a linha e o tecido na mäo, interrogando-se para que é que lheteriam sido dados.
Quando o instrutor voltou, mais tarde, e lhe disse para enfiar aagulha, agarrou
na agulha com uma mäo e a linha com a outra, mas näo conseguiaperceber o
que devia fazer com elas. Quando foi para uma oficina aprender afazer sapatos,
o instrutor explicou-lhe tudo com grande pormenor, mas sóconseguiu aprender
a pregar cavilhas de madeira numa tábua e a arrancá-las de novo.Mais tarde,
se queria fazer qualquer tarefa simples em casa, e lhe pediam quecortasse
lenha, consertasse a cerca, ou fosse buscar leite à despensa,descobria que näo
sabia como o fazer. Se queremos dar um nome a esta drástica áreade perda,
que lhe poderemos chamar senäo memória-hábito?
5
Dos três tipos de memória que distingui, os dois primeiros, amemória pessoal
e a cognitiva, têm sido estudados em pormenor, embora pormétodos bastante
diferentes, enquanto o terceiro, a memória-hábito, tem sido, porrazöes impor-
tantes, largamente ignorado.
Para o estudo da memória, tal como esta é entendida napsicanálise, é fulcral
a distinçäo entre duas formas contrastantes de trazer o passado aopresente:
35
representar e recordar. Representar consiste numa espécie deacçäo, em que
o sujeito, tomado por desejos e fantasias inconscientes, os reviveno presente
com uma impressäo de proximidade que é intensificada pelarecusa, ou
incapacidade, do analisando em reconhecer a sua origem e o seucarácter
repetitivo. O comportamento de representaçäo revela, geralmente,um aspecto
compulsivo que se encontra em conflito com os restantes padröesde compor-
tamento do analisando. Muitas vezes assume a forma de umcomportamento
agressivo que tanto pode ser dirigido contra os outros como contrasi próprio.
Do ponto de vista explicativo, a questäo crucial é que arepresentaçäo, seja
violenta ou reprimida, dirigida contra os outros ou contra si próprio,e quer
ocorra fora ou no interior da relaçäo entre o analista e o analisando,testemunha
a existência de uma compulsäo repetitiva. É em resultado destacompulsäo que
os analisandos se colocam deliberadamente em situaçöes penosas,repetindo,
desta forma, uma velha experiência. @ Porém, na repetiçäocompulsiva os
agentes näo conseguem recordar o protótipo das suas acçöespresentes. Pelo
contrário, têm a impressäo clara de que as situaçöes em que säo"apanhados"
säo totalmente determinadas pelas circunstâncias do momento. Acompulsäo
para repetir substituiu a capacidade de recordar. "O paciente repeteem vez de
recordar, e repete resistindo": esta fórmula surge num texto crucialpara a
técnica analítica, o ensaio de Freud, datado de 1914, sobre"Recordar, repetir
36
e tratar` .
Freud introduz entäo, nesse ensaio de 1914, o tópico datransferência: um
fenômeno que discute principalmente em termos da relaçäo entre oanalista e
ò analisando porque, embora näo esteja confinado certamente aesta relaçäo,
ò comportamento da representaçäo pode ser observadodirectamente, e com
grande pormenor, no interior do espaço analítico. Descreve atransferência
como sendo o principal instrumento para `dominar a compulsäo dopaciente
para a repetiçäo e transformá-la num motivo para recordar". Porqueé que a
transferência deveria ter este efeito? Se recordar é permitir queocorra livre-
mente, tal acontece, diz Freud, porque a transferência constitui algoparecido
35 Ver J. Laplanche e J. B. Pontalis, The Language ofPsychoanalysis (tr. D. Nicholson-Smith,
Londres, 1973).
36 S. Freud, "Rernembering, Repeating and Working Through"(1914), Standard Edition, XII,
pp. 147-56.
com um "recreio" no qual a compulsäo do paciente para repetir "éautorizada
a expandir-se numa liberdade quase total". Alargando esta analogiado recreio,
afirma que a transferência cria "um território intermédio entre adoença e a
vida real, através do qual se faz a transiçäo de uma para a outra".Este território
intermédio consiste, em larga medida, numa actividade narrativa: osanalisan-
dos falam do seu passado, da sua vida presente fora da análise, dasua vida no
âmbito da análise. Freud nunca debateu explicitamente estecarácter narrativo
da experiência analítica, mas autores posteriores, como porexemplo Sherwood
e Spence, chamaram a atençäo para a sua importância fulcral emostraram as
formas como o diálogo psicanalítico procura pôr a descoberto osesforços do
analisando para manter viva uma espécie particular dedescontinuidade narra-
tiva .37 o objectivo desta descontinuidade narrativa é bloquearpartes de um
passado pessoal e, desse modo, näo só de um passado pessoalmas também de
aspectos significativos das acçöes presentes. Para contrariar estadescontinui-
dade radical, a psicanálise actua num círculo temporal: analista eanalisando
recuam, a partir daquilo que é dito sobre o presente autobiográfico,de modo
a reconstruírem um relato coerente do passado, enquanto,simultaneamente,
avançam a partir de diversas afirmaçöes sobre o passadoautobiográfico, de
forma a reconstituírem o relato do presente que se procuracompreender e
explicar. Existe, pois, uma regra empírica nos escritos técnicos deFreud, que
aconselha o analista a dirigir a atençäo para o passado quando oanalisando
insistir no presente, e para procurar material presente quando oanalisando
quiser permanecer no passado. Revela-se um conjunto denarrativas para gerar
questöes sobre outro conjunto de narrativas. Recordar é, entäo,precisamente
näo lembrar acontecimentos de forma isolada. É ser capaz deformar @sequên-
cias narrativas com sentido. Em nome de um determinadocompromisso
narrativo tenta-se integrar fenômenos isolados, ou estranhos, numúnico pro-
cesso unificado. É neste sentido que a psicanálise se atribui a siprópria a tarefa
de reconstituir as histórias de vida individuais.
Para o estudo da memória cognitiva, isto é, da memória tal comoera
38
entendida pelos psicólogos experimentais, é fulcral a noçäo demodificaçäo.
Eles mostraram que a recordaçäo literal é muito rara e destituída deimportân-
cia, sendo o acto de recordar näo uma questäo de reproduçäo masde constru-
37 Sobre o papel da narrativa na psicanálise, ver M. Sherwood, TheLogic ofExplanation in
Psychoanalysis (Nova Iorque, 1969) e D. P. Spence, Historical Truthand Narrative Truth:
Meaning and Interpretation in Psychoanalysis (Nova lorque, 1982).
38 Ver, em especial, E C. Bartiett, Remembering (Cambridge,1932); J. Piaget e B. Inhelder,
Memory and Intelligence (tr. A. J. Pomerans, Londres, 1973); A.Lieury, La mémoire, résultats
et théories (Bruxelas, 1975).
çäo. É a construçäo de um "esquema", de uma modificaçäo, quenos permite
discernir e, por isso, recordar. Actualmente, os psicólogosexperimentais
conhecem três dimensöes principais da modificaçäo mnemónica. Ocódigo
semântico é a dimensäo dominante. Tal como um código debiblioteca, está
organizado hierarquicamente, por tópicos, e integrado num únicosistema, de
acordo com uma visäo global do mundo e das relaçöes lógicas quenele se
observam. O código verbal é a segunda dimensäo. Contém toda ainformaçäo
e os programas que permitem a preparaçäo de expressäo verbal. Ocódigo
visual é a terceira dimensäo. Items concretos, facilmente traduzidosem ima-
gens, retêm-se muito melhor na memória do que items abstractos,porque esses
items concretos sofrem uma dupla modificaçäo, tanto em termosvisuais como
de expressäo verbal. Os psicólogos experimentais explicam asfalhas de
memória em termos do funcionamento de tais processos demodificaçäo, sendo
esta explicaçäo válida tanto para os casos patológicos como paraos normais.
Como exemplo do esquecimento normal poderíamos consideraraqueles casos
em que os acontecimentos e as situaçöes de natureza repetitivanäo säo
facilmente lembrados. Cada vez que vou comprar päo é como daúltima vez,
excepto no que diz respeito ao dia. Em tais situaçöes, só a primeirae a última
experiências seräo recordadas, de maneira que a capacidade derecordar um
dado exemplo assume tipicamente a forma de uma curva em U:todas as
ocasiöes intermédios seräo esquecidas porque as suas marcas säopraticamente
idênticas. Como exemplo de esquecimento patológico poderíamosconsiderar
39
¨ caso dos pacientes que sofrem de amnésia relativamente aonome das cores.
O facto de os pacientes que sofrem deste tipo de amnésia seremincapazes de
Tiver num relance` quais säo as amostras de cor apresentadas que"combinam"
é uma manifestaçäo específica de uma perturbaçäo mais geral: ésinal de que
perderam a capacidade global para classificar um dado dossentidos sob uma
categoria, pois dar nome a uma coisa é vê-Ia como representativade uma
categoria. Por esse motivo, seria errado dizer que as pessoas quemanifestam
amnésia das cores väo de um princípio de classificaçäo a outro,porque säo
incapazes de aderir a um dado princípio de classificaçäo. Narealidade, nunca
adoptam qualquer princípio de classificaçäo.
Os psicólogos experimentais têm procurado compreender osfenômenos da
lembrança e do esquecimento como parte de uma abordagemdelíberadamente
científica: a busca de uma compreensäo fundamental do cérebro edo aparelho
sensorial, concebido como um sistema capaz de seleccionar,organizar, arma-
39 Sobre a amnésia das cores, ver M. Merleau~Ponty,^enomenology ofPerception (tr. C. Smith,
Londres, 1962).
zenar e reconstituir informaçäo. Defendem o ponto de vista de queos funda-
mentos de uma tal compreensäo devem ser estabelecidos atravésde experiên-
cias rigorosamente concebidas e realizadas em condiçöesaltamente
controladas e, por isso, em geral altamente artificiais. Deste modo,no decurso
de experiências sobre a memória, o sujeito da experiência énormalmente
confrontado com dados pertencentes a dois grupos principais:verbais e näo-
verbais. Os dados verbais incluiräo séries de nomes, adjectivos,verbos, pas-
sagens em prosa, poemas e contos. Os dados näo-verbais incluiräoformas
geométricas, tais como círculos, quadrados e rectângulos, assimcomo dese-
nhos, pinturas e fotografias de pessoas, objectos e paisagens. Parapoderem
descrever e classificar os desempenhos dos seus sujeitos, ospsicólogos cog-
nitivos colocaräo esses sujeitos em situaçöes experimentais,previamente
esvaziadas, tanto quanto possível, de um conteúdo culturalespecífico. Os
psicólogos cognitivos podem admitir, na verdade, sem prejuízo paraas suas
premissas, que as recordaçöes das pessoas de culturas diferentesvariam porque
os seus mapas mentais säo diferentes. O código semântico, queconstitui a
chave para o funcionamento da memória no seu todo, é um mapamental
adquirido na infância e, como tal, um código partilhadocolectivamente. Pode
admitir-se, assim, sem esforço que, na maior parte das culturas, asrecordaçöes
dos homens e das mulheres variaräo por a sua educaçäo eocupaçöes serem
diferentes, e pode conceder-se também, facilmente, quetestemunhas perten-
centes a culturas fortemente divergentes divergiräo inevitavelmentenas suas
recordaçöes do mesmo acontecimento, particularmente se for umaconteci-
mento complexo como é a maior parte daqueles a que as tradiçöesorais fazem
alusäo. Ao fazerem tais constataçöes os psicólogos experimentaisestäo a
admitir a possível aplicaçäo das suas descobertas a objectos-domínios social-
mente variáveis. Mas aquilo que a sua pesquisa se tembasicamente preocupado
em explorar é a existência e a universalidade das estruturascognitivas básicas.
Aquilo que procuram identificar säo "estruturas fundamentais","processos
primários", "universais", faculdades mentais essenciais à naturezahumana.
- Temos entäo, aqui, dois territórios fortemente colonizados. Ospsicanalistas
estudaram a memória pessoal enquanto investigavam as históriasde vida de
indivíduos; os psicólogos estudaram a memória cognitiva aoinvestigarem as
operaçöes das faculdades mentais universais. A memória-hábito,pelo contrá-
rio, parece ser um espaço desocupado, ou mesmo inexistente, outalvez fosse
preferível dizer que o espaço intelectual que poderia ser ocupadopor uma
teoria do hábito já se encontra ocupado. O terreno que ela poderiacobrir parece
estar já ocupado pelo convencionalismo contemporâneo, pois seem pouco
mais existe acordo na actualidade, todos concordam que osmundos sociais säo
definidos pelas suas convençöes dominantes. Com a ideia deconvençäo
explicamos a nós próprios a noçäo de uma ordem de regrasobjectivas, em cuja
base existe uma dimensäo social tácita, um mundo que se aceitaser como é
porque as regras que o fazem assim säo acordadasintersubjectivamente. A
linguagem tornou-se para nós o modelo arquetípico para todas asoutras formas
de intersubjectividade, porque a linguagem tem as suas raizes, porum lado, na
natureza da ordem formal e, por outro, naquele entendimentoimplícito comum
que subjaz à possibilidade de toda e qualquer comunicaçäo.
A questäo que é preciso reter para os propósitos da presenteinvestigaçäo é
que a maior parte das formas do convencionalismo contemporâneotem-se
desenvolvido de modo a eliminar o hábito como objecto isolável depesquisa.
Aquilo que os hermeneutas têm tentado, normalmente, recuperar einterpretar,
é uma certa combinaçäo da memória pessoal com a cognitiva,enquanto a
memória-hábito é aquilo que se têm inclinado a ignorar. Posso,talvez, exem-
plificar melhor o que quero dizer, referindo dois textos particulares.Säo eles
A Ideia de uma Ciência Social, de Winch, e o ensaio de Salilins "OPensamento
Burguês: o Sistema de Vestuário Americano". Poderia ter escolhidoum número
considerável de outros textos em vez destes, como é evidente, masescolhi estes
dois porque säo culturalmente sintomáticos. As abordagens queexemplificam
podem considerar-se representativas de estilos de pensamento quetêm sido
largamente adaptados na moderna teoria social e cultural.
A eliminaçäo explícita da noçäo de hábito é evidente naabordagem da teoria
social que vê os exemplos particulares de comportamento como aaplicaçäo
de normas sociais. É bem conhecido que Winch toma como pontode partida,
em A Ideia de uma Ciência Socia1@4) a asserçäo de John StuartMill de que a
ciência social deveria tomar como modelo a ciência natural. O que émenos
vezes notado, mas mais pertinente para este debate, é que, nodecurso do seu
raciocínio, Winch entra claramente em discordância com a distinçäode Oa-
41
keshott entre duas formas de moralidade . 0akesliott faz a distinçäoentre um
tipo de moralidade que é `uma aplicaçäo reflexiva de um critériomoral` e outro
42
que é "um hábito de afecto e de comportamento` . A primeira forma,a
aplicaçäo reflexiva de um critério moral, pode surgir como "a buscaauto-cons-
ciente de ideais morais", ou como "a observância reflexiva denormas morais".
Em qualquer dos casos, é uma forma de vida moral em que seatribui um valor
especial à "consciência de si próprio", quer esta seja individual, quersocial.
40 P. Winch, The Idea of a Social Science (Londres, 1958).
41 Ibidem, pp. 57 e seguintes.
42 Ver M. Oakeshott, Rationalism in Politics (Londres, 1962),especialmente pp. 61-9 e 119-29.
Näo só a norma ou o ideal säo produto do pensamento reflexivo,mas também
a aplicaçäo da norma ou do ideal a qualquer situaçäo particular éigualmente
uma actividade reflexiva. Esta forma de vida moral implica, porconsequência,
um tipo determinado de aprendizagem. Exige uma aprendizagemna avaliaçäo
das próprias ideias morais, uma aprendizagem "na qual os ideaissäo separados
e desligados da expressäo necessariamente imperfeita queencontram nas
acçöes particulares". Exige, também, uma aprendizagem "naaplicaçäo dos
ideais às situaçöes concretas" e na arte de seleccionar "meiosapropriados para
atingir os fins que a nossa educaçäo nos inculcou".
Oakeshott contrapöe a isto a forma de vida moral a que chama"um hábito
de afecto e de conduta". Neste tipo de vida moral, diz-se que aresposta às
situaçöes do quotidiano é feita näo por uma "conduta reconhecidacomo
expressäo de um ideal moraP, nem pela "aplicaçäo conscienciosade uma regra
de comportamento a nós próprios", mas sim "agindo emconcordância com um
certo hábito de comportamento". Uma tal forma de vida moral näoresulta da
consciência de modos alternativos possíveis de comportamentonem de uma
escolha determinada por um ideal, uma norma, ou uma opiniäo,entre as
alternativas observadas. A conduta, neste caso, "é tanto quantopossível isenta
de reflexäo". Deste modo, na maioria das situaçöes correntes davida näo há
uma avaliaçäo das alternativas, nem uma reflexäo sobre aspossíveis conse-
quências da acçäo. Em nenhuma ocasiäo particular existe "mais doque o
seguimento näo reflexivo de uma tradiçäo de comportamento, emque fomos
educados". É que estes hábitos de afecto e de comportamento näose aprendem
por imposiçäo, mas apenas "vivendo com pessoas que agemhabitualmente de
uma certa maneira". Adquirimos esses hábitos da mesma maneiraque adqui-
rimos a nossa língua materna. Tal como näo existe na vida de umacriança uma
altura em que se lhe possa dizer para aprender a língua que ouvehabitualmente
falar, da mesma forma näo existe uma altura na sua vida em que selhe possa
dizer para começar a aprender os hábitos de comportamento daspessoas que
estäo constantemente em seu redor. Mesmo que aquilo que éaprendida, ou
pelo menos uma parte, possa ser formulado em termos de normase preceitos,
em nenhum dos casos nós, neste tipo de educaçäo, `aprendernospela aprendi-
zagem de normas e preceitos". Aquilo que aprendemos, adquirindohábitos de
conduta tal como adquirimos uma língua, pode ser aprendido sem aformulaçäo
de normas. E, na verdade, insiste Oakeshott, um tal conhecimentoprático de
normas, como o que está implicado no controlo da linguagem ou docompor-
tamento é impossível até que as tenhamos esquecido como normase já näo
sejamos tentados a transformar a fala e a acçäo na aplicaçäo denormas a uma
dada situaçäo. Em suma, Oakeshott quer dizer que a linha divisóriaentre o
comportamento, habitual e o comportamento orientado por normasdepende
de se aplicar ou näo uma regra de forma consciente, e insiste queuma parte
substancial do comportamento humano pode descrever-se emtermos da noçäo
de hábito, de tal modo que nem a ideia de norma, nem a ideia dereflexividade
säo para ele essenciais.
Contra isto, Winch argumenta que o teste que mostra se asacçöes de uma
pessoa säo a aplicaçäo de uma regra näo é ela conseguir formulara regra, mas
se faz sentido distinguir entre uma maneira certa e outra errada defazer as
coisas que ela faz. E quando isso faz sentido, "deve também fazersentido dizer
que a pessoa está a utilizar um critério naquilo que faz, mesmo quenäo formule,
43
nem possa talvez formular, esse critério" . Winch conclui, a partirdaqui, que
Oakeshott tem razäo quando diz que aprender uma forma deconduta é como
aprender a falar uma língua, mas que retira uma inferência erradadessa
analogia. Aprender a falar uma língua implica ser-se capaz de secontinuar a
dizer frases que ainda näo foram ditas. Num certo sentido, estaactividade
implica, evidentemente, que se faça algo diferente daquilo que já sesabe.
Todavia, no que diz respeito às normas linguísticas que se está aseguir, é ainda
como "continuar-se pelo mesmo caminho" que foi previamenteensinado. E
isto traz à luz o que se quer dizer, neste caso, quando falamos emcontinuar
pelo mesmo caminho. Num certo sentido, adquirir um hábito éadquirir uma
propensäo para fazer sempre o mesmo tipo de coisas, mas há outrosentido em
que isto se aplica à aprendizagem de uma norma. Estes doissentidos, sublinha
44
Winch, säo diferentes, e muita coisa depende dessa diferença. Sese tratasse
apenas de uma questäo de hábitos, diz ele, entäo o nossocomportamento
corrente poderia certamente ser influenciado pelo modo comohavíamos agido
no passado, mas tratar-se-ia apenas de uma influência causal. Ocäo reage,
neste momento, de uma certa maneira às ordens de fulano porcausa daquilo
que lhe aconteceu no passado. Se me mandarem continuar asequência dos
números naturais depois do 100, eu faço-o de uma certa maneirapor causa da
minha aprendizagem passada. A frase "por causa de" é utilizada deforma
diversa nestas duas situaçöes. O cäo foi condicionado a reagir deuma certa
maneira, ao passo que eu sei a maneira correcta de proceder combase naquilo
que me ensinaram. O que Winch quer dizer é que pode afirmar-seque eu
aprendi uma norma, e näo um hábito, porque eu compreendo o quequer dizer
"fazer a mesma coisa, no mesmo tipo de ocasiäo". A noçäo denorma de conduta
e a noçäo de acçäo com sentido estäo intimamente ligadas. Paraidentificarmos
43 P. Winch, Idea of a Social Science, p. 58.
44 Ibidem, pp. 59-60.
k
as acçöes como acçöes - e näo como meros acontecimentoscorporais ou
fisiológicos - é indispensável que as vejamos como acçöes comsentido. A
categoria mais importante para a nossa compreensäo da vida socialnäo será,
entäo, a de causa e efeito, mas sim a de sentido. Com esta atitudeWinch deixa
a noçäo de hábito sem qualquer papel significativo na teoria social.
Ao fazer esta distinçäo entre hábitos e normas, Winch podedefender que as
formas de actividade que Oakeshott descreve como "hábitos deafecto e de
conduta" se podem descrever correctamente como umcomportamento orien-
tado por normas. Winch refere vários exemplos de comportamentoorientado
por normas. Vou citar um exemplo que ele näo dá, mas que captaaquilo que
quer dizer. Um termo como "vergonha" remete-nos para um certotipo de
situaçäo, vergonhosa, e para uma determinada maneira de reagirrelativamente
a ela: escondermo-nos ou procurarmos apagar a nódoa.Escondermo-nos, neste
contexto, tem o objectivo de ocultar a vergonha. Só podemosentender o
significado de nos escondermos, neste caso, se compreendermosde que tipo
de situaçäo e de sentimento se está falar. Um termo como vergonhasó pode,
entäo, ser explicado por referência a uma linguagem específica deinteracçäo
na qual nos culpamos, exortamos, admiramos e apreciamos unsaos outros. No
caso das situaçöes consideradas vergonhosas pode näo existir umaformulaçäo
sistemática das normas e da concepçäo dos homens e dasociedade que lhes
subjaz. Mas a compreensäo destas normas e dessa concepçäoestá, todavia,
implícita na nossa capacidade de aplicar as descriçöes adequadasa acçöes e
situaçöes particulares. Estas práticas exigem a possibilidade decertas auto-
descriçöes dos participantes e tais auto-descriçöes säo constitutivasdessas
45
práticas .
Salilins chega a uma posiçäo análoga à que Winch propöe, maspor um
caminho diferente: isto é, através da aplicaçäo dos métodos dalinguística
estrutural à "linguagem" do vestuário. No seu estudo sobre osistema de
vestuário americano, Salilins prescinde de qualquer noçäo dehábito, näo de
46
forma explícita mas por inferência. Aquilo que se preocupa emrejeitar
explicitamente é a suposiçäo de que o significado social dovestuário tenha
necessariamente qualquer relaçäo com as suas propriedadesfísicas. Contra isto
argumenta que o significado social dos objectos de adorno, que ostorna úteis
para certas categorias de pessoas, é simbólico e arbitrário. Ao fazeresta
45 Este exemplo é discutido por C. Taylor, "Interpretation and theSciences of Man", in
Philosophy and the Human Sciences, volume 11 (Cambridge, 1985),pp. 23 e seguintes.
46 Ver M. Sahlins, "La Pensée Bourgeoise: Western Society asCulture", in Culture andPractical
Reason (Chicago, 1976), pp. 166-204.
asserçäo, Salilins aplica deliberadamente a premissa de Saussurerelativa à
distinçäo entre a língua e a fala, a qual afasta, à partida, aquilo aque chamava
1@ o aspecto físico da comunicaçäo ,.47 Isto significa que aquiloque importa näo
é como se produz um som, mas sim a forma como ele é distinguidodos outros
sons. O som p, por exemplo, é estudado näo como um som queresulta de se
fecharem os lábios e da ausência de qualquer vibraçäo das cordasvocais, mas
como um som que se opöe ao grupo do v e f como oclusivas, aogrupo do b, g
e d como consoantes mudas, e ao grupo do t e k como labiais.Torna-se, assim,
possível caracterizar uma língua näo por referência aos pormenoresfisiológi-
cos da sua articulaçäo, pelo papel que impöe às cordas vocais e aopalato mole,
mas por referência à forma como cada som se distingue de todosos outros,
num sistema de opostos. Esta independência da línguarelativamente ao subs-
trato fonético é o elemento mais importante do estruturalismo: afonologia é
estrutural porque se interessa por sons, na medida em que osvários sons de
uma língua säo definidos unicamente pela relaçäo que têm uns comos outros.
Tendo assim afastado, à partida, o aspecto físico da comunicaçäo,Saussure
isola, entäo, aquilo a que chama `o lado executivo". Aquilo que édado como
inteligível é a língua como organizaçäo sistemática de combinaçöespotenciais,
com base nas quais um determinado falante produz um discursocom uma
determinada mensagem. A fala näo pode constituir, portanto, oobjecto único
de uma disciplina específica, mas encontra-se dispersa pordomínios diferen-
tes. Mesmo podendo ser descrita cientificamente, esta descriçäocabe a muitas
ciências, incluindo a acústica, a fisiologia, a sociologia e a históriadas
evoluçöes semânticas. O objectivismo de Saussure é, pois, incapazde conceber
a fala e, de forma mais geral, a prática, senäo como execuçäo noâmbito de
uma lógica que é a do código que está a ser utilizado.
Salilins parte destas premissas para defender que o sistema devestuário é
como a estrutura de uma língua. O esquema do vestuário é "umaespécie de
sintaxe geral", uma "gramática generativa" e um conjunto de"oposiçöes
semânticas". O esquema funciona como um conjunto de regraspara a declina-
çäo e a combinaçäo de classes de vestuário, de modo a cartografaro universo
cultural. Ao produzir-se vestuário de corte, desenho e cor distintos,torna-se
uma peça de roupa apropriada para homens ou mulheres, para anoite ou para
o dia, para andar por casa ou em público, para adultos ou paraadolescentes.
Aquilo que se produz säo classes de tempo e de lugar que indicamsituaçöes,
actividades e categorias de status, para as quais todas as pessoassäo remetidas.
Ao expor contrastes binários entre pesado/leve, áspero/suave,duro/macio,
47 Ver A. Martinet, Eléments de linguistique générale (Paris, 196,0).
qualquer peça de tecido se toma numa combinaçäo particular dequalidades
texturais. Aquilo que aqui se produz, é mais uma vez, um conjuntode propo-
siçöes respeitantes à idade, ao sexo, à actividade, à classe, aotempo e ao lugar.
Deste modo, um sistema de vestuário com regras de combinaçäocomparáveis
a uma sintaxe pode desenvolver uma série de proposiçöes, asquais constituem
outros tantos enunciados sobre as relaçöes entre as pessoas e assituaçöes, no
sistema cultural. Como materializaräo das coordenadas principais,da pessoa
e da ocasiäo, o vestuário torna-se um esquema complexo dascategorias
culturais e das relaçöes entre elas. O código é descodificável numrelance
porque funciona a um nível inconsciente, sendo a concepçäointegrada na
própria percepçäo visual.
Deveria reparar-se que a linguagem do vestuário é aqui descritaa partir do
ponto de vista daquele que vê, näo daquele que a usa. Näo podehaver qualquer
dúvida sobre a vantagem analítica que tal atitude proporciona. Ovestuário do
século XIX, por exemplo, oferece um óptimo campo de pesquisapara um
taxonomista em busca de oposiçöes binárias. As roupasinformavam o mundo
sobre o papel que as pessoas que as usavam deviam desempenhare lembravam
a estas as responsabilidades e constrangimentos do seu papel. Opapel dos
homens era serem sérios (usavam cores escuras, com poucosadornos), activos
(as roupas facilitavam-lhes o movimento), fortes (as roupasrealçavam o peito
e os ombros largos) e agressivos (as roupas tinham linhaspronunciadas e uma
silhueta claramente definida). O papel das mulheres era seremfrívolas (usa-
vam suaves cores pastel, fitas, rendas e laços), inactivas (as roupasinibiam o
movimento), delicadas (as roupas acentuavam as cinturas estreitase os ombros
inclinados) e submissas (as roupas eram constritivas). Mas agoramudemos a
perspectiva daquele que vê o vestuário para aquele que o usa. Ovestuário usado
pelas mulheres vitorianas näo se limitava a transmitir mensagensdescodificá-
veis, ajudava também a moldar o comportamento feminino. Asroupas eram
signos. Constrangiam também. "Ninguém senäo uma mulher",escrevia Mrs
Oliphant em 1879, "sabe como o vestido se enrola em volta dosjoelhos, duplica
a sua fadiga e prende as suas capacidades de 10COMOÇäo,,.48Saias e mangas
apertadas, crinolinas e caudas, saiotes até ao chäo - tudo isso lhesinibia a
capacidade de movimento. Mas nenhum estorvo era maisclaramente constri-
tivo do que o espartilho fortemente apertado, usado de forma quaseuniversal,
na Inglaterra e na América, durante o século XIX. Tanto os seusdefensores
como os seus opositores estavam de acordo sobre muitos dos seusefeitos. Os
48 Ver H. E. Roberts, "The Exquisite Slave: the Role of Clothes inthe Making of the Victorian
Woman", Signs, 2 (1977), pp. 554-69.
defensores do espartilho falavam em "disciplina", "submissäo","sujeiçäo" e
reclusäo'. O epíteto "espartilhada` sobrevive como lembrança deuma época
em que usar espartilho era um imperativo moral. Os opositores doespartilho
comparavam essa prática com o enfaixamento dos pés praticado naChina e
insistiam em que causava deformidade. Preocupavam-se com acompressäo
dos órgäos vitais na regiäo macia e sem ossos da cintura, adeslocaräo das
costelas e as queixas de fraqueza geral - debilidade, fadiga, baixavitalidade
- que era assim provocado. Tanto os opositores como os defensoresdo
espartilho estavam de acordo, num certo sentido: ele era concebidopara apertar
o diafragma e modificar a configuraçäo do corpo. O resultado, poroutras
palavras, começa a parecer-se bastante menos com a "oposiçäosemântica" de
Sahlins e bastante mais com "os hábitos de afecto e decomportamento" de
Oakeshott. Isto levanta toda a questäo do que queremos dizer,quando falamos
da constituiçäo de categorias sociais, ao pormos a descoberto oduplo signifi-
cado do termo "constituiçäo". Na verdade, o sistema de vestuáriovitoriano näo
só assinalava a existência de categorias de comportamento, masproduzia
também a existência dessas categorias de comportamento,mantendo-lhes uma
existência habitual ao moldar a configuraçäo e o movimento docorpo.
Existe, portanto, um paralelo surpreendente entre as linhas depesquisa
sugeridos por Sahlins e por Winch. Em ambos os casos a ideia dehábito foi
eliminada. Winch abandona o conceito de hábito a favor da ideia denorma
social, enquanto SaMins näo vê necessidade do conceito de hábitonuma
ciência dos signos cujo objectivo é descodificar uma estrutura depossibilida-
des gramaticais. O hábito ou é explicitamente abandonado, ouimplicitamente
ignorado. É explicitamente rejeitado numa forma de investigaçäoque separa
a norma da sua aplicaçäo. E é implicitamente rejeitado num métodode
pesquisa que separa o código da sua execuçäo. Mas é na vertenteexecutiva,
na vertente da aplicaçäo, que reside uma fraqueza destes modelos,pois, logo
que se desvia a atençäo da estrutura de uma língua para os usosque os agentes
fazem dela na prática, constata-se que o mero conhecimento dalíngua, um
conhecimento da norma ou do código, dá apenas um domínioimperfeito
daquelas práticas que foram classificadas sob os termos paralelosde aplicaçäo
e de execuçäo. Num tal quadro, quer seja o de uma língua, querseja o dos
conjuntos de práticas entendidos em analogia com a língua, näo seatribui
qualquer lugar, e logo qualquer significado, à prática cumulativa domesmo na
qual reside a destreza do hábito. Há, por assim dizer, um vazioentre os dois
termos que säo aqui empregues de forma análoga: um vazio entrenorma e
aplicaçäo e um vazio entre código e execuçäo. Este vazio deve serreclamado,
como irei sugerir, por uma teoria da prática usual e, portanto, damemória-há-
bito.
O objectivo, ao insistir-se na existência deste vazio, é mostrarque há
qualquer coisa que se pode distinguir como memória-hábito social,ficando
assim numa posiçäo que nos permite começar a olhar mais de pertopara a
forma como ela funciona. Os hábitos sociais, como tais, têm umsignificado
bastante distinto dos hábitos individuais. Näo faz parte do meuobjectivo, como
näo fazia das abordagens que Winch e Salílins representam, inquirirsobre o
funcionamento dos hábitos distintivamente individuais, visto que umhábito
individual apenas tem significado, para os outros, por estar baseadonas
expectativas convencionais dos outros no contexto de um sistemade signifi-
cados partilhados. Claro que um hábito puramente pessoal ouindividual, de
maior ou menor trivialidade, pode ser interpretado pelos outroscomo tendo
significado. Um indivíduo pode ter o hábito de garatujar durante aspalestras
e os outros podem interpretar esse comportamento comosignificativo, quer
considerando-o sintomático, mas näo intencional, do temperamentode uma
pessoa, quer pensando que transmite intencionalmente o facto de oespírito
desse indivíduo näo estar totalmente ocupado pelo objectoostensivo da aten-
çäo de toda a gente. Mas isto näo satisfaz o critério de um hábitosocial, pois
o significado de um hábito social baseia-se nas expectativasconvencionais dos
outros de forma a ser interpretável como uma performancesocialmente legí-
tima (ou ilegítima). Os hábitos sociais säo essencialmenteperformances legi-
timadoras. E se a memória-hábito é inerentemente performativa,entäo a
memória-hábito social deve ser socialmente performativa num planoespecífi-
co.
Se passarmos em revista os três tipos de memória que distingui- pessoal,
cognitiva e memória-hábito - descobrimos que cada um deles temsido
estudado, ou pode ser estudado, de modo a elucidar a natureza deum tipo
particular de esquecimento por parte da pessoa cuja capacidade derecordar
está a ser investigado, sendo a natureza do esquecimento própriado tipo de
domínio da memória evocada em cada caso.
A memória pessoal tem sido estudada pelos psicanalistas comoparte das
suas investigaçöes sobre as histórias de vida individuais. Uma falhade memó-
ria significativa, neste caso, levaria à incapacidade dos pacientesrecordarem
o protótipo das suas acçöes presentes em situaçöes em que secolocam de forma
deliberada, mas inconsciente, em circunstâncias penosas e, dessaforma, repe-
tem ou representam compulsivamente uma experiência anterior ecausalmente
determinante.
A memófia cogríffiva tem sano estudada pelos psicólogosenc@uanto compo-
nente de uma investigaçäo sobre as faculdades mentais universais.Uma falha
de memória significativa, neste caso, quer fosse de tipo patológico,quer
normal, levaria à incapacidade dos pacientes adoptarem umesquema ou
princípio de classificaçäo, ou à aplicaçäo errada desse esquema ouclassifica-
çäo em situaçöes particulares.
&fas que espécie de esquecimento implicaria a perda de urnamem6ría-flä-
bito social? A forma como a maioria dos adeptos doconvencionalismo con-
Cem p uräac<y re5
psicanalistas se têm interessado explicitamente pelas maneirascomo os sujei-
tos esquecem situaçöes prototípicas nas suas histórias de vida, eos psicólogos
se têm interessado explicitamente pelas formas como os sujeitos seesquecem
de empregar, ou empregam erradamente, um esquema oucategoria, os adeptos
do MN?MUMY1snio n@o se têm 'interessado explicitamente pelosactos de
recordaçäo ou de esquecimento enquanto tais. Porém, umaperspectiva con-
vencionalista implica necessariamente uma abordagem doesquecimento e
aquilo que tem sido normalmente sugerido é que nos encontramosperante uma
forma de memória cognitiva. Quer dizer, a partir do acto de aplicar anorma
ou código, ou a partir do fracasso na sua aplicaçäo, inferimos queuma norma
ou código particulares foram lembrados ou esquecidos. Quero,contudo, sus-
ten tar y u e, pal,7 djy"
",@M2k919U1ff,1,Cöis'a envolvida, e que se tratade
uma forma diferente de recordaçäo. A memória-hábito - maisprecisamente,
a memória-hábito social - do sujeito näo é idêntica à sua memóriacognitiva
de normas e de códigos. E também näo se trata, pura esimplesmente, de um
aspecto adicional ou suplementar. É um ingrediente essencial parao desempe-
nho bem-sucedido e convincente dos códigos e normas.
6
O único cientista social que näo só reconheceu a importância damemória
social, como dedicou também uma atençäo constante e sistemáticaàs formas
pelas quais a memória é socialmente construido, foi MauriceHalbwachs,
particularmente nos seus dois importantes trabalhos Les castressociaux de la
4@
mémoire e La mémoire collective. Neles defendia que é através dapertença
49 Ver M. Halbwachs, Les cadres sociaux de Ia mémoire (Paris,1925); Halbwachs, La mémoire
collective (Paris, 1950); ver também, do mesmo autor, Latopographie légendaíre des
évangiles en cerre sainte: Étude de mémoire collective (Paris,1941); "La mérnoire collective
a um grupo social - nomeadamente o parentesco, as filiaçöes declasse e de
religiäo - que os indivíduos säo capazes de adquirir, localizar eevocar as suas
memórias.
Devíamos tentar a experiência, sugeria, de passarmos emrevista a quanti-
dade de recordaçöes que lembramos, ou nos säo lembradas,durante um dia
pelas nossas relaçöes directas ou indirectas com as outraspessoas. Repararía-
mos entäo que, muito vulgarmente, apelamos à nossa memóriapara respon-
dermos às questöes que os outros nos colocam, ou queimaginamos que eles
nos podem colocar, e, para lhes respondermos, vêrno-nos a nóspróprios como
fazendo parte do mesmo grupo, ou grupos, que eles. Comfrequência, se eu me
lembro de alguma coisa é porque os outros me incitam a lembrá-la,porque a
memória deles vem em auxílio da minha e a minha encontra apoiona deles.
Toda a recordaçäo, por muito pessoal que possa ser, mesmo arecordaçäo de
acontecimentos que só nós presenciámos, ou a de pensamentos esentimentos
que ficaram por exprimir, existe em relaçäo com todo um conjuntode ideias
que muitos outros possuem: com pessoas, lugares, datas, palavras,formas de
linguagem, isto é, com toda a vida material e moral das sociedadesde que
fazemos parte, ou das quais fizemos parte.
Isto aplica-se, diz Halbwachs, tanto às memórias recentes comoàs distantes,
pois aquilo que une as memórias recentes näo é o facto de seremcontíguas no
tempo, mas antes o fazerem parte de um conjunto de pensamentoscomuns a
um grupo, aos grupos com os quais nos relacionamos, actualmente,ou com os
quais tivemos alguma ligaçäo, no passado recente. Quandoqueremos evocar
essas memórias basta-nos dirigir a nossa atençäo para osinteresses prevale-
centes do grupo e seguir o curso da reflexäo que lhe é habitual.Omesmo se
aplica, exactamente, quando queremos recordar memórias maisdistantes. Para
evocar essas memórias é suficiente, mais uma vez, orientarmos anossa atençäo
para as recordaçöes que ocupam um lugar principal nospensamentos do grupo.
Näo há diferença, a este respeito, entre as memórias recentes e asdistantes.
Está täo fora de questäo falar-se de uma associaçäo porsemelhança no caso
das memórias distantes, como falar de uma associaçäo porcontiguidade no
caso das memórias recentes, visto que a associaçäo que permite aretençäo na
memória näo é tanto de parecença ou de contiguidade, como deuma comuni-
dade de interesses e de pensamentos. Näo é por os pensamentosserem
semelhantes que os podemos evocar. É, antes, por o mesmo grupoestar
interessado nessas memórias, e ser capaz de as evocar, que elasse conjugam
nos nossos espíritos.
chez les musiciens% Revue Philosophique, 127 (1939), pp. 136-65.
Os grupos dotam os indivíduos de quadros mentais no interiordos quais as
suas memórias se localizam, e as memórias säo localizadas poruma espécie
de cartografia. Situamos aquilo que recordamos no interior dosespaços men-
tais que o grupo fornece. Mas estes espaços mentais, insistiaHalbwachs,
recebem sempre apoio dos espaços materiais que os grupossociais específicos
ocupam, e reportam-se a esses espaços. Halbwachs citava aobservaçäo de
Corate de que o nosso equilíbrio mental é, primeiro e antes do mais,devido ao
facto de os objectos físicos com os quais estamos em contactodiário mudarem
pouco, ou nada, proporcionando-nos, assim, uma imagem depermanência e
de estabilidade. E prosseguia demonstrando como nenhumamemória colectiva
pode existir sem referência a um quadro espacial socialmenteespecífico. Isto
quer dizer que as nossas imagens dos espaços sociais, devido àsua estabilidade
relativa, däo-nos a ilusäo de näo mudarem e de redescobrirem opassado no
presente. Conservamos as nossas recordaçöes através dareferência ao meio
material que nos cerca. É para os nossos espaços sociais - aquelesque
ocupamos, aqueles que frequentemente retraçamos com os nossospassos, a
que temos sempre acesso e que, a todo o momento, somoscapazes de recons-
truir mentalmente - que devemos voltar a nossa atençäo, sequeremos que as
nossas recordaçöes ressurjam. As nossas memórias estäolocalizadas no inte-
rior dos espaços materiais e mentais do grupo.
Deste modo, Halbwachs rejeitava explicitamente a separaçäodas duas
questöes: Como é que o indivíduo preserva e redescobre asmemórias? Como
é que as sociedades preservam e redescobrem as memórias? Comuma lucidez
exemplar demonstrou que a ideia de uma memória individual,separada em
absoluto da memória social, é uma abstracçäo quase destituída desentido.
Mostrou como segmentos sociais diferentes, cada qual com umpassado
diferente, teräo memórias diferentes, ligadas aos diferentes pontosmentais de
referência característicos do grupo em questäo. E assinala, parailustrar a sua
tese geral, os casos particulares de memória que operam no interiordos grupos
de parentesco, dos grupos religiosos e das classes. Todavia,Halbwachs,
embora destacasse nas suas pesquisas a ideia de memóriacolectiva, näo via
que as imagens do passado e o conhecimento recordado dopassado säo
transmitidos e conservados por performances (mais ou menos)rituais.
Se seguirmos o fio da argumentaçäo de Halbwachs somosinevitavelmente
conduzidos à seguinte questäo: dado que grupos diferentes têmmemórias
diferentes, que lhes säo próprias, como é que essas memóriascolectivas säo
transmitidas, no interior do mesmo grupo social, de uma geraçäopara a outra?
Halbwachs pouco mais faz do que sugerir respostas para estapergunta,
circunscrevendo-se, no essencial, a sugestöes que säosimultaneamente redu-
toras e antropomórficas. Afirma, assim, que `a sociedade tende aeliminar da
50
sua memória tudo o que possa desunir os indivíduos" ou que,em certos
momentos, "a sociedade é obrigada a ligar-se a novos valores, istoé, a confiar
noutras tradiçöes que estäo mais de acordo com as suasnecessidades e
tendências actuais" . 51 Tais formulaçöes, coexistindo de forma täoincongruente
com a exactidäo e clareza das suas muitas percepçöes sagazes,derivam
evidentemente de certos hábitos de linguagem e de método, emparticular de
um vocabulário durkheimiano caracterizado pelo emprego, com oepíteto
"colectivo", de termos pedidos de empréstimo à psicologiaindividual. Isto näo
é um defeito ou lacuna menor, pois para dizermos que um gruposocial, cuja
duraçäo excede o tempo de vida de qualquer indivíduo, é capaz de"recordar"
em conjunto, näo basta que os vários membros que compöem essegrupo, num
dado momento, sejam capazes de reter as representaçöes mentaisque dizem
respeito ao passado do grupo. É necessário também que osmembros mais
velhos do grupo näo negligenciem a transmissäo dessasrepresentaçöes aos
membros mais jovens. Se queremos continuar a falar, seguindoHalbwachs, de
memória colectiva, devemos reconhecer que muito daquilo que estáa ser
subsurnido sob esse termo se refere, muito simplesmente, a factosde comuni-
caçäo entre indivíduos. Pode, na verdade, inferir-se daquilo queHalbwachs
diz que os membros de diferentes grupos sociais comunicam defacto uns com
os outros, no interior do grupo, de formas que säo característicasdesse grupo
em particular, mas é uma questäo de inferência, porque ele näo nosdeixa
nenhuma indicaçäo explícita de que os grupos sociais säoconstituídos por um
sistema, ou sistemas, de comunicaçäo.
Esta dificuldade pode ser ilustrada por um exemplo que o próprioHalb-
wachs cita. Ao debater a memória familiar refere brevemente opapel dos avós.
"É de forma fragmentária", escreve, "e, por assim dizer, através dosinterstícios
52
da família actual, que eles comunicam as suas próprias memoriasaos netos" .
Mas como é que devemos pensar esses "interstícios"? Aquilo queesta obser-
vaçäo demonstra é uma incapacidade para apontar com precisäoos actos
característicos da transferência e, desse modo, contextualizarcorrectamente
as formas pelas quais as memórias dos avós, como grupo social,säo transfe-
ridas para os netos, como grupo social. Esta é uma insuficiêncianos termos da
sua própria pesquisa e, na medida em que é também umainsuficiência geral,
vale a pena ir mais longe.
50 M. Halbwachs, Les castres sociaux de la mémoire (Paris, 1925),p. 392.
51 Ibidem, p. 358.
52 Ibidem, pp. 233-4.
Marc Bloch chamou a atençäo para o facto de nas antigassociedades rurais,
antes do aparecimento do jornal, da escola primária e do serviçomilitar, a
educaçäo da uraçäo mais jovem estar geralmente a cargo dageraçäo mais
velha. 93 Em tais sociedades aldeäs, dado as condiçöes detrabalho manterem a
mäe e o pai afastados quase todo o dia, especialmente durante operíodo do
Veräo, as crianças pequenas eram criadas principalmente pelosavós. Por isso,
era a partir dos membros mais velhos da família, tanto se näo maisque dos
seus próprios pais, que a memória do grupo lhes era transmitida.Este processo
iniciava-se muito cedo na vida da criança. Após a primeira fase dainfância,
dominada pelo aleitamento e pela relaçäo com a mäe, a criançajuntava-se ao
grupo de parentes e de outras crianças que viviam na casa familiare, a partir
desta altura, a sua educaçäo era, a maior parte das vezes,supervisionada pela
avó. Até à introduçäo das primeiras máquinas, a avó era a senhorada casa, era
ela quem preparava as refeiçöes e quem se ocupava, sózinha, dascrianças. Era
tarefa sua ensinar a linguagem do grupo. Quando os gregos antigoschamavam
às histórias "geroia", quando Cícero lhes chamava 'Tabulae aniles"e quando
a gravura que ilustrava os Contes de Perrault representava umavelha a contar
uma história a um círculo de crianças, eles limitavam-se a registaraté que ponto
a avó se encarregava da actividade narrativa do grupo. Num talcontexto, näo
deveríamos encarar a comunicaçäo entre as geraçöes como sendoconduzido,
por assim dizer, em "fila indiana", com as crianças a terem contactocom os
seus antepassados apenas através da mediaçäo dos pais. Pelocontrário, com a
moldagem de cada novo espírito dá-se, ao mesmo tempo, unipasso atrás,
unindo a mentalidade mais maleável à mais inflexível, saltando ageraçäo que
poderia patrocinar a mudança. E esta forma de transmitir amemória, sugere
Bloch, deve ter contribuído seguramente, em grau muitosubstancial, para o
54
tradicionalismo inerente a tantas sociedades camponesas.
O meu propósito ao focar este exemplo, em particular, é salientaro facto de
que estudar a formaçäo social da memória é estudar os actos detransferência
que tornam possível recordar em conjunto. Tenciono isolar econsiderar com
mais pormenor certos actos de transferência que se encontramtanto nas
sociedades tradicionais como nas modernas. Ao fazê-lo, desejosalientar certos
tipos particulares de repetiçäo. Enquanto algumas tendênciasdominantes na
53 Ver M. Bloch, The Historian's Craft (tr. R. Putriam, Manchester,1954), pp. 40-1; para uma
11
recensäo de Halbwachs (1925) ver M. Bloch, lIMérnoirecollective, tradition et coutume ,
Reme de Synthèse Historique, 40 (1925), pp. 73-83-
54 Para comentários corroborativos desta sugestäo, com particularreferência ao papel das avós
nas sociedades tradicionais, ver D. Fabre e J. Lacroix, La Traditionorale du conte occitan
(Paris, 1974), volume 1, especialmente as pp. 111-15-
teoria social contemporânea säo muitas vezes criticados por näotratarem, ou
tratarem de forma inadequada, a mudança social, eu procurareifocar de que
modo essas teorias säo muitas vezes deficientes por näo seremcapazes de tratar
de forma adequada a permanência social. Foi com este fim quedestaquei, como
actos de transferência de importância crucial, as cerimôniascomemorativas e
as práticas corporais. Como vimos, estes näo säo de forma algumaos únicos
componentes da memória comunal, pois a produçäo de históriasnarrativas
contadas informalmente é näo só uma actividade básica para anossa caracte-
rizaçäo quotidiana das acçöes humanas, mas também umacaracterística de
toda a memória social. Abordei, contudo, as cerimôniascomemorativas e as
práticas corporais em particular, porque é o estudo destas, segundopretendo
provar, que nos permite ver que as imagens do passado e oconhecimento
recordado do passado säo transmitidos e conservados porperformances (mais
ou menos) rituais.
CAPíTULO II
Cerimônias comemorativas
Entre a tomada do poder, em Janeiro de 1933, e a deflagraçäo daguerra, em
Setembro de 1939, os súbditos do Terceiro Reich foramconstantemente
lembrados do Partido Nacional Socialista e da sua ideologia poruma série de
cerimônias comemorativas. O número, a sequência e a estruturaperformativa
destes festivais assumiram rapidamente uma forma canónica emantiveram
essa forma até ao desaparecimento do Terceiro Reich. O impactedesta sequên-
cia canónica recém-inventada invadiu todas as esferas da vida,relacionando-se
os festivais do Reich com as festas do calendário cristäo de formamuito
parecida àquela como este último fora relacionado com ascelebraçöes sazonais
da era pagä. A liturgia calendarizada do Partido Nacional Socialistaera
regulamentada e total.'
O ano litúrgico começava a 30 de Janeiro, com o aniversário datomada de
poder por Hitler, em 1933. Todos os anos, nesse dia, o discurso deHitler ao
Reichstag, transmitido pela rádio, presenteava `a Naçäo" com umarelaçäo
daquilo que fizera com o poder que lhe havia sido confiado. Aprocissäo dos
archotes do dia 30 de Janeiro de 1933 repetia-se anualmente,terminando o dia
com uma cerimônia, difundida pela rádio em todas as esquinas, naqual os
jovens de 18 anos, que tivessem demonstrado qualidades deliderança na
Juventude Hitleriana, prestavam juramento como membrosefectivos do Par-
tido. Todos os anos, no dia 24 de Fevereiro, uma cerimôniaexclusivamente
para a "velha guarda" comemorava a fundaçäo do Partido, o"anúncio" do
programa "imutável" em 25 pontos, na Hofbräuhaus, em 1920. O 16de Março
era um dia de luto nacional, adoptado da República de Weimar ededicado à
1 SobreosrituaisNacional-Socialistas,verH.T.Barden,TheNurembergPartyRallies,1929-39
(Londres, 1967); J. P. Stern, Hitler: The Führer and the People(Londres, 1975); K. Vondung,
Magie und Manipulation, Ideologischer Kult undpolitische Refigiondes Nationalsozialismus
(Gottingen, 1971).
49
memória dos mortos da Grande Guerra. No último domingo de cadamês de
Março, os jovens de 14 anos aderiam à Juventude Hitleriana numrito de
passagem cujo centro, numa analogia clara com a profissäo de féem Cristo do
Crisma, era o juramento de fidelidade ao Führer. O aniversário doFührer, a 20
de Abril, era celebrado com uma parada da Welirmacht na porta deBrandebur-
go. O festival nacional do povo germânico, que se realizava a 1 deMaio, sendo
originariamente uma festa dos trabalhadores, foi despojado dassuas implica-
çöes internacionalistas e reinterpretado como uma celebraçäo daVolksge-
meinschaft germânica. A 21 de Junho, o soIstício de Veräo eracelebrado com
paradas das SS e da Juventude Hitleriana. No princípio deSetembro, o Partido
exibia o seu poder no Reich sparteitag. De 1927 a 1938, estecomício, que
durava uma semana, teve lugar em Nuremberga, reunindo meiomilhäo de
participantes, em média, e atingindo um recorde de 950 mil em1938. No início
de Outubro, a antiga tradiçäo do Festival das Colheitas foitransformada num
Festival Nacional-Socialista do campesinato alemäo.
Nenhum festival estava dotado de uma força de culto maispoderosa do que
aquele que comemorava o Putsch, o "baptismo de sangue" de1923. O seu tema
era o sacrifício, a luta e a vitória final dos "antigos combatentes" doNacional-
-Socialismo. Os sobreviventes do Putsch, condecorados com a"Ordem do
Sangue", encontravam-se para a reuniäo tradicional naBurgerbraukeller de
Munique, no dia 8 de Novembro, para ali ouvirem a alocuçäocomemorativa
de Hitler dedicada aos `dezasseis mártires do movimento Nacional-Socialista".
No dia seguinte, os "antigos combatentes" marchavam doBurgerbraukeller
para o Feldhermhale, repetindo ritualmente a marcha de 1923, aolongo de um
caminho assinalado por archotes a arder, acompanhados de umamúsica
fúnebre, do dobre dos sinos e da recitaçäo lenta dos nomes detodos os que
haviam sido mortos, desde 1919, ao serviço do Partido. Estascerimônias
atingiram o aparato máximo em 1935. Nesse ano, os cadáveresexumados das
dezasseis "testernunhas de sangue" foram colocados noFelherrnhalle, na
véspera do dia das comemoraçöes, e transferidos, a 9 deNovembro, em
procissäo solene, para o recém-construído Ehrentempel, naKonigplatz. O
caminho era assinalado por duzentas e quarenta colunas, cada umadelas com
o nome de um dos "caídos pelo movimento". A medida que acabeça da
procissäo passava por cada coluna, o nome de um dos mortos eraproclamado.
Quando a procissäo chegou ao Feldhermhalle soaram dezasseistiros de
canhäo, um por cada um dos dezasseis caídos de 1923. Enquantoos caixöes
eram colocados em carruagens para serem transportados para oEhrentempel,
Hitler depôs uma coroa de flores no monumento aos mortos. NoEhrentempel,
os nomes das dezasseis "testernunhas de sangue" foram evocados,um por um,
e o coro da Juventude Hitleriana respondeu à chamada de cadanome com o
grito "Presente!". Após cada grito soaram três tiros em saudaçäo.Esta come-
moraçäo era uma representaçäo pagä da Paixäo, apresentada numvocabulário
pedido de empréstimo à religiäo.
A narrativa relata acontecimentos históricos - masacontecimentos histó-
ricos transfigurados pela mitificaçäo que os transformou emsubstâncias inal-
teráveis e imutáveis. O conteúdo dos mitos é representado comonäo estando
sujeito a qualquer espécie de mudança. O mito ensina que ahistória näo é um
jogo de forças contingentes. As constantes fundamentais säo a luta,o sacrifício
e a vitória. As virtudes cardeais do Nacional-Socialismoconsubstanciadas, por
assim dizer, nas dezasseis "testemunhas de sangue", säo aobediência incondi-
cional, a confiança absoluta e a preparaçäo para o sacrifício até àmorte. O
fiasco político de 1923 näo é, deste modo, reinterpretado erepresentado nem
como uma derrota, nem como fútil e sem sentido. O destino mortaldaqueles
que nele tombaram deve ser interpretado näo como uma morte semsentido,
mas como uma morte sacrificial. Deve ser entendido como umacontecimento
sagrado, que aponta em frente, para um outro acontecimentosagrado, o de 30
de Janeiro de 1933, pois a tomada do poder näo é interpretadacomo um mero
êxito político, tal como o putsch de 1923 näo o é como um merofracasso
político. Nenhum deles pertence à esfera das coisas mundanas. Oacontecimen-
to "sagrado" do putsch prefigurava a vitória, enquanto oacontecimento Na-
grado" da tomada do poder dava, por fim, forma real ao conteúdoda revelaçäo,
o "Reich". Entre os dois acontecimentos estabeleceu-se umaconcordância
mítica. A data crucial recorrente desta narrativa mítica é o 9 deNovembro.
Esta narrativa era mais do que o contar de uma história, era umculto
encenado. Era um rito estabelecido e representado. A sua histórianäo era
inequivocamente contada no pretérito, mas no tempo de umpresente metafi-
sico. Subestimaríamos o poder comemorativo do rito,minimizaríamos o seu
poder mnemónico, se disséssemos que ele recordavaacontecimentos míticos
aos participantes. Deveríamos antes dizer que o acontecimentosagrado de
1923 era re-apresentado; os que participavam no rito davam-lheuma forma
cerimonialmente corporizada. A realidade transfigurada do mito erare-apre-
sentada uma e outra vez, quando aqueles que tomavam parte noculto se
tornavam, por assim dizer, contemporâneos do acontecimentomítico. Todos
os anos, a marcha histórica de 1923 repetia-se. Todos os anos,soavam os
dezasseis tiros, repetindo os dezasseis disparos mortais de 1923.Todos os anos,
as bandeiras eram agitadas, näo como símbolos que sereportassem a um
acontecimento acabado, mas como relíquias consubstanciais dessemesmo
acontecimento. Acima de tudo, era através de actos representadosnum lugar
sagrado que a ilusäo do tempo mundano era suspensa. NoFeldherrnhalle
dava-se, todos os anos, uma forma presente à estrutura mítica.Neste local a
diferença temporal era negada e a existência da mesma realidade,"verdadeira"
e "autêntica", anualmente desvendada.
O regime Nacional-Socialista era recente e as suas cerimôniasrecém-inven-
tadas, apesar de adoptarem deliberadamente alguns componentescristäos -
de calendário e de carácter intrínseco - da mesma maneira que ascerimônias
cristäs primitivas adoptaram alguns elementos pagäos. Assim, oNazi estava
para o Cristäo como o Cristäo estava para o pagäo. Há uma traditiogermânica
muito antiga - assim identificado - e esta tem sido em parte mantidaem
funcionamento.
2
Acontecimentos da natureza dos que foram atrás referendadosfazem parte,
claramente, de um fenômeno mais vasto, o da acçäo ritual. Existeum desacor-
do substancial quanto à forma como a palavra ritual deveria serutilizada, mas
considero que uma das definiçöes mais sucintas e funcionais ànossa disposiçäo
é aquela que Lukes propöe, sugerindo que empreguemos o termoritual para
designar "a actividade orientada por normas, com caráctersimbólico, que
chama a atençäo dos seus participantes para objectos depensamento e de
sentimento que estes pensam ter um significado especiaP. Aspremissas
contidas nesta definiçäo podem ser reveladas através de trêsproposiçöes
interligadas, cada uma das quais se pode enunciar mais facilmentesob uma
forma negativa.
Os ritos näo säo meramente expressivos. É verdade que säoactos com mais
de expressivo do que de instrumental, no sentido em que ou näosäo dirigidos
para um fim específico, ou, se o säo, como no caso dos ritos defertilidade, näo
conseguem alcançar o seu objectivo estratégico. Mas os ritos sósäo actos
expressivos em virtude da sua regularidade notória. Säo actosformalizados e
tendem a ser estilizados, estereotipados e repetitivos. Dado seremdeliberada-
mente estilizados, näo estäo sujeitos à variaçäo espontânea, ou,pelo menos,
só säo susceptíveis de variaçäo dentro de estritos limites. Näo serealizam sob
uma compulsäo interior momentânea, mas säo deliberadamentecelebrados
2 S. Lukes, "Political Ritual and Social Integration", Sociology, 9(1975), pp. 289-308,
especialmente a p. 291.
para simbolizar sentimentos. Libertam, na verdade, sentimentosexpressivos,
mas este näo é o seu objectivo central.
Os ritos näo säo meramente algo de formal. Exprimimosvulgarmente a
nossa percepçäo do seu formalismo falando de tais actos como"meramente"
rituais, ou como formas "vazias", e pomo-los frequentemente emcontraste com
actos e declaraçöes às quais nos referimos como Ninceras" ou"autênticas".
Mas isto é enganador, pois aqueles que celebram os ritos sentemque estes säo
obrigatórios, mesmo que näo incondicionalmente, sendo ainterferência com
actos dotados de valor ritual sempre sentida como uma injúriaintolerável
infligida por uma pessoa, ou grupo, a outro. Podemos achar que ascrenças que
outra pessoa qualquer considera sagradas säo puramentefantásticas, mas
nunca pode pedir-se de ânimo leve que a sua expressäo efectivaseja violada.
E, inversamente, as pessoas resistem à obrigaçäo de fazer louvoresa um
conjunto de ritos alheios, incompatíveis com a sua própria visäo da"verdade",
porque encenar um rito é sempre, num certo sentido, estar deacordo com o
seu significado. Obrigar os patriotas a insultar a sua bandeira, ouforçar os
pagäos a receber o baptismo, é violentá-los.
O efeito dos ritos näo está limitado à cerimônia ritual. É verdadeque os
rituais tendem a realizar-se em lugares especiais, em datasestabelecidos. E é
um facto que muitos ritos assinalam momentos de início e termo,tanto em
cerimônias nas alturas críticas da vida dos indivíduos - por exemploo
nascimento, a puberdade, o casamento e a morte - como tambémnas cerimó-
nias recorrentes do calendário. Mas o que quer que os ritosdemonstrem,
impregna também o comportamento e a mentalidade näo rituais.Embora
delimitados no tempo e no espaço, os ritos säo também, por assimdizer,
porosos. Considera-se que fazem sentido, porque têm significadorelativa-
mente a um conjunto de outras acçöes näo-rituais, para toda a vidade uma
comunidade. Os ritos têm a capacidade de conferir valor e sentido àvida
3
daqueles que os executam.
Todos os ritos säo repetitivos e a repetiçäo subentende,automaticamente, a
continuidade com o passado. Mas existe uma classe distintiva deritos que têm
um carácter calendarizado explicitamente virado para o passado.Os festivais
nacional-socialistas pertencem a este tipo. É fácil pensar em maisexemplos.
Assim, em muitas culturas, os festivais säo realizados como acomemoraçäo
de mitos que lhes estäo associados e como a recordaçäo de umacontecimento
3 Sobre os ritos terem significado para além da ocasiäo em que säopraticados, ver C. Geertz,
"Religion as a Cultural System", in D. Cutler (ed.), The ReligiousSituation (Nova lorque,
1968), pp. 639-87.
que se pensa ter tido lugar numa data histórica determinada, ounum qualquer
passado mítico; existem cerimoniais recorrentes no calendário,como o Dia de
Ano Novo e os aniversários; as festas dos santos cristäoscomemoram-se em
certos dias do ano; no Cenotáfio, celebram-se cerimônias derecordaçäo; as
bandeiras säo colocadas a meia-haste; pöem-se flores nassepulturas; e exis-
tem, actualmente, mais de uma centena de embaixadas, em todasas capitais
mundiais mais importantes, cada uma com, pelo menos, umacelebraçäo
nacional para a qual os funcionários devem ser convidados, todosos anos.
Algumas destas comemoraçöes säo celebradas de bom-grado,outras säo um
fardo e outras näo provocam mais do que um bocejomoderadamente emocio-
nado. Mas a característica que todas têm em comum, e que asafasta da
categoria mais geral dos ritos, é que näo implicam apenas acontinuidade com
o passado, mas reivindicam explicitamente essa mesmacontinuidade. E muitas
delas, nas quais desejo agora fixar a atençäo, fazem-no através dareencenaçäo
ritual de uma narrativa de acontecimentos que se julga terem tidolugar num
tempo passado, de modo suficientemente elaborado para incluírema perfo-
mance de sequências mais ou menos invariáveis de actos edeclaraçöes for-
mais.
Em nenhum outro domínio é esta pretensäo, de comemorar umasérie
anterior de acontecimentos fundadores sob a forma de um rito, maisampla-
mente expressa do que nas grandes religiöes mundiais. Uma talpretensäo está
nelas constantemente presente .
A essência da identidade judaica é estabelecido pela referência auma
sucessäo de acontecimentos históricos. Os dois livros maispopulares na vida
judaica, o Antigo Testamento e o livro judaico de oraçöes, narram ecelebram
esta sucessäo. O Antigo Testamento e, em particular, os seus livroshistóricos,
revela uma identidade constituída pelas etapas de uma narrativahistórica: a
vida de Abraäo e a sua migraçäo para o Egipto, o êxodo das tribosjudaicas do
Egipto, a revelaçäo da Lei no Monte Sinai, a entrada dos judeus naTerra
Prometida e as aventuras subsequentes sob o domínio dos juízes edos reis. O
livro de oraçöes, tal como o Antigo Testamento, exprime os ideaisreligiosos
e éticos do Judaísmo e reflecte, simultaneamente, a vida do judeuenquanto
membro de um grupo histórico particular. Embora os seuselementos básicos
permanecem idênticos através da Diáspora, os pormenores do livrode oraçöes
trazem, em quase todos os países, a marca das condiçöes locais aque a
comunidade judaica está sujeita. Tanto no Antigo Testamento comono livro
de oraçöes, a "recordaçäo" torna-se um termo técnico através doqual se dá
expressäo ao processo pelo qual os judeus praticantes lembram erecuperam,
na sua vida presente, os principais acontecimentos formativos dahistória da
sua comunidade. Em nenhum outro lugar esta teologia da memóriaé mais
pronunciada do que no Deuterónimo. Aprova de que a novageraçäo de Israel
permanece ligada à tradiçäo mosaica, que o Israel do presente näofoi separado
da sua história redentora, reside numa forma de vida em querecordar é tornar
o passado presente, é formar uma solidariedade com osantepassados. Essa
prova deverá ser feita nas demonstraçöes do culto. Israel celebra osfestivais
para recordar. O que se recorda é a narrativa histórica de umacomunidade. A
Páscoa, um dos festivais mais importantes do ano judaico, éexplicitamente
histórica, lembrando todos os anos ao povo o acontecimento centralda antiga
história judaica, o êxodo do Egipto tal como é contado no Exodus12. O Seder
(a ceia ritual da Páscoa judaica) recorda anualmente aos judeuspraticantes o
momento mais formativo na vida da sua comunidade, o momentoem que essa
comunidade foi redimida do cativeiro e transformada num povo livre,e
lembra-lhes esse momento sob a forma de uma celebraçäodoméstica, na qual
uma parte proeminente do culto cabe a criança. As geraçöespermanecem
unidas na história através do culto. Também aos festivais dascolheitas de
Shevuoth e Sukkoth tem sido dada uma referência histórica: oprimeiro
comemora a revelaçäo da Lei, no Monte Sinai, e o segundo aludeao êxodo.
Dois festivais menores säo explicitamente históricos, mantendopresentes
acontecimentos relembrados anualmente: o Purim, que comemoraos aconte-
cimentos narrados no Livro de Ester e o Hanukka, que celebra ahistória da
purificaçäo do Templo. O próprio Sabbath é apresentado, noPentateuco, em
termos parcialmente históricos, como comemoraçäo tanto dacriaçäo do mundo
como do êxodo. Ao conservar o Sabbath sagrado, Israel recorda eparticipa na
4
história redentora da sua comunidade.
O Cristianismo ermanece vinculado à sua origem históricaprópria. Tem a
p
sua origem num momento histórico definido e em todas as ocasiöessub-
sequentes da sua história reporta-se explícita e elaboradamente aesse momen-
to. O Cristianismo inicia-se com uma sucessäo única deacontecimentos na
história e, sobretudo, com o acontecimento central da crucificaçäo.Näo há
dúvidas de relevo acerca da historicidade da crucificaçäo e da dataem que ela
teve 1 ugar. O Cristianismo näo é, portanto, nem a exposiçäo deuma doutrina
4 Sobre a liturgia judaica, ver B. S. Childs, Memory and Traditionin Israel (Londres, 1962); 1.
Elbogen, Der jüdische Gottesdienst in seiner geschichtfichenEntWick1ung (Hildesheim,
1962); N.N. Glatzer (ed.), ThePassoverHaggadah (Novalorque,1969); A. Z. Idelson,Jewish
LiturgyanditsDevelopment(Nova lorque, 1967); B.Lmis^story:Remembered, Recorded,
Invented (Princeton, 1975), pp. 47-48; S. Mowinckel, Religionund Kultus (Göttingen, 1953);
J. Pederson, Israel, its Life and Culture (Oxford, 1940); J.Petuchowski, Contributions to the
Scientific Study of the Jewish Liturgy (Nova lorque, 1970).
abstracta, nem a recapitulaçäo de um mito. Ensina que a revelaçäodivina
assumiu uma forma histórica, que Deus interveio na história dahumanidade e
que a vocaçäo do cristäo é recordar e comemorar a história dessaintervençäo.
O período de tempo evocado pelos Evangelhos e recordado naliturgia näo é,
como nas religiöes arcaicas, um tempo mítico, näo se devendopensar nos
acontecimentos recapitulados anualmente, no calendário sagrado,como acon-
tecimentos que ocorreram `no início", "in illo tempore". Osacontecimentos
tiveram lugar numa história datável e num período históricoclaramente defi-
nido, o período em que Pôncio Pilatos era governador da Judeia.Esses
acontecimentos e esse período säo comemorados anualmente nasfestas da
Sexta-feira Santa e da Páscoa. Todo o ano cristäo se articula emredor deste
período pascal, que recapitula e reencena, na sequência dascerimônias e no
conteúdo das oraçöes, as várias etapas da Paixäo. Há umaperiodicidade
semanal incluída neste ciclo anual, pois a Missa, na qual os fiéisparticipam,
comemora, todos os Domingos, a última Ceia. Na verdade, näoexiste oraçäo,
nem acto de devoçäo, que näo tome como referência, directa ouindirectamen-
te, o Cristo histórico. A narrativa histórica chega aos pormenoresmais dimi-
nutos. O facto da crucificaçäo encontra-se simbolizado em cadasinal da cruz:
este é, em si próprio, uma comemoraçäo condensada, umanarrativa consubs-
tanciada, uma evocaçäo do facto histórico central e da crençareligiosa fulcral
da Cristandade.
A fundaçäo do Isläo como religiäo é uma sequência deacontecimentos
históricos ainda mais explicitamente definida do que sucede com oJudaísmo
ou o Cristianismo: o fundador do Isläo tomou-se soberano enquantoera vivo,
governou uma comunidade e comandou exércitos. É verdade queimportantes
motivaçöes para o desenvolvimento de um ritual historicamentereferendado,
presentes no Judaísmo e no Cristianismo, se encontravamausentes no Islamis-
mo. Faltava à vida de Maorné a ambiguidade simbólica, o estímulohermenêu-
tico, como sucede na última Ceia ou no Exodo, onde os dois níveisde
existência religiosa e terrena, do tempo sagrado e do profano,parecem mistu-
rar-se e apelar ao reordenamento ritual pelos crentes vindouros. Ahistória da
comunidade árabe näo podia ser explorada como um rico veio deacontecimen-
tos, ou de estádios dignos de comemoraçäo religiosa, dado ter-sedesenvolvido
5 Sobre a liturgia cristä, ver 0. Casel, The Mistery of ChristianWorship (ed. B. Neunheuser,
Londres, 1962); F. Clark, Eucharistic Sacrifice and theReformation (Oxford, 1967); Y. M.-J.
Congar, Tradition and Traditions (tr. M. Naseby e T. Rainborough,Londres, 1966); R.
Guardini, The Church and the Catholic, and the Spirit of theLiturgy (tr. A. Lane, Londres,
1935); J. A. Jungmann, Liturgische Erneuerung -RückblickundAusblick (Kevalaer, 1962);
Jungmann, The Liturgy of the Word (tr. H. E Winstone, Londres,1966).
rapidamente uma comunidade muçulmana organizada apenas umadécada
depois de Maorné ter começado a pregar. Além disso, a ausênciade uma classe
clerical restringiu o desenvolvimento da liturgia islâmica, tanto emextensäo
como em pormenor, e levou a que as manifestaçöes exteriores dareligiäo
islâmica conservassem uma nota dominante de simplicidade. Emconsequen-
cia, o calendário islâmico só continha, inicialmente, dois festivais: aPeregri-
naçäo, com a festa que celebra a sua conclusäo bem-sucedida, e oJejum do
Ramadäo, com a festa que assinala o fim do período deabstinência. Mas ambos
os festivais têm, pelo menos, alguma referência histórica ostensiva.A Peregri-
naçäo anual a Meca contém algo de alusäo histórica: evoca amemória de
Maorné, assim como a de Abraäo, a quem é atribuída, no Coräo, afundaçäo
do santuário e a instituiçäo da peregrinaçäo. Todo o muçulmano éobrigado a
fazer a viagem aos lugares sagrados uma vez na vida e a tomarparte naqueles
actos cerimoniais num dado momento e segundo uma dadasequência. Contu-
do, embora os teólogos tenham dedicado muita atençäo à definiçäoda `capa-
cidade` para fazer a Peregrinaçäo e às condiçöes que isentam ocrente da
obrigaçäo de a realizar, na prática, a decisäo de ir ou näo a Meca émais ou
menos deixada ao indivíduo, e em nenhuma época terá sidopossível que mais
do que uma pequena fracçäo da comunidade muçulmana nelatenha participa-
do. Mas enquanto a obrigaçäo de fazer a Peregrinaçäo só pode, narealidade,
ter sido cumprida por um pequeno número de muçulmanos, aobrigaçäo de
jejuar durante o mês do Ramadäo influencia profundamente a vidade todos os
crentes. O jejum veio a ser olhado por muitos como o acto religiosomais
importante e é observado até pelos muçulmanos que negligenciamas suas
oraçöes diárias. E o Rarnadäo foi escolhido devido às suasreferências históri-
cas explícitas: foi neste mês, o quinto do ano muçulmano, que oCoräo foi
6
enviado à terra como um guia para O POVO.
3
Nas religiöes mundiais, mas também nos ritos de muitos povos semescrita e
em diversos rituais políticos modernos, existe pois uma gama decerimônias
que partilham certas características comuns: näo se limitam asugerir a conti-
nuidade com o passado, em virtude do seu grau elevado deformalismo e
rigidez; pelo contrário, um dos seus traços característicos é areivindicaçäo
6 Sobre os festivais muçulmanos, ver G. E. von Grunebaum,Muhammadan Festivals (Nova
lorque, 195 1) e B. Lewis, History: Remembered, Recorded,Invented (Princeton, 1975), p. 49.
explícita de comemorarem uma tal continuidade. Näo poderemosnós inferir,
entäo, a partir deste facto, que essas cerimônias comemorativasdesempenham
um papel significativo na configuraçäo da memória comunitária?Tem-se
expressado muitas vezes cepticismo a respeito desta inferência eesse cepticis-
mo assumiu geralmente uma de três formas possíveis.
A primeira linha de argumentaçäo, a que chamarei a posiçäopsicanalítica,
consiste na perspectiva de que o comportamento ritual secompreende melhor
como uma forma de representaçäo simbólica. Afirma-se que os ritossäo o
enunciado sistematicamente indirecto, codificado no simbolismo dorito, de
conflitos que esse rito disfarça e, nessa medida, nega. O processoprimário,
que se considera explicar o processo secundário da representaçäosimbólica,
está localizado na história de vida do indivíduo, embo ' ra asinterpretaçöes
psicanalíticas particulares do ritual possam variar, conforme a faseedipiana
ou pré-edipiana da infância, ou outro qualquer processo conflitual,seja, ou
näo, tomada como a gênese de tais representaçöes. Aquilo quetodas essas
interpretaçöes têm em comum é descodificarem o texto ritual comotendo uma
carga de conflito e estando, por isso, de certo modo, carregado deestratégias
de negaçäo.
É possível interpretar os rituais psicanaliticamente comorepresentaçöes
simbólicas, explicando essas representaçöes em termos da históriade vida do
indivíduo. Assim, o entendimento que Freud tem do ritual é baseadona suposta
analogia entre a ontogénese e a filogénese, sendo o terreno daalegada analogia
proporcionado pelo seu ponto de vista de que a luta edipiana entrefilhos e pais,
7
no contexto da autoridade patriarcal, é o processo primário. Nestabase, Freud
é levado a especular que na história de vida da espécie humanaterá existido
outrora uma horda primitiva constituída por um pai poderoso, osseus filhos e
um grupo de fêmeas às quais o pai tinha acesso exclusivo; que osfilhos,
ressentindo-se da sua dominaçäo, o mataram; que, depois,reconheceram que
o amavam, para além de o odiarem, ficando dominados peloremorso; e que,
como reparaçäo, restauraram a imagem do pai sob a formasubstitutiva do
animal totémico. Segundo esta interpretaçäo, a refeiçäo totémicaque repetiam
todos os anos devia, entäo, ser vista como a repetiçäo solene, näodo acto de
parricídio em si, mas da forma de encarar esse acto, que aquelesque o haviam
cometido vieram posteriormente a adoptar. Era um regresso damemória
7 Ver S. Freud, Totem and Taboo, in Standard Edition, vol. XII (tr. J.Strachey, com A. Freud,
assistido por A. Strachey e A. Tyson, Londres, 1953-66). Sobre ainterpretaçäo freudiana do
ritual, ver P. Ricoeur, "Psychoanalysis and the Movernent ofContemporary Culture`, in P.
Rabinow e W. M. Suilivan (eds.), Interpretative Social Science(Berkeley, 1979), pp. 301-9.
reprimida, no qual representavam e superavam o acto originário.Repre-
sentavam a sua ambivalência para com o pai venerando edevorando simulta-
neamente o animal totémico e superavam essa ambivalênciaidentificando-se
com o animal que comiam. A refeiçäo totémica deve ser entendidacomo um
acto de representaçäo simbólica, no sentido em que se tratava deuma repetiçäo
e de uma comemoraçäo deste feito criminoso e memorável. Semnos exigir
que aceitemos a antologia freudiana na globalidade, ou queaceitemos a sua
projecçäo na história de vida da humanidade, Richard Wollheimpropöe uma
8
explicaçäo psicanalítica alternativa do ritual como representaçäocodificada.
Começando por observar que muitos ritos exigem uma morte,geralmente a de
um animal, embora por vezes também a morte real ou simulada deum ser
humano, sugere que tais actos säo invariavelmente "exercícios denegaçäo" e
como tal pertencem à "patologia do ritual". O ritual nega, e aquelesque o
executam negam, a realidade da agressäo como impulso humano.A denegaçäo
é feita colocando "entre parêntisis" o seu sentido. O fim para o quala agressäo
como impulso se dirige inerentemente, a destruiçäo de uma vida, éisolado.
Uma vez isolado, este fim é recomendado como algo que deveriaser repetido
uma e outra vez, mas sempre, em cada repetiçäo, o motivo peloqual a vida
deve ser tirada deve estar o mais afastado possível da agressäo -deve ser em
nome da piedade, da decência, ou da reverência pela autoridade.Aquilo que
esses ritos se destinam a alcançar, sugere, é "a minimizaçäo ou adepreciaçäo
do sadismo" e este fim apenas se pode concretizar, tal como osritos no cenário
alternativo de Freud, pela representaçäo quase textual codificada.
Uma segunda linha de argumentaçäo, a que chamarei a posiçäosociológica,
consiste na opiniäo de que o comportamento ritual se compreendemelhor
como uma forma de representaçäo quase textual. Este tipo deleitura desenvol-
ve-se enfatizando as formas como o ritual funciona para comunicarvalores
partilhados no interior de um grupo e para reduzir a dissençäointerna. Segundo
este ponto de vista, aquilo que os rituais nos dizem é como säoconstituídos a
estabilidade e o equilíbrio sociais. Mostram-nos como o ethos deuma cultura
e a sensibilidade moldada por esse ethos, quando soletrados para oexterior,
säo articulados no simbolismo de algo parecido com um textocolectivo único.
Podem encontrar-se muitas variantes influentes desta linha deinterpretaçäo.
Segundo Durkheim, o ritual "representa" a realidade socialtornando-a inteli-
gível, mesmo que o conteúdo cognitivo do rito esteja codificado sobuma forma
metafórica e simbólica. Neste sentido, podemos considerar osrituais religio-
sos, por exemplo, como sistemas de ideias nos quais "os indivíduosrepre-
8 R. WbIlheim, The Sheep and the Ceremony (Cambridge, 1979).
sentam para si próprios a sociedade de que säo membros e asrelaçöes obscuras
mas íntimas que têm com esta".9 Esta ideia - que resulta do realceda
componente fortemente cognitiva da explicaçäo de Durkheim - deque os
ritos podem ser interpretados como representaçöes simbólicas e,neste sentido,
como possuindo conteúdo cognitivo, pode ser simultaneamentealargada e
modificada. Pode ser alargada se considerarmos que o simbolismodos rituais
políticos representa conceitos particulares daquilo que é umasociedade e de
como ela funciona.'0 E pode ser modificada se considerarmos queesses rituais
políticos operam no âmbito de contextos políticos em que o poder édistribuído
de modo sistematicamente desigual, o que nos permite interpretaros rituais
como algo que possibilita um controlo cognitivo na medida em queproporcio-
na uma versäo oficial da estrutura política através derepresentaçöes simbóli-
cas, por exemplo, do "Império", da "Constituiçäo", da "República",ou da
"Naçäo"." Esses rituais podem ler-se como uma espécie de textocolectivo
simbólico. Mas a possibilidade de interpretar os ritos como formasde repre-
sentaçäo simbólica pode ser levada ainda mais longe se, comBakhtin, inter-
pretarmos o Carnaval e, mais particularmente, as festividadespopulares que
floresceram durante o Renascimento, como representaçöesantecipatórias. 12
Segundo esta explidaçäo, as inversöes da ordem hierárquicacaracterísticas do
Carnaval näo devem continuar a ser interpretadas como uma formaencoberta
de reafirmar a hierarquia, mas, pelo contrário, como um mecanismode liber-
taçäo social, no qual o expediente da representaçäo simbólica éutilizado como
alavanca. O Carnaval é assim visto como um acto em que "aspessoas" se
organizam "à sua maneira`, como uma colectividade onde osmembros indivi-
duais se tornam parte inseparável da massa humana, de talforma'que "as
pessoas" se apercebem da sua unidade corporal sensual-material.Pode entäo
dizer-se que as formas populares-festivas, ao permitirem aaglutinaçäo de um
tal corpo colectivo, oferecem às pessoas uma representaçäosimbólica näo das
categorias presentes, mas da utopia, a imagem de um estado futurono qual tem
9E.Durkheim,TheElementaryFormsofReligiousLife(tr.J.W.Swain,Londres,1915),p.225.
10 Para a extensäo do estudo do simbolismo aos rituais políticos,ver E. Shils e M. Young, "The
Meaning of the Coronation`, Sociological Review, n.s. 1 (1953), pp.63 -81; L. Warner, The
Living and the Dead: A Study of the Symbolic Life ofAmericans (NewHaven, 1959).
11 Para o uso do ritual político como controlo cognitivo, ver N.Birnbaum, `Monarchies and
Sociologists: a Reply to Professor Shils and Nir. Young",SociologicalReview, n.s. 3 (1955),
pp. 5-23; C. Geertz, "Centers, Kings, and Charisma: Reflections onthe Symbolism ofPower",
in J. Ben-David e T. N. Clark (eds.), Culture and its Creators, Essaysin Honour ofEdward
Shils (Chicago, 1977), pp. 150-71; S. Lukes, Volitical Ritual andSocial Integration`,
Sociology, 9 (1975), pp. 289-308.
12 M. Bakhtin, Rabelais and his World (tr. H. lswolsky, Cambridge,Mass., 1968), pp. 196-277.
lugar a "vitória da abundância material de todo o povo, a liberdade,a igualdade
e a fraternidade". Os ritos do Carnaval representam e prefiguram osdireitos
do povo. Como forma de interpretar os ritos, esta argumentaçäooferece-nos
uma espécie diferente de modificaçäo simbólica, em que aquilo quede outro
modo seria calado e indizível é expresso e a dimensäo do tempofuturo é
implicitamente revelada. Como interpretaçäo da acçäo ritual,pertence, toda-
via, ao mesmo gênero que o seu correspondente durkheimiano, oda repre-
sentaçäo simbólica numa espécie de texto colectivo.
Uma terceira linha de argumentaçäo, à qual chamarei a posiçäohistórica,
consiste no parecer de que os ritos näo se podem compreender deforma
satisfatória apenas em termos da sua estrutura interna, pois todosos rituais,
näo importa quäo venerável seja a ancestralidade que lhes éatribuída, têm de
ser inventados em alguma altura e, durante o período histórico emque perma-
necem vivos, o seu significado é susceptível de mudança. Estaexplicaçäo
levou à tentativa de redescobrir o significado dos cerimoniaisreenquadrando-
-os no seu contexto histórico. Segundo este ponto de vista, situarum rito no
seu contexto näo constitui um mero passo auxiliar, mas umingrediente essen-
cial ao acto da sua interpretaçäo. Investigar o contexto de um ritonäo é estudar
apenas informaçäo adicional a seu respeito, mas sim colocarmo-nos em posi-
çäo de obter maior compreensäo do seu significado do que aquelaque seria
acessível a "alguém que o interpretasse como um texto simbólicoinde-
,, 13
pendente . Seguindo esta linha de pensamento, muitoshistoriadores têm
demonstrado que, se quisermos redescobrir o significado dos rituaisda realeza
no início do período moderno, temos de relacioná-losinteligivelmente com as
circunstâncias em que foram realizados. 14 Outroshistoriadores, especializados
num período posterior, mostraram que sempre que as instituiçöessociais, para
as quais as "velhas" tradiçöes foram concebidas, começam a ruirsob o impacte
de uma rápida evoluçäo social, tem lugar uma invençäo imediata emuito
13 Para uma elaboraçäo desta posiçäo, ver D. Cannadine, "TheContext, Performance and
Meaning of Ritual: the Bristish Monarchy and the "Invention ofTradition", c. 1820-1977%
in E. Hobsbawm e T. Ranger (eds.), TheInvention of Tradition(Cambridge, 1983), pp. 101-64,
especialmente 104-8.
14 Para os estudos do ritual político no início da Idade Moderna,ver, entre outros, S. Anglo,
Spectacle, Pageantry and Early Tudor Policy (Oxford, 1969); D. M.Bergeron, English Civic
Pageantry, 1558-1642 (Londres, 1971); P. Burke, Popular Culture inEarly Modern Europe
(Londres, 1978); R. E. Giesey, TheRoyalFuneral Ceremony inRenaissanceFrance (Geneve,
1960); E. Muir, Civic Ritual in Renaissance Venice (Princeton,1981); S. Orgel, The Illusion
of Power: Political Theater in the English Renaissance (Berkeley,1975); R. Strong,
Splendour at Court: Renaissance Spectacle and Illusion (Londres,1973); F. A. Yates, The
Valois Tapestries (Londres, 1959).
1I@
difundida de novos rituais. 15 A invençäo do ritual acaba por sersimultanea-
mente um problema geral e um fenômeno de interesse particularnas socieda-
des pós-tradicionais.
Deste modo, é agora muito claro que, no período moderno, aselites nacio-
nais inventaram rituais que reclamam a continuidade com umpassado histórico
adequado, organizando cerimônias, paradas e reuniöes de massase construin-
do novos espaços rituais. Isto é verdade tanto para a Europa comopara o
Médio-Oriente. Tanto a Terceira República como a Alemanha deGuilherme
investiram capital simbólico em tradiçöes inventadas. 16 EmFrança, o Dia da
Bastilha tornou-se uma data histórica em 1880 e, na Alemanha, aGuerra
Franco-Prussiana tornou-se um acontecimento histórico no seuvigésimo-quin-
to aniversário, quando se instituiu uma cerimônia comemorativa, em1896.
Ambas comemoravam os actos fundadores do novo regime,diferindo apenas
na maneira como o mito da fundaçäo era interpretado. Nos doiscasos, o
contexto dos ritos demonstra a sua funçäo ideológica. Em França, aburguesia
republicana moderada inventou um rito como parte da suaestratégia para
afastar a ameaça de inimigos políticos à esquerda. Conseguiram-noatravés de
uma reafirmaräo anual da França como a naçäo de 1789, na qualos símbolos
da bandeira tricolor e da Marselhesa e a referência à Liberdade, àIgualdade e
à Fraternidade, lembrassem aos cidadäos da Terceira República ofacto alega-
15 Para os estudos do ritual político na Idade Moderna, ver, emespecial, E. Hobsbawm e T.
Ranger (eds.), The Invention of Tradition (Cambridge, 1983); vertambém M. Agulhon,
"Esquisse pour une archéologie de Ia république: l'allégorie civiqueféminine", Annales, 28
(1973), pp. 5-34; Agulhon, Marianne into Batile: Republican Imageryand Symbolism in
France, 1789-1880 (tr. J. Lloyd, Cambridge, 1981); R. Bocock,Ritual in Industrial Society
(Londres, 1974); G. Kemodle, From Art to Theatre (Chicago, 1944);C. Lane, The Rites of
Rulers: Ritual in Industrial Society - the Soviet Case (Cambridge,1981); G. L. Mosse,
"Caesarism, Circuses and Monuments", Journal of ContemporaryHistory, 6 (1971), pp.
167-82; G. L. Mosse, 'Mass Politics and the Political Liturgy ofNationalism", in E. Karnenka
(ed.), Nationalism: the Nature and Evolution of an Ideal (Londres,1976), pp. 39-54; M.
Novak, Choosing our King (Nova lorque, 1974); C. Rearick,"Festivals and Politics: The
Michelet Centennial of 1898", in W. Laqueur e G. L. Mosse (eds.),Historians in Politics
(Londres, 1974), pp. 59-78; C. Rearick, "17estivaIs in ModemFrance: the Experience of the
Third Republic`, Journal ofContemporary History, 12 (1977), pp.435-60; R. Samson, `La
fête de Jeanne d'Arc en 1894: controversa et célébration", RevuedHistoire Moderne et
Contemporaine, 20 (1973), pp. 444-63; L. Warner, The Living andthe Dead: a Study of the
Symbolic Lifie ofAmericans (New Haven, 1959).
16 Sobre a invençäo da tradiçäo na Terceira República e naAlemanha do Kaiser Guilherme, ver
E. Hobsbawm, 'Mass-Producing Traditions: Europe, 1870-1914`, inE. Hobsbawm e T.
Ranger (eds.), The Invention of Tradition (Cambridge, 1983), pp.263-307, especialmente a
269 e seguintes e a 273 e seguintes e T. Nipperdey, `Nationalideeund Nationaldenkrnal in
DeutschIand im. 19. Jahrhundert", Historische Zeitschrift, 208(1968), 529-85.
damente unificador da pertença à naçäo francesa. Na Alemanha, oregime de
Guilherme II inventou cerimônias como parte da sua estratégia paragarantir
a um povo que näo possuía qualquer definiçäo política anterior a1871, que
auferia, na verdade, de uma identidade nacional. Conseguiram-noatravés da
celebraçäo da unificaçäo bismarckiana da Alemanha, como a únicaexperiência
histórica nacional partilhada por todos os cidadäos do novo império.Em
épocas mais recentes, duas celebraçöes reinventaram ritualmente ahistória
antiga, no Médio Oriente. 17 Uma foi a comemoraçäo da heróicadefesa e queda
de Masada, na revolta judaica contra os romanos, no ano 66 da eracristä. A
outra foi a celebraçäo, inaugurada pelo Xá do Iräo, dos 2500 anosda fundaçäo
do estado e da monarquia persas por Ciro, o Grande. Ambos oscultos, o de
Masada e o de Ciro, reportam-se a temas há muito esquecidos e,na verdade,
desconhecidos entre os povos respectivos, näo dizendo a tradiçäorabínica
coisa alguma sobre Masada e näo tendo os persas preservadoqualquer registo
de Ciro. Em ambos os casos, a memória foi recuperada a partir defontes
exteriores, recebeu patrocínio político e foi transformada no focodas festivi-
dades nacionais. Em Israel, os ossos encontrados nas ruínas deMasada foram
de novo solenemente inumados, com uma cerimônia militar. NoIräo, organi-
zaram-se cerimônias junto à sepultura de Ciro. O culto de Masadadestinava-se
a restaurar a dimensäo político-militar oculta da identidade judaica.O culto de
Ciro tinha como fim dramatizar a transformaçäo dos persas, de umacomuni-
dade religiosa com uma identidade centrada no Isläo, numa naçäosecular com
uma identidade centrada no Iräo. Ambos os conjuntos de ritosinventados
celebravam o heroísmo nacional.
Os tipos de explicaçäo que acabei de passar em revista e aosquais, por uma
questäo de clareza, chamei explicaçäo psicológica, sociológica ehistórica da
acçäo ritual, procuram, todos eles, penetrar além do propósito esignificado
ostensivos dos ritos, com o objectivo de atingirem o propósito esignificado
??reais" que se diz jazerem sob a superfície. E isto dá origem àquestäo de saber
se poderemos ter um bom motivo para pensar que os rituais, quesäo repre-
sentados como sendo explicitamente comemorativos, têm naverdade a impor-
tância, como meios de transmissäo da memória social, que os seus
participantes reivindicam para eles. Essa questäo pode abordar-semelhor,
segundo penso, em duas etapas: considerando, em primeiro lugar,as caracte-
rísticas da forma ritual que as cerimônias comemorativas têm emcomum com
outros actos rituais de tipo duradouro e considerando, depois, ascaracterísticas
17 Ver B. Lewis, History: Remembered, Recorded, Invented(Princeton, 1975), pp. 3-41.
que definem as cerimônias comemorativas como rituais de umaespécie dife-
rente.
Pretendo demonstrar que, ao procurarmos compreender ascaracterísticas
que as cerimônias comemorativas têm em comum com outrosrituais elabora-
dos, estamos sujeitos a ser embaraçados por uma tendênciacaracterística da
maioria das interpretaçöes modernas do ritual, que nos induze afocalizar a
atençäo no conteúdo e näo na forma do ritual. E pretendo assimprovar que, ao
procurarmos compreender as características que distinguem ascerimônias
comemorativas como rituais de um tipo particular, podemos serestorvados por
uma tendência, característica de muita da moderna auto-interpretaçäo, para
desvalorizar ou ignorar a universalidade e a importância, em muitasculturas,
de acçöes que se realizam explicitamente como reactivaçäo deoutras acçöes
que säo consideradas prototípicas. A nossa compreensäo dascerimônias co-
memorativas encontra, assim, obstáculos em dois campos.
4
Consideremos agora a primeira dificuldade: a tendência parafocalizar a
atençäo sobre o conteúdo e näo sobre a forma do ritual. Os trêsmétodos de
interpretaçäo do ritual que acabei de descrever partilham umpressuposto
comum. Todos explicam o ritual como uma forma de representaçäosimbólica.
Todos procuram compreender a "questäo" oculta que está "pordetrás" do
simbolismo ritual, através de um acto de traduçäo pelo qual o textocodificado
do ritual é descodificado para outra linguagem. Quando noscentramos no
conteúdo simbólico oculto do ritual orientamos a atençäo para ascaracterísti-
cas que este partilha com algumas outras maneiras de articular osignificado
de uma forma estruturada, particularmente os mitos e os sonhos.Todavia, esta
ênfase nas características comuns, presente nas três posiçöesreferendadas,
embora seja muitas vezes esclarecedora, nada nos diz, pordefiniçäo, sobre as
características que identificam o ritual. Voltarei, mais tarde, a estetópico.
Vejamos, primeiramente, a analogia evidente com o mito e, depois,em que
aspectos o mito e o ritual divergem.
Tanto o ritual como o mito podem ser vistos, de forma bastanteapropriada,
como textos simbólicos colectivos. E, nesta base, podemos sugerirque as
acçöes rituais deveriam considerar-se exemplificativas do tipo devalores
culturais que säo também expressos muitas vezes nos enunciadoselaborados
a que chamamos mitos - que exemplificam estes valores por umoutro meio.
Lévi-Strauss, por exemplo, demonstrou como um conjunto de mitosíndios
sul-americanos se refere constantemente ao contraste entre a carnecrua e a
carne cozinhada, por um lado, e ao contraste entre os vegetaisfrescos e os
vegetais podres, por outro. Carne crua, carne cozinhada, vegetaisfrescos e
vegetais podres, säo coisas concretas; porém, quando agrupadasde forma a
definir um padräo, como acontece em muitos mitos índios daAmérica do Sul,
aquele número limitado de categorias permite sustentar a ideiaabstracta de um
contraste entre um modo cultural de transformaçäo e um modonatural de
transformaçäo. Trabalhando com base nesta ideia, Edmund Leachobserva que
essa padronizaçäo em redor da oposiçäo entre um processocultural e um
processo natural pode ser expressa por diferentes meios, pois podeexprimir-se
tanto por palavras - cru, cozinhado, fresco, podre - e ser expostasob a forma
de uma narrativa mítica, como expressar-se por coisas, e revelar-seatravés da
combinaçäo ritual dos objectos apropriados. A padronizaçäo de umritual ou
de um mito pode servir igualmente como armazém complexo deinformaçäo. 18
O problema surge quando esta questäo é excessivamentegeneralizada. O
exemplo que acabei de citar parece conduzir naturalmente àsugestäo de que
se deveria considerar que as acçöes rituais exemplificam os valoresculturais,
frequentemente expressos também nos enunciados míticos, que osexemplifi-
cam por outro meio. Mas muita coisa depende da expressäo "poroutro meio".
Interpretar o ritual como um meio simbólico alternativo para exprimiraquilo
que pode ser expresso por outros meios e, em particular, sob aforma de mito,
é ignorar aquilo que o ritual tem, em si próprio, de diferente.Todavia, uma vez
que comecemos a considerar a forma do ritual como distinta daforma do mito,
somos levados a ver que o ritual näo é apenas uma maneiraalternativa de
exprimir certas crenças, mas que certas coisas só podem serexpressas através
do ritual.
Ver-se-á, entäo, que o ritual e o mito diferem estruturalmente,pelo menos
num aspecto fundamental. Um mito pode ser narrado por um cantora uma
audiência, como forma de divertimento, por um pai aos filhos, comoliçäo, ou
por um estruturalista a leitores implícitos, como um conjunto deopostos.
Recitar um mito näo é necessariamente aceitá-lo. Aquilo que arecitaçäo de um
mito näo faz, e que a execuçäo de um ritual faz essencialmente, éespecificar
a relaçäo que prevalece entre os actores do ritual e aquilo que estesestäo a
executar. Daqui resulta a existência de um elemento de invariânciacodificado
na estrutura do ritual que näo se encontra presente no míto.19
18 E. Leach, `Ritualisation in Man in Relation to Conceptual andSocial Developrrient`, in J.
HuxIey (ed.), Philosophical Transactions of the Royal Society ofLondon, Série B. vol. 251
(1966), em especial pp. 405-6.
Esta diferença estrutural é evidente na forma como alguns dosmitos primi-
tivos da cultura ocidental têm sido remodelados e reinterpretados.As adapta-
çöes do mito na forma dramática, e os possíveis limites colocados auma tal
tarefa, foram ob ecto de um debate animado nas últimas décadasdo século
XIX. Nessa época expressava-se muitas vezes a opiniäo de que omaterial que
proporcionava o tema de grandes obras dramáticas ou trágicasseria tratado de
várias maneiras até que um grande dramaturgo encontrasse,finalmente, a
forma completa e definitiva para esse material mítico, que ficariaentäo
esgotado. Defendia-se, deste modo, que tinham sido feitas muitasreadaptaçöes
dramáticas do mito de Don Juan, até este ter recebido amaterializaräo perfeita
na ópera de Mozart. O mesmo julgamento foi aplicado às versöesdramáticas
mais antigas do mito de Fausto, até este ter recebido a formadefinitiva no
Fausto de Goethe. Por isso, prosseguia esta argumentaçäo, näovalia a pena
querer ainda produzir um outro Don Juan, depois de Mozart, ou umoutro
Fausto, depois de Goethe. O objectivo destes argumentos erademonstrar que
a restruturaçäo criativa do material mítico era um processo finito.Porém, este
objectivo apenas era alcançado reconhecendo, em cada caso, queaquele
processo constituía, na verdade, uma história de reinterpretaçöes,um processo
de readaptaçöes substanciais e variadas até ser dada uma formadefinitiva ao
material mítico.
E possível conceber uma variância criativa acrescida que näo seenquadre
mais num esquema do tipo acima referido: uma pré-história dasinterpretaçöes
que é finalmente suplantada por uma interpretaçäo definitiva. Tantono caso
do mito de Don Juan como no do mito de Fausto, pode serapropriado falar-se
de soluçöes para o trabalho de readaptaçäo do material mítico queeram
imperfeitas e preliminares, e de uma soluçäo mais tardia edefinitiva. Mas o
mito de Orestes-Electra näo pode ser ajustado a um tal padräo.Neste caso, o
mesmo material mítico e a mesma situaçäo trágica básica säoreestruturados
dramaticamente pelos três grandes autores da tragédia grega e,mais tarde,
novamente sob uma forma moderna, pelo maior de todos osdramaturgos
modernos, em Ham1et. Deparamos com várias representaçöesdramáticas do
mesmo material mítico, bastante diferentes umas das outras.Mesmo se deixar-
mos de lado a versäo de Eurípides, dado o estatuto de autoria destater sido
posta em causa por vários críticos, incluindo Aristóteles, ficam aindatrês peças
que se contam entre as maiores de todas as tragédias, mas entreas quais é
19 Ver R. A. Rappaport, `The Obvious Aspects of RituaV,CambridgeAnthropology, 2 (1974),
p. 32.
impossível escolher uma única e proclamar que essa representa,em compara-
çäo com as outras, a adaptaçäo definitiva do material mítico.
A adaptaçäo dramática do mito por Ésquilo e Sófocles gera, apartir do
mesmo material, significados fundamentalmente diferentes. Esquiloleva ao
extremo o elemento trágico do conflito existente no mito, mostrandoo acto de
matricídio como necessário e horrendo em igual medida. Nesteaspecto,
diverge dos tratamentos poéticos anteriores do mito feitos porSimónídes,
Estesícore e Píndaro. Nestes, o assassínio de uma mäe, às ordensde um deus,
era representado como um acto heróico, ou, pelo menos, aobrigaçäo do filho
reclamar vingança sobre a sua mäe recebia maior ênfase que ohorror do seu
matricídio. Ésquilo leva-nos a ver o horror do acto. Mostra Orestesencurralado
pela lógica de uma ordem social vingativa, cujos modos defuncionamento
implicam necessariamente os deveres que lhe säo exigidos. Aproclamaçäo da
sua inocência, na parte final da trilogia, só se torna possível atravésdo
estabelecimento de um tribunal publicamente reconhecido comocompetente
para emitir um veredicto sempre que surgissem disputas sobre avingança e
reconhecido, portanto, como uma forma de ordem cuja lógicasubstitui os
modos de funcionamento do sistema da vingança de sangue. MasÉsquilo
representa igualmente o matricídio perpetrado por Orestes comointeiramente
necessário, no contexto em que tinha de ser executado. Na suareadaptaçäo do
mito, tudo é feito para mostrar que o matricídio perpetrado porOrestes é
objectivamente necessário e que tudo se combina, assim, para olevar a esse
acto: a ordem do deus e as ameaças do que sucederia se essaordem fosse
ignorada; a compreensäo de Orestes, como herdeiro legítimo, dacondiçäo em
que se encontra o seu reino; as exortaçöes do coro, que incitamirmäo e irmä
a executar a vingança quando eles vacilam; o comportamento deCliternnestra,
que procura fugir à lógica da desforra; e a recordaçäo vivida que osfilhos têm
da desonra infligida ao pai pela sua esposa e assassina. Esquiloreconfigura o
mito de forma a representar o acto do matricídio simultaneamentecomo
necessário e horrível.
O elemento de necessidade horrível desaparece da versäo deSofficles.
Enquanto em Ésquilo a ordem para exigir vingança é iniciada porum deus, e
acompanhada de ameaças no caso de näo ser executada, nodrama de Sofficles,
Orestes conta como viajou até Delfos para perguntar ao oráculocomo deveria
vingar a morte do seu pai. As orientaçöes do deus quanto à formacomo o acto
devia ser realizado säo uma resposta à própria pergunta deOrestes, e essa
pergunta já pressupöe a decisäo de executar o feito. Enquanto emÉsquilo
Electra cedo descobre vestígios da presença do irmäo regressado,o reconhe-
cimento mútuo de irmäo e irmä se segue pouco depois e,subsequentemente,
os dois planeiam e agem em conjunto, em Sofficles, na altura emque Orestes
regressa do exílio a maior parte da acçäo já decorreu. O dramacentra-se
largamente em Electra. Durante a maior parte da acçäo, elaencontra-se
intimamente só. Näo recebe qualquer ordem divina para executar avingança
sobre a sua mäe. Começa a duvidar de que o seu irmäo regressedo exílio e
nada sabe da orientaçäo que Apolo lhe havia dado. O coro avisa-aque näo
vale a pena procurar tomar medidas contra aqueles que detêmagora o poder
no país, que as suas queixas näo servem de nada ao seu pai e sólhe podem
fazer mal a ela. É também avisada, pela sua irmä Crisótemis, paradesistir
da vingança e para se adaptar a circunstâncias em que apossibilidade de
rebeliäo efectiva já näo existe. Todas as consideraçöes que emÉsquilo
levam os protagonistas a perpetrar a vingança, säo retiradas dodrama de
Sofócles. Resta uma única motivaçäo: o facto de todos os outrosparticipan-
tes na acçäo se terem adaptado às circunstâncias e, pelo menosexteriormen-
te, haverem feito as pazes com aqueles que agora detêm o poder; ofacto de
mais ninguém experimentar, como ela experimenta, o sentimentoesmaga-
dor de profanaçäo; o facto de, também ela, se conseguisseconvencer-se a
si própria a fazê-lo, ter a opçäo de se acomodar às circunstâncias.É isto que
a leva, e só a ela, a achar a sua existência espiritualmenteintolerável. Em
vez da acumulaçäo esquiliana de consideraçöes objectivasprementes, So-
fócles realça a motivaçäo que impulsiona a única excepçäo, oagente que
sente mais intensamente do que todos os outros.
Estas reconfiguraçöes do material mítico revelam, de uma formaextre-
ma, uma característica intrínseca ao mito como tal. O conteúdosimbólico
do mito grego näo fica esgotado em nenhuma combinaçäo formalúnica. O
material simbólico desses mitos näo tem a invariância e a inércia dealgo já
pré-estabelecido e formalizado. Constitui, pelo contrário, algo maisseme-
lhante a um reservatório de significados que está disponível paravoltar a
ser possivelmente usado noutras estruturas. O material míticocontém uma
variedade de significados potenciais que excede significativamenteo seu
uso e funçäo em qualquer combinaçäo particular, em qualquerestrutura
dramática singular. Tal como acontece também com muito domaterial do
Antigo Testamento, por exemplo, embora ali mais sob a forma derepetiçäo
narrativa e comentário, uma rede de acontecimentos míticos gozade uma
significativa historicidade, de um longo processo interpretativo derenova-
çäo e de variaçäo. A reutilizaçäo dos mitos gregos, tanto na culturada antiga
Grécia como em contextos culturais posteriores, depende daquilo aque
podemos chamar um excedente de significado - um excedente quepode
ser realizado em combinaçöes interpretativas variáveis, quando omaterial
20
mítico é restruturado noutras formas dramáticas .
Em comparaçäo com os mitos, a estrutura dos rituais temsignificativamente
menos potencial de variaçäo. É verdade que todos os rituais tiveramde ser
inventados em algum momento, podendo os pormenores da suaarticulaçäo
desenvolver-se ou variar em conteúdo e importância com apassagem do
tempo. Todavia, continua a existir um potencial de invariânciaincorporado nos
ritos, mas näo nos mitos, em virtude do facto, intrínseco à naturezados rituais
- mas näo dos mitos - de estes especificarem a relaçäo queprevalece entre
a execuçäo do ritual e aquilo que os participantes estäo a executar.Daí resulta
que, se se quiser tomar precauçöes consideráveis para proteger aidentidade do
material simbólico de uma cultura, é aconselhável orientarem-seessas precau-
çöes para a protecçäo da identidade do seu ritual. E, na verdade,muitas
sociedades tradicionais, nas quais o simbolismo parece serimutável, agem
como se tivessem visto o perigo de uma evoluçäo excessivamenterápida:
fazem tudo para impedir a mudança. Duas tradiçöes, em particular,exempli-
ficam, de forma impressionante e largamente documentada, estefacto. A
liturgia da Missa persiste há quase dois milénios, durante os quaissó mudou
muito lentamente. Os credos recitados na Missa existem há muitotempo, na
21
sua forma presente. Mais uma vez, embora alguns aspectos dassuas liturgias
variem consideravelmente, respondendo talvez, neste aspecto, àsdiferenças
de circunstância histórica, os rituais dos judeus ashkenaze do Norteda Europa,
dos sefarditas do Mediterrâneo, dos falasha da Etiópia, dos beni daíndia, dos
karaitas da Crimeia, conservam, numa posiçäo fulcral, a profissäode fé a que
22
chamam Shema.
Esta tendência para a invariância resulta da forma particularcomo funciona
a linguagem litúrgica. Podemos caracterizar este traçonegativamente, dizendo
que näo emprega formas de comunicaçäo que tenham forçapreposicional, que
20 Sobre o tema do excedente de significado, ver P. Ricoeur,Interpretation Theory: Discourse
and the Surplus of Meaning (Fort Worth, 1976). Para umaconsideraçäo das mudanças
dramáticas no tratamento do mito de Orestes, ver K. von Fritz,Antike und moderne Tragödie
(Berlim, 1962), pp. 113 e seguintes; para o mito de Antígona, ver G.Steiner, Antigones
(Oxford, 1984); para um tratamento geral detalhado da maneiracomo a cultura ocidental
transformou os seus mitos, com referências particulares ao mito dePrometeu, ver H.
Blumenberg, Work on Myth (tr. R. M. Wallace, Cambridge, Mass.,1985).
21 Ver A. Baumstark, "Das Gesetz der Erhaltung des Alten inliturgisch hochwertiger Zeit",
Jahrbuch fur Liturgiewissenschaft, 7 (1927), pp. 1-23.
22 Ver A. Z. Idelson, Jewish Liturgy and its Development (Novalorque, 1932), p. 3 10; W. Leslav,
Falasha Anthology. The Black Jews ofEthiopia (Nova lorque, 195 1),p. 124; S. Strizower,
The Children ofIsraeL The Beni Israel ofBombay (Oxford, 1971), p.14.
näo consiste no relato de acontecimentos, na descriçäo de objectos,no enun-
ciado de descobertas experimentais, ou na formulaçäo dehipóteses. Podemos
caracterizá-lo positivamente, dizendo que a linguagem litúrgica éuma certa
forma de acçäo que pöe algo em prática. Näo se trata de umcomentário verbal
sobre uma acçäo exterior a si. Em si e por si própria, a linguagemlitúrgica é
uma acçäo. A natureza desta acçäo pode ser dividida em duaspropriedades
distintas, cuja existência e eficácia explicam, simultaneamente,porque é que
a linguagem ritual funciona täo poderosamente como instrumentomnemóni-
23
co.
Em primeiro lugar, o ritual é uma linguagem performativa. Umenunciado
performativo näo fornece a descriçäo de uma determinada acçäo. Opróprio
enunciado da performance constitui uma acçäo de certo tipo, paraalém da
acçäo obviamente necessária de produzir sons com sentido. E estaacçäo, uma
promessa ou um voto, por exemplo, só pode ser executada pelaenunciaräo de
certas palavras prescritas. Uma liturgia é uma ordenaçäo de actosdiscursivos
que ocorre quando esses enunciados têm lugar, e só nessasalturas. Se näo se
realizarem, o ritual näo existe.
Em segundo lugar, o ritual é uma linguagem formalizada. Osseus enuncia-
dos tendem a ser estilizados e estereotipados e a comporem-se desequências
de actos discursivos mais ou menos invariáveis. Os enunciados näosäo
produzidos pelos actores, mas encontram-se já codificados numcárione, po-
dendo por isso ser repetidos com exactidäo. Aquilo que é referidono enunciado
canónico, é referido em sequências de palavras e de actos que, pordefiniçäo,
já foram realizados antes.
23 A minha abordagem das características formais da acçäo ritualdeve muito a dois textos
clássicos: M. Bloch, `Symbols, Song, Dance and Features ofArticulation`, Archives
Européenes de Sociologie, 15 (1974), pp. 55-81; e R. A. Rappaport,`The Obvious Aspects
of RituaV, Cambridge Anthropology, 2 (1974), pp. 3-68. Rappaportdesenvolveu os seus
pontos de vista sobre este assunto numa série de artigos: "Ritual,Sanctity and Cybernetics`,
American Anthropologist, 73 (1971), pp. 59-76; `The Sacred inHuman Evolution", Annual
Review ofEcology and Systematics, 2 (1971), pp. 23-44; "Liturgyand Lies", International
Yearbook for Sociology of Knowledge and Religion, 10 (1 976), pp.75 -104; ` Concluding
Comments on Ritual and Reflexivity", Semiotica, 30 (1980), pp. 181-93. Para comentário
sobre as características formais do ritual, ver também A. E C.Wallace, Religion: an
Anthropological Víew (Nova lorque, 1966); V. Turner, The ForestofSymbols (Ithaca, 1967);
Turner, The Ritual Process (Chicago, 1969); Turner, Dramas, Fieldsand Metaphors (Ithaca,
1974); J. Skorupski, Symbol and Theory: a Philosophical Study ofTheories ofReligion in
SocialAnthropology (Cambridge, 1976); S. J. Tambiah, `APerformative Approach to Ritual",
Proceedings of the Bristish Academy, 65 (1979), pp. 113-69.
A performatividade do ritual é, em parte, uma questäo deenunciado: o
enunciado recorrente de certos verbos e pronomes pessoaiscaracterísticoS.24
Entre os enunciados verbais que se encontram mais vulgarmentenos ritos estäo
as pragas, as bençäos e os juramentos. Considera-se que, naverdade, muito,
21
se näo tudo, depende, em cada caso, da exactidäo do próprioenunciado. Uma
praga procura sujeitar o seu objecto à ascendência do seu poder.Uma vez
pronunciada, uma praga continua a confiar o seu objecto ao destinoque
invocou e julga-se que continua em vigor até a sua potência seextinguir. Uma
bênçäo näo é um mero desejo piedoso. Considera-se que elaconfere dons da
sorte atraves o emprego e palavras. E, tal como a praga e abênçäo, o
juramento é uma expressäo com poder, de efeito automático que,se a afirma-
çäo que o acompanha näo puder ser confirmada, consagra aqueleque presta
juramento a este poder. O testemunho sob juramento é consideradodetermi-
nante para se decidir sobre a culpa ou a inocência. As pragas, asbençäos e os
juramentos, bem como outras expressöes verbais frequentementepresentes na
linguagem ritual, como, por exemplo, "pedir", "orar", ou Mar graças",pressu-
pöem certas atitudes - de confiança e de veneraçäo, de submissäo,contriçäo
e gratidäo - que entram em vigor no momento em que, por meio daenuncia-
çäo da frase, o acto correspondente tem lugar. Ou melhor: esseacto tem lugar
na e pela enunciaräo. Aquelas expressöes verbais näo descrevemnem indicam
a existência de atitudes: eles trazem efectivamente essas atitudes àexistência
através do acto elocutivo. O mesmo resultado é conseguido, nalinguagem
ritual, por uma utilizaçäo característica dos pronomes pessoais. Alinguagem
litúrgica faz um uso especial do "nós" e do "eles". A forma plural de"nós" e
"nos" indica que, embora existam vários oradores, estes estäo aagir colectiva-
mente, como se fossem um único orador, uma espécie depersonalidade
colectiva. Anteriormente a essa elocuçäo pronominal, existe umestado de
preparaçäo indiferenciado expresso pela presença de todos osparticipantes no
local onde a liturgia vai ser celebrada. Ao proferir-se o "nós"constitui-se, dá-se
forma definitiva, a uma disposiçäo básica entre os membros dacomunidade
24 Para um debate sobre a performatividade, ver J. L. Austin, Howto do Things with Words
(Oxford, 1962); Austin, "Performative Utterances", in PhilosophicalPapers, 21 ed., J. 0.
Urmson e G. T. Warnock (eds.) (Oxford, 1970); J. R. Searle, SpeechActs (Cambridge, 1969).
Para um debate sobre a performatividade no ritual, ver R. Finnegan,"How to do Things with
Words: Performative Utterances among the Limba of Sierra Leone",Man, 4 (1969), pp.
537-51; J. Ladrière, "The Performativity of Liturgical Language",Concilium, 2 (1973), pp.
50-62; H. Lavondes, "Magie et langage", LHomme, 3 (1963), pp.109-17; S. J. Tambiah, `A
Performative Approach to Ritual", Proceedings oftheBritishAcademy,65 (1979), pp. 113-69.
25 Ver G. van der Leeuw, Religion in Essence and Manifestation (tr.J. E. Turner, Gloucester,
Mass., 1967), em especial as pp. 405-11.
litúrgica. A comunidade é iniciada quando os pronomes dasolidariedade säo
repetidamente pronunciados. Ao pronunciarem o "nós", osparticipantes reú-
nem-se näo só num espaço exteriormente definível, mas tambémnuma espécie
de espaço ideal determinado pelos seus actos discursivos. O seudiscurso näo
descreve o aspecto possível de tal comunidade, nem exprime umacomunidade
constituída antes e separadamente dele. Os enunciadosperformativos säo, por
assim dizer, o lugar onde a comunidade é constituída e recorda a siprópria o
facto da sua constituiçäo.
A performatividade está também codificada nas atitudes docorpo, nos
gestos e movimentos. Os recursos desta modificaçäo säoelementares. Nos ritos,
dá-se ao corpo a postura e os movimentos apropriados através dasacçöes
prescritas. O corpo, quando de pé, mantém-se rígido e vigilante. Asmäos säo
unidas e postas como que em oraçäo. As pessoas curvam-se eexpressam a sua
impotência ajoelhando-se, ou podem abandonar completamente apostura
erecta na humilhaçäo da prostraçäo corporal. A relativa escassezdestes reper-
tórios é a origem da sua força. Os recursos da linguagem comum, asua
variedade semântica e flexibilidade de tom e de registo, apossibilidade de se
produzirem enunciados que podem ser qualificados, ironizados eretratados,
os modos condicional e conjuntivo dos verbos, a capacidade dalinguagem para
mentir, para ocultar e para dar expressäo idealizada àquilo que näose encontra
presente - todos estes recursos constituem, de um certo ponto devista, uma
deficiência de comunicaçäo. A subtileza da linguagem vulgar é talque pode
sugerir ou indicar níveis finamente graduados de submissäo,respeito, indife-
rença e desprezo. As interacçöes sociais podem ser negociadasatravés de um
elemento linguística de ambiguidade, imprecisäo e incerteza. Masos recursos
limitados da postura, do gesto e do movimento rituais despojamcompletamen-
te a comunicaçäo de muitos puzzles hermenêuticos. Uma pessoaajoelha, ou
näo ajoelha, faz o movimento necessário para executar a saudaçäonazi, ou näo
faz. Ajoelhar em submissäo näo é o mesmo que declararsubmissäo, nem serve
apenas para comunicar uma mensagem de submissäo. Ajoelhar emsubmissäo
é exibi-Ia através da substância visível e presente do nosso corpo.Os que se
ajoelham identificam a posiçäo do seu corpo com a suapredisposiçäo para se
submeterem. Estes actos performativos säo maneirasparticularmente eficazes
de `dizer` por serem inequívocas e materialmentesubstancializadas. E a
elementaridade do repertório, do qual estes "dizeres" säo retirados,torna
simultaneamente possíveis o seu poder performativo e a suaeficácia como
26
sistemas innemónicos.
26 M. Bloch e R. A. Rappaport fazem alguns comentários sobre aperformatividade corporal.
O formalismo da linguagem ritual tem um efeito mnemónicoainda mais
evidente. Podemos dizer que uma linguagem é formalizada quandoé sistema-
ticamente composta de forma a restringir o leque de escolhaslinguísticas
disponíveis. Este é sobretudo o caso com os rituais em que muitasopçöes
linguísticas foram abandonadas para que a escolha das palavras,da sintaxe e
do estilo seja vincadamente mais restrita do que na linguagemquotidiana.
Claro que a economia da formalizaräo näo é exclusiva do ritual. Omecanismo
do "paralelismo canónico", que figura largamente no discurso ritual,encontra-
-se também na poesia oral tradicional. Pode dizer-se que existeuma tradiçäo
do paralelismo canónico, segundo Jakobson, "quando certassemelhanças entre
sequências verbais sucessivas säo compulsivas ou gozam degrande preferên-
cia" - daí a recorrência de um corpo estandardizado de "pares depalavras
27
fixados convencionalmente". A proeminência de tal paralelismolinguística
em todas as literaturas orais do mundo, e a sua importância comodispositivo
28
innemónico, foi demonstrada por inúmeras pesquisas. O casoclássico é o da
poesia oral finlandesa, sendo os feitos épicos registados naKalevala o exemplo
de poesia paralelística mais frequentemente citado, depois doAntigo Testa-
mento. Bloornfield defendia que a "estrutura em cadeia" dos textosvédicos é
29 Têm sido
também "análoga ao chamado paralelismo na poesia hebraica".
ainda documentadas tradiçöes de paralelismo entre os chinesesantigos e os
gregos primitivos, em numerosas tradiçöes "populares" no Sul daíndia e no
Sudeste Asiático e entre os idiomas dos índios americanos,principalmente na
literatura maia e azteca antiga e nas formas elaboradas de ritmo ede repetiçäo
dos cânticos navajos. O paralelismo canónico é, assim, umacaracterística
comum à poesia oral e ao ritual. Porém, no ritual este dispositivo écombinado
com outros tipos de formalizaräo onde o discurso, o canto, o gesto ea dança
säo combinados num todo compósito. De facto, um acontecimentoque näo
contivesse todos estes elementos näo seria provavelmente descritopelos
antropólogos como um ritual. Säo estas características que, emconjunto,
constituem a marca distintiva do ritual.
27 R. Jakobson, "Grammatical Parallelism and its Russian Facet",Language, 42 (1966), p. 399.
28 Sobre o paralelismo canónico, ver particularmente J. J. Fox, "OnBinary Categories and
Primary Symbols", in R. Willis (ed.), The Interpretation of Symbolism(Londres, 1975), pp.
99-132; Fox, `Roman Jakobson and the Comparative Study ofParallelism", in D. Armstrong
e C. H. van Schooneveld (eds.), Roman Jakobson. Echoes of hisScholarship (Lisse, 1977),
pp. 59-90; ver também L. 1. Newrnan and W. Popper, Studies inBiblical Parallelism
(Califórnia, 1918-23); S. Gevirtz, Patterns in the Early Poetry ofIsrael (Chicago, 1963); G.
A. Reichard, Prayer: The Compulsive Word (Seattle, 1944); W.Steinitz, Der Parallelismus
in der finnisch=karelischen Volksdichtung (Helsínquia, 1934).
29 M. Bloornfield, Rig-Veda Repetitions (Cambridge, Mass., 1916),p. 5.
Comparado com o discurso quotidiano, o discurso ritualcaracteriza-se näo
só pelo paralelismo canónico, mas também por um vocabuláriorestrito, pela
exclusäo de algumas formas sintácticas, por uma rigidez nasequência dos actos
discursivos, por padröes fixos no volume das elocuçöes e por umaflexibilidade
limitada da entoaçäo. Todas estas características impelem os actosde discurso
30 Deste modo, uma qualquer elocuçäo isolada, em
ritual na mesma direcçäo.
vez de poder ser seguida por um grande número de elocuçöespotenciais, só
pode ser seguida por um conjunto limitado ou, na verdade, na maiorparte dos
casos, por uma elocuçäo apenas. O fim de um acto discursivo éprevisível desde
o seu início porque, uma vez iniciado, existe uma única sequênciacorrecta para
uma pessoa prosseguir. Além disso, tal como as articulaçöes numúnico acto
discursivo estäo formalmente predeterminadas, também asarticulaçöes entre
os actos discursivos dos diferentes participantes estäodeterminadas de ante-
mäo. A partir do acto discursivo de um participante pode predizer-seo do
seguinte. Mais uma vez, no discurso ritual a escolha da entoaçäo oudo ritmo
da enunciaräo é limitada. @empre que ocorre uma passagem dodiscurso
entoado para o canto, é introduzido uma restriçäo ainda maior naescolha da
entoaçäo e do ritmo e adaptados uma entoaçäo e um ritmo aindamais afastados
dos padröes variados do discurso quotidiano. Finalmente, a postura,o gesto e
o movimento ritualizados, em vez de se combinarem de formaflexível para
conferirem variedade e ambiguidade de informaçäo, como naquiloque descre-
vemos convencionalmente como situaçöes do quotidiano, têm umpadräo
restritivo e säo, por isso, facilmente predizíveis e facilmenterepetíveis, de um
acto para o seguinte e de uma ocasiäo ritual para a seguinte.
5
Vejamos agora a segunda dificuldade: a tendência para ignorar aimportância,
existente em muitas culturas, de acçöes que säo explicitamenterepresentadas
como reencenaçöes de acçöes anteriores e prototípicas. Ascerimônias come-
morativas têm duas características em comum com todos os outrosrituais: o
formalismo e a performatividade. E, na medida em que funcionamefectiva-
mente como dispositivos mnemónicos, säo capazes de executaressa funçäo
em grande parte devido ao facto de possuírem essascaracterísticas. Mas as
30 Para um debate sobre este aspecto do ritual, ver, em especial,M. Bloch, "Symbols, Song,
Dance and Features of Articulation", Archives Européennes deSociologie, 15 (1974),
pp. 55-81.
cerimônias comemorativas podem distinguir-se de todos os outrosrituais pelo
facto de se referirem explicitamente a pessoas e a acontecimentosprototípicos,
quer se considere que estes têm uma existência histórica ou mítica.Em virtude
desse facto, os ritos deste gênero possuem uma outra característicaque é lhes
é distintivamente própria, que podemos descrever como areencenaçäo ritual.
Esta característica é de importância fundamental na configuraçäoda memória
comunitária. Porém, o carácter da sociedade e da auto-compreensäo modernas
torna singularmente difícil uma apreciaçäo precisa da natureza dareencenaçäo
ritual. Podemos talvez apreender melhor esta característica dascerimônias
comemorativas se a abordarmos pela justaposiçäo de doisenunciados impor-
tantes, cada um dos quais procura delinear, esquematicamente,uma forma
historicamente específica de vida e uma maneira de entender essetipo de vida.
O primeiro figura, em lugar de destaque, no ensaio de Paul de Mansobre
"História Literária e Modernidade Literária`. O segundo é esboçadona confe-
rência de Thomas Mann intitulada Treud e o Futuro".
Em "História Literária e Modernidade Literária", De Man fixa-senum tipo
particular de esquecimento como parte da experiência essencial damoderni-
dade. 31 Ele convida-nos a considerar "a ideia de modernidade"como consis-
tindo num Mesejo de apagar tudo o que veio antes, na esperançade atingir
finalmente um ponto a que se chamaria presente verdadeiro, umponto de
origem que marcaria um novo começo. Esta combinaçäo entreesquecimento
deliberado e uma acçäo que é também um novo começo capta oessencial da
32
ideia de modernidade" . A justificaçäo para este esquecimentofundacionista
é automaticamente ligada àquilo que esta nega: isto é, aohistoricismo. De Man
faz mais do que reconhecer este paradoxo, sublinhadoincisivamente: quanto
mais radical é a rejeiçäo de tudo o que veio antes, maior é adependência
relativamente ao passado. Podemos desenvolver a concepçäo deDe Man
distinguindo duas fases na estratégia da rejeiçäo. Na avant-gardetomou a
forma de uma retórica do esquecimento, no pós-modemismo surgecomo uma
retórica do pasticho. O ataque da avant-garde dirigia-seprincipalmente contra
o armazém da memória colectiva: os museus, as bibliotecas e asacademias. O
apelo ao esquecimento atingiu o ponto de intransigencia maisestridente nos
manifestos dos Futuristas, que denunciavam os intelectuais comoescravos de
ritos antiquados, os museus como cemitérios e as bibliotecas comojazigos.
Mas os Futuristas näo estavam sós. A ideia de tabula rasa tinha járecebido
justificaçäo em Nietzsche, reaparecendo, no primeiro terço desteséculo, no
31 P. de Man, `Literary History and Literary Modernity", Daedalus,99 (1970), pp. 384-404.
32 Ibidem, pp. 388-9.
trabalho de arquitectos e urbanistas da avant-garde. No pós-modernismo esta
atitude é substituída pela omnipresença do pastiche, onde opassado é visto
como uma vasta colecçäo de imagens, estando todos os estilos dopassado
potencialmente abertos ao jogo da alusäo casual, muitas vezeshumorística.
Num mundo caracterizado por aquilo a que Henri Lefebvre chamoua primazia
33
crescente do "neo", o passado é gradualmente apagado comoreferente .
Em Treud e o Futuro", Thornas Mann induziu a sua audiência aconsiderar
imaginativamente uma forma de vida, e uma maneira de pensarsobre essa vida,
34
no pólo oposto da modernidade . Deveríamos considerar o egomenos clara-
mente definido e menos exclusivo do que o concebemosnormalmente, como
se fosse, por assim dizer, "aberto atrás": aberto aos recursos domito, deven-
do-se entender que estes existem para o indivíduo näo só comouma grelha de
categorias, mas também como um conjunto de possibilidades quese podem
tornar subjectivas, que podem ser vividas de forma consciente.Nesta atitude
arcaizante, a vida do indivíduo é conscientemente vivida como uma"repetiçäo
sagrada", como a reanimaçäo explícita de protótipos. Assim,Alexandre seguiu
conscientemente as pisadas de Milcíades; assim, os biógrafosantigos de César
estavam convencidos de que ele tomara Alexandre como modelo; eassim a
vida de Cristo é representada nos Evangelhos como uma vidavivida para que
aquilo que estava escrito pudesse ser cumprido. Assim, também, noarcaísmo
consciente moderno, o tema fundamental de José e seus Irmäos éa ideia de
vida individual como acto de identificaçäo, de como seguirconscientemente
as pisadas de outrém. Para o professor de José, Eliezer, o tempo éanulado
quando todos os Eliezers do passado se reúnem para configurar oEliezer do
presente, de modo que este chega a falar, na primeira pessoa, doEliezer que
fora servo de Abraäo, embora estivesse longe de ser o mesmohomem. No
capítulo M Grande Embuste", aquilo a que o autor chama "umafarsa mítica
recorrente" é representada de forma trágico-cómica por um grupode pessoas
- lsaac, Esaú e Jacob - todas elas conhecendo bem as pisadas queseguiam.
Mann fala do estilo e da estrutura de uma vida individual, evocadaaqui como
11 uma espécie de celebraçäo", como "a performance de umprocedimento
prescrito por um celebrante".
Esta forma de encarar o padräo da vida de um indivíduo näo éimediatamente
compreensível para nós. Quando pensamos nos elementos da vidade um
33 Ver H. Lefebvre, EverydayLife in the Modern World (tr. S.Rabinovitch, Londres, 1971). Para
um debate sobre o pós-modernismo e as atitudes para com ahistória, ver F. Jameson, "The
Cultural Logic of CapitaV, New Left Review, 146 (1984), pp. 53-93.
34 T. Mann, Treud and the Future", tr. H. T. Lowe-Porter, in P. Meisel(ed.), Freud (Englewood
Cliffs, N. L, 1981), pp. 45-60.
indivíduo como sendo recorrentes, é provável que sejamos levadosa fazê-lo
por uma de duas linhas de pensamento caracteristicamentemodernas. Podemos
pôr a variedade individual entre parêntesis, retirando-a da equaçäo,porque
vemos o significativamente recorrente como aquilo que éestatisticamente
típico. Ou entäo podemos virar a nossa atençäo para aquilo que éinconscien-
temente repetido, porque vemos o significativamente recorrentecomo aquilo
que corrói o projecto de autonomia individual. Em qualquer doscasos, aquilo
que perderemos caracteristicamente de vista é qualquer noçäo deque aquilo
que é recorrente e típico na estrutura da vida de um indivíduo ésignificativo
porque desenha um padräo que vai ser celebrado; que osindivíduos podem
celebrar o seu papel e compreender o seu valor exclusivamente porsaberem
que se trata de uma nova encarnaçäo do tradicional; que através darepetiçäo
consciente do passado uma vida individual volta a dar actualidadeao passado.
O sentido deste facto era peculiarmente familiar na antiguidade,mas só nos é
acessível, na maioria dos casos, em segunda mäo, por referência aum exemplo
da antiguidade. Podemos referir-nos a esta auto-compreensäo pré-moderna
como uma espécie de imitaçäo, desde que nos recordemos que aimitaçäo
significa, neste caso, muito mais do que o significado que damos àpalavra nos
dias de hoje. Significa algo como identificaçäo mítica.
A ideia de uma forma de vida que retira o seu significado daperformance,
por celebrantes, de procedimentos prescritos, da reanimaçäo deprotótipos,
pode ser fisicamente possível em todas as épocas, continuando aser operativa
nas condiçöes contemporâneas. Os ritos modernamente inventadosrevelam os
indícios desta possibilidade, as tentativas de ressuscitar o sentidoda vida como
reencenaçäo ritual, num vocabulário secular. Entre 1870 e 1914,particular-
mente, os países europeus assistiram a um florescimento de ritosinventados.
Jubileus reais, o Dia da Bastilha e a Internacional, os JogosOlímpicos, a Final
das Taças e a Volta à França: todos procuram restaurar, sob novaforma, a
celebraçäo do recorrente exemplar. E essas celebraçöes näo seconfinaram ao
período da sua invençäo mais sistemática. Mesmo nos dias de hoje,a maior
parte das ocasiöes em que os cidadäos säo chamados a actualizara consciência
da sua pertença aos estados, como nas eleiçöes, permanecemassociadas a
práticas semi-rituais historicamente novas; ao mesmo tempo, novostipos de
espaços rituais formais destinados ao espectáculo semi-oficial, taiscomo os
estádios desportivos, conservam a sua aura. Tanto nas ocasiöessemi-oficiais
como nas oficiais, persiste a elaboraçäo de um idioma teatral dediscurso
público simbólico. É verdade que essas ocasiöes já näo pöem àdisposiçäo da
nossa imaginaçäo o forte sentido da imitaçäo como identificaçäomítica que
Mann evoca de forma täo poderosa. Continuam, todavia, a produzire a dar
forma a um desejo de comunidade - o desejo de repetirconscientemente o
passado, de encontrar sentido na recorrência celebrada.
A celebraçäo da recorrência näo é monopólio das sociedadestradicio-
nais. Mas a celebraçäo da recorrência é um mecanismo decompensaçäo.
O capitalismo, segundo a famosa frase de Marx, arrasa toda aimobili-
dade social, toda a limitaçäo ancestral e restriçäo feudal. E os ritos
inventados, por mais envolvidos que estejam, muitas vezes, nopróprio
processo de modernizaçäo que o capitalismo prossegue, säomedidas
paliativas, fachadas que se erguem para ocultar as implicaçöestotais
desta imensa operaçäo de limpeza à escala mundial. Os ritosrecém-in-
ventados brotam e säo imediatamente formalizados, sublinhando afrac-
tura histórica global. É por isso que os ritos inventados, queenvolvem
séries de normas e de procedimentos estabelecidos, tais como osritos
de coroaçäo modernos, se caracterizam pela sua inflexibilidade. Em
virtude desta inflexibilidade processual, considera-se querepresentam,
como nenhuns outros, a ideia do imutável, perante uma sociedadede
inovaçäo institucionalizada. O seu intento é securizante, o estadode
espírito nostálgico. Portanto, näo é a experiência da imitaçäorecapitu-
lativa, da identificaçäo mítica, mas a exibiçäo de uma estruturaformal,
aquilo que constitui a marca mais evidente de tais ritos.
Nas condiçöes da modernidade, a celebraçäo da recorrência näopode ser
mais do que uma estratégia de compensaçäo, porque o próprioprincípio da
modernidade nega a ideia da vida como uma estrutura derecorrência celebrada.
Recusa-se a dar crédito à ideia de que a vida de um indivíduo, oude uma
comunidade, possa ou deva obter o seu merecimento de actos derecordaçäo
realizados conscientemente, do reviver do prototípico. Embora oprocesso de
modernizaçäo dê origem a rituais inventados como mecanismoscompensató-
rios, a lógica da modernizaçäo corrói as condiçöes que tornam osactos de
reencenaçäo ritual, de imitaçäo recapitulativa, imaginativamentepossíveis e
persuasivos, pois a essencia da modernidade é o desenvolvimentoeconómico,
a grande transformaçäo da sociedade precipitada pela emergênciado mercado
capitalista mundial. A acumulaçäo do capital, a expansäo incessantedo modelo
da mercadoria através do mercado, exige o revolucionar constanteda produ-
çäo, a transformaçäo incessante do inovador em obsoleto. Asroupas que as
pessoas vestem, as máquinas com que trabalham, os trabalhadoresque fazem
a manutençäo das máquinas, os bairros onde habitam - tudo éconstruido hoje
para ser demolido amanhä, para ser substituído ou reciclado. Adestruiçäo
intencional e repetida do ambiente construido é essencial para aacumulaçäo
35
do capital. E essencial é também a transformaçäo de todos ossinais de coesäo
em modas de vestuário, de linguagem e de prática que mudemrapidamente. A
temporalidade do mercado e das mercadorias que nele circulamgera uma
vivência do tempo como se este fosse quantitativo e fluísse numaúnica
direcçäo, uma vivência em que cada momento é diferente do outroem virtude
do que vem a seguir e se situa numa sucessäo cronológica de velhoe novo, de
antes e depois. A temporalidade do mercado nega, assim, apossibilidade da
coexistência de tempos qualitativamente distinguíveis - um tempoprofano e
um tempo sagrado, nenhum deles redutível ao outro .36 ofuncionamento deste
sistema provoca uma maciça refracçäo da credibilidade atribuída àpossibili-
dade da existência de formas de vida que sejam exemplares porserem proto-
típicas. A lógica do capital tende a negar a capacidade de secontinuar a
imaginar a vida como uma estrutura de recorrência exemplar.
Quando, por outro lado, a vida de todos os dias é encaradacomo uma
estrutura de recorrências exemplares, a persuasividade imaginativade tal
percepçäo é obtida através daquilo que podemos chamar umaretórica da
reencenaçäo. Esta retórica funciona através do emprego de, pelomenos, três
modos discerníveis de articulaçäo: podemos chamar-lhesreencenaçäo calen-
darizada, verbal e gestual.
A celebraçäo da recorrência torna-se possível, no primeiro caso,ela repe-
p
tiçäo observadapelo calendário. Os calendários permitem justapor àestrutura
do tempo profano uma outra estrutura, qualitativamente distinta daprimeira e
irredutível a esta, em que os acontecimentos mais notáveis dotempo sagrado
säo reunidos e coordenados. 37 Cada dia é, deste modo,localizável em duas
ordens de tempo bastante diferentes: existe o dia em que tais e taisaconteci-
mentos têm lugar, no mundo, e o dia em que se celebra a memóriadeste ou
daquele momento de uma história sagrada ou mítica. Embora acoexistência
destas duas ordens temporais atravesse todo o ciclo do calendário,esse ciclo
35 Ver S. Zukin, `Ten Years of the New Urban Sociology", Theoryand Society, 9 (1980),
pp. 575-601.
36 Para uma investigaçäo da experiência da modernidade querevela estas características, ver M.
Berman, All that is Solid Melts into Air (Nova lorque, 1982), e odebate deste livro in P.
Anderson, `Modernity and Revolution`, New Left Review, 144(1984), pp. 96-113.
37 Sobre a repetiçäo calendarizada, ver H. Hubert e M. Mauss, `Lareprésentation du temps dans
Ia religion et Ia magie", Mélanges dHistoire des Religions (Paris,1909), pp. 189-229; M.
Eliade, The Mith ofEternal Return (Nova Iorque, 1954); Eliade, TheSacred and the Profane
(Nova Iorque, 1959); Eliade, Myth and Reality (Nova lorque, 1963);R. Caillois, LHomme
et le sacré (Paris, 1950); G. Dumézil, "Temps et mythes".Recherches Philosophiques, 5
(1935-6), pp. 235-51; R. Marchal, "Le retour éternal", ArchivesPhilosophiques, 3 (1925),
pp. 55-91.
conterá normalmente pontos especiais em que a actividade derecapitulaçäo se
torna no foco especial da atençäo da comunidade. O Ano Novo écelebrado na
maior parte das religiöes por cerimônias onde se faz referência aum mito
cosmogónico. Em todo o mundo semita, em particular, oscerimoniais do Ano
38
Novo säo notavelmente parecidos . Em todos estes sistemas,encontramos a
mesma ideia básica de um retorno anual ao caos, seguido de umanova criaçäo.
Em todos, está expressa a concepçäo do fim e do princípio de umperíodo
temporal, baseada na observaçäo de ritmos biocósmicos ecelebrada numa
sucessäo de purificaçöes periódicas - penitências, jejuns,confissöes dos
pecados - como preparaçäo para a regeneraçäo periódica da vida.Em todos,
a encenaçäo ritual de combates entre dois grupos de actores, apresença dos
mortos e das saturnais, dá expressäo ao sentimento de que o fimdo ano velho
e a espera do ano novo säo, simultaneamente, uma repetiçäo anuale a repetiçäo
de um momento primordial - o momento mítico da passagem docaos para o
cosmos. Cada Ano Novo é interpretado como uma repetiçäocalendarizada do
acto cosmogónico. O cenário de Ano Novo de uma criaçäo repetidaé particu-
larmente explícito em todas as culturas do Médio Oriente, naBabilónia e no
Egipto, em Israel e no Iräo. Mas a Cristandade também nuncaconsiderou a
sequência material do ciclo natural a näo ser como o padräo e osímbolo de
uma ordem oculta - só que a ênfase desloca-se, neste esquema, doprotótipo
da criaçäo para o da salvaçäo. Deste modo, uma das preocupaçöescentrais do
Cristianismo primitivo era a determinaçäo da data da Páscoa, afesta que
perpetua anualmente, por um lado, a Páscoa judaica e o sacrifíciopascal, e,
39 -se
por outro, o sacrifício do Calvário e a Ressurreiçäo de Cristo .Considerava
imperativo que esta festa fosse celebrada exactamente no mesmoponto tem-
poral do ciclo anual que os acontecimentos que repetia. Nesta comonoutras
religiöes, a certeza de que os acontecimentos particulares seinseriam numa
estrutura recapitulativa beneficiava de uma espécie de efeito de ecorelativa-
mente à ordem observada de uma sequência cósmica.
Os calendários permitem fazer a distinçäo entre um tempoconstituído por
unidades que säo quantitativamente equivalentes e um tempocomposto por
unidades que säo qualitativamente idênticas. Paracompreendermos a celebra-
çäo comemorativa precisamos de ter presente esta distinçäo entreequivalência
e identidade. A noçäo de tempo nos ritos comemorativos näo é a dequantidade
38 A. J. Wensinck, "The Semitic New Year and the Origin ofEschatology`, Acta Orientalia, 1
(Lund, 1923), pp. 158 -99.
39 H. Hubert e M. Mauss, `La représentation du temps dans Iareligion et Ia magie", Mélanges
d'Histoire des Religions (Paris, 1909), p. 206.
pura e simples. As parcelas de tempo näo säo concebidas comoindefinidamen-
te divisíveis em unidades sucessivas, numa sequência linearirreversível. Pelo
contrário, os intervalos que estäo enquadrados por certas datascríticas que
ocupam anualmente a mesma posiçäo relativa no calendário, säoconsiderados
como qualitativamente semelhantes. A homogeneidade destasfases é demons-
trada pelo facto de a semelhança cronológica implicar ou permitir arepetiçäo
das mesmas acçöes. As mesmas encenaçöes e as mesmasrepresentaçöes estäo
ligadas a estes períodos rituais, de tal maneira que se pode fazercom que
pareçam ser a reproduçäo exacta umas das outras. Os mesmosritos mágicos
ou religiosos säo levados a cabo nas mesmas circunstânciastemporais, isto é,
nos pontos simetricamente idênticos de um sistema, seja ele qualfor, que
divide o tempo. As mesmas festas säo celebradas nas mesmasdatas. Em cada
festividade periódica os participantes como que se encontram,deste modo, no
mesmo tempo: o mesmo que se manifestara nas festividades doano anterior,
ou do século anterior, ou de cinco séculos atrás. Estes intervaloscríticos säo
organizados de forma a parecerem e serem vividos comoqualitativamente
idênticos. Pela sua própria natureza, o tempo ritual é, portanto,indefinidamen-
te repetível.
A retórica da reencenaçäo também está codificada na repetiçäoverbal. Nas
cerimônias do Judaísmo, do Cristianismo e do Isläo, do Budismo edo Hin-
duísmo, pronunciam-se palavras sagradas na língua de um textosagrado
oficial. Em consequência, a maioria das religiöes mundiais émarcada por uma
40
disjunçäo entre uma linguagem profana e outra religiosa. O Latim,na Igreja
Católica, o Hebreu, para os judeus, o Sânscrito védico, para oshindus e o
Arabe, para os muçulmanos, säo línguas sagradas, cuj a diferençada linguagem
vulgar deve ser acentuada. No interior desta área comum depressuposiçäo há
lugar para alguma variaçäo, no que diz respeito à natureza daautoridade
atribuída à língua sagrada e aos graus da sua exclusividadelinguística. Uma
posiçäo extrema é representada pelos muçulmanos, para quem oCoräo só é
eficaz no Arabe original, e pelos judeus, para quem a Palavra deDeus é em
Hebreu. Encontra-se uma posiçäo mais flexível no Cristianismo, quenunca
reivindicou que qualquer parte da Bíblia fosse originalmente escritaem Latim.
Todavia, na prática, o Latim havia suplantado o Grego como línguade
adoraçäo desde finais do século 111. A partir de entäo foiconsiderado como a
língua sagrada da igreja ocidental e, até 1967, a Igreja Católicamanteve-se fiel
ao ponto de vista de que os ritos religiosos deviam ser proferidos nalíngua da
liturgia latina. Mas a fractura entre uma língua de recitaçäo sagradae uma
40 Ver S. J. Tambiah, "The Magical Power of Words", Man, 3 (1968),pp. 175-208.
língua profana menos formal näo se confina às religiöes mundiais.Muitos
povos sem escrita, como os Trobriands e os Kachin, que recitam asua mitologia
religiosa em sagas, fazem-no numa forma de linguagem arcaicadificilmente
compreensível para as pessoas que falam o idioma contemporâneo.Nas
sociedades sem escrita, assim como nas que a possuem, aslinguagens sagradas
contêm uma componente arcaica, quer sob a forma de uma línguatotalmente
diferente, quer preservando parcialmente um outro idioma. Estacomponente
arcaica perdura desde que os ritos se reportem a um período derevelaçäo e
insistam na autoridade de textos verídicos, transmitidos de formaadequada
tanto por via oral como escrita. A questäo de se os que participamno rito
compreendem as palavras é, portanto, secundária e näo seconsidera que afecte
a eficácia do ritual. O que interessa é que os ritos devem manifestaro dom das
línguas. A recitaçäo dos evangelhos e salmos, de oraçöes e desagas, tem o
mesmo valor ritual - como elocuçöes repetíveis - que umagenuflexäo ou
uma oferenda, um gesto de bênçäo, ou uma dança cerimonial. Fazparte da
essência das elocuçöes sagradas o facto de deverem ter sidosubmetidas a um
mínimo de modificaçöes desde a sua origem. A sua eficácia residena repetiçäo
verbal.
Quando tem lugar como parte daquilo a que chamei a retórica dareencena-
çäo, a repetiçäo verbal possui uma característica distintiva, a qualpode ser
aprendida comparando estes modos de repetiçäo verbal com outrosexemplos
de repetiçäo aparentemente total. Há um certo tipo de repetiçäocom o qual
estamos familiarizados, quando, pela segunda vez, ou por váriasvezes, vermos
um filme, ouvimos uma música gravada, ou lemos um trabalho deliteratura.
A repetiçäo de tais obras, as quais näo necessitam, no âmbito daprópria obra,
da mediaçäo de intérpretes, é em grande medida análoga àrepetiçäo de
palavras nas representaçöes teatrais, por exemplo, onde amediaçäo desses
intérpretes é necessária; pois, tal como a representaçäo repetida damesma
peça, por actores diferentes e em alturas diferentes, acentua anatureza espe-
cífica de cada representaçäo e nos chama a atençäo para asdiferenças entre
essas representaçöes, assim também, ainda que de uma formaqualitativamente
diferente, a percepçäo "repetida" do mesmo texto, disco, ou filme,desvenda o
desenvolvimento da consciência do observador e faz salientardiferenças a
cada leitura. Nestes casos a repetiçäo total é só aparente. Porém,encontramos
um fenômeno diferente quando, por exemplo, descobrimos que emalgumas
das suas partes a liturgia cristä repete textos que anunciam umanarrativa de
salvaçäo, como um acontecimento vindouro, ou como umacontecimento que
já ocorreu na vida de Jesus Cristo. A relaçäo entre as ocorrênciasisoladas de
repetiçäo verbal é, neste caso, diferente daquela que se aplica auma obra de
arte cujas representaçöes isoladas podem ser repetidas. Por outrolado, a
relaçäo entre os acontecimentos particulares do rito e o seu actofundador näo
tem paralelo na relaçäo entre as representaçöes particulares daobra de arte e
a sua primeira representaçäo. A reencenaçäo verbal é, aqui, um tipoespecial
de actualizaräo, sendo no seu aspecto sacramental que alinguagem litúrgica
mostra a sua mais evidente qualidade de actualizaräo. Ao repetir aspalavras
da última Ceia, por exemplo, o celebrante deve, uma vez mais,repetir aquilo
que Jesus Cristo fez, dando novamente às palavras que Cristo usoua mesma
eficácia que Cristo lhes dera, conferindo de novo a essas palavras opoder de
realizarem o seu significado. Existe, em primeiro lugar, aperformatividade
primitiva, pela qual Cristo conferiu a certas palavras poder para quecumpris-
sem o seu significado. E existe, adicionalmente, aquilo a quepodemos chamar
uma performatividade secundária ou sacramental, em virtude daqual o cele-
brante, ao repetir essas palavras no contexto da oraçäo do cânone,lhes está
supostamente a restituir a sua performatividade primitiva. Nareencenaçäo
verbal deste tipo corporizámos näo a repetiçäo total, mas a ideia darepetiçäo
total.
A retórica da reencenaçäo está também codificada, numacorporizaçäo ainda
mais directa, na repetiçäo gestual. Nos rituais arcaicos,especialmente, este
processo surge mais visivelmente em jogo na presençarepresentada dos
mortos. Entre os Luapala, os anciäos usam a primeira pessoa dosingular
quando falam dos seus antepassados mortos, e esta identificaçäoatravés da
forma de dizer atinge o auge da corporizaçäo com a possessäo,durante a qual
o indivíduo anciäo deixa de existir, por assim dizer, e é substituídopor
l@ outro" . 41 Entre os índios Yuma do Colorado, os actores imitamos gestos e
feitos heróicos dos antepassados utilizando máscaras querepresentam esses
antepassados e, deste modo, os identificam com eles. É evocada apresença
activa de seres do período primordial da criaçäo, pois pensa-se quesó eles
possuem a qualidade mágica que pode conferir ao rito a eficáciadesejada.
Caillois sublinha o alcance cognitivo dessa repetiçäo gestualquando comenta
que, nestes exemplos, näo se pode fazer uma distinçäo inequívocaentre `a base
42
mítica da cerimônia e a própria cerimônia" . Dary11 Forde, por suavez,
mostrou a consequência de um tal fenômeno no caso dos Yuma,onde os seus
informadores confundiam constantemente o rito, que estavamacostumados a
celebrar, com o acto pelo qual os seus antepassados o tinhamsupostamente
41 M. Bloch, "Symbols, Song, Dance and Features of Articulation%Archives Européennes de
Sociologie, 15 (1974), pp. 77-8.
42 R. Caillois, Man, Play and Games (tr. M. Barash, Londres, 1962),pp. 108-9.
instituído originariamente . 4' Também no reino do Uganda seencontrou uma
maneira de conservar o espírito do falecido rei entre os seussúbditos, de uma
forma representativa. Após a sua morte nomeava-se um médium,ou mandura,
e nele o espírito do rei falecido fazia a sua morada. Este médiumreproduzia
näo só o aspecto exacto, mas também a fala e os gestos do reifalecido. Nos
cläs responsáveis pelo fornecimento de manduras, ascaracterísticas de cada
rei na altura da morte eram transmitidas oral e mimeticamente, paraque,
sempre que um mandura morresse, outro do mesmo clä assumisseo lugar e o
espírito do rei nunca ficasse sem representante. Este representantenäo desem-
penhava continuamente o papel do rei falecido, mas, de tempos emtempos, o
44
médium ficava possuído e personificava o rei em todos ospormenores . De
forma mais geral, em quase todas as danças cerimoniais osmascarados
representam "espíritos", isto é, na maioria dos casos, as almas dosmortos.
Lévy-Bruh1 sublinhou que a palavra "representar" deve ser aquientendida no
seu sentido etimológico literal: re-apresentar, fazer reapareceraquilo que
45
desapareceu. Usar uma máscara é ter contacto directo e imediatocom os seres
do mundo invisível. Enquanto dura esse contacto directo, aindividualidade do
actor e a do espírito que representa säo uma só. Enquanto osactores e os
dançarinos usarem essas máscaras, e pelo facto de estas lhescobrirem os
rostos, näo säo apenas representantes dos mortos, "tornam-se" nosantepassa-
dos que essas máscaras retratam - "tornam-se", de facto,temporariamente,
nos mortos e nos seus antepassados. Nesses rituais arcaicos arepetiçäo gestual
encena a ideia da bi-presença. Os habitantes do outro mundopodem reaparecer
neste mundo sem abandonarem o seu, desde que se saiba comochamá-los.
A ideia de representaçäo como re-apresentaçäo, como fazendoreaparecer
aquilo que desapareceu, näo está confinada aos ritos dos povossem escrita.
Exprime-se também em comemoraçöes que noutros aspectosdivergem na
estrutura e no tom, como o festival Muliarram. dos xiitas e a liturgiado
Catolicismo: ambos reencenam uma narrativa sagrada através derepetiçöes
gestuais, no primeiro caso através da orquestraräo de um lutofrenético, no
segundo através de uma lenta coreografia de sequência calma eordenada. O
festival Muharram dos xiitas reencena a ocasiäo em que Hussain eos seus
homens, membros "da família do Profeta", foram atacados e mortosna planície
de Kerbela, no ano de 680 .46 OS xiitas mantêm o aniversário deKerbela no
43 D. Forde, The Ethnography of the Yuma Indians (Berkeley,1931).
44 Ver E. Canetti, Crowds and Power (tr. C. Stewart, Londres,1962), pp. 313-14.
45 L. Lévy-Bruhl, Primitives and the Supernatural (tr. L. A. Clare,Nova lorque, 1973),
pp. 123-4.
46 Sobre os festivais xiitas, ver E. Canetti, Crowds and Power, pp.171-8 1.
décimo dia - Ashura - do mês de Muliarram. Choram o destino deHussain
numa reencenaçäo figurativa. Durante os primeiros nove dias dessemes, os
funcionários vestem-se de negro ou de cinzento e os soldados e oscondutores
de mulas andam com as camisas pendentes e de peito nú, o que éconsiderado
um sinal de grande pesar. Vagueiam em grupos pelas ruas, ferindo-se a si
próprios com espadas, arrastando correntes e executando dançasfrenéticas.
No décimo dia do Muliarram, o festival culmina numa procissäogigantesca
concebida como um cortejo funerário para reencenar o funeral deHussain. O
seu caixäo é carregado por oito homens e fianqueado de ambos oslados por
homens que levam estandartes. Atrás do caixäo seguem sessentahomens
ensanguentados entoando um cântico guerreiro. Atrás deles, segueainda um
grupo batendo ritmicamente com paus uns contra os outros. A dorque infligem
a si próprios representa figurativamente a dor de Hussain. É difícilimaginar
um conjunto de ritos mais afastados deste do que os da liturgiacatólica,
caracterizada, como é, por um tom de calma solenidade. Contudo,também esta
gira em redor do facto de a liturgia näo ser um enunciadoproposicional, mas
sim uma acçäo sagrada. Estas acçöes transmitem convicçäoincorporando-a.
O lugar privilegiado näo é o púlpito, mas sim o altar. No púlpito, anarrativa
sagrada recebe um comentário. No altar, a substância da narrativaé comuni-
cada pelos sinais físicos que a contêm. Os ritos säo tecidos a partirda alusäo
às escrituras e muitos gestos litúrgicos reproduzem aqueles quesäo mencio-
nados na Bíblia .47 o comer do päo, na Comunhäo; a imersäo naágua, no
baptismo; a imposiçäo das mäos, na confirmaçäo e na ordenaçäo; osinal da
cruz - todos estes gestos säo repetiçöes figurativas. Estesmovimentos rituais
conservam: enquanto a existência física é puramente efémera, osgestos rituais
mantêm-se idênticos. Onde quer que sejam repetidos, referem-se auma narra-
tiva bíblica e, ainda mais especificamente, à Jerusalém da Páscoa:a liturgia é,
por assim dizer, o permanente relembrar dessa situaçäo temporal.Aquilo que
aqu , i testemunhamos näo é o abandono da ideia da bi-presença.Antes pelo
contrário, a mimese gestual é, por assim dizer, traduzido de ummodo realista
para um modo simbólico. Um tipo de reencenaçäo miméticasubstitui outro.
Nas páginas anteriores, analisei as características que ascerimônias come-
morativas têm em comum com outros rituais de tipo extensivo eelaborado.
Nesta análise, abordei o ritual näo como um tipo de representaçäosimbólica,
mas como uma espécie de performatividade, e, para esse efeito,pus em
47 Sobre o gesto litúrgico e a referência bíblica, ver J. Daniélou,The Bible and the Liturgy
(Londres, 1956).
contraste os mitos, como reservatórios de possibilidades em que sepodem
fazer variaçöes, com os rituais, em que uma tal variaçäo näo épermissível.
Prossegui, entäo, considerando as características que distinguemas cerimônias
comemorativas como performances de uma espécie diferente. Aofazê-lo,
sublinhei a permeabilidade cultural das performances quereencenam explici-
tamente outras acçöes, representadas como prototípicas. Com esteobjectivo,
apresentei a retórica dessa reencenaçäo como calendarizada,verbal e gestual.
O que é, entäo, recordado nas cerimônias comemorativas? Parteda resposta
é que uma comunidade é recordada da sua identidade,representando-a e
contando-a numa meta-narrativa. Esta é uma variante colectivadaquilo a que
chamei anteriormente memória pessoal, ou seja, a atribuiçäo desentido ao
passado como uma espécie de autobiografia colectiva, comalgumas compo-
nentes explicitamente cognitivas. Os rituais näo säo, porém, apenasmais um
exemplo da propensäo da humanidade, actualmente muito falada,para explicar
o mundo a si própria através de histórias. Um ritual näo é um diário,ou uma
biografia. A sua meta-narrativa é mais do que uma história que seconta e sobre
a qual se reflecte. É um culto encenado. Uma imagem do passado,mesmo sob
a forma de meta-narrativa, é transmitida e conservada porperformances rituais.
E isto significa que aquilo que é recordado nas cerimôniascomemorativas é
algo mais do que uma variante colectivamente organizada damemória pessoal
e cognitiva, pois se as cerimônias devem funcionar para os quenelas partici-
pam, se devem ser persuasivas para eles, entäo essesparticipantes näo devem
ser apenas cognitivamente competentes para executarem aperformance: de-
vem estar habituados a essa performance. Esta habituaräo deve serlocalizada
- de formas que adiante desenvolverei - no substrato corporal darepre-
sentaçäo.
Conduzi a análise das cerimônias comemorativas por forma aque fosse
possível revelar a corporalidade que constitui o seu substrato. Aminha tese é
que, se a memória social existe, é provável que a encontremos nascerimônias
comemorativas. As cerimônias comemorativas mostram sercomemorativas
(só) na medida em que säo performativas. Mas a memóriaperformativa
encontra-se, de facto, muito mais difundida do que as cerimôniascomemora-
tivas, que säo - embora a performance lhes seja necessária -altamente
representacionais. A memória performativa é corporal. Por isso,defendo que
existe um aspecto da memória social que, tendo sido muitonegligenciado, é
no entanto absolutamente essencial: a memória social corporal.
CAPíTULO III
Práticas corporais
Todos nós preservamos versöes do passado, representando-o paranós próprios
em palavras e imagens. As cerimônias comemorativas säo disso umbom
exemplo. Mantêm o passado vivo através de uma representaçäodescritiva de
acontecimentos passados. Trata~se de reencenaçöes do passado,do seu regres-
so sob uma forma representacional que inclui normalmente umsimulacro da
cena ou da situaçäo recapturada. Muita da persuasividade retóricadessas
reencenaçöes depende, como vimos atrás, de um comportamentocorporal
prescrito. Mas podemos também preservar deliberadamente opassado sem o
representarmos explicitamente com palavras ou imagens. Osnossos corpos,
que nas comemoraçöes reencenam estilisticamente uma imagemdo passado,
conservam-no também de forma inteiramente efectiva na suacapacidade
duradoura para o desempenho de certas acçöes especializadas.Podemos näo
nos lembrar de como nem de quando aprendemos inicialmente anadar, mas
podemos continuar a nadar com êxito - recordando como isso sefaz - sem
qualquer actividade representacional da nossa parte. Quando anossa capaci-
dade de executar espontaneamente os movimentos corporais emquestäo é
deficiente, consultamos uma imagem mental daquilo quedeveríamos fazer.
Muitas formas de memória corrente especializada ilustram orelembrar cons-
tante do passado que, sem nunca aludir à sua origem histórica,reencena,
todavia, o passado na nossa conduta presente. Na memóriacorrente, o passado
está, por assim dizer, sedimentado no corpo.
Ao sugerir, mais em particular, como a memória se encontrasedimentada,
ou acumulada, no corpo, desejo dintinguir entre dois tiposbasicamente dife-
rentes de prática social.
Ao primeiro tipo chamarei prática de incorporaçäo. Um sorriso,um aperto
de mäo, ou as palavras que se dizem perante alguém a quem nosdirigimos,
säo mensagens que um emissor, ou emissores, comunicam atravésda sua
própria actividade corporal corrente, processando-se essatransmissäo apenas
87
durante o período em que os seus corpos estäo presentes paraapoiarem essa
actividade particular. Quer a informaçäo comunicado sejatransmitida inten-
cionalmente ou sem intençäo, e quer a acçäo seja levada a cabopor um
indivíduo ou por um grupo, referir-me-ei a estas práticas como deincorpora-
çäo.
Ao segundo tipo chamarei prática de inscriçäo. Os nossosdispositivos
actuais para o armazenamento e recuperaçäo de informaçäo - aimprensa, as
enciclopédias, os índices, as fotografias, as cassetes audio, oscomputadores
- exigem que façamos algo que capte e conserve a informaçäomuito depois
de o organismo humano ter deixado de informar. Ocasionalmente, acomuni-
caçäo pode ser involuntária, como no caso de termos o telefone sobescuta,
mas na maior parte das vezes é intencional. Falarei de todas essasacçöes como
de inscriçäo.
A memorizaräo de posturas culturalmente específicas pode serconsiderada
como um exemplo de práticas de incorporaçäo. Numa cultura emque as
posturas características dos homens e das mulheres säopraticamente idênticas,
pode existir muito pouco ensino da postura e muito poucaaprendizagem
consciente da postura.' Mas sempre que se introduzem diferençasde postura,
como, por exemplo, entre as posturas apropriadas para as ocasiöescerimoniais
e para as actividades de todos os dias, ou entre as formas de sentaradequadas
para os homens e para as mulheres, é necessário algumconhecimento daquilo
que é apropriado do ponto de vista da postura. Numa cultura, porexemplo, a
postura correcta para uma mulher se sentar pode ser com aspernas dobradas
sob o corpo para um dos lados, e a posiçäo correcta para umhomem se sentar
pode ser de pernas cruzadas. Os rapazinhos e rapariguinhas seräoco rrigidos,
oralmente ou por gestos, mas a maioria das correcçöes tomaráprovavelmente
a forma de observaçöes como "as raparigas näo se sentam assim",ou "senta-te
como um homem!". A capacidade para reprovar deve encontrar-seentre as
primeiras características de ensino, sempre que se procuraestabelecer uma
cultura transmissível; posteriormente, ela será complementada pelaintroduçäo
de novas capacidades, como sejam a de nomear uma posturaculturalmente
correcta, com palavras para agachar, ajoelhar, curvar, ficar direito,etc., com-
binadas com o apontar de formas específicas de comportamentocorrecto e
incorrecto. O comportamento postural pode ser, deste modo,altamente estru-
turado e completamente predizível, mesmo que näo seja nemverbalizado, nem
conscientemente ensinado, e pode ser täo automático que näo sejasequer
reconhecido como uma parte do comportamento passível de serisolada. A
1VerM.Mead,ContinuitiesinCulturalEvolution(NewHaven,1964),emespecialaspp.45-6.
presença de modelos vivos, isto é, a presença de homens e demulheres que,
de facto, se sentam "correctamente", é essencial para acomunicaçäo em
questäo.
A importância das posturas para a memória comunal é evidente.O poder e
a posiçäo social exprimem-se, normalmente, através de certasposturas em
relaçäo aos outros. A partir da maneira como as pessoas seagrupam e da
disposiçäo dos seus corpos, relativamente aos corpos dos outros,podemos
deduzir o grau de autoridade que se considera que cada um goza,ou que
reivindica para si. Sabemos o que significa quando uma pessoa sesenta numa
posiçäo elevada enquanto todos à sua volta ficam de pé; quandouma pessoa
fica de pé e todas as outras se sentam; quando todos se levantamna sala à
entrada de alguém; quando alguém se inclina, faz vénias, ou, emcircunstâncias
extremas, cai de joelhos perante outra que permanece de pé. Estassäo apenas
algumas das muitas configuraçöes da actividade comunal. Claroque existiräo
disparidades entre culturas quanto aos significados atribuídos aalgumas pos-
turas, mas, em todas as culturas, muita da coreografia daautoridade é expri-
mida através do corpo. Esta coreografia inclui uma sérieidentificável de
repertórios através dos quais muitas representaçöes posturaisadquirem senti-
2
do, assinalando inflexöes significativas da postura erecta. Taisinflexöes
evocam um padräo de autoridade tanto aos actores como aosobservadores e
säo, por seu lado, recordadas em muitas das nossas convençöesverbais. Isto é
evidente nas nossas metáforas comuns. Quando nos referimos aalguém como
"vertical", podemos utilizar a expressäo de forma descritiva e literalpara dizer
que a pessoa está de pé, ou podemos utilizá-la avaliativa emetaforicamente
para exprimir admiraçäo e louvor por alguém que consideramos serhonesto e
justo, leal para os amigos em dificuldades, que defende as suasconvicçöes e
que, em geral, näo se submete a acçöes baixas ou indignas.Quando nos
referimos a alguém que goza de uma posiçäo social elevada,dizemos que tem
listatus" ou "posiçäo". Quando falamos de infortúnios de toda aespécie,
referimo-nos à mudança de circunstâncias como uma queda;caímos nas mäos
do inimigo, caímos no infortúnio, caímos em desgraça. Estes ditosmetafóricos
näo säo ad hoc. Recordam-nos padröes de autoridade porque näoformam
apenas ditos metafóricos, mas sistemas globais de expressäometafórica .3 OS
nossos conceitos opostos de "para cima" e "para baixo" säooriundos da nossa
2 Sobre a postura erecta, ver E. Straus, Essays inPhenomenological Psychology (Londres,
1966), pp. 137-65.
3 Ver G. Lakoff e M. Johnson, Metaphors Wè Live By (Nova Iorque,1980), em especial
pp. 15-20 e 56-57.
lä,
experiência corporal de verticalidade. Quase todos os movimentoscorporais
que fazemos mudam a nossa orientaçäo de cima para baixo,mantêm-na ou
têm-na de algum modo em consideraçäo. A direcçäo para cima,contrária à
gravidade, estabelece a base postural, na nossa experiência doespaço vivido,
para o sentido dicotórnico a que ligamos os valores, tais comoaqueles que
exprimimos nas oposiçöes entre alto e baixo, erguer-se e baixar-se,subir e cair,
superior e inferior, olhar para cima e olhar para baixo. É através danatureza
essencialmente corporizada da nossa existência social, e atravésdas práticas
incorporadas baseadas nestas corporizaçöes, que estes termosopostos nos
fornecem as metáforas pelas quais pensamos e vivemos. Asperformances
posturais culturalmente específicas fornecem-nos uma mnemónicado corpo.
O alfabeto pode ser citado, por contraste, como exemplo de umaprática de
inscriçäo. É uma prática que existe em virtude de uma transferênciasistemática
das propriedades temporais da voz humana para as propriedadesespaciais dos
símbolos inscritos: isto é, para características repetíveis em termosde forma,
4
posiçäo, distância relativa, ordem e disposiçäo linear. Outrossistemas de
escrita - pictogramas, hieróglifos e ideogramas - exibem a mesmacaracte-
rística, mas os seus métodos de modificaçäo espacial säoradicalmente incom-
pletos porque continuam a depender de uma inscriçäo directa dossignificados.
E por isso que os pictogramas, por exemplo, säo täo deficientescomo sistemas
mnemónicos: é necessário um grande número de símbolos pararepresentar
todos os objectos de uma cultura. A mais simples das frases exigeuma série
elaborada de símbolos, só podendo dizer-se um número limitado decoisas. É
claro que sistemas de escrita limitados deste tipo, em que o símbolorepresenta
directamente o referente, säo capazes de extensäo semântica;pode'também
fazer-se corresponder o mesmo símbolo a uma classe mais geralde objectos,
ou a outros referentes associados ao símbolo original, porassociaçäo de
sentido. Deste modo, nos hieróglifos egípcios o símbolo doescaravelho
simbolizava näo só esse insecto, mas também um referente distintoe mais
abstracto: "porque". Mas dado que todos esses métodos deelaboraçäo inscri-
cional permanecem arbitrários, a interpretaçäo dos seus símbolosnäo é fácil
nem explícita. Na escrita chinesa uma pessoa tem de aprender ummínimo de
3000 caracteres antes de ser razoavelmente instruída, existindo, nototal, um
repertório de 50000 caracteres para ser dominado. O princípiofonético marca
uma ruptura decisiva com todos esses procedimentos. Aquilo que odistingue
de todos os outros sistemas de escrita é o facto de os seus 22elementos, a partir
4 Ver P. Ricoeur, Interpretation Theory: Discourse and the SurplusofMeaning (Fort Worth,
1976), pp. 42 e seguintes.
dos quais o sistema é construido, näo terem em si próprios umsentido
intrínseco. Os nomes das letras gregas, alfa, beta, gama, etc.,constituem uma
cantilena infantil destinada a gravar os sons das letras, numasequência fixa,
no cérebro da criança, ao mesmo tempo que correlacionafirmemente esses
sons com a visäo que a criança tem de uma sequência fixa deformas, para a
qual olha enquanto produz os valores acústicos. Na sua formasemítica original
estes nomes eram os nomes de objectos comuns, como "casa",`camelo`, etc..
Em Grego, esses nomes perderam o sentido. Quando as unidadesque compöem
o sistema foram, deste modo, esvaziadas de qualquer sentidoindependente,
transformaram-se num dispositivo mecânico de memorizaräo. Essedispositi-
vo impunha ao cérebro um hábito de reconhecimento na fase dedesenvolvi-
mento anterior à puberdade, enquanto o código de linguagem oralestava a ser
adquirido. Os dois códigos necessários para fajal- C,@p051rfjofMCRIC@ púld
escrever, combínam-se numa altura em que os recursos mentaissäo ainda
extremamente maleáveis, de tal forma que os actos de leitura e deescrita se
tornam um reflexo inconsciente. A ruptura cultural estabelecido peloprincípio
fonético tem, assim, um significado ontogénico decisivo.
Muito se tem escrito sobre o impacte da escrita na memóriasocial, que é,
evidentemente, imenso.' A transiçäo de uma cultura oral para umacultura
escrita é uma transiçäo de práticas de incorporaçäo para práticasde inscriçäo.
O impacte da escrita resulta do facto de qualquer relato transmitidoatravés das
inscriçöes ficar inalteravelmente fixado e o processo da suacomposiçäo
definitivamente encerrado. A ediçäo padronizada e a obra canónicasäo os
emblemas desta condiçäo. Esta fixidez é a fonte que liberta ainovaçäo. Quando
as memórias de uma cultura começam a ser transmitidasprincipalmente
através da reproduçäo das suas inscriçöes, e näo pelas narrativas`ao vivo", a
improvisaçäo torna-se cada vez mais difícil e a inovaçäo éinstitucionalizada.
A escritafonética gera a inovaçäo cultural ao promover doisprocessos: a
economia e o cepticismo. Economia, porque a forma da memóriacornunal é
5 Sobre o impacte da escrita na memória social ver, em especial,J. Goody, The Domestication
of theSavageMind (Cambridge, 1977); J. Goody e 1. P. Watt,`The Consequences of Literacy",
Comparative Studies in History and Society, 5 (1963), pp. 304-45; J. Goody, `Literacy and
the Non-Literate", ín R. Disch (ed.), The Future of Literacy(Englewood Cliffs, 1973); J.
Goody, "Mémoire et apprentissage dans les sociétés avec etsans écriture: Ia transmíssion du
Bagre",LHomme, 17 (1977), pp. 29-52; mas ver também E. L.Eisenstein, "Some Conjectures
about the Impact of Printing on Western Society and Thought11,Journal of Modern History,
40 (1968), pp. 1-56; 1. J. Gelb, A Study of Writing (Chicago,1952); E. A. Havelock, Origins
of WesternLiteracy (Toronto, 1976); Havelock, `The Prelíteracy ofthe Greeks", New Literary
History, 8 (1977), pp. 369-92; Havelock, The Literate Revolutionin Greece and its Cultural
Consequences (Princeton, 1982).
6
libertada da sua dependência do ritmo. Cepticismo, porque oconteúdo da
memória comunal é sujeito a uma crítica sistemática. No que dizrespeito à
economia, podemos reparar que, nas culturas orais, a maior parteda recordaçäo
formal dos acontecimentos assume a forma de performancesrecitadas repeti-
damente pelos guardiöes da memória para aqueles que ouvem falardela. Estas
declaraçöes performativas em larga escala têm de ser emitidas deuma forma
estandardizada, para que haja alguma possibilidade de virem a serrepetidas
por geraçöes sucessivas. Os ritmos da poesia oral säo osmecanismos privile-
giados de recordaçäo, porque o ritmo inclui a cooperaçäo de todauma série de
reflexos motores corporais no trabalho de recordaçäo. Mas o ritmoimpöe
limites drásticos à disposiçäo verbal daquilo que pode ser dito epensado. A
escrita fonética derruba estas limitaçöes. Ao substituir um registoacústico por
um registo visual, o alfabeto liberta uma sociedade dosconstrangimentos de
uma ninemónica rítmica. Os enunciados particulares já näonecessitam de ser
memorizados, podendo existir como artefactos e ser consultadosquando for
preciso. Esta economia da memória liberta extensas energiasmentais anterior-
mente investidos na construçäo e na preservaçäo de sistemasrnnemónicos. Por
isso, encoraja a produçäo de enunciados näo familiares e opensamento de
ideias originais. No que diz respeito ao cepticismo, podemos verque, nas
culturas orais, muita da recordaçäo informal dos acontecimentostoma a forma
de conversaçäo face-a-face. Isto impede, necessariamente, aarticulaçäo de um
sentido de inconsistência, ou até de incoerência, na construçäo daherança
cultural. É verdade que as sociedades orais fazem, muitas vezes,uma distinçäo
entre o conto popular, o mito e a lenda histórica. Mas mesmo quesurja
inconsistência entre, ou no interior de, tais géneros é poucoprovável que o
sentimento de inconsistência venha a gerar um impacte culturalpermanente.
O cepticismo é particular e näo culturalmente acumulativo. Geradisputas
nominais, mas näo uma reinterpretaçäo deliberada da herançacultural. A
distinçäo entre aquilo que era considerado mítico e o que seconsiderava ser
histórico nasceu quando se tomou possível colocar uma explicaçäofixa do
mundo ao lado de outra, de forma a que as contradiçöes internas, eentre elas,
pudessem, literalmente, ser vistas. Quer através da crítica, queratravés da
6 Para o efeito do ritmo sobre a memória, ver especialmente M.Jousse, IlÉtudes de psychologie
linguistique. Le sty1e oral rhythmique et mnémotechnique chezles verbo -moteurs",Archives
de Philosophie, vol. 11, 4 (1924), pp. 1-240; mas ver também E.A. Havelock, Preface to Plato
(Cambridge, Mass., 1963).
7 Sobre o cepticismo literário e cultural, ver J. Goody e 1. P. Watt,"The Consequences of
Literacy", Comparative Studies in History and Society, 5 (1963),pp. 304-45.
economia, a substância da memória comunal é mudada pelatransformaçäo da
tecnologia da comunicaçäo.
É provável que estas distinçöes nos coloquem algumas dúvidas,pois é
certamente verdade que muitas práticas de inscriçäo contêm umelemento de
incorporaçäo e pode bem ser que nenhum tipo de inscriçäo seja detodo
concebível sem algo de incorporaçäo.
É certamente verdade que a escrita, o exemplo mais óbvio deinscriçäo, tem
uma componente corporal irredutível. Temos tendência a esqueceristo. A
escrita é um exercício habitual de inteligência e de vontade queescapa,
normalmente, à atençäo da pessoa que a exerce devido a estafamiliaridade
com o modo de proceder. Todos os que sabem escrever comproficiência sabem
täo bem como dar forma a cada letra, e conhecem täo bem cadapalavra a
escrever, que deixaram de ter consciência desse conhecimento, oude reparar
nesses actos específicos da vontade. Cada um desses actos, noentanto, é
8
acompanhado por uma acçäo muscular correspondente. A maneiracomo
aderimos geralmente ao mesmo método de formar o mesmocaracter da
caligrafia demonstra que a escrita exige uma capacidade muscularmínima. Se
começamos a escrever de uma maneira näo familiar, como quandoescrevemos
com letra de imprensa em vez de escrevermos de forma comum,tomamos
consciência que cada caracter que formamos envolve uma acçäocorporal.
Existe, todavia, uma boa razäo para escolhermos o elementoinscricional da
escrita como característica dominante, pois, quando aprendemos aescrever, os
movimentos físicos que fazemos näo têm significado próprio, massäo contin-
gentemente exigidos para desenhar as formas que estäo, elaspróprias, relacio-
nadas de uma maneira meramente arbitrária com o sentido. Estacontingência
dos movimentos da mäo envolvidos é bem demonstrada pelo usoda máquina
de escrever, onde o registo dos mesmos símbolos exigemovimentos corporais
diferentes.
Claro que podíamos considerar um caso bastante diferente, emque a prática
de uma boa caligrafia é concebida como parte do treino de umcorpo dócil.
Aqui, o controlo disciplinador consiste na imposiçäo da melhorrelaçäo entre
um conjunto de gestos e a posiçäo global do corpo, que é a suacondiçäo de
eficiência e de rapidez. Näo se trata de um exemplo hipotético, massim
histórico: no seu inventário dos modos de vigilância, Foucault cita odiscipli-
nador Lä Salle, que fala de um ensino da caligrafia em que umcorpo discipli-
nado constitui um requisito prévio para um conjunto de gestoseficiente. Os
alunos, diz ele, devem ter sempre "os corpos direitos, um poucovirados e soltos
8 Sobreaescritaeamemória-hábito,verS.Butler,LifeandHabit(Londres,1878),pp.6-7.
do lado esquerdo, levemente inclinados, para que, com o cotovelosobre a
mesa, o queixo possa descansar sobre a mäo, a menos que istointerfira com a
visäo. A perna esquerda deve estar um pouco mais para a frente,sob a mesa,
do que a direita. Deve deixar-se urna'distância de dois dedos entreo corpo e a
mesa; pois näo só se escreve com maior vivacidade, como nada émais
prejudicial à saúde do que adquirir o hábito de se premir oestômago contra a
mesa. O antebraço esquerdo e a mäo devem estar pousados sobrea mesa. O
braço direito deve estar a uma distância de cerca de três dedos docorpo e a
cerca de cinco da mesa, sobre a qual deve repousar ligeiramente. Oprofessor
colocará os alunos na postura que eles devem conservar enquantoescrevem,
e corrigi-los-à, por sinais ou de outro modo, quando alterarem essaposiçäo".9
Lä Salle propöe aqui um treino de docilidade rigorosa, uma espéciede ginástica
minúscula. A questäo essencial é que aquilo que se prescreve eaprende é uma
prática de incorporaçäo. Acontece que é também uma prática deinscriçäo. Mas
esta é uma característica contingente da prática em questäo, poisaquilo que
está a ser aprendido é, fundamentalmente, um acto deincorporaçäo.
A mesma questäo se aplica de forma menos evidente, mas näomenos certa,
à instituiçäo do cinema. Dizer que o cinema é uma prática deinscriçäo é
sublinhar a característica que o distingue do teatro. 10 No teatro, osactores e os
espectadores estäo presentes ao mesmo tempo e no mesmo lugar.Tudo o que
a audiência vê e ouve está a ser activamente produzido na suapresença por
seres humanos, ou por acessórios, que estäo, eles próprios,presentes. No
cinema, os actores estavam presentes quando os espectadores seencontravam
ausentes (na rodagem) e os actores estäo ausentes quando osespectadores estäo
presentes (na projecçäo). Näo estou apenas longe do objecto, comono teatro:
o que fica igualmente distante, no cinema, já näo é o próprioobjecto, que se
encontra inacessível desde o princípio, mas sim, como Metz oafirma, um
delegado que me foi enviado enquanto o objecto em si se retirava.Aquilo que
define as regras do olhar específicas do cinema é a ausência doobjecto que é
visto. A ausência do objecto e os códigos através dos quais damossentido a
essa ausência säo produzidos pelo processo da inscriçäo técnica. Ocinema
inscreve, mas näo poderia ser uma prática de inscriçäo se näofosse, num
sentido específico, uma prática de incorporaçäo. Aquilo que seincorpora é uma
convençäo ocular: a identificaçäo do objecto com a câmara.Durante a sessäo
de cinema os espectadores duplicam a acçäo do projector,comportando-se os
9 M. Foucault, Discipline and Punish. The Birth of the Prison(traduçäo de A. Sheridan,
Londres, 1977), p. 152.
10 Ver, em particular, C. Metz, Le Signifiant imaginaire (Paris, 1977).
seus olhos, por assim dizer, como projectores. Sem estaidentificaçäo com a
câmara certos factos permaneceriam inintelegíveis: por exemplo, ofacto de os
espectadores näo ficarem confusos quando as imagens do écran"rodam" num
movimento panorâmico, sabendo que näo viraram a cabeça. Osespectadores
näo necessitam de virar a cabeça, na verdade, pois já o fizeram namedida em
que se identificaram, como sujeitos omnividentes, com o movimentoda
câmara. Se o olho que assim se move já näo se encontrasubmetido às leis da
matéria, se o olho, neste sentido, já näo está limitado ao corpo,tornando-se
capaz de múltiplas deslocaçöes, entäo o mundo, no cinema, näo sóserá
constituído pelo olho, no sentido em que o olho-sujeito constituía abase
invisível da perspectiva do Quaurocento, mas o mundo seráconstituído para
o olho. Isto marca um ponto de viragem na formaçäo social do olho.No cinema,
encontro-me simultaneamente na acçäo e fora dela, neste espaço efora dele.
Possuindo o dom da ubiquidade, estou em todo o lado e em ladonenhum. A
prática inscricional do cinema torna possível e é, por sua vez,tornada possível,
pela prática de incorporaçäo do espectador do cinema.
Muitas práticas de inscriçäo contêm um elemento deincorporaçäo e pode
até dar-se o caso de que nenhum tipo de inscriçäo seja de todoconcebível sem
uma tal componente irredutível de incorporaçäo. Todavia, uso adistinçäo entre
práticas de incorporaçäo e de inscriçäo para servir o objectivo daminha
argumentaçäo, na medida em que é possível distinguir entre acçöesnas quais
um ou outro dos aspectos predomina. Por outras palavras, a minhaclassifica-
çäo é concebida como um dispositivo heurístico.
2
As práticas de incorporaçäo que tenho em mente caracterizam-se,em geral, JK,
por um menor grau de formalidade do que o que se encontranaqueles aconte-
cimentos altamente invariáveis, como certas liturgias religiosas, nasquais a
performance é previamente especificado na sua quase totalidade eonde as
ocasiöes de variaçäo säo poucas e rigorosamente definidas. Entreesta série de
actividades existem, no entanto, tipos diferentes de práticascorporais cultural-
mente específicas que diferiräo umas das outras no seu grau deformalidade
característico. Claro que há alguma dificuldade na distinçäo daspráticas
corporais em termos do critério de formalidade. Os acontecimentosrecorrentes
nem sempre podem ser facilmente divididos naqueles que säoformais e
naqueles que o näo säo. Ocupam, antes, áreas móveis ao longo deum conti-
nuum. Existe uma sequência de formalidade comportamental:desde as pala-
vras e dos gestos formais presentes de forma dispersa naconversaçäo vulgar
e nos acontecimentos quotidianos; passando pelas formalidadesquotidianas
do comportamento de saudaçäo e pelas expressöes formais dedeferência e de
conduta; pelos procedimentos bastante invariáveis, digamos, dotribunal, no
interior do qual a substância variável de litígio é limitada pelosmeios que a
submetem a uma apresentaçäo ordenada; até, finalmente, ocasiöescomo as
coroaçöes, em que os aspectos invariáveis do acontecimentocomeçam a
predominar sobre os seus aspectos variáveis. É, pois, impossíveldistinguir
inequivocamente entre tipos de formalidade qualitativamentediferentes. Aqui-
lo que aqui desejo sugerir é apenas um conjunto de distinçöesheurísticas entre
cerimônias do corpo, convençöes do corpo e técnicas do corpo.
Como exemplo das técnicas do corpo poderíamos considerar agestualidade.
Particularmente esclarecedor é o estudo de David Efron, em queeste autor se
propôs averiguar se existiam algumas diferenças padronizadas eclassificáveis
no comportamento gestual dos grupos." Explorou esta questäorelativamente
a dois sub-grupos de tipo "tradicional": judeus oriundos da Europade Leste e
italianos do Sul, residentes em Nova lorque. Com o termo"tradicional"
referia-se tanto aos indivíduos estrangeiros como aos nascidos naAmérica que
tivessem conservado a língua e os costumes do grupo de que eramoriginários
e que houvessem permanecido relativamente impermeáveis àinfluência do
ambiente americano. Como método de investigaçäo, rejeitou asexperiências
de laboratório a favor dos cenários naturais. Todo o seu material foiobtido em
situaçöes espontâneas, no ambiente quotidiano das pessoas emcausa, as quais
desconheciam ser alvo de um estudo. Como objecto deinvestigaçäo, excluiu
qualquer consideraçäo sobre a expressäo facial, a postura, o modode andar ou
o movimento dos olhos. A sua atençäo incidiu principalmente nomovimento
das mäos e, em menor grau, nos movimentos da cabeça. Este focode atençäo
limitado justificava-se pela observaçäo de senso comum de queambos os
grupos de imigrantes "falavam com as mäos" de modos que näoestavam em
consonância, de uma forma óbvia, com a sociedade círcundante.Após um
exame minucioso, verificou-se que essa dissonância tinha sentidossurpreen-
dentemente diferentes e desníveis consoante o grupo em questäo.
A partir dos dados recolhidos no bairro italiano de Nova lorque,Efron foi
capaz de construir um inventário mais ou menos exaustivo do"pacote de
imagens" que os italianos do Sul trazem nas mäos. Este era, comefeito,
equivalente a um léxico, a um vocabulário gestual que compreendiapelo
menos cento e cinquenta items. Alguns destes movimentosformalizados
1 1 D. Efron, Gesture and Environment (Nova lorque, 194 1).
podem encontrar-se também no repertório de outros grupos. Outrossäo locais,
sendo o seu significado compreensível apenas para um membro deuma
comunidade italiana do Sul, ou para alguém que esteja familiarizadocom o
seu sistema de sinais corporais. Estes movimentos säo, por assimdizer,
palavras" manuais que designam associaçöes significativas mais oumenos
definidas, ilustrando as próprias coisas referidas pelas palavras queos acom-
panham. O comportamento gestual dos italianos do Sul tem umcarácter
substantivo, no sentido em que contém um grande número deréplicas espa-
cio-visuais dos referentes do pensamento. A produçäo desses "slides " gestuais
pode, quando levada até ao limite, concatenar-se numa "projecçäode slides"
completa que dispensa o acompanhamento verbal. O cardealManning já muito
tempo antes ficara espantado com a capacidade dos sicilianos paralevarem a
cabo uma conversaçäo completa sem o auxílio de uma únicapalavra falada; e
também Efron ficou surpreendido com a apariçäo de longassequências de
gestos pantomímicos, quando vários actores italianos proeminentesde Nova
lorque näo evidenciaram qualquer dificuldade em encenar umasérie de `pan-
tomimas" que eram inteiramente providos de sentido para quemestivesse
familiarizado com o sistema de imagens e de símbolos gestuaisutilizado pelo
seu grupo. Mais impressionante ainda do que a auto-suficiênciadeste reportó-
rio lexical era a sua longevidade. Mais de um século antes, Andreadi Jorio
havia produzido uma descriçäo exaustiva do vocabulário gestualdos napoli-
tanos tradicionais, na sua Mimica degli Antichi Investigata nelGestire Napo-
letano. 12 Muitos dos gestos descritos por di Jorio continuam a serutilizados
entre os napolitanos contemporâneos, tanto na Itália como nosEstados Unidos.
É possível seguir a pista de alguns deles até épocas täo remotascomo a Grécia
e a Roma antigas, como se pode verificar através da comparaçäodas tabelas
gestuais de Efron com as descriçöes e as reproduçöes pictóricasdos gestos
gregos e romanos fornecidos por di Jorio e por Karl Sitt1.13Vários dos
movimentos de mäos incluídos na colecçäo de Efron säoreconhecíveis na
descriçäo dos gestos oratórias romanos de Quintiliano.
Enquanto os italianos do Sul ilustram gestualmente os "objectos"dos seus
actos mentais, os judeus oriundos dos guetos da Europa de Lesteproduzem
uma notaçäo gestual do "desenvolvimento" da sua actividademental. Näo se
trata de uma espécie de representaçäo visual, mas de uma espéciede orques-
traçäo musical. Os judeus tradicionais estudados por Efronempregavam muito
raramente as mäos e os braços, à maneira de um lápis ou pincel,para descre-
à,>
12 A. di Jorio, Mimica degli Antichi Investigata nel GestireNapoletano (Nápoles, 1832).
13 K. SittI, Die Gebärden der Griechen und Römer (Leipzig, 1890).
verem as "coisas" a que se referiam. Utilizavam, antes, as mäos eos braços
como uma batuta para ligar uma proposiçäo a outra, para traçaremo caminho
de uma viagem lógica e para orquestrarem o ritmo do seumovimento mental.
Os gestos näo podem ser especificados como "querendo dizer`alguma coisa.
Só comunicam com alguém que compreenda as palavras que osacompanham,
particularmente se estiver familiarizado com os significados decertas formas
de entoaçäo estereotipadas características do Yiddish. Emconsequência, vá-
rios actores judeus proeminentes de Nova lorque, que colaboravamcom Efron
nas suas investigaçöes, näo foram capazes, ao contrário dos seuscolegas
italianos, de criar qualquer pantomima com significado baseada nosgestos
"judeus", pois aquilo que é produzido por estas formas gestuais näoé uma
representaçäo pictórica do discurso, mas uma orquestraräo domesmo. Quase
todas as inflexöes gestuais correspondem e realizam uma mudançana ênfase
lógica, uma mudança de direcçäo, ou uma alteraçäo no ritmo dopensamento.
Estas inflexöes säo movimentos lógicos, mapeando o "alto" e o"baixo", os
"desvios" e os "cruzamentos" de um percurso ideacional. Levado aoseu
extremo, o carácter lógico deste tipo de gesto - que näo éobservável no
comportamento dos italianos do Sul tradicionais - torna-se muitoevidente
naqueles momentos em que o movimento assume uma formaquase silogística,
em que as inflexöes do corpo correspondem e corporizam as duaspremissas e
a conclusäo do padräo de pensamento.
Efron pôde distinguir, assim, duas classes de gestos. Num dostipos, o
significado do gesto é referencial, podendo essa referencialidadeconcretizar-
-se de diferentes maneiras. Os movimentos da mäo, do braço e dacabeça
podem referir-se, através de um sinal, a um objecto visualmentepresente,
apontando mesmo para ele. O movimento pode ilustrar a forma deum objecto
visual, uma relaçäo espacial, ou uma acçäo corporal. Ou, por outrolado, o
movimento pode representar quer um objecto visual, quer umobjecto lógico,
através de uma forma pictórica ou näo-pictórica, sem relaçäomorfológica com
a coisa representada. Todos eles säo variedades de um único tipobásico: o
gesto referencial. Podem ser contrastados com um segundo tipo emque o
significado do gesto é anotativo. Estes movimentos têm significadodevido à
estruturaçäo e à ênfase que conferem ao conteúdo do discursoverbal que os
acompanha. Encenam corporalmente as pausas, as intensidades eas inflexöes
da sequência de discurso correspondente. Traçam no ar asdirecçöes tomadas
por um vôo do pensamento. Este tipo de movimento é um retratogestual, näo
do "pensamento" ou do "objecto" de referência, mas do cursoseguido pelo
processo ideacional.
Estabelecida esta distinçäo, podemos dizer que tanto os italianosdo Sul
como os judeus do Leste europeu "falam com as mäos", mas isto éliteralmente
verdade no que toca aos primeiros e metaforicamente verdade noque diz
respeito aos segundos. Em primeiro lugar, a onomatopeia gestual(ilustrando
a forma de um objecto, uma relaçäo espacial, ou uma acçäocorporal) e os
símbolos gestuais (representando um objecto visual ou lógico porum movi-
mento pictórico ou näo pictórico, que näo está morfologicamenterelacionado
com o referente) encontram-se com frequência no comportamentodos italia-
nos do Sul e raramente no dos judeus do Leste. Por outro lado, osgestos de
anotaçäo (delineando o curso de um processo de pensamento) täotípicos dos
judeus de Leste, säo virtualmente inobserváveis nos italianos doSul. A dispo-
nibilidade de repertórios gestuais particulares nos movimentos dasmäos dos
indivíduos de cada um dos grupos depende, em grande medida, dasua história,
da sua pertença cultural; e a performance apropriada dosmovimentos extraídos
desse repertório depende tanto da memória-hábito dos seusmembros como
evoca de forma tácita a sua memória daquela fidelidade comunal.
. Como exemplo das convençöes do corpo podemos considerar asmaneiras
de estar à mesa. Este tema é tratado explícita epormenorizadamente num
famoso tratado de Erasmo, o De civilize morum puerilium, de 1530.14 Este
livro especifica máximas de conduta respeitantes àquilo a queErasmo chama
"o decoro corporal exterior", sendo as boas maneiras "exteriores",de atitude
corporal, dos gestos, da postura, da expressäo facial e do vestuário,vistas como
a expressäo da pessoa "interior". O impacte do tratado foi imediato,vasto e
duradouro. Nos primeiros seis anos após a sua publicaçäoconheceu mais de
trinta reediçöes. Foi rapidamente traduzido para Inglês, Francês eAlemäo e,
no total, fizeram-se mais de 130 ediçöes, treze das quais já noséculo XVIII.
As questöes abordadas neste tratado, tal como as examinadas no IlCortegiano,
de Castiglione, e no Galateo, de Della Casa, conferiram uma novaprecisäo e
centralidade ao conceito de civilizas, diversamente traduzido nacivilité fran-
cesa, na civility inglesa e na civiltà italiana. Dado que o decoro e ocomedi-
mento eram atributos essenciais da civilidade, era natural que seatribuísse uma
importância crucial ao controlo cultural do apetite, no seu sentidomais literal,
e, por isso, às maneiras de estar à mesa.
Algumas pessoas, diz Erasmo devoram os alimentos, em vez deos comerem.
Comportam-se como se fossem ladröes a comer vorazmente apresa, ou prestes
a serem levados para a cadeia. Metem as mäos nos pratos, mal seacabam de
sentar, e enchem de tal maneira a boca que as bochechas lhesincham como
14 D. Erasmus, De civilitate morem puerilium (Basileia, 1530).
foles. Comem e bebem sem fazerem qualquer pausa, näo por teremfome ou
sede, mas porque näo conseguem controlar os seus movimentos deoutra
maneira, Coçdm,9 cffiep, brific3m com uma faca, cäo incapazes dese absterem
de tossir, resfolegar e cuspir. Todos esses sinais de perturbaçäo ede grosseria
rústica devem ser evitados. Nunca devemos ser os primeiros a tirarcomida da
travessa. Näo devemos remexer a travessa toda com a mäo ourodá-la para que
um bocado melhor nos venha a caber, mas devemos tirarsimplesmente o
primeiro pedaço que se nos apresente. É má educaçäo lamber osdedos
engordurados ou molhar o päo no molho depois de o termosmordido. É
indecoroso oferecer a outra pessoa um pedaço da carne queestamos a comer
e mostra falta de elegância tirar-se comida mastigado da boca evoltar a pô-la
no prato. E é bom que a conversa interrompa de vez em quando arefeiçäo.
Em O Processo Civilizacional, Norbert Elias analisa o texto deErasmo,
entre outros, quando procura demonstrar que nada nas modernasmaneiras de
estar à mesa é evidente em si mesmo, expressäo de um sentimento"natural"
de delicadeza, ou simplesmente "razoável". Se se tornaram tudoisso, é em
virtude de serem um conjunto de práticas particulares construidolentamente,
num processo histórico de longa duraçäo. 15 Os utensílios usadosà mesa, no
Ocidente, näo säo utensílios com fins óbvios e usos evidentes. Nodecorrer dos
séculos, e particularmente entre os séculos XVI e XVIII, as suasfunçöes
definiram-se gradualmente, as suas formas consolidaram-se e osvalores
ligados a essas funçöes e formas foram lentamente inculcados.Amaneira como
se segura na faca, no garfo e na colher estandardizou-se poucoa,pouco. A
prática do uso do garfo foi lentamente adquirida, assim como ohábito de tomar
os líquidos apenas com uma colher. Nos finais do século XVIII, aociosa classe
superior francesa havia elaborado totalmente o padräo dasmaneiras de estar à
mesa que veio gradualmente a ser considerado como evidente emtoda a
sociedade civilizada ocidental. As formas dos talheres näo passam,desde
entäo, de variaçöes sobre temas acabados, permanecendo imutávelo método
de os manusear, desde essa época, nos seus aspectos essenciais.Estas säo uma
série de convençöes corporais historicamente específicas. Säocapacidades
técnicas imbuídas de valores morais. Só säo "esquecidas" comomáximas
quando foram bem memorizadas como hábitos.
Aquilo que se recorda é um conjunto de normas para definir ocomporta-
mento "correcto". O controlo do apetite, no sentido mais literal, fazparte de
um processo muito mais vasto que, dependendo do nosso ponto deobservaçäo,
surgirá ou como uma estrutura de sensibilidade, ou como umpadräo de
15 N. Elias, The Civilizing Process (tr. E. Jephcott, Londres, 1978).
controlo institucional. Estes pontos de observaçäo esclarecem-sereciproca-
mente, dado que o processo no seu todo deve ser entendido comoocorrendo a
dois níveis que se interligam. Há a formaçäo de um tipo de pessoacuja
sensibilidade é afinada para os mais exigentes e meticulososincitamentos do
decoro; e existe a formaçäo de um tipo de sociedade cujo controlosobre os
seus membros é mais estratificado e mais centralizado. A um nível,existe um
desenvolvimento do auto-controlo individual particularmente forte.As regras
da etiqueta impöem constrangimentos interiorizados sobre qualquerexibiçäo
indiscriminada dos sentimentos e ensinam a dar atençäo àsnuances mais finas
da compostura e às distinçöes entre a vida pública e a privada. Aoutro nível,
existe um desenvolvimento particularmente acentuado do controlosocial. As
regras da sociedade cortesä impöem uma distância social bemregulamentada
entre classes de pessoas que se podem distinguir por padröespublicamente
observáveis de comportamento refinado. O controlo social, que éprerrogativa
da sociedade cortesä, e o auto-controlo, que é o predicado de umapessoa
11 civilizada", definem-se mutuamente. A Elias coube o mérito dehaver com-
preendido esta concomitância, de haver mostrado que aquilo que éanalitica-
mente separável é historicamente inextricável.
O corpo é o ponto de ligaçäo entre estes dois níveis. É nasconvençöes
corporais que as regras de etiqueta e as normas da corte säoreproduzidos e
recordadas. Säo recordadas como memórias-hábito, como regrasde decoro
habitualmente observadas. O decoro implica'que o apetite deve sersatisfeito
de forma apropriada, especialmente no que é o acto incorporadorpor excelên-
cia - o consumo. O domínio precário da cultura sobre a natureza écelebrado
fazendo-se da refeiçäo uma ocasiäo em que se demonstra o gosto.Este, como
nos lembra Bourdieu, é um modo de se negar a funçäo primária doconsumo
- a satisfaçäo de uma necessidade básica - tornando a refeiçäo ummomento
de celebraçäo do refinamento artístico e do valor ético. 16 Existeum compro-
misso estudado com a estilizaçäo: na etiqueta que governa o usodos talheres,
na distribuiçäo dos lugares à mesa, na sequência da refeiçäo, nospreceitos
observados para se servir os outros e a si próprio, esperando atéque a última
pessoa a ser servida tenha começado a comer, tirando porçöesmodestas, näo
parecendo excessivamente ávido, e na censura tácita do ruído e dapressa que
iriam tornar as manifestaçöes corporais do prazer de comergrosseiramente
espalhafatosas. Este compromisso com a estilizaçäo desloca ocentro da
atençäo da substância e da funçäo para a forma e a conduta e, aofazê-lo, tende
a negar a realidade cruamente material das coisas que säoconsumadas e do
16 Sobre o consumo estalido, ver Pierre Bourdieu, Distinction (tr. R.Nice, Londres, 1984).
M
acto de comê-las. Tal como a classe capitalista iria ocultar ocarácter social-
mente organizado do sistema de produçäo, que sustentava epotenciava a
circulaçäo de mercadorias, assim a ociosa classe cortesä ocultava arealidade
material do acto do consumo, que sustentava e potenciava acirculaçäo da
civilidade. Este disfarce exigia uma mnemónica do corpo.
No que diz respeito às cerimônias do corpo, podemos consideraras práticas
pelas quais a nobreza francesa do século XVII exibia o seu estatutoprivilegia-
do. De forma sistemática, nos Projets de Gouvernement du duc deBourgogne,
de 1714-15 e, anedoticamente, nas Mémoires, o Conde de Saint-Simon retra-
ta-nos a sociedade francesa da sua época. 17 Esta era umasociedade de "ordens"
ou "estados` estritamente classificados, uma hierarquia dedignidades e de
qualidades demarcado pela observância rigorosa de títulos,posiçöes e símbo-
los. Saint-Simon apresenta-nos prescriçöes longas e minuciosasacerca do
comportamento cerimonial: sobre quem devia ter a "mäo", isto é, adireita, em
certas situaçöes, sobre os lugares de honra, o uso de carruagens, oporte de
armas, a indumentária. Estas prescriçöes servem um fim polémico.O objectivo
dos Projets era confessadamente reaccionário. Na sociedade deordens e de
estados, a maior honra, até ao século XVI, fora atribuída à profissäodas armas.
Gradualmente, contudo, pelo menos desde o reinado de HenriqueIV, a profis-
säo de magistrado tinha começado a receber tanta honra como adas armas. A
toga tomou-se no equivalente social da espada. E, sob Luís XIV,muitos outros
foram nobilitados pelo exercício da sua profissäo: homens de letras,pintores,
escultores, arquitectos, médicos, cirurgiöes, químicos e botânicos,tendo até
sido reconhecida a dignidade do comércio. Saint-Simon abominavaeste "rei-
nado da vil burguesia" e o processo de "nobilitaçäo mecânica". Anobilitaçäo,
defendia ele, só devia ser permitida para os feitos de armas e oserviço militar
de longa duraçäo. A ideia de honra, como princípio da classificaçäosocial,
devia ser reafirmada através do restabelecimento do carácteressencialmente
militar da nobreza.
A estratificaçäo social em "ordens", subdivididas em "estados",consistia
numa hierarquia, em que cada grau tinha características específicase era
organizado de acordo com a honra, a posiçäo social e a estimaatribuída a
funçöes sociais sem qualquer ligaçäo com a produçäo de bensmateriais. 18
Todos os escritores concordam que a nobreza é um atributo dapessoa, e os
17 Conde de Saint-Simon, Projets de Gouvernement du Duc deBourgogne (1714-15), ed. P.
Mesnard (Paris, 1860) e Mémoires (Londres, 1788).
18 Ver R. Mousnier, Social Hierarchies: 1450 to the Present (tr. P.Evans, Londres, 1973); e R.
Mousnier, Les Institutions de la France sous Ia monarchie absolue,1598-1 789 (Paris, 1974).
escritores do século XVII, em particular, destacaram a transmissäohereditária
desse atributo. Para ser-se apresentado na corte era necessáriopertencer-se,
em princípio, à antiga nobreza. A partir de 1732 era necessárioprovar-se
trezentos anos de nobreza militar, sem início conhecido. Uma lei de1760
exigia que, para tal privilégio, se devia pertencer a uma famíliaidentificável
como nobre anteriormente a 1400. As genealogias, que mostravama verdadei-
ra posiçäo social das pessoas, as razöes pelas quais se tinhamaparentado, bem
ou mal, com esta ou aquela família, eram muito apreciadas. Saint-Simon, de
forma um tudo nada desdenhosa, desejando mostrar que Luís XIVrevelava
uma ignorância que `por vezes o fazia cair, em público, nosdisparates mais
grosseiros`, dá desta ignorância dois exemplos - o rei, näo sabendoque Renel
pertencia à família Clermont-Gallerande, ou que Saint-Herempertencia à de
Montmorin, havia tratado estes dois homens como se fossem debaixa extrac-
çäo e, mesmo depois de esclarecido sobre o seu erro norespeitante a Saint-He-
rem, foi ainda necessário explicar-lhe "que casas eram essas, poisos nomes
nada significavam para ele`.'9 Lá Roque, mais piedosamente, diziaque "todo
o homem que descende de pessoas grandes e ilustres sentesempre, nas
profundezas do seu coraçäo, um certo impulso que o instiga a imitá-las,
incitando-o a sua memória para a glória e os belos feitos". 20 LáBruyère, de
forma mais retorcido, af irmava que, se um homem deseja manter acredulidade
da corte sobre a posiçäo que reclamava ter "deve falar a todomundo sobre
minha linhagem, a minha família, o meu nome, o meu brasäo' .2'Agenealogia
pode ser fabricado, mas os privilégios da nobreza reportavam-secerimonial-
mente a antepassados cujos feitos e méritos se supunha teremperdurado no
sangue. Nada demonstra de forma mais evidente até que ponto eranecessário
reivindicar honra, numa sociedade de estados, näo por referência àutilidade
das funçöes desempenhadas, mas por referência explícita àmemória, ou pelo
menos à memória ostensiva, da sociedade.
A minha linhagem, a minha família, o meu nome, o meu brasäo:todos estes
termos, ao mesmo tempo que se referem insistentemente àsqualidades inatas
do possuidor, exprimem essas qualidades de uma forma idealizada,aludem de
um modo um tanto sublimado a algo que é clara e directamentecorporal: o
sangue. O sangue tem o valor de um símbolo. Uma pessoa podedizer dos seus
antepassados que eles o derramaram de uma certa maneira e de siprópria que
19 M. Proust, Remembrance of Things Past (tr. C. K. Scott Moncrieffe T. Kilmartin, Londres,
1981), vol. III, p. 1006.
20 La Roque, Traité de la Noblesse (Paris, 1735), Prefácio, citadoem Mousnier (1974), p. 101.
21 La Bruyere, Characters (tr. J. Stewart, Harmondsworth, 1970), p.133.
pertence ao mesmo sangue. A diferenciaçäo em ordens e estados,o sistema das
alianças através do casamento, o valor de uma ascendência nobre -tudo
mostra que a relaçäo de sangue é crucial nos mecanismos ecerimônias do
poder. Neste caso, como diz Foucault, o poder fala através dosangue, é uma
22
realidade com uma funçäo simbólica . A verdadeira nobreza é umaraça. Mas
se o sangue autentica a pertença a um grupo antigo, essa pertençadeve ser
exibida de forma visível. Exibe-se através de privilégios cerimoniaise de
diversöes cerimoniais.
A vida na corte francesa estava construída em tomo dascerimônias de
23
privilégio. A rotina diária seguia uma sequência pública fixa. Estacomeçava
com o lever real, durante o qual o rei dizia as suas oraçöes empúblico; o rei
era, em seguida, vestido em público, dirigia-se para a missaescoltado pelos
cortesäos, jantava em público, permitia que certos cortesäosparticipassem nas
suas actividades de lazer, na caça, ou visitando os estábulos ejardins e recebia
toda a corte para divertimentos nocturnos mais formais; o diaterminava
publicamente com o coucher real. Esta sequência cerimonial diáriaera sepa-
rada do trabalho directamente político do rei como governante, dasua partici-
paçäo nas reuniöes do conselho e da sua discussäo com cada umdos ministros.
O grupo de cortesäos näo aconselhava o rei como governante. Aexibiçäo
formal da sua presença na corte dava testemunho cerimonial aodomínio de
um laço de sangue que unia o seu direito a governar ao direitodeles à
proeminência social. A proeminência social excepcional de quegozavam era
atestada por numerosos privilégios. Fazer parte da rotina diária dolever e do
coucher do rei, servi-lo à mesa, jogar bilhar com ele, acompanhá,lona caça
ou durante os passeios nos jardins de Versalhes eram honrasaltamente apre-
ciadas. Era também uma honra assistir aos divertimentos do seräo,os aparte-
ments, que tinham lugar várias vezes por semana, com música,dança, jogos
de cartas e bufetes. Maiores honras estavam ainda reservadas paraum grupo
de sangue ainda mais restrito da corte: os ducs e pairs. Só a elesera permitido
entrar a cavalo e de carruagem nos pátios dos palácios reais.Tinham a
precedência, imediatamente a seguir aos príncipes de sangue, embaptismos,
casamentos, funerais e banquetes reais. Nos contratos decasamento entre
filhos de reis, assinavam depois dos príncipes do sangue. O reichamava-lhes
primos" e tinham o direito aos epítetos honrosos de "Monseigneur"e `Votre
22 M. Foucault, PowerlKnowledge (entrevistas seleccionados eoutros escritos, ed. e tr. C.
Gordon, Brighton, 1980), p. 147.
23 Ver R. Hatton. "Louis XIV At the Court of the Sun King", in A. G.Dickens (ed.), The Courts
ofEurope: Politics, Patronage and Royalty, 1400-1800 (Londres,1977), pp. 233-62.
Grandeur". Só eles podiam usar a coroa e o manto ducais.Entravam no
parlement usando espadas, sentavam-se em lugares elevados eeram os primei-
ros a obter autorizaçäo para falar. Estes privilégios cerimoniaisconstituíam
uma ninemónica do corpo, uma lembrança constante daorganizaçäo em
estados.
As diversöes cerimoniais näo säo menos reveladoras dapertença a um grupo
antigo do que os privilégios cerimoniais. Estas diversöesrepresentam um
investimento de tempo e de habilidade num tipo particular de capitalsimbólico:
os objectos dotados de maior poder simbólico säo aqueles queexibem a
qualidade inata do seu possuidor, demonstrando claramente aqualidade neces-
24
sária à sua apropriaçäo. Os objectos de capital simbólico, que sedistingue
do financeiro, estäo, por assim dizer, encerrados no interior dahistória de vida
no seu conjunto e, logo, das memórias daqueles que os possuem,pois parte da
importância daquilo que se possui é precisamente o näo poder serobtido
vivendo-se uma vida independente das exigências especificasdaquilo que se
possui. E parte da importância daquilo que se possui é näo serindependente
do contexto passado em que foi adquirido. Os objectos que atestama nobreza
devem ser objectos que näo podem ser obtidos nem porprocuraçäo, nem de
forma rápida. Possuir um castelo, ou uma casa senhorial, näo serveprimor-
dialmente para mostrar disponibilidade de dinheiro. É necessáriatambém a
apropriaçäo da arte de engarrafar e provar bons vinhos, dossegredos da pesca,
das habilidades da jardinagem, do conhecimento da caça. Todasessas compe-
tências säo antigas, só podem ser aprendidas devagar, só podemser apreciadas
por aqueles que têm vagar e manifestam preocupaçäo pelas coisasque duram.
Estas exigem que uma pessoa ocupe o seu tempo näo de formaeconómica,
mas cerimonial. As diversöes cerimoniais, de maneira menosformal, mas näo
menos evidente que os privilégios cerimoniais, afirmam o princípioda trans-
missäo hereditária.
As cerimônias, as convençöes e as técnicas do corpo existem aolongo de
um espectro de possibilidades que väo do mais ou menos formal aomais ou
menos informal. Todas elas envolvem, em termos variáveis, amemória cog-
nitiva. Assim, as cerimônias do corpo, tal como estäoexemplificadas na
etiqueta da corte de Versalhes, recordam aos actores um sistemade honra e de
transmissäo hereditária, como princípio organizador de classificaçäosocial.
As relaçöes de sangue säo símbolos conhecidos e recordadoscognitivamente
através da exibiçäo visivelmente elaborada de privilégios ediversöes que só
24 Sobre o conceito de capital simbólico, ver P. Bourdieu,Distinction: A Social Critique ofthe
Judgement ofTaste (tr. R. Nice, Londres, 1984).
fazem sentido através da referência constante aquele princípio. Aexibiçäo
cerimonial da presença na corte estabelece uma relaçäo entre aorganizaçäo do
espaço cortesäo e a estratificaçäo das relaçöes sociais, sendo ocomportamento
no espaço cortesäo, simultaneamente, uma forma de representaçäocultural e
um sistema mnemónico. Mais uma vez, as convençöes do corpo,tais como as
que säo ilustradas pelo desenvolvimento das maneiras de estar àmesa no
dealbar da Europa moderna, recordam aos actores um conjunto deregras que
definem o comportamento "correcto" e o controlo do apetite, onde acategoria
apetite deve ser entendida tanto literalmente como, por extensäometafórica,
referindo toda uma estrutura de sensibilidade individual e decontrolo institu-
cional. As normas de estilizaçäo negam a crua realidade materialdas coisas
consumadas e do acto de consumi-Ias. Estas normas de estilocorrecto expri-
mem, através da representaçäo, uma distinçäo social ehistoricamente especí-
fica entre a civilizaçäo e a natureza. Finalmente, as técnicas docorpo, tais como
as que säo exemplificadas pelo comportamento gestual dositalianos do Sul
näo seriam possíveis sem a memória cognitiva que os actores têmde um léxico
comum. Este vocabulário gestual, que compreende pelo menoscento e cin-
quenta items, é um sistema referencial. As próprias coisas e ideiasa que as
palavras que o acompanham se referem säo ilustradas através deum repertório
de movimentos automaticamente executados.
Em cada um destes casos, os actores säo recordados de algocom conteúdo
cognitivo. Mas, também, em cada caso, é através do acto derepresentaçäo que
o recordam. As práticas corporais de uma espécie culturalmenteespecífica
envolvem uma combinaçäo da memória cognitiva e da memória-hábito. A
execuçäo adequada dos movimentos contidos no repertório dogrupo näo só
recorda aos actores os sistemas de classificaçäo que o grupoconsidera impor-
tantes, como exige, também, o exercício da memória-hábito. Nasrepre-
sentaçöes, as classificaçöes e máximas explícitas tendem a sertomadas como
certas na medida em que forem recordadas como hábitos. Naverdade, é
precisamente porque aquilo que é representado é algo a que osactores estäo
habituados, que o conteúdo cognitivo daquilo que o grupo recordaem comum
exerce uma força täo persuasiva e persistente.
3
Näo basta demarcar o âmbito e discriminar os tipos decomportamento que
cabem na categoria das práticas incorporadas. Precisamos tambémde verificar
como essas práticas säo incorporadas, isto é, precisamos decompreender a sua
qualidade de hábito.
Consideremos o comportamento do Saint-Loup, de Proust, talcomo é
observado por Marcel, o narrador:
Por outro lado, havia momentos em que o meu espírito distinguiaem Saint-Loup
uma personalidade mais indefinida do que a sua, a qual movia osseus membros e
ordenava os seus gestos e as suas acçöes como se fora umespírito residente: a
personalidade do "fidalgo". Nessas alturas, entäo, ainda queestivesse na sua
companhia, eu ficava só, tal como o estaria frente a uma paisagemcuja harmonia
pudesse entender. Ele näo era mais do que um objecto, cujaspropriedades, no meu
devaneio, eu procurava explorar. A descoberta que nele fizera desteser pré-exis-
tente, imemorial, deste aristocrata que era exactamente aquilo queRobert aspirava
a näo ser, deu-me intensa alegria, mas uma alegria mais do espíritodo que dos
sentidos. Na agilidade moral e física que conferia tanto encanto àsua simpatia, na
desenvoltura com que ofereceu a sua carruagem à minha avó e aajudou a entrar,
na alacridade com que saltou da boleia, ao temer que eu estivessecom frio, para
lançar a sua própria capa sobre os meus ombros, eu näo sentiapenas a flexibilidade
herdada dos poderosos caçadores que eram, há várias geraçöes,os antepassados
deste jovem que näo tinha pretensöes a näo ser à intelectualidade,o seu desdém
pela riqueza, que subsistia nele lado a lado com o deleite empossui-Ia simples-
mente porque isso lhe permitia acolher mais prodigamente osamigos, levando-o
a derramar täo descuidadamente os seus bens aos pés destes. Euapercebia-me,
sobretudo, da certeza, ou da ilusäo, existente nos espíritosdaqueles grandes
senhores, de serem "rnelhores do que os outros", graças à qual näohaviam sido
capazes de transmitir a Saint-Loup essa ansiedade em mostrar-seque Ne é täo bom
como o vizinho do lado", estando ele, de facto, totalmente inocentedo temor de
fazer isso demasiadas vezes, o qual prejudica com tanta afectaçäoe deselegância
a civilidade plebeia por mais sincera que esta seja. 25
Mesmo que subtraiamos mentalmente a esta descriçäo osnobismo social
que a anima e a teoria das características herdadas que nela seencontra
incrustada e, relegando estes aspectos de encómio e de explicaçäo,considere-
mos esta passagem tanto quanto possível estritamente como umadescriçäo, o
leitor sentirá certamente que ela contém um elemento que ésimultaneamente
preciso e exacto. O aspecto da citaçäo que eu desejo realçar é ocarácter
corporificado do objecto descrito. A maior parte dos items decomportamento
e das qualidades de carácter assinaladas em seu louvor säoapresentadas quer
directamente, como formas particulares de movimento e deexpressäo corpo-
25 M. Proust, Remembrance of Things Past (tr. C. K. Scott Moncrieffe T. Kilmartin, Londres,
1981), vol. 1, pp. 791-2.
ral, quer de maneiras que seriam normalmente identificados, pelomenos em
parte, por meio dessas expressöes corporais. Deste modo, algo"como um
espírito residente movia os seus membros" e "ordenava os seusgestos e as suas
acçöes", revelando-se na "agilidade moral e física", na simpatiaimbuída de
encanto', na ajuda oferecida com "desenvoltura" e "alacridade"; eessa total
realizaçäo de "desenvoltura" e Mexibilidade" induz o espectador,Marcel, a
contrastá-la com a "afectaçäo` e a "deselegância" que observanaquilo a que
chama "civilidade plebeia". As palavras e frases aqui reunidas säoretiradas
principalmente das impressöes que Marcel forma de Saint-Loup nocontexto
da sua presença corporal.
O comportamento de Saint-Loup näo impressiona Marcel apenasem virtude
das qualidades que deixa transparecer. Aquilo que leva Marcel areparar
particularmente nessas qualidades é o facto de Saint-Loup desejarconsciente-
mente repudiar certas características da vida do aristocrata. Proustmostra-nos
que este repúdio consciente é desmentido à primeira impressäo. Ocarácter
impressivo do efeito criado pelo comportamento de Saint-Loupreside, pelo
menos em parte, no contraste entre uma ideia de comportamento("o aristocrata
que era exactamente aquilo que Robert aspirava a näo ser") e ocomportamento
em si (o "fidalgo" que, no interior de Saint-Loup, "como um espíritoresidente,
movia os seus membros, ordenava os seus gestos e as suasacçöes"). Este
contraste entre uma ideia e uma prática de comportamento surgesob a forma
do contraste entre uma "desenvoltura" que é natural e uma"desenvoltura" que
é "forçada". A desenvoltura a que se chama natural é vista como taldevido à
espontânea indiferença dos modos e ao fluxo regular darepresentaçäo. A
desenvoltura a que se chama forçada é entendida como tal devido âpresença
evidente nesse comportamento, que pretende mostrar desenvoltura,de "notas
em falso", meros sinais de uma maneira de se comportar: umareferência
ansiosa àquilo que se considera como norma legítima, umainquietaçäo quanto
ao modo correcto a adoptar, um respeito por um código cultural queé mais
reconhecido do que conhecido. A observaçäo do contraste entreuma desen-
voltura de maneiras a que se chama natural e uma desenvoltura demaneiras a
que se chama forçada é importante porque esse contraste näo podeser apro-
priadamente expresso dizendo-se que os dois tipos decomportamento obede-
cem a dois códigos diferentes, ou dizendo-se que um tipo obedecea um código
de comportamento elaborado, enquanto o outro obedece a umcódigo restrito.
A observaçäo que Marcel faz do comportamento de Saint-Loupmostra-nos
que nenhum conceito de código de performances corporais, pormuito elabo-
rado que se imagine ser esse código, pode englobar o objectodescrito quando
este é uma prática de comportamento corporal, pois a distinçäoessencial que
Proust aqui faz refere-se näo à série de possibilidades que o códigoem questäo
tornou potencialmente disponíveis, mas antes ao contraste bastantediferente
26
entre ser-se capaz de reconhecer um código e ser-se capaz de oincorporar.
A descriçäo de Proust lembra-nos que nós avaliamos se um códigode prática
corporal é meramente reconhecido, ou, em alternativa,verdadeiramente incor-
porado, sobretudo pelas impressöes que formamos das pessoasatravés da sua
presença e acçöes corporais. As impressöes criadas pelaconformaçäo física e
o porte corporal säo as manifestaçöes do indivíduo menossusceptíveis de
modificaçäo deliberada, sendo este o motivo por que consideramosque elas
se identificam com a "natureza" habitual do indivíduo.
A desenvoltura de Saint-Simon resulta da sua confiança nacapacidade de
incorporar o corpo socialmente legítimo e, por consequência, da suacapaci-
dade para impor as normas pelas quais o seu próprio corpo é vistoe aceite
pelos outros. É o corpo de alguém habituado a mandar. Por isso ascontrovérsias
políticas recorrem täo frequentemente à caricatura visual, na qual aimagem
corporal dos govemantes é fisicamente distorcida. A caricaturadeforma com
o intuito de ridicularizar a imposiçäo de uma autoridade corporizada.É uma
versäo dessa autoridade corporizada que Saint-Loup incarna, näopela execu-
çäo mecânica dos códigos, ou pela aplicaçäo meticulosa dasregras, o que teria
prejudicado o efeito exemplar, mas pela desenvoltura prestigiosa dasua
performance experiente. O pólo oposto da desenvoltura de Saint-Loup é o
constrangimento pequeno-burguês. Este é originado pelo sensaçäocontínua de
um fosso entre o corpo socialmente legítimo e o corpo que umapessoa tem e
é. Incapaz de incarnar um modelo reconhecido, tenta-se em väocompensar
essa incapacidade através da proliferaçäo de sinais de controlocorporal. É por
isso que a vivência pequeno~burguesa do mundo é caracterizadapela timidez
e pelo embaraço: o embaraço daqueles que sentem que os seuscorpos os traem,
que vêem os seus corpos, por assim dizer, a partir de fora e atravésdos olhos
avaliadores dos outros, vigiando e corrigindo as suas práticas.Também este é
um hábito de performance; mas é uma experiência habitual docorpo como
condiçäo de embaraço, como fonte perpétua de falta de jeito, comoa ocasiäo,
por demais tangível, para se experimentar uma fissura entre o corpoque se
26 Sobre a distinçäo entre "conhecer" e "reconhecer", ver ainda P.Bourdieu, "Remarques
provisoires sur Ia perception du corps",Actes de la Recherche enSciences Sociales, 14 (1977),
pp. 51-4; Bourdieu, `La production de Ia croyance: contribution àune économie des biens
symboliques", Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 13(1977), pp. 3-44; P. Bourdieu
e J. C. Passeron, Reproduction in Education, Society and Culture(tr. R. Nice, Londres, 1977);
Bourdieu, Outfine ofa Theory ofPractice (tr. R. Nice, Londres, 1977);Bourdieu, Distinction
(tr. R. Nice, Londres, 1984).
desejaria ter e o corpo que se vê quando se olha para o espelho:uma fissura
da qual se é perpetuamente recordado, tanto pelas reacçöes dosoutros como
pelo processo de auto-controlo pelo qual se nota e tenta rectificar ofosso entre
o corpo socialmente legítimo e o corpo que se possui.
Vejamos agora uma citaçäo onde se descrevem as dificuldadesde alguém
que começa a aprender a tocar jazz ao piano:
A másica näo era minha. Continuava a soar à minha volta.Encontrava-me no meio
da música como um recém-chegado que se perdeu e dárepentinamente consigo no
meio de um cruzamento de ruas de sentido proibido, na Cidadedo México, mas
sem encontrar na situaçäo um humor particular ... Comecei poruma escala
ascendente rápida, atabalhoada e nervosa; chegada a vez doacorde seguinte tive
de voltar a precipitar-me para baixo, para o meio do teclado,para conseguir fazer
aquilo que sabia ser correcto, e depois veio o acorde seguinte. Aminha mäo saltava
de um lado para o outro, como Chaplin dando estocadas aoacaso com as suas
chaves inglesas ... Precisava ocasionalmente de utilizar a visäopara manter o
terreno debaixo de olho, para auxiliar os grandes saltosnecessários para ir de uma
parte para a outra, uma visäo que sentia frenética, como se, comgrande pressa,
procurasse um lugar de estacionamento. A música estava,literalmente, fora de
mäo. 27
Esta é uma das muitas passagens em que David Sudnowanalisa as tentativas
que fez, durante mais de cinco anos, para tocar j azz. Durante esseperíodo teve
muitas ocasiöes para meditar sobre os fracassos daquilo a quechama, numa
bela frase, o controlo da conduta improvisada. A minuciosaobservaçäo dos
seus movimentos corporais permite-lhe mostrar como toda umavariedade de
capacidades em expansäo, de formas coordenadas de olhar, demover, de tocar,
de pensar, têm de ser desenvolvidas para uma pessoa conseguirexecutar
sequências de acordes correctas. Imaginemos apenas o seguinteitem do
repertório: a sequência dos acordes A e B, situados em zonasopostas do
teclado. Para tocar A é necessário ter a mäo fortementecomprimida; para tocar
B é preciso estender a mäo com grande amplitude. Para tocar A temde
alinhar-se o corpo com o teclado, como se faz com uma máquina deescrever,
de forma a estabelecer contacto com uma posiçäo central. Paratocar B é
preciso ajustar o eixo da mäo relativamente ao teclado, com o dedomindinho
a afastar-se mais do centro corporal do que o polegar. A distânciaentre A e B
näo se pode simplesmente ser transposta; tem de ser percorrida,espontanea-
mente, de uma maneira específica. Para ir correctamente de A paraB, a mäo,
27 D. Sudnow, Ways of the Hand: the Organization of ImprovisedConduct (Londres, 1978),
pp. 30-3.
na verdade o corpo todo, tem de ser direccionada, desde o início,näo apenas
para onde B se encontra - a mäo tem de preparar-se, durante aviagem, para
aterrar em B na forma adequada e no momento correcto. Enquantoa mäo se
move de Apara B deve provocar-se uma pequena alteraçäo na suaforma. Todo
um conjunto de diminutos ajustamentos têm de ser realizadosespontânea e
simultaneamente, envolvendo a reconfiguraçäo apropriada da mäoe um leve
reajustamento do corpo.
Os principiantes väo de Apara B de uma forma desconexa.Tocam Ae partem
para B sem se lançarem para ele da forma correcta, desde oprincípio, sem se
deslocarem para B, no seu todo, no tempo correcto. Antes deadquirirem
destreza, os principiantes procuram e debicam no teclado, os seusdedos
hesitam e perdem a posiçäo. Sentem continuamente umaseparaçäo entre o
"ele" do piano e o "eu" do pianista. Um pianista mais experiente, aotocar um
trecho rápido e intrincadamente sinuoso, bem como a suareiteraçäo, aproxi-
mar-se-á muitas vezes da perfeiçäo, mas falhará ligeiramente, teráa sensaçäo
de "lutar para fazer com que aconteça", "soará como alguém que seesforça
duramente por dizer qualquer coisa". Sudnow sugere váriasanalogias para esta
experiência de desconexäo. As improvisaçöes falhadas säoarruinadas da
mesma maneira que quando se apanha, pela primeira vez, o jeitode uma
habilidade complexa, como andar de bicicleta ou esquiar; a tentativade
conservar um controlo fácil dessa habilidade falha, `luta-se pormanter o
equilíbrio, por näo cair e entäo, quase de repente, ocorrem váriasrotaçöes dos
pedais, parece que a bicicleta arranca por si própria, tenta-seaguentá-la e ela
desintegra-se". Estes improvisos ensaiados trazem à memória asconfusöes de
Charlie Chaplin na linha de montagem de Tempos Modernos. Acorreia trans-
portadora traz continuamente uma infindável colecçäo de porcas ede parafusos
para serem apertados; Chaplin segura duas chaves inglesas nasmäos, atrasa-se,
corre para recuperar, aperta porcas e parafusos ainda maisdepressa, esforçan-
do-se por se adiantar, falha um ou dois porque ficou frenético, éprojectado
através de um corredor numa dança convulsiva. Ou, uma vez mais,a diferença
entre tentar tocar jazz desconexamente e conseguir atingir asensaçäo de tocar
com êxito é semelhante à diferença entre as tentativas Mo afásico,do gago, de
alguém com danos cerebrais, ou do estrangeiro" para construir umafrase
escorreita e "a elocuçäo fluente da criança competente de trêsanos".
O que significa conseguir-se esta elocuçäo fluente? Significa queo processo
de procurar as notas, a busca e a descoberta explícitas de lugaresreconhecíveis
e visualmente compreendidos lá fora, se tornou redundante.Significa que se
adquiriu, a partir da posiçäo habitual, a meio do piano, um sentidoincorporado
dos lugares, das distâncias e das pressöes. Ser capaz de se sentara um piano e
obter uma orientaçäo inicial através do mais leve toque "emqualquer lado" do
teclado; levar o dedo com precisäo a um lugar "dois pés àesquerda", em que
meia polegada, ou uma pressäo diferente à chegada, seriam umerro; deslocar-
-se mais Mezassete polegadas" e tocar outra nota de formaigualmente precisa;
andar mais "vinte e três polegadas" com a mesma precisäo;executar todos estes
movimentos täo rápida e espontaneamente como quando,recebendo ordem
para tocar na orelha, ou no joelho, se move a mäo em direcçäo àorelha, ou ao
joelho, pelo caminho mais curto e sem se ter de pensar na posiçäoinicial da
mäo, ou da orelha, ou do percurso entre eles; estar-se täofamiliarizado com
um terreno de mäos e teclado que as suas superfícies se tornamtäo intimamente
conhecidas como as superfícies respectivas da língua, dos dentes edo palato:
fazer tudo isto, que significa dominar uma série de competênciasque qualquer
músico de j azz competente tem sob o seu comando, é possuir umconhecimento
habitual - poder-se-ia dizer igualmente uma recordaçäo - nas mäos.É ter,
como diz Sudnown, "uma maneira incorporada de vencer asdistâncias" que
só pode ser adquirida através de `um longo percurso deincorporaçäo". 28
Aquilo que aprendemos com os exemplos descritos por Proust eSudnow
pode agora ser sintetizado em certas proposiçöes gerais sobre anatureza do
hábito, tal como este afecta a prática incorporada.
Os hábitos säo mais do que competências técnicas. Quandopensamos no
comportamento habitual em termos de andar, nadar, tricotar eescrever à
máquina, temos tendência a pensar nos hábitos como capacidades,competên-
cias técnicas de diversos graus de complexidade, que se encontramà nossa
disposiçäo mas que existem à margem dos nossos gostos ouaversöes e carecem
de qualquer qualidade de premencia, de impulsäo, ou de disposiçäoa&ctiva
marcada. Pensamos neles como capacidades que esperam serchamadas à
acçäo na ocasiäo apropriada. Dewey sugere que, se quizermosapreciar o lugar
peculiar e a força do hábito nas nossas actividades, deveremosconsiderar o
caso dos maus hábitos: a dependência do álcool e das drogas, acompulsäo para
jogar e o mandriar. Quando reflectimos sobre esses hábitos ficamosimpres-
sionados pelo papel que o desejo desempenha no comportamentohabitual, pois
aquilo que podemos observar claramente, no caso dos maushábitos, é o
domínio que exercem sobre nós, a forma como nos impelem paracertas acçöes.
Estes hábitos implicam uma tendência interiorizada para agir deuma certa
maneira, um impulso suficientemente forte para nos levar,habitualmente, a
fazer coisas que dizemos a nós próprios preferir näo fazer e a agirde maneiras
que desmentem, ou atropelam, as nossas decisöes conscientes eas nossas
28 Ibidem, pp. 12-13.
resoluçöes formais. Aquilo que Dewey defende é que estascaracterísticas näo
säo específicas de uma classe particular de maus hábitos. Estascaracterísticas
dos maus hábitos säo precisamente os aspectos mais instrutivossobre todos os
hábitos . 29 Eles lembram-nos, tal como as reflexöes de MarcelProust e de David
Sudnow sobre as competências habituais, que todos os hábitos säodisposiçöes
afectavas, que uma disposiçäo formada através da repetiçäofrequente de uma
série de actos específicos é uma parte íntima e fundamental de nóspróprios,
que esses hábitos têm poder exactamente porque fazemintimamente parte de
nós próprios.
Um hábito é mais do que uma disposiçäo. Melhor do que o termodisposiçäo,
a palavra hábito permite-nos referir aquele tipo de actividade emque um grupo
de características estäo reunidas para formarem uma prática: umaactividade
que é adquirida, no sentido em que é influenciada por umaactividade anterior,
que está pronta para se manifestar abertamente e que se conservaoperativa, de
uma forma mitigada, mesmo quando näo é a actividade obviamentedominante.
Poderíamos escolher a palavra disposiçäo para expressar tudo isto,mas essa
escolha seria um pouco enganadora. O termo disposiçäo sugerealgo latente
ou potencial, algo que necessita de um estímulo positivo exterior anós próprios
para ficar activamente envolvido. O termo hábito transmite o sentidode
operatividade de uma actividade continuamente praticada.Transmite a reali-
dade do exercício, o efeito consolidador dos actos que se repetem.Esta é a
característica do hábito posta em evidência ao considerarem-secompetências
técnicas cujo exercício diminue a atençäo consciente com querealizamos os
nossos actos. Quando estamos a aprender a andar, nadar, andar debicicleta,
patinar ou cantar, interromperno-nos frequentemente commovimentos desne-
cessários, ou notas em falso. Quando nos tornamos peritos osresultados
surgem com o mínimo de acçäo muscular, fluem a partir de umaúnica deixa.
Através do exercício o corpo passa a coordenar um númerocrescente de
actividades musculares de forma cada vez mais automática, até quea cons-
ciência recua, o movimento flui "involuntariamente" e ocorre umasequência
firme e experimentada de actos que seguem o seu curso fluente. Osfeitos dos
acrobatas e dos malabaristas ilustram uma versäo extrema destefacto, tal como
o fazem as destrezas prestigiosas descritas por Proust e Sudnow.Mas o
exercício automático pode ser simultaneamente banal e prestigiosoe, em vez
de suave e harmonioso, pode ser habitualmente desajeitado edesarmonioso.
Os padröes de utilizaçäo do corpo tornam-se arraigados através danossa
29 W. Dewey, Human Nature and Conduct: an Introduction to SocialPsychology (Londres,
1922), pp. 24-5.
interacçäo com os objectos. Há os movimentos aparentementeautomáticos,
duradouros e familiares dos artesäos, a forma como um carpinteiromaneja
uma plaina e o teceläo usa um tear, täo habituais que, se lhesperguntassem,
eles diriam que "sentiam" como operar adequadamente aferramenta que
tinham entre mäos. Há as maneiras impostas pelo trabalhorealizado com uma
máquina, ou numa secretária, que reforçam um conjunto decomportamentos,
a nível da postura, que tendemos a encarar como "próprios" dooperário fabril
ou do sedentário empregado de escritório. As posturas e osmovimentos que
säo memórias-hábito ficam sedimentados na conformaçäo corporal.Os actores
podem mimar as impressöes, os médicos podem examinar osresultados.
Acima de tudo, portanto, o hábito näo é apenas um símbolo. Aexperiência
corporizada, de que as práticas habituais constituem uma partesignificativa,
foi submetida recentemente a um imperialismo cognitivo einterpretada com
base no modelo da significaçäo linguística. A sociedade, concebidaà imagem
e semelhança da linguagem, assumiria o papel de dotar designificado os corpos
físicos e os comportamentos dos indivíduos. O corpo, reduzido aoestatuto de
símbolo, transmitiria significado dado ser um veículo altamenteadaptável à
expressäo de categorias mentais. Certas metáforas da actividadecorporal,
como "cair" em erro, säo vistas como a expressäo de um conceitoem termos
de uma imagem corporal. Isto corresponde a ver o entendimentocomo um
processo em que um dado dos sentidos está subsumido a umaideia, e a ver o
corpo como um objecto que transporta significados de formaarbitrária. Porém,
e como Marleau-Ponty notou correctamente, o fenômeno do hábitodevia
30
induzir-nos a rever a nossa noçäo de "compreender` e a nossanoçäo de corpo.
Saber dactilografar, por exemplo, näo significa conhecer o lugar decada letra
nas teclas, nem haver adquirido um reflexo condicionado para cadaletra que
seria desencadeado sempre que cada uma dessas letras surgisseperante os
nossos olhos. Sabemos onde as letras se encontram na máquinade escrever do
mesmo modo que sabemos onde estäo os nossos membros.Lembramo-nos
disso através do conhecimento gerado pela familiaridade do espaçoem que
vivemos. O movimento dos dedos da dactilógrafa pode serdescritível. Contu-
do, näo se apresenta à dactilógrafa como uma trajectória no espaçoque se possa
descrever, mas como um certo ajustamento da sua mobilidade.Neste exemplo,
uma prática com significado näo coincide com um símbolo. Osignificado näo
pode ser reduzido a um símbolo que existe num "nível" separado,exterior à
esfera imediata das acçöes do corpo. O hábito é um conhecimentoe uma
30 M. Merleau-Ponty, Phenomenology of Perception (tr. C. Smith,Londres, 1962), p. 144.
PRATICAS CORPORAIS 115
memória existente nas mäos e no corpo. Ao cultivarmos o hábito, éo nosso
corpo que "compreende".
4
Há já muito tempo que é reconhecido que tanto as práticas deincorporaçäo
como as de inscriçäo podem ser objecto da nossa actividadeinterpretativa. Este
reconhecimento remonta, pelo menos, à proposta deSchleiermacher de uma
hermenêutica geral. Actualmente, a interpretaçäo é vista como acompreensäo
explícita e consciente dos significados, em que já näo se podepresumir que a
compreensäo desses significados seja um processo em si mesmoevidente, mas
antes intrinsecamente problemático. Assume-se que os equívocossobre aquilo
que procuramos interpretar surgiräo näo de forma ocasional, massistemática.
Anossa actividade interpretativa näo está também amarrada aqualquer matéria
em particular. A unidade da hermenêutica reside na unidade de umprocedi-
mento que é aplicável a qualquer objecto e a qualquer práticacapazes de serem
portadores de um significado. As obras de arte, as composiçöesmusicais, as
representaçöes teatrais, os actos rituais, as moedas, osmonumentos e utensílios
pré-históricos, as expressöes corporais, os gestos, as posturas e osmovimentos
- a'proposta de Sclileiermacher torna-os explicitamente, todos eles,objectos
possíveis de uma actividade interpretativa."
Todavia, embora as práticas incorporadas estejam em princípioincluídas
como objectos possíveis da análise hermenêutica, na prática ahermenêutica
tomou a inscriçäo como seu objecto privilegiado. A hermenêuticanasceu da
filologia e, no decurso da sua história, tem regressado à filologia,isto é, ao
tipo de relaçäo com a tradiçäo que se focaliza na transmissäo doque ficou
inscrito nos textos ou, no mínimo, na transmissäo de documentos ede monu-
mentos aos quais é atribuída autoridade porque se considera quetêm um
estatuto comparável ao dos textos, ou seja, que säo constituídos àimagem e
semelhança dos textos. Schleiermacher, que fundou uma teoriageral da inter-
pretaçäo, era o exegeta do Novo Testamento e o tradutor de Platäo.Dilthey,
autor de uma conhecida crítica da razäo histórica, situava aespecificidade da
31 As abordagens clássicas deste ponto de viragem da história dahermenêutica encontram-se
em H. G. Gadamer, Truth and Method (Londres, 1975); E. Betti, "ZurGrundlegung einer
allgemeinen Auslegungslehre ", in Festschrift fur Ernst Rabel(Tubingen, 1954), vol. 11. pp.
79-168; E. Betti, Allgemeine Auslegungslehre aIs Methodik derGeisteswissenschaften
(Tubingen, 1967).
interpretaçäo (Auslegung), em contraste com a compreensäodirecta (Verste-
hen), no fenômeno da fixaçäo pela escrita e, de forma mais geral,pela
inscriçäo. Também Ricoeur, que insiste na centralidade dahermenêutica para
as ciências humanas como um todo, comenta, a respeito docarácter peculiar
da obra escrita, à qual a hermenêutica tradicional atribuía aautoridade de
modelo, que aquele residia na capacidade de a escrita transcenderas condiçöes
sociais da sua produçäo e recepçäo, abrindo-se assim a um númeropotencial-
32
mente ilimitado de leituras socialmente situadas .
As inscriçöes e, logo, os textos, eram objectos privilegiados deinterpretaçäo
porque a própria actividade de interpretaçäo se tornou em objectode reflexäo,
em vez de ser pura e simplesmente praticada num contextoparticular. Como
processo cumulativo, a reflexäo sobre a prática da interpretaçäosurgiu, na
moderna cultura europeia, em resultado da tentativa decompreender o que,
nessa cultura, havia sido legado do passado. A actividade deinterpretaçäo só
veio a surgir como problemática, secundária e subsequentemente,sob a forma
de tentativas para compreender culturas näo-europeiasgeograficamente dis-
tantes. Um reconhecimento específico de que só podemostransmitir uma
tradiçäo se conseguirmos interpretar uma tradiçäo, tomou formaquando a
prática de transmitir a substância tradicional da cultura europeiadeixou de ser
evidente por si mesma e se tornou numa questäo de discórdiasistemática. Mas
isso aconteceu porque essa substância tinha uma certa forma.Aquilo que é
transmitido sob a forma de texto, dentro de uma única cultura, étransmitido
como nenhuma outra coisa que nos chegue do passado dessacultura. Desligado
simultaneamente dos seus produtores e de quaisquer receptoresespecíficos,
um texto pode ter uma vida própria, goza de uma autonomia culturalrelativa.
É a idealidade da palavra que eleva os objectos linguísticas paraalém da
finitude e da transitoriedade dos vestígios da existência passada.Aquilo que
ficou fixado pela escrita entra numa esfera de significadospublicamente
acessíveis, os quais podem, potencialmente, ser partilhados portodos os que,
posteriormente, puderem ler esse escrito.
Este é principalmente o caso de dois tipos de texto. Ajurisprudência e a
teologia säo essencialmente procedimentos hermenêuticos, porqueambos
dependem da exegese de enunciados escritos. A hermenêuticalegal ocupa-se
da interpretaçäo de princípios de comportamento que têm de serobservados
como critérios para a avaliaçäo do comportamento social, no âmbitode uma
ordem legal legítima. A hermenêutica teológica é uma forma deinterpretaçäo
32 Ver P. Ricoeur,HermeneuticsandtheHumanSciences(tr.J.B.Thompson, Cambridge, 1981),
P. 91.
cujos princípios e limites estäo prescritos por uma escritura sagradae pela
maneira como o intérprete dessa escritura está limitado pelaadopçäo de um
sistema de crenças religiosas. Em ambos os casos, tanto nainterpretaçäo legal
como na teológica, a aplicaçäo é um elemento integrante dacompreensäo.
Tanto na hermenêutica legal como na teológica, existe uma tensäoentre, por
um lado, o texto escrito, seja ele um regulamento legal ou umaproclamaçäo
religiosa, e, por outro, o significado a que se chega pela aplicaçäodaquele texto
no momento particular da interpretaçäo presente, seja nojulgamento legal ou
na pregaçäo e na liturgia. Nem um sistema legal, nem umaproclamaçäo
religiosa podem ser meramente entendidos como documentoshistóricos. Um
sistema legal tem de tornar-se concretamente válido no presente,através da
interpretaçäo. Considera-se que uma proclamaçäo religiosa, nopróprio pro-
cesso em que é proclamada, exerce um efeito salvador. Em ambosos casos, a
acçäo de interpretaçäo é, em princípio, normativa. Em ambos oscasos, o
33
processo de compreensäo é um acto de aplicaçäo.
Mais especificamente ainda, dois textos têm figurado em lugarde destaque
na história da hermenêutica - a Lei Romana e a Sagrada Escritura.O destino
mutável da interpretaçäo foi, em ambos os casos,surpreendentemente análogo.
A Lei Romana, tal como ficou conhecida a partir do Código deJustiniano, teve
autoridade como colecçäo vinculativa de proposiçöes legais durantequase mil
anos. 34 Na Baixa Idade Média, particularmente, a ciência legalsecular estava
quase totalmente focalizada na exegese da Lei Romana. EmBolonha, os seus
componentes foram cotejados e organizados num texto quepermaneceu, até
ao século XVI, como ediçäo modelo do Corpus Juris; e foi atravésdo estudo
deste texto que os conceitos romanos foram adaptados àsnecessidades da
Europa Medieval. Mas este processo de assimilaçäo dependia depremissas
que nunca foram sistematicamente examinadas. Partia-se doprincípio de que
a Lei Romana do Baixo Império era um sistema perfeito, um todoauto-sufi-
ciente e internamente consistente cujas normas eramuniversalmente válidas.
Partia-se, igualmente, do princípio de que a Lei Romana, tal comoensinada
aos juristas medievais, era idêntica à lei de Roma, tal comoJustiniano a
entendia. Estas premissas baseavam-se, por seu lado, numa certaideia de
33 Sobre a analogia entre a hermenêutica legal e a hennenêuticateológica, ver E. Betti, "Zur
Grundlegung einer allgemeinen AuslegungsIehre ", in Festschrift fürErnst Rabel (Tübingen,
1954), vol.11, p. 145; J. Wach, Das Verstehen (Hildesheim, 1966),vol.11, pp. 60-1, 183 e
seguintes.
34 Sobre as interpretaçöes medievais da Lei Romana, ver P.Koschaker, Europa und das
Römische Recht (Munique, 1966); Q. Skinner, The FoundationsofModern Politica 1 Thought
(Cambridge, 1978), vol. 1, pp. 9-12.
Roma. Os comentadores acreditavam que o Imperium Romanum deJustiniano
nunca tinha desaparecido. Pensava-se que a sua legislaçäopermanecera direc-
tamente em existência no Império Cristäo, continuando por isso aser válida.
Devido à suposta identidade metafísica do Corpus Christianum e doImpério
Romano, pensava-se que o mundo em que as pessoas viviam eraainda
legalmente o mesmo que o do antigo Império.
35
Estas suposiçöes foram arruinadas pela obra dos juristas dohumanismo.
Impressionados pela autoridade da Lei Romana, queriam recuperaro signifi-
cado original exacto dos seus textos legais. Para o fazerem,partiram à redes-
coberta dos significados precisos de todas as palavras técnicas eobscuras
contidas nos textos, através do estabelecimento dos diversossignificados que
essas palavras possuíam nos antigos textos legais e noutras obrasda antigui-
dade. O texto original de Justiniano estava, segundo descobriram,eivado de
acrescentes. Havia-se tornado duplamente deformado. Foradistorcido pelos
compiladores bizantinos originais que, sem o saberem, haviamresumido e
alterado os textos clássicos. Fora também distorcido pelosposteriores comen-
tadores escolásticos, que haviam obscurecido ainda mais aestrutura original
do corpus com as suas glosas minuciosas. O efeito da purificaçäofilológica
foi o inverso da intençäo que a animara. Querendo melhorar, noinício, a
jurisprudência da Lei Romana, os humanistas acabaram por destruiras pre-
missas sobre as quais esta se alicerçava. Este resultado teve umaspecto
negativo e outro positivo. Negativamente, levou os juristas dohumanismo à
conclusäo de que o Código de Justiniano näo era perfeito, nemcompleto.
Descobriram, pelo contrário, que muita da prática jurídica romananele fora
omitida ou imperfeitamente registada; que aquilo que fora incluídoera, muitas
vezes, incoerente; e que muitas dessas leis, reunidas sem rigor,diziam respeito
a exigências específicas da Roma Antiga, tendo pouco a ver com ascondiçöes
legais diversas da Europa da sua época. Positivamente, isto levouos juristas
do humanismo a reconstruírem historicamente a civilizaçäo daRoma Antiga
como uma cultura totalmente separada da deles próprios. O sistemada Lei
Romana era suficientemente exaustivo para oferecer uma descriçäopormeno-
rizada e sistemática das instituiçöes e ideias principais dasociedade da qual
constituía uma parte täo significativa. Näo era possível remeter alíngua da Lei
35 Sobre os juristas do humanismo e o estudo da Lei Romana, verD. R. Kelley, `Legal Humanism
and the Sense of History", Studies in the Renaissance, 13 (1966),pp. 184-99; Kelley,
Foundations of Modern Historical Scholarship: Language, Law andHistory in the French
Renaissance (Nova lorque, 1970); Kelley, `Vera Philosophia: thePhilosophical Significance
of Renaissance Jurisprudence`, The Journal of the History ofPhilosophy, 14 (1976), pp.
267-79; Q. Skinner, 1, pp. 105-6,11, 269-72, 290-3.
Romana aos seus significados originais sem reconstruir tambémuma imagem
da sociedade da Roma Imperial como um todo. A proximidade daatençäo
filológica que trouxeram para os seus textos aumentou o seusentimento de
distância histórica relativamente a esses textos.
A história da interpretaçäo teológica percorreu uma trajectóriaparalela.
Também neste caso um texto canónico gozou de autoridadedurante um longo
36
período. A traduçäo latina das Escrituras por Jerónimo, datada decerca de
400, foi a Bíblia oficial da Igreja do Ocidente durante toda a IdadeMédia.
Quase todos os comentários bíblicos se baseavam no texto latino,sem olhar à
redacçäo nas línguas originais e, sempre que se fazia uma traduçäopara língua
vernácula, era aquele texto que servia de original. A longevidadedesta autori-
dade fundamentava-se na premissa de que se tratava de umareproduçäo fiel,
definitiva e santa da Sagrada Escritura, a qual näo devia seralterada. Esta
versäo oficial da Bíblia era respeitada pelo conhecimento de que ospais e os
avós haviam lido e proferido as mesmas palavras que as geraçöesposteriores.
As línguas vivas podiam mudar, mas a estabilidade da crençareligiosa exigia
que a redacçäo da Sagrada Escritura fosse permanente. A línguaarcaica podia
levar a que palavras isoladas, ou até passagens inteiras, näofossem já total-
mente compreendidas, mas as pessoas sentiam-se tranquilizadaspelo pensa-
mento de que a vida era vivida, por assim dizer, como citaçäo. Aconsequente
hostilidade contra qualquer tentativa para mudar o texto da Vulgatafoi refor-
çada pela maneira como a interpretaçäo medieval era assimilada noestudo do
texto. Grandes construçöes exegéticas puseram de acordo todas asdeclaraçöes
da Bíblia e todas as diferentes interpretaçöes dos Pais da Igreja. ABíblia Latina
comentada, editada em Basileia no ano de 1498 e reeditada em1502, ilustra
este procedimento. A própria disposiçäo das suas páginas revela oprincípio
operativo. Ao centro de cada página fica o texto da Bíblia, impressoem letras
grandes. Entre as linhas, e em letras pequenas, encontra-seimpressa a inter-
pretaçäo. Os comentários, que frequentemente ocupam maisespaço do que as
passagens que interpretam, estäo impressos o mais próximopossível do texto
bíblico. A intençäo é que o texto seja lido de acordo com a tradiçäoda exegese
que acompanha a versäo latina oficial da Bíblia.
Esta premissa foi minada pela filologia dos humanistas, queprocuravam
reconstituir o contexto histórico exacto dos textos bíblicosrealizando tradu-
37
çöes novas e mais precisas dos antigos escritos gregos ehebraicoS. Valla
36 Sobre a interpretaçäo medieval da Bíblia, ver W Schwarz,Principles andProblems ofBiblical
Translation (Cambridge, 1955); Q. Skinner, The Foundations ofModern Political Thought
(Cambridge, 1978), I, pp. 208-9.
anunciou que os filólogos se podiam pronunciar sobre questöesdoutrinais,
visto que ninguém tinha o direito de interpretar a Bíblia a näo serque a pudesse
ler no Grego ou no Hebreu originais. Reuchlin discutiu as palavrasda Escritura
como gramática, propondo um método de leitura que investigava aorigem do
significado de cada palavra no Hebreu original. Erasmo publicouuma versäo
da Bíblia na qual o texto grego se encontrava impresso lado a ladocom a sua
nova traduçäo, onde explicava, em anotaçöes finais, onde e porquê,precisa-
mente, a sua versäo rejeitava o texto da Vulgata. O conhecimentomais
detalhado do Novo Testamento, que surgiu a partir de toda estaactividade, foi
minando a autoridade da Vulgata e pôs em causa o papel da Igreja.A Vulgata
começou a ser abalada a partir do momento em que foi reveladoque muitas
suposiçöes anteriores sobre a história dos documentos dasEscrituras, sobre a
sua autoria, por exemplo, eram invençöes e desde a altura em queos filólogos
puderam demonstrar a inexactidäo do texto sobre o qual sebaseavam os
comentários medievais. A Igreja foi questionada porque a visäobíblica do
mundo se revelou , muito diferente do mundo daqueles que acomentaram e
porque a organizaçäo e as reivindicaçöes contemporâneas doPapado acabaram
por ser encaradas como estando seriamente em desacordo com asinstituiçöes
e os ideais originais da Igreja primitiva.
Dois processos homólogos ocorreram no estudo da Lei Romanae da Bíblia.
Esses processos nasceram de uma intençäo semelhante echegaram a um
resultado comparável. Os intérpretes medievais e humanistasassemelhavam-
-se no reconhecimento da antiguidade como modelo e norma aoaceitarem os
seus ensinamentos e cânones como autoridade. Diferiam, noentanto, quanto
aos métodos escolhidos para compreender a Antiguidade. Osintérpretes me-
dievais adoptavam um método de assimilaçäo, síntese e alegoria.Näo sentiam
qualquer necessidade de distinguir o texto e o comentário, deinvestigar a
maneira como a vida do passado diferia da do presente, ou deestabelecer um
método sistemático que os habilitasse a fazerem-no. Em vez disso,adoptaram
aquilo a que Panofsky chamou "um princípio de disjunçäo": umadisjunçäo
entre o emprego de formas clássicas e a insistência de que essasformas
38
continham mensagens com significaçäo contemporânea. Isto levoua uma
combinaçäo imaginosa entre a vida da antiguidade e a vida domundo contem-
porâneo. Os intérpretes humanistas apelaram a um regresso aotexto genuíno.
37 Sobre a interpretaçäo humanista da Bíblia, ver W Schwarz,Principles and Problems of
Biblical Translation (Cambridge, 1955); Q. Skinner, The Foundationsof Modern Political
Thought (Cambridge, 1978), 1, pp. 209-12.
38 E. Panofsky, Renaissance and Renascences in Western Art(Estocolmo, 1960), pp. 1 10-1 1.
Isto levou-os a confrontarem-se com uma série de problemas quejamais
haviam sido considerados de forma sistemática. Surgiram questöesrelativas
aos testes de autenticidade documental; à autoridade relativa dediferentes tipos
de textos; às indicaçöes da tendência de um autor e à base lógicadas nossas
crenças sobre o passado. Do tratamento destes problemas surgiuum método
para o estabelecimento da autenticidade dos documentos; umadefiniçäo da
classe das fontes e uma discriminaçäo entre fontes originais efontes secundá-
rias; um conjunto de critérios para se decidir sobre a tendência deuma fonte e
uma formulaçäo da base lógica da crença histórica.Cumulativamente, estas
questöes foram relacionadas umas com as outras e levaram àformaçäo de um
39
método e de uma teoria da crítica histórica: um acto de leituracrítica.
Este resultado foi paradoxal. O objectivo mais elevado doshumanistas näo
era, originalmente, "compreender" os seus modelos, mas sim imitá-los. Para
eles, a palavra "clássico" exprimia uma consciência de algoduradouro, um
sentimento de que a duraçäo do poder de um texto para falardirectamente às
geraçöes vindouras era ilimitado. Também para nós a palavra"clássico"
contém um resquício desse significado. Os humanistas estudaramos textos do
mundo antigo porque esse mundo representava para eles ummodelo, algo que
devia ser copiado e imitado. Contudo, quanto maior era a precisäo ea minúcia
com que prosseguiam os seus estudos textuais, mais evidente setornava que a
cópia e a imitaçäo eram impossíveis. Os textos antigos, seentendidos de forma
literal, "tal como eram realmente", deviam ser vistos comopertencentes a um
mundo antigo, inseparavelmente ligados a todo um contexto designificados
que näo podiam ser directamente assimilados pela culturacontemporânea.
Invertendo a sua intençäo original, os humanistas acabaram porquestionar o
estatuto normativo dos seus objectos privilegiados. Podemosexprimir o mes-
mo processo ao contrário. O que os impeliu a estabelecerem osfundamentos
da disciplina histórica - o sentimento de que eram necessáriastécnicas
especiais para investigar o passado, encarado como um terreno deestudo
independente, sem reivindicaçöes normativas sobre o investigador -foi a
crença de que um certo passado era normativo. Esta foi a dialécticada
clarificaçäo histórica: uma inversäo irónica baseada naspossibilidades ineren-
tes à inscriçäo.
39 Sobre o desenvolvimento da leitura crítica, ver, em especial, J.H. Franklin, Jean Bodin and
the Sixteenth-Century Revolution in the Methodology ofLaw andHistory (Nova Iorque,
1963), e J. G. A. Pocock, "The Origins of Study of the Past ",Comparative Studies in History
and Society, 4 (1962), pp. 209-46.
Na história da hermeiriêutica, as práticas de inscriçäoconstituíram sempre a
narrativa privilegiada, as práticas de incorporaçäo a narrativaesquecida. Foi a
ciência natural moderna que preparou o terreno para que aspráticas corporais
fossem relegados para segundo plano. A mecanizaçäo da realidadefísica, nas
ciências naturais e ' xactas, levou a que o corpo fosseconceptualizado como um
objecto entre outros num domínio-objecto constituído por corposque se
movem obedecendo a processos regulares. O corpo era olhadocomo uma coisa
material: era materializado. As práticas corporais, como tais, säoaqui perdidas
de vista. A reacçäo à mecanizaçäo da realidade física, primeiro naGeisteswis-
senschaften e, mais tarde, na "revoluçäo linguística", reforçarameste efeito
em vez de o contrariarem. A comunicaçäo de significados de acordocom
normas, um objecto-domínio recém-constituído, podia, em princípio,incluir o
corpo no seu âmbito de estudo mas, na prática, só o fezperifericamente. O
objecto-domínio da hermenêutica foi definido em termos daquiloque se
considerava como a característica distintiva da espécie humana,primeiro a
consciência e, mais tarde, a linguagem. Quando se considerou aconsciência
como característica definidora, reconheceu-se que a expressäo designificados
se cofflugava com os organismos humanos, mas em tal conjugaçäonäo se viu
mais do que um facto empírico. Os objectos primordiais säo ostextos canóni-
cos e a vida dos seres humanos, como vida histórica, é entendidacomo uma
vida registada e narrada, näo como uma existência física. Quandose considera
a linguagem como a característica definidora da espécie humana, ocorpo é
"legível" como um texto ou um código, mas olhado como ocontentar arbitrário
de significados. As práticas corporais säo reconhecidas, mas numaforma
40
sublimada.
Existe uma boa razäo para que isto tenha acontecido. O facto deas práticas
de incorporaçäo terem sido, durante tanto tempo, relegados parasegundo
plano, como objectos de uma atençäo interpretativa explícita, deve-se näo tanto
a uma peculiaridade da hermenêutica como a uma característicadefinidora das
próprias práticas de incorporaçäo, pois estas práticas, como járeferimos, näo
podem ser cabalmente realizadas sem uma diminuiçäo da atençäoconsciente
que lhes é prestada. O estudo do hábito ensina-nos isto. Qualquerprática
corporal - nadar, dactilografar ou dançar - exige, para a suaexecuçäo
correcta, toda uma cadeia de actos interligados e, nas execuçöesiniciais da
acçäo, a vontade consciente tem de escolher cada um dosacontecimentos
40 Sobre a dupla estratégia da sublimaçäo e da materializaräo, verR. Keat, `The Human Body
in Social Theory: Reich, Foucault and the Repressive Hypothesis",Radical Philosophy, 42
(1986), pp. 24-32
sucessivos que constituem a acçäo entre uma série de alternativaserradas. Mas
o hábito acaba finalmente por fazer com que cada acontecimentoprecipite um
sucessor apropriado, sem que venha a colocar-se uma alternativa esem
referência à vontade consciente. Quando começamos a aprender anadar, a
dactilografar, ou a dançar, interrompemo-nos, a cada passo, commovimentos
desnecessários. Quando nos tornamos experientes, os resultadosfluem com
um mínimo de acçäo muscular necessária para os fazer surgir.Mesmo que os
centros ideacionais continuem a estar envolvidos quandoexecutamos com
êxito a cadeia de actos que, em conjunto, constituem a prática, elesencontram-
-se envolvidos de forma mínima, como é evidente a partir do factode a nossa
atençäo poder estar parcial ou quase completamente dirigida paraoutro lugar
enquanto estamos a executar essa prática. Os movimentos docorpo säo
acompanhados por sensaçöes, mas por sensaçöes em relaçäo àsquais estamos
normalmente desatentos. A nossa atençäo é atraída apenas quandoalgo corre
mal.
As práticas de incorporaçäo oferecem, por isso, um sistema dernnemónica
particularmente eficaz. Neste facto existe um elemento deparadoxo, pois é
verdade que tudo o que se encontra escrito e, de forma mais geral,tudo o que
está inscrito, demonstra, pelo facto de estar inscrito, uma vontadede ser
recordado e alcança, por assim dizer, a sua efectivaräo na formaçäode um
cânone. É igualmente verdade que, pelo contrário, as práticas deincorporaçäo
säo, em grande medida, impossíveis de detectar e, como tal,incapazes de
oferecer um meio pelo qual qualquer evidência de uma vontade deser lembra-
do possa `permanecer". Em consequencia, geralmenteconsideramos que a
inscriçäo é a forma privilegiada para a transmissäo das memóriasde uma
sociedade e achamos que a difusäo e a elaboraçäo do sistema deinscriçäo de
uma sociedade torna possível um desenvolvimento exponencial dasua capa-
cidade de recordar.
Contudo, seria enganador subestimarmos, nesta abordagem, aimportância
mnemónica e a persistência daquilo que é incorporado. As práticasde incor-
poraçäo dependem, para o seu efeito mnemónico particular, deduas caracte-
rísticas distintivas: o seu modo de existência e o seu modo deaquisiçäo. Näo
existem "objectivamente% independentemente da sua execuçäo. Esäo adqui-
ridas de modo a dispensar uma reflexäo explícita sobre a suaexecuçäo. É
importante registar que os conjuntos relativamente informais deacçöes, a que
me referi como práticas corporais culturalmente específicas, têmaspectos
significativos em comum com os conjuntos relativamente maisformais de
acçöes, a que chamei cerimônias comemorativas. As cerimôniascomemorati-
vas também se preservam apenas através da sua realizaçäo; e, porcausa da sua
performatividade e da sua formalizaräo, também elas näo säofacilmente
susceptíveis de exame e de avaliaçäo críticos por aqueles queestäo habituados
à sua execuçäo. Tanto as cerimônias comemorativas como aspráticas corpo-
rais, contêm, portanto, uma certo grau de segurança contra oprocesso de
questionamento cumulativo que todas as práticas discursavasacarretam. Esta
é a fonte da sua importância e persistência como sistemasrnnemónicos. Todos
os grupos confiam, por isso, aos automatismos corporais, osvalores e as
categorias que querem à viva força conservar. Eles saberäo como opassado
pode ser bem conservado na memória por uma memória habitualsedimentada
no corpo.
Existe, assim, uma inércia nas estruturas sociais que näo podeser explicado
de forma adequada por qualquer das ortodoxias correntes sobreaquilo que é
uma estrutura social. Esta conclusäo tem implicaçöes para osantropólogos
sociais, para os historiadores e para os sociólogos e cientistassociais em geral.
Tem implicaçöes para os antropólogos sociais. De facto, näovenho apenas
sugerindo que a memória, ou tradiçäo, é transmitida de maneirasnäo-textuais
e näo-cognitivas. Sugiro igualmente que aqueles que reconhecerama impor-
tância da performance, isto é, os antropólogos sociais(principalmente), real-
çaram a sua importância para `explicitar` a estrutura social existentee näo para
sublinhar, marcar e definir uma continuidade com o passado. Osantropólogos
sociais, desde Malinowski, e os antropólogos do simbólico, desdeDurkheim
- vide Lévi-Strauss, no qual esta disposiçäo foi reforçada pelo seuinteresse
pelas cogniçöes intemporais - têm sido avessos à diacronia. Opróprio
Durkheim constrói, na verdade, uma explicaçäo näo-cognitiva,performativa,
emAsformas Elementares da Vida Religiosa, de como associedades se adoram
a si próprias, isto é, de como celebram símbolos de si próprias emrituais cujo
poder resulta dos efeitos emocionais da interacçäo social. Estaargumentaçäo
pode servir igualmente de explicaçäo do que se passa em rituaismais distinti-
vamente comemorativos. Este é um exemplo, entre muitos, do factode alguns
antropólogos terem vindo a caminhar na mesma direcçäo que tenhoem vista
no meu estudo, embora näo tenham insistido na questäo dascomemoraçöes
por näo se interessarem pela componente diacrónica da identidadecolectiva.
Existem implicaçöes para aqueles que se interessamprincipalmente pela
diacronia, isto é, para os historiadores. Actualmente os historiadorestendem a
insistir na invençäo das tradiçöes e, logo, na questäo de até queponto os rituais
devem ser vistos como respostas intencionais a contextos sociais epolíticos
particulares e variáveis. Mas por mais animador que este novo temahistórico
seja, näo pode expandir-se indefinida e inquestionadamente paraexplicar
aquilo que se passa em todas as comemoraçöes. E certamentepossível imaginar
um futuro em que já näo tenham lugar as cerimônias do Cenotáfio,por já
näo haver mais nenhuma geraçäo vivente que transmita a memóriaviva que
ele recorda. Podemos imaginar um dia em que tais comemoraçöesse teräo
tornado täo sem significado como comemorar a Batalha deWaterloo o é hoje
para nós. Mas a forma como a memória pode operar na celebraçäocomunal
näo se esgota pela extrapolaçäo a partir deste tipo de exemplo. APáscoa e a
última Ceia têm sido recordadas desde há muito tempo, sem queexista
qualquer geraçäo vivente que possa, no sentido acima implícito,recordar o seu
contexto histórico original. A unilateralidade da abordagem queinsiste na
invençäo das tradiçöes resulta da incapacidade de ver aperformatividade do
ritual. O resultado é obscurecer a distinçäo entre a questäo dainvençäo dos
rituais e a questäo da sua persistência. O historicista exige quepassemos em
revista as intençöes dos criadores de um ritual, uma exigência que,em alguns
casos, é pedida explicitamente de empréstimo a profissionaisrecentes da
história das ideias. Esta exigência, porém, näo só näo é suficiente,mas também
näo é, muitas vezes, uma condiçäo necessária para a compreensäode um ritual.
Por isso, eu diria que a noçäo de Ier" um ritual é aqui tomada deforma
demasiado literal. Em consequência, as característicasidentificadoras e par-
cialmente constitutivas do ritual - tais como a formalidade e aperformativi-
dade - tendem a ser largamente ignoradas, na tentativa de seaproximar tanto
quanto possível a interpretaçäo do ritual da de um folheto políticoliterário, por
exemplo.
Há também implicaçöes para os sociólogos e os cientistassociais em geral,
pois o modo dominante de auto-compreensäo, representado peloconvencio-
nalismo contemporâneo, impôs, pelo menos até há pouco tempo,uma tendên-
cia entre os cientistas sociais para perder de vista o corpo humanocomo
objecto-domínio. Por isso, no caso de certas concepçöes recentesda teoria
social, o objecto-domínio desta foi definido em termos daquilo que éconside-
rado como característica distintiva da espécie humana - alinguagem. Esta
foi conceptualizada pelas escolas Wittgensteiniana, estruturalista epós-estru-
turalista como um conjunto de normas sociais, um sistema desímbolos, ou um
discurso de poder. O corpo humano pode ser incluído num objecto-domínio
definido deste modo apenas como o portador de significadoslinguísticas, ou
de significados estruturados como uma linguagem. Só pode serincluído, por
outras palavras, sob uma forma sublimada.
É verdade que, recentemente, o corpo tem recebido atençäocomo portador
de significados sociais e políticos. Mas até esse reconhecimento édado de
forma sublimada. A questäo é geralmente, se näo sempre,abordada com um
inclinaçäo marcadamente cognitiva. Frequentemente, aquilo de quese fala é
do simbolismo do corpo, das atitudes para com o corpo, ou dosdiscursos sobre
o corpo e näo tanto da forma como os corpos säo diversamenteconstituídos,
ou se comportam diversamente. Afirma-se que o corpo ésocialmente consti-
tuído, mas a ambiguidade do termo "constituiçäo" tende a passardesapercebi-
da. Quer isto dizer que o corpo é considerado socialmenteconstituído no
sentido em que é construido como um objecto do conhecimento oudo discurso.
Mas näo se considera igualmente, e de forma clara, o corpo comosendo
socialmente constituído no sentido em que é culturalmentemodelado nas suas
práticas e comportamento concretos. As práticas e ocomportamento säo
constantemente assimilados a um modelo cognitivo. A ambiguidadede signi-
ficado das palavras "constituiçäo" e "construçäo" tende a sermenosprezada,
privilegiando-se um dos sentidos a expensas do outro. Todavia, ocorpo é
socialmente constituído num duplo sentido. Defender a importânciadas per-
formances e, em particular, das performances habituais, natransmissäo e na
conservaçäo da memória é, entre outras coisas, insistir nessaambiguidade e
na importância do segundo termo do seu significado.
Este livro foi composto
em caracteres Times 11113, dele tendo sido feita
uma primeira tiragem de 1 000 exemplares em
Abril de 1993.
(fim)
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