CONHECIMENTO GEOGRÁFICO E GEOGRAFIA
Desde a Antiguidade, os conhecimentos geográficos ajudam os seres humanos a conhecer e a dominar
o espaço. Nos dias atuais, a Geografia assume um papel importante para compreender a relação entre as
sociedades e a natureza, mas se deve considerar que essa ciência resulta de um longo processo histórico
de construção. Ou seja, ela não é um saber pronto, dado pela visão de apenas um indivíduo em um certo
momento, mas é uma ciência derivada de séculos de pesquisas, descobertas e debates.
A Geografia é essencial nas análises atuais sobre o processo de organização e reorganização do
espaço, para o qual cada indivíduo, sozinho ou coletivamente, dá a sua contribuição. Ela permite com-
preender as transformações promovidas no espaço e tem ajudado os grupos sociais a se posicionar
de forma mais ética e crítica diante das questões ambientais, sociais, económicas e culturais.
É importante refletir sobre como esse conhecimento geográfico se constitui. O que a Geografia
estuda? Como as sociedades usam os saberes geográficos acumulados? Como aplicar conhecimentos
geográficos no cotidiano? Discutiremos essas questões neste capítulo e analisaremos também o que
é o espaço geográfico, objeto de estudo da Geografia.
Antes, porém, vamos pensar no papel do geógrafo na sociedade contemporânea e nas suas
possibilidades de atuação. No texto a seguir, o papel desse profissional é discutido.
r Interagindo
Profissão geógrafo
Geografia?! Para que serve a Geografia? Sempreque sou questionado sobre o porquê de minha escolhaprofissional, lembro-me do instigante diálogo travadoentre o pequeno príncipe e o geógrafo na clássica obrade Antoine de Saint-Exupéry:
- Que livro é esse? -perguntou-lhe o principezinho.- Que faz o senhor aqui?
- Sou geógrafo - respondeu o velho.- Que é um geógrafo? -perguntou o principezinho.-Éum sábio que sabe onde se encontram os mares,
os rios, as cidades, as montanhas, os desertos.- É bem interessante - disse o principezinho. - Eis,
afinal, uma verdadeira profissão!No meu imaginário infantil - quando tive contato
com o livro - e, muito provavelmente, no pensamentoda maioria das pessoas, esta é a definição do trabalho dogeógrafo, que, como diz a própria etimologia da palavra,trata da descrição da Terra ou do estudo da localizaçãode mares, rios, cidades, montanhas e desertos.
Se por um lado não podemos desprezar essa definiçãotão arraigada, por outro é importante mencionar o quantoas discussões das últimas décadas trouxeram contribui-ções para a Geografia, abordando os seus conceitos, comolugar, região, território, paisagem, e, principalmente, seuobjeto de estudo maior, o espaço geográfico.
Além, portanto, de simplesmente enumerar rios e mon-tanhas, a Geografia envolve um conjunto muito maior de
saberes, dos quais o ensino representa uma importanteparte, mas não a única. Outras funções são exercidas emuniversidades, institutos de pesquisa, órgãos de gestão eplanejamento - públicos e privados -, empresas de con-sultoria, organizações não governamentais e em diferentesagências, de instâncias locais a supranacionais.
Nos últimos anos, por exemplo, muitos geógrafos de-senvolveram pesquisas que vão de estudos de distribuiçãoespacial de doenças, que direcionam políticas públicasna área da saúde, passando por avaliações de impactoambiental, por meio do sensoriamento remoto, até chegaràs pesquisas que procuram contribuir para a solução deproblemas urbanos e para o planejamento regional.
Além da carreira académica, ao bacharel, mestre edoutor é permitido atuar como geógrafo propriamentedito, uma profissão regulamentada no Brasil desde 1979e certificada pelo Conselho Regional de Engenharia eArquitetura (Crea).
De volta ao livro de Saint-Exupéry, mais adianteno diálogo, o personagem geógrafo lembra o pequenopríncipe da total falta de exploradores para desenvolverpesquisas e lecionar. Talvez aí, um importante alentoàqueles que buscam, nesta ciência do espaço, o seu lu-gar ao sol.
Fonte: Outras formações da Terra. Discutindo Geografia,
São Paulo, ano 4, n. 21. Texto do autor.
Em todas as sociedades, em diversos períodos históricos, os saberes geográficos foram impres-
cindíveis e continuam sendo até hoje. Não existe sociedade que não tenha construído noções
espaciais. Para as sociedades nómades dos períodos paleolítico e neolítico, por exemplo, os referenciais
espaciais eram fundamentais, visto que esses grupos se deslocavam constantemente para poder
sobreviver. Era fundamental, então, conhecer o espaço percorrido ou a percorrer.
As representações espaciais desses períodos indicam tal preocupação. Não bastava apenas per-
correr um determinado percurso na busca de alimentos e de proteção, era necessário conhecer o
espaço percorrido para que se pudesse retornar em outro momento. Era assim que um determinado
saber sobre o espaço habitado ia compondo a vida daquelas sociedades e suprindo parte de suas
necessidades.
Esse conhecimento não era necessariamente geográfico, como o compreendemos hoje, porém
foi de fundamental importância para o desenvolvimento de muitos grupos humanos.
Ainda hoje existem grupos que vivem com base em uma Geografia muito próxima a essa. É
o caso daqueles que ainda dependem de movimentos migratórios para obter os bens para sua
sobrevivência, e também dos que vivem distanciados das sociedades mais tecnológicas e cons-
tróem um saber próprio, que lhes permite dominar o espaço e desenvolver estratégias de defesa
e modos devida.
Os grupos indígenas que vivem isolados na Amazónia, como este mostrado em uma foto de 2008, sofrem ameaças de garimpeiros ede madeireiros, que desejam tornar-lhes o território. Para sobreviver, proteger suas terras e se defender das ameaças, esses povos, dealgum modo, usam seus conhecimentos sobre o espaço.
Na Antiguidade, os conhecimentos geográficos passaram a ter outras características em com-
paração aos desenvolvidos pelas sociedades pré-históricas, visto que a ocupação do espaço e
a organização de Estados ocorrem de modo mais estruturado e baseado em alguns saberes. A
escrita e os mapeamentos, por exemplo, possibilitaram a certos grupos, como os egípcios, ter
maior domínio espacial, e permitiram também localizar as riquezas naturais, como as minas de
metais preciosos.
Nas sociedades grega, romana, mesopotâmica, chinesa, inça, maia, asteca, entre outras, os conhe-
cimentos geográficos permitiram formar e expandir seus territórios. Essas civilizações descobriam
o espaço e o dominavam.
Foram os gregos que desenvolveram as primeiras noções de poios, linhas imaginárias, esfericidade
da Terra, projeções cartográficas, latitude e longitude.
Sobre a Geografia na Antiguidade, podem-se citar as contribuições de expedições e da biblioteca
de Alexandria. Nesse período, destacam-se as obras de pensadores como:
• Anaximandro (610 a.C-546 a.C), criador da obra Descrição da Terra;
• Hecateu (550 a.C.-475 a.C.), responsável pelo primeiro mapa-múndi (ver a primeira imagem
abaixo);
• Hipócrates (460 a.C.-377 a.C.), criador de Tratado dos ares, das águas e dos lugares, em que se
discute a influência do meio ambiente sobre o ser humano;
• Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), o qual provou que nosso planeta é esférico baseando-se na
observação da sombra da Terra projetada na Lua durante um eclipse;
• Eratóstenes (275 a.C.-194 a.C.), que calculou a primeira medida da circunferência da Terra, muito
próxima aos dados atuais;
• Estrabão (63 a.C.-25 d.C), responsável pela obra Geografia, que deu origem ao nome conhecido
até hoje para essa área do conhecimento;
• Cláudio Ptolomeu (90-168), que defendeu a ideia de que a Terra era o centro do Universo.
Observe que no mapa A Terra segundo Hecateu, do século
VI a.C., é possível ver as áreas conhecidas na época. A África
ainda não recebia essa denominação, visto que apenas a
parte norte, a Líbia (Libya), era conhecida; na Europa (Europe)
podem-se verificar porções de terras que hoje correspondem
à Itália, à península Ibérica e aos Bálcãs. Na porção oriental,
estão representadas partes da Arábia Saudita e da índia,
Podemos perceber, ainda, o traçado de rios, alguns mares e
montanhas (em marrom) e a esfericidade da Terra, aspecto
que ainda estava em debate na época.
Interdisciplinaridade-^
Reprodução do mapa-múndi de
acordo com Ptolomeu (90-168),
astrónomo, geógrafo e matemático
grego. Observe que este mapa é
uma espécie de planisfério. Ele
representa a ideia de esfericidade
da Terra, apresenta as terras, os
mares e os rios conhecidos na
época e faz referência aos ventos,
simbolizados pelas figuras de anjos
que sopram em várias direções.
Durante a Idade Média, a Igreja Católica emergiu como centro do poder na Europa e considerou
inapropriada grande parte do conhecimento geográfico produzido até então, por não ter origem
nas escrituras. Para alguns estudiosos, contudo, os clérigos da Igreja Católica apropriaram-se desse
conhecimento e reinterpretaram-no sob o ponto de vista cristão. Pode-se dizer, portanto, que a
produção da Antiguidade clássica não teve grande difusão nesse período e local, mas influenciou
significativamente os pensadores da época.
O debate entre as teorias que aceitavam ou rejeitavam a esfericidade da Terra, por exemplo,
teve início na Antiguidade e continuou na Idade Média. Nessa época, é possível destacar a obra de
copistas e os relatos de viajantes, missionários e enciclopedistas cristãos. Ferramentas de navegação e
localização também foram criadas, o que favoreceu a expansão das áreas conhecidas pelos europeus
em todo o mundo.
Nesse mesmo período, os árabes, que não estavam sob a dominação da Igreja Católica, traduziram
e divulgaram grande parte dos textos da Antiguidade. Além disso, elaboraram inventários geográ-
ficos sobre as terras conhecidas, utilizando textos clássicos e suas experiências com a navegação,
delimitando rotas, descrevendo lugares distantes e mapeando-os, especialmente com objetivos
comerciais e de dominação territorial.
Os árabes foram responsáveis pela tradução de inúmeros textos clássicos daGeografia, contribuindo na sistematização desse conhecimento. Na foto, o mapa--múndi estense de 1450, é possível observara influência dos conhecimentos deHecateu. Note a representação da esfericidade da Terra e a localização dos oceanosnas bordas da esfera.
Mas foi com o desenvolvimento do
modo de produção capitalista e com
o expansionismo europeu, iniciados
no final do século XV, que o conheci-
mento geográfico evoluiu mais rapi-
damente e assumiu maior importância
para a sociedade. Novos horizontes se
abriram, novas ferramentas de análise
do espaço surgiram.
Houve um avanço do conhecimen-
to não só geográfico, como também
artístico e cartográfico, constituídos à
medida que se estabeleceram novos
domínios territoriais, económicos, so-
ciais, políticos e culturais. Exemplos
disso são a descrição e o mapeamento
dos novos espaços "descobertos".
O geógrafo brasileiro Douglas
Santos, em seu livro A reinvenção do
espaço, destaca a importância da con-
quista de novos territórios nos séculos
XV e XVI e discute as representações e
leituras desse período, como a litera-
tura de Camões e o mapa-múndi de
Martin Behaim (veja-os no próximo
quadro).
As palavras que esconhecimentos.
:o são explicadas no Glossário, no fim do livro. Consulte-o para ampliar seus
IO] Interagindo LÍNGUAPORTUGUESA
Os Lusíadas l Canto primeiro
Por mares nunca dantes navegados
As armas e os Barões assinaladosQue, da Ocidental praia Lusitana,Por mares nunca de antes navegadosPassaram ainda além da Taprobana,Em perigos e guerras esforçados,Mais do que prometia a força humana,E entre gente remota edificaramNovo reino, que tanto sublimaram;
E também as memórias gloriosasDaqueles Reis que foram dilatandoA Fé, o Império, e as terras viciosasDe África e de Ásia andaram devastando,E aqueles que por obras valerosasSe vão da lei da Morte libertando,Cantando espalharei por toda parte,Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
Cessem do sábio Grego e do TroianoAs navegações grandes que fizeram;Cale-se de Alexandre e de TrajanoA fama das vitórias que tiveram;Que eu canto o peito ilustre Lusitano,A quem Netuno e Marte obedeceram.Cesse tudo o que a Musa antiga canta,Que outro valor mais alto se alevanta
Fonte: CAMÕES, Luís de. Os lusíadas (1572).In: . Obra completa. Rio de Janeiro: NovaAguilar,2008.p. 8.
Mapa-múndi do explorador alemão Martin Behaim, de 1492.
Como os conhecimentos geográficos medievais influenciaram Camões na ela-
boração desses versos e Martin Behaim na confecção desse mapa?
Os conhecimentos geográficos desse período resumem-se, então, a livros que contêm dados
estatísticos, relatos de viajantes sobre lugares desconhecidos, obras sobre determinados elementos
naturais, catálogos sobre os continentes e os países do globo, entre outros.
Para alguns pesquisadores, toda essa produção representa apenas a"pré-história"da Geografia,
em virtude da ausência de métodos científicos, que vão surgir apenas a partir do século XIX.
A história inicial dessa ciência se relacionou com fatos importantes da Europa do início da Idade
Moderna: o desenvolvimento do capitalismo, a constituição dos Estados Nacionais e a expansão dos
domínios europeus. Somente em períodos mais recentes é que surgiram referências às produções
geográficas de outras áreas do planeta.
No século XIX, portanto, destacaram-se como principais autores Cari Ritter (1 779-1 859) e Alexander
von Humboldt (1 769-1 859). Esses alemães trouxeram uma nova abordagem sobre o espaço que
vinha sendo ocupado e transformado. É importante destacar que o centro de suas análises era a
natureza, e, para fazer esse trabalho, desenvolveram um método. É a produção desses autores que
vai dar corpo ao que hoje conhecemos como Geografia.
Pode-se afirmar que a Geografia, assim como as outras ciências modernas, é fruto de transfor-
mações significativas no modo como se constituiu o conhecimento. As transformações promovidas
pelo Iluminismo, no século XVIII, formaram a base de sistematização do conhecimento geográfico.
Com isso, a racionalidade tornou-se a principal referência para a Geografia, no lugar da concepção
teológica pregada pela Igreja Católica, que predominou anteriormente no Ocidente. Com o acúmulo
de conhecimentos e com novos procedimentos para organizá-los, a Geografia passou a constituir
uma ciência com método, objetivos e objeto de estudo próprios.Interdisciplinarida
Interagindo
Observe o quadro do pintor holandês
Johannes Vermeer (1632-1675) e responda
às questões:1. Que elementos podem ser observados
nessa pintura do século XVII que se rela-cionem ao trabalho do geógrafo naquelaépoca?
2. Em sua opinião, como o pintor carac-teriza a figura do geógrafo no períodoretratado?
O geógrafo, óleo sobre tela do pintor holandês Johannes Vermeer, 1659,
Geografia escolar
Para compreender a história da Geografia a partir do século XIX, é necessário também analisar o
seu papel como disciplina escolar, que vai sendo desenvolvido paralelamente, porém com propósitos
distintos do que ocorreu na constituição da ciência. Nesse período, a Geografia sofre influência da
recém-criada escola e dos métodos pedagógicos adotados na ocasião.
Na constituição dos Estados Nacionais, as disciplinas escolares tiveram importante papel, pois
difundiram os ideais nacionalistas - valores como a identidade, o idioma, o território e a história de
seus heróis. Nesse contexto, a Geografia buscava valorizar o território como base da nação, constituído
de um determinado grupo social. Era preciso que todos falassem o mesmo idioma, projetassem o
mesmo ideal de identidade e de nação.
Nessa concepção, para defender e expandir o território era necessário conhecer suas riquezas
e elementos naturais, suas cidades e regiões, suas grandes construções. A escola seria o espaço
adequado para divulgar esses conhecimentos. O modelo escolar foi introduzido no processo
de constituição dos Estados Nacionais europeus e americanos, principalmente entre os séculosXVIII e XIX.
Atualmente, a escola tem outros objetivos e o ensino de Geografia não se limita mais a apenas
nomear e elencar as riquezas naturais e as construções humanas. A Geografia escolar possibilita
compreender as relações sociais, económicas, culturais e até afetivas que acontecem no espaço. Além
disso, a conquista da cidadania e a consciência do papel de sujeito transformador do espaço geográfico
são algumas das finalidades que a escola busca e que a Geografia procura desenvolver.
A Geografia Moderna e o modo de produção capitalista
Para vários autores da atualidade, algumas condições históricas relacionadas ao desenvolvimento
do capitalismo favoreceram a constituição da Geografia como ciência, no século XIX:
• o conhecimento do mundo como um todo. Era necessário conhecer a forma e a dimensão real dos
continentes para que se pudessem elaborar estudos sobre a Terra em sua totalidade. Para que o
capitalismo se tornasse um sistema hegemónico mundial, isso foi um aspecto primordial e teve
início com as Grandes Navegações do final do século XV. O estabelecimento do domínio colonial
europeu ocorreu entre os séculos XVI e XIX. Nesse período, a maior parte das terras emersas do
globo, mesmo que não estivesse ocupada por europeus, já era conhecida por eles;
• o acúmulo de informações sobre os vários lugares da Terra. À medida que o mercantilismo
ia se estabelecendo e as colónias iam surgindo, foi se formando uma base de dados sobre os
lugares. As metrópoles enviaram missões às colónias e dessa prática resultaram inventários
que descreviam, com exatidão e detalhes, as riquezas naturais existentes que poderiam ser
exploradas. Esses inventários passaram a compor os arquivos de institutos fundados na Europa
nesse período, formando um banco de dados;
• o aprimoramento das técnicas cartográficas. Os conhecimentos e as técnicas cartográficas eram
necessários para possibilitar a representação e a localização dos fenómenos estudados. Com o
desenvolvimento do comércio intercontinental, as navegações exigiam maior domínio técnico
cartográfico, além de representações e localizações de lugares, portos, rotas, correntes marítimas
e ventos. Portanto, a expansão do capitalismo dependeu, entre outros fatores, da elaboração
de mapas e cartas mais precisos.
Die Ebbe und Fluth (Fluxo e refluxo.), mapa do cartógrafo alemão Eberhard Werner Happel, 1675.
Interdisciplinaridade—^
Outro aspecto que contribuiu para a constituição da ciência geográfica moderna foi a evolução
do pensamento resultante de debates teóricos que envolveram diversas áreas do conhecimento e
novas visões de mundo.
O debate filosófico, que superou a visão teológica de mundo predominante na Idade Média; o debate
político fundamentado no Iluminismo (século XVIII); e os debates de economia política (séculos XVIII e
XIX) foram algumas das visões que colaboraram para o desenvolvimento da Geografia Moderna.
É importante perceber, portanto, que o processo de constituição da ciência geográfica não se deu
de forma rápida, mas resultou das contribuições de muitos pesquisadores; alguns deles estabeleceram
rupturas com visões que predominaram anteriormente, enquanto outros deram continuidade ao
pensamento vigente.
No século XIX, a Geografia foi sistematizada em um contexto de transformações ocorridas no
período. Na busca por organizar a ciência, surgiram debates que tentavam definir seu objeto de
estudo. Assim surgiram as escolas geográficas, com destaque para a alemã (também conhecida
como determinista) e a francesa (denominada possibilista).
Essas escolas geográficas se diferenciavam pela compreensão que tinham da relação entre a so-
ciedade e a natureza, pelo seu posicionamento sobre o que deveria ser o objeto da Geografia e por
sua ideia de organização dos Estados Nacionais. Enquanto a escola alemã defendia que a natureza
exercia forte influência sobre a sociedade e sustentava a ideia de que o meio natural era definidor
da ação humana, a escola francesa defendia que o ser humano, embora fosse influenciado pela na-
tureza, também agia sobre ela e a transformava de acordo com suas necessidades e seus interesses.
Em comum, elas traziam o método descritivo, o empirismo, a defesa das classes dominantes e de
seus ideais, e a divulgação favorável ao capitalismo vigente.
Dois geógrafos se destacaram na organização dos fundamentos dessas escolas geográficas (co-
nhecidas como Geografias Modernas): o alemão Friedrich Ratzel (1844-1904) e o francês Paul Vidal
deLaBlache(1845-1918).
Perfil
Vidal de La Blache e a Geografia francesa
Vidal de La Blache é considerado o precursor da Geografia francesa.
Nasceu no sul da França, em 1845, mas realizou seus estudos em Paris,
onde se formou historiador e se doutorou com uma tese sobre História
antiga. Posteriormente ingressou na Universidade de Nancy e estudou as
obras clássicas dos geógrafos alemães (Humboldt e Ritter), aprofundando
seus conhecimentos de Geologia e Ecologia.
Vidal publicou artigos nas áreas de ensino e metodologia, buscando
definir um projeto científico para a Geografia. Entre seus trabalhos de maior
repercussão estão Quadro Geográfico da França, publicado em 1903, no qual
enfatiza a relação homem-meio e paisagem; e A França do Leste, de 1917,
um trabalho mais maduro no qual incorpora uma nova visão do espaço
geográfico, baseado em noções modernas como fluxos e polarização.
Vidal coordenou a revista Annales de Géographie e lecionou na Sorbonne até 1908, onde formou uma
escola francesa de Geografia, fazendo vários discípulos. Morreu em 1918, quando redigia um trabalho sobre
Geografia Humana, posteriormente organizado por Emmanuel de Martonne (ver a página 199).
Vidal de La Blache, geógrafo francês, em
1883.
Algumas concepções defendidas por essas correntes teóricas alemã e francesa passaram a ser
questionadas na década de 1950, com os debates surgidos após a Segunda Guerra Mundial e com a
nova organização do espaço geográfico mundial. O desenvolvimento do capitalismo se intensificou,
e os Estados Unidos ocuparam uma posição de destaque e hegemonia no cenário mundial.
Nesse período, os pesquisadores iniciaram uma série de críticas ao método descritivo adotado
pela Geografia Moderna e, dessa forma, contribuíram para o surgimento da Nova Geografia ou New
Geogmphy. Essa vertente, de origem anglo-saxônica, fundamenta sua análise espacial na Matemática e
trabalha com modelos voltados ao planejamento, como estudaremos mais adiante no capítulo 10.
Estudiosos afirmam que essa Nova Geografia, apesar de criticar o método descritivo da Geografia
Moderna e de adotar análises estatísticas do espaço, continua servindo aos objetivos das classes
dominantes e ao modo de produção capitalista.
A partir dos anos 1970, as questões sociais, económicas e políticas do mundo contemporâneo,
como o desenvolvimento desigual do capitalismo, ganharam força dentro da Geografia.
Os autores que compartilhavam e compartilham dessa nova perspectiva teórica se posicionaram
criticamente diante da realidade e propuseram o uso dos saberes geográficos para a transformação do
mundo. Contrariamente aos pensadores anteriormente apresentados, eles usaram os conhecimentos
científicos para defender suas posições políticas e mostrar que os discursos geográficos escondiam
os reais propósitos dessa ciência.
Essa corrente ficou conhecida como Geografia Crítica, na qual os geógrafos destacam as contra-
dições que ocorrem na organização do espaço promovidas pelas sociedades contemporâneas e
decorrentes da produção capitalista. Essa Geografia não se constitui de forma homogénea, e dela
derivam, entre outras, a Geografia Humanística e a Geografia Cultural.
A Geografia Crítica envolve pesquisadores que apresentam em comum o fato de considerar o
espaço geográfico o conceito central dessa ciência. Entretanto, cada uma das vertentes da Geografia
Crítica constrói o conceito de espaço com base em teorias próprias. Nesse sentido, dois autores em
especial contribuíram para essa discussão: o geógrafo francês Yves Lacoste e o geógrafo brasileiro
Milton Santos, autores cujos pressupostos teóricos retomaremos ao longo desta coleção.
Rupturas e continuidades na constituição de uma ciência não ocorrem apenas na Geografia,
nenhuma ciência apresenta uma verdade definitiva, mas sim ideias temporárias, que podem ser
questionadas, reelaboradas ou descartadas.
• O CONCEITO DE ESPAÇO GEOGRÁFICO:UMA RELAÇÃO ENTRE SOCIEDADE E NATUREZA
A palavra "espaço" tem várias definições, como mostra o dicionário Aurélio:
Espaço: l. Distância entre dois pontos, ou a área ou o volume entre limites determinados. 2. Lugar
mais ou menos bem delimitado, cuja área pode conter alguma coisa; lugar. 3. Extensão indefinida.
4. Extensão onde existe o sistema solar, as estrelas, as galáxias; o Universo. 5. Período ou intervalo
de tempo. 6. Vagar, demora, delonga; entre outras definições.
Fonte: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.
Edição eletrônica. Curitiba: Positivo, 2009.
Certamente você usa essa palavra, até mesmo com outros significados além desses, já que ela
é de uso corrente no vocabulário cotidiano. Mas esse termo representa um importante conceitogeográfico.
Ao longo da construção da Geografia como ciência, vem-se estabelecendo historicamente que
o seu objeto de estudo é o espaço geográfico. Para tanto, discute-se o que é o espaço e com queconceito de espaço a Geografia deve trabalhar. Nem todos os geógrafos entendem o espaço geo-
gráfico da mesma forma e, assim, há visões diferentes em relação ao tema. Isso ocorre com todasas ciências, pois, como vimos, elas são dinâmicas e constantemente reavaliadas. É esse movimento
que possibilita à ciência avançar.O conceito de espaço foi sendo construído nas perspectivas teóricas da Nova Geografia e da
Geografia Crítica. Aqui, apresentaremos somente o debate trazido pela Geografia Crítica, pois esseintadiscipiinaridade-, conceito será abordado na coleção com base nessa corrente.
É preciso destacar que grande parte dos geógrafos críticos se baseiam nas ideias do filósofo e
economista alemão Karl Marx (1818-1883). A análise espacial baseada na teoria marxista originou-seda intensificação das contradições sociais e espaciais nos países centrais e periféricos, por causa da
crise do capitalismo, a partir da década de 1960.A concepção de espaço como lugar da reprodução das relações sociais de produção, proposta
pelo filósofo francês Henry Lefébvre (1901-1991), influenciou muitos geógrafos críticos na décadade 1970, entre eles o brasileiro Milton Santos (1926-2001). Para fundamentar sua análise e baseado
em Marx, esse autor defende que existem duas naturezas: a primeira natureza, intocada pelo serhumano, não transformada; e a segunda natureza, ou natureza artificial, aquela transformada pelo
trabalho humano. Leia no texto a seguir como Santos define o conceito de espaço.
Ampliando conceitos
Discutindo conceitos: o espaçogeográfico
O espaço é formado por um conjunto indissociável,solidário e também contraditório, de sistemas de objetose sistemas de ações, não considerados isoladamente,mas como o quadro único no qual a história se dá. Nocomeço era a natureza selvagem, formada por objetosnaturais, que ao longo da história vão sendo substituídospor objetos fabricados, objetos técnicos, mecanizadose, depois cibernéticos, fazendo com que a natureza ar-tificial tenda a funcionar como uma máquina. Atravésda presença desses objetos técnicos - hidrelétricas, fá-bricas, fazendas, fazendas modernas, portos, estradasde rodagem, estradas de ferro, cidades -, o espaço émarcado por esses acréscimos, que lhe dão um conteúdoextremamente técnico.
O espaço é hoje um sistema de objetos cada vez maisartificiais, povoado por sistemas de ações igualmenteimbuídos de artificialidade, e cada vez mais tendentesa fins estranhos ao lugar e aos seus habitantes.
Os objetos não nos permitem o conhecimento, se osvemos separados dos sistemas de ações. Os sistemas deações também não se dão sem os sistemas de objetos.
Sistemas de objetos e sistemas de ações interagem.De um lado, os sistemas de objetos condicionam a for-ma como se dão as ações e, de outro lado, o sistema deações leva à criação de objetos novos ou se realiza sobreobjetos preexistentes. É assim que o espaço encontra asua dinâmica e se transforma.
O antigo porto de Belém (PA) em 2009, foi no passado ponto de
chegada e saída de mercadorias. Teve sua função modificada e hoje é
usado como área de lazer.
Fonte: SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1999. p. 51-52.
Como se pode perceber, Milton Santos compreende o espaço como resultado das ações humanas no
passado e no presente. Vamos entender melhor essa abordagem do conceito na atividade a seguir.
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