UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO CENTRO DE CINCIAS DA SADE
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SADE COLETIVA
EDGAR ANDRADE LISBOA
CONSELHOS LOCAIS DE SADE: CAMINHOS E (DES)CAMINHOS
DA PARTICIPAO SOCIAL NO SISTEMA NICO DE SADE
VITRIA 2014
EDGAR ANDRADE LISBOA
CONSELHOS LOCAIS DE SADE: CAMINHOS E (DES)CAMINHOS
DA PARTICIPAO SOCIAL NO SISTEMA NICO DE SADE
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sade Coletiva do Centro de Cincias da Sade da Universidade Federal do Esprito Santo, como requisito para obteno do grau de Mestre em Sade Coletiva, na rea de concentrao Poltica, Planejamento e Gesto em Sade. Orientadora: Prof Dr Francis Sodr.
VITRIA
2014
Dados Internacionais de Catalogao-na-publicao (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Esprito Santo, ES, Brasil)
Lisboa, Edgar Andrade, 1987- L769c Conselhos locais de sade: caminhos e (des)caminhos da
participao social no Sistema nico de Sade / Edgar Andrade Lisboa. 2014.
101 f. : il. Orientadora: Francis Sodr.
Dissertao (Mestrado em Sade Coletiva) Universidade
Federal do Esprito Santo, Centro de Cincias da Sade. 1. Descentralizao. 2. Participao Social. 3. Conselhos de
Sade. I. Sodr, Francis. II. Universidade Federal do Esprito Santo. Centro de Cincias da Sade. III. Ttulo.
CDU: 614
minha querida esposa, Dbora Libans, por todo amor,
carinho, apoio e incentivo a cada passo desta caminhada.
minha mezinha que amo, Rita de Cssia Andrade, a
quem devo todas as minhas conquistas.
AGRADECIMENTOS
Agradeo a Deus por estar comigo em todos os momentos da vida, guiando-me e
ensinando-me a confiar e crer integralmente em seu poder e agir.
Agradeo a Dbora Libans, minha linda esposa, pessoa fundamental em minha
vida. maravilhoso saber que sonhamos juntos, e que agora nos alegramos com
esta conquista, que nossa. Viver ao seu lado a cada dia ter a certeza de
desfrutar um amor e carinho essencial vida. Obrigado por me encorajar sempre.
Simplesmente, te amo.
Agradeo a minha me, Rita de Cssia Andrade, pois sempre acreditou em mim,
investiu sua vida em proporcionar-me tudo o que h de mais sagrado, o
conhecimento.
Agradeo minha orientadora, Dr. Francis Sodr, que com todo carinho e
sabedoria me ajudou a conduzir estes dois anos de mestrado e no desistir dos
meus objetivos. Saberes compartilhados, histrias construdas juntas. Um perfil de
mestre que almejo alcanar.
Agradeo muito a todos os grandes amigos do Grupo de Estudo em Trabalho e
Sade (GEMTES) e do mestrado. As amizades conquistadas, os conselhos em
momentos oportunos e as contribuies no ficaro jamais restritas a este trabalho,
mas levarei comigo para sempre.
Aos professores e funcionrios da instituio, pela convivncia prazerosa e valiosas
contribuies.
Agradeo de forma especial a todos os amigos de trabalho do municpio de
Anchieta, em especial da Estratgia de Sade da Famlia Centro III, que me
apoiaram em tudo e torceram por mim. Levarei sempre saudades, e timas
lembranas.
A todas as pessoas, mesmo que indiretamente, que contriburam com os seus
conhecimentos, me apoiaram emocional e espiritualmente e que foram fundamentais
para realizao deste sonho. A vocs, meu muito obrigado.
A Democracia como o amor: no se pode comprar, no se pode decretar, no se pode propor. A Democracia s se pode viver e construir. (Jos Bernardo Toro)
RESUMO
LISBOA, E.A. Conselhos Locais de Sade: caminhos e (des)caminhos da participao social no Sistema nico de Sade. Dissertao de mestrado (Sade Coletiva) Programa de Ps-Graduao em Sade Coletiva, Universidade Federal do Esprito Santo, Vitria, 2014, 101 p.
A partir da descentralizao, novas instncias de negociao e novas alternativas de ordenamento da estrutura organizacional do Sistema nico de Sade (SUS) foram criadas. Dentre estas alternativas, podemos citar os conselhos de sade, importantes canais de participao social. Todavia, frente s limitaes destes canais tradicionais de articulao entre Estado e sociedade, destacamos os ideais da gesto participativa e os Conselhos Locais de Sade (CLS) como alternativa de renovao e criao de instncias mais flexveis, porosas e efetivas s complexas demandas sociais. Neste sentido, buscamos analisar o processo de criao e implementao dos CLS do municpio de Anchieta/ES, a partir de uma abordagem quali-quantativa. Inicialmente, traamos o perfil socioeconmico e poltico dos conselheiros eleitos, a partir de um questionrio aplicado a uma amostra de 54 conselheiros; dados que foram categorizados e analisados por meio do emprego de estatsticas descritivas. Em seguida, entrevistamos treze conselheiros, de dois conselhos distintos do municpio, procedendo anlise de contedo do material, a partir dos ideais de Bardin (2000). Os resultados demonstraram que os conselhos foram criados a partir da iniciativa da gesto municipal em 2011, e que simplesmente institucionaliz-los como espao de participao social no foi suficiente para promover a mobilizao social e o envolvimento comunitrio. Quanto ao perfil dos conselheiros locais, 78% so mulheres, com predominncia de raa/cor branca, idade entre os 20 e 39 anos e funcionrias pblicas; 57% possuem Ensino Mdio e participaram como conselheiro por dois anos, e 60% destes j tiveram outras experincias de participao similares aos CLS. Do material oriundo das entrevistas, emergiram quatro categorias de anlise, a saber: 1) Ser ou no ser conselheiro de sade? Eis a questo!; 2) O no pertencimento e a no-participao; 3) Conselhos Locais de Sade: elos, meios e mediaes; e 4) A exogenia da administrao e os obstculos participao social. Os entraves ao funcionamento dos conselhos de sade, mesmo em nvel local, ainda so desafios a serem superados, para que estas instncias sejam mais influentes na gesto pblica, conforme os princpios de sua criao. A participao social e a democracia so fundamentais para a construo de polticas de sade que correspondam s reais demandas da comunidade. Contudo, para garantir a democracia na sociedade no basta promover a descentralizao. necessrio que os sujeitos polticos resistam s relaes de dominao, opresso e subordinao. Para isso, torna-se imprescindvel os programas de educao para cidadania dos sujeitos envolvidos nestes fruns de participao. O que nos motiva, enfim, notarmos a existncia, entre os conselheiros eleitos, de sujeitos protagonistas de seu prprio devir; sujeitos que atuam como agentes transformadores, motivadores de sonhos e projetos em prol da sade pblica e de sua comunidade. Palavras-chave: Descentralizao; Participao Social; Conselhos de Sade.
ABSTRACT
LISBOA, E.A. Local Health Councils: paths and (mis) direction of social participation in the Unified Health System. Dissertation (Public Health) - Graduate Program in Public Health, Federal University of Esprito Santo, Vitria, 2014, 101 p. From decentralization, new instances and new alternative trading system of the organizational structure of the Sistema nico de Sade (SUS) was created. Among these alternatives, we can mention the health councils, important channels for social participation. However, due to the limitations of these traditional channels of articulation between state and society, include the ideals of participatory management and Local Health Boards (LHB) as an alternative for renewal and creation of more flexible, porous and effective to complex social demands instances. In this sense, we analyze the process of creation and implementation of CLS in the municipality of Anchieta/ES, from a quali-quantitative approach. Initially, we trace the socioeconomic and political profile of the elected councilors, from a questionnaire administered to a sample of 54 counselors, data were categorized and analyzed through the use of descriptive statistics. Then interviewed thirteen directors, two separate councils of the city, proceeding to an analysis of the material from the ideals of Bardin (2000). The results showed that councils were created at the initiative of the municipal administration in 2011 , and that simply institutionalize them as a space for social participation was not sufficient to promote social mobilization and community involvement. Regarding the profile of local councilors, 78 % are women, predominantly white race / color, age between 20 and 39 years and public employees, 57% have high school and participated as a counselor for two years, and 60 % of these had already other experiences similar to CLS participation. The material from the interviews, four categories emerged from the analysis, namely: 1) To be or not to be health counselor? That is the question; 2) not belonging and non-participation; 3) Local Health Councils: links, media and mediations; 4) The exogeny administration and obstacles to social participation. Barriers to the functioning of boards of health, even at the local level are still challenges to be overcome, so that these instances are more influential in public administration, according to the principles of its creation. Social participation and democracy are fundamental to the construction of health policies which meet the demands of the community. However, to ensure democracy in society not just promote decentralization. It is necessary that political subjects resist the relations of domination, oppression and subordination. For this, it is essential education programs for citizens of those involved to participate in these forums. What motivates us, in short, is to note the existence, among the elected councilors, of subjects protagonists of their own becoming; subjects that act as agents, motivators dreams and projects for the sake of public health and their community. Keywords: Decentralization, Social Participation, Health Advice.
LISTA DE FIGURAS, GRFICOS E TABELAS
FIGURA 1 Diferentes Classificaes da Descentralizao ................................ 22
TABELA 1 Classificao do porte dos municpios no Brasil .............................. 41
GRFICO 1 Escolaridade dos conselheiros entrevistados ............................... 49
GRFICO 2 Outras experincias de participao social .................................. 51
GRFICO 3 Experincias de participao citadas entre os conselheiros ........ 52
LISTAS DE SIGLAS E ABREVIATURAS
ACS Agentes Comunitrios de Sade
AIS Aes Integradas de Sade
CAPS I Centro de Ateno Psicossocial I
CASP ad Centro de Ateno Psicossocial lcool e Drogas
CEP Comit de tica e Pesquisa
CLS Conselhos Locais de Sade
CNS Conferncia Nacional de Sade
CONASP Conselho Nacional de Administrao da Sade Previdenciria
ESF Estratgia de Sade da Famlia
GEMTES Grupo de Estudo em Trabalho e Sade
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
MDB Movimento Democrtico Brasileiro
MRS - Movimento da Reforma Sanitria
NOAS Normas Operacionais de Assistncia Sade
NOBs Normas Operacionais Bsicas
ONU Organizao das Naes Unidas
OPAS Organizao Pan-Americana de Sade
PARTICIPASUS Poltica Nacional de Gesto Participativa para o SUS
PDR Plano Diretor de Regionalizao
PIASS Programa de Interiorizao das Aes de Sade e Saneamento
PREV-SADE Programa Nacional de Servios Bsicos de Sade
PSB Partido Socialista Brasileiro
PV Partido Verde
SESA Secretaria de Estado da Sade do Esprito Santo
SUS Sistema nico de Sade
UFES Universidade Federal Do Esprito Santo
USF Unidade de Sade da Famlia
TCLE - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
SUMRIO
INTRODUO ......................................................................................... 12
1 DESCENTRALIZAO E DEMOCRATIZAO DAS POLTICAS
PBLICAS DE SADE: CONTROVRSIAS HISTRICAS E
CONCEITUAIS........................................................................................
21
1.1 DESCENTRALIZAO NA SADE: CONCEPES E
CONCEITOS...............................................................................................
21
1.1.1 Descentralizao: outros olhares... outro debate ............. 29
1.2 DESCENTRALIZAO E PARTICIPAO SOCIAL: PROJETOS
ALINHADOS ..............................................................................................
33
1.2.1 Participao ou Controle Social?........................................ 34
1.2.2 Descentralizao e Participao Social 38
2 CONSELHOS LOCAIS DE SADE: EXPERINCIA DE
PARTICIPAO SOCIAL EM UM MUNICPIO DE PEQUENO PORTE...
44
2.1 OS CONSELHOS LOCAIS DE SADE EM UM TERRITRIO EM
DISPUTA ....................................................................................................
44
2.2 CONSELHEIROS DE SADE: PERFIL SOCIOECONMICO E
POLTICO ..................................................................................................
48
3 CONSELHOS LOCAIS DE SADE: CAMINHOS E (DES)CAMINHOS
DA PARTICIPAO SOCIAL ...................................................................
56
3.1 SER OU NO SER CONSELHEIRO DE SADE? EIS A
QUESTO!..................................................................................................
56
3.2 O NO PERTENCIMENTO E A NO-PARTICIPAO ................. 64
3.3 CONSELHOS LOCAIS DE SADE: ELOS, MEIOS E MEDIAES 72
3.4 A EXOGENIA DA ADMINISTRAO E OS OBSTCULOS
PARTICIPAO SOCIAL ..........................................................................
76
4 CONSIDERAES FINAIS ....................................................................... 81
5 REFERNCIAS ......................................................................................... 85
APNDICES
APNDICE A [Questionrio aplicado aos conselheiros eleitos] .. 96
APNDICE B [Roteiro de entrevista com conselheiros de sade] . 97
APNDICE C [Termo de consentimento livre e esclarecido] ... 98
ANEXOS
ANEXO 1 [Parecer consubstanciado do CEP com a aprovao da
pesquisa] ...
100
12
INTRODUO
O interesse em estudar e discutir o tema Participao Social surgiu ainda na
graduao em Enfermagem, quando tive a oportunidade de participar de um
programa de extenso universitria, denominado Conexes de Saberes: dilogos
entre a universidade e as comunidades populares. Dentre os objetivos deste
programa, destacava-se o desejo de ampliar o dilogo e a articulao poltica entre a
universidade e os moradores de espaos populares, juntamente com suas
instituies e organizaes, em busca de promover o encontro, a troca de saberes e
fazeres, alm do desenvolvimento de aes concretas entre esses dois territrios
socioculturais, visando tambm ampliao do acesso e permanncia dos
estudantes de origem popular nas Universidades.
Dentre as aes desenvolvidas pelo referido programa, ns, acadmicos de origem
popular de cursos da rea da sade da Universidade Federal do Esprito Santo
(UFES), como exemplo enfermagem, medicina, psicologia, farmcia, servio social e
odontologia, desenvolvemos um projeto denominado Conexo-Sade, cuja
proposta era atuar em comunidades pobres dialogando sobre a sade, com foco em
sua promoo. Para isso participamos de aes educativas dialgicas junto a estas
comunidades nos municpios da Grande Vitria, a partir de atividades em grupos,
buscando envolver os sujeitos como atores protagonistas do seu processo de
cuidado em sade.
O projeto Conexo-Sade proporcionou-nos tambm a participao em um grupo
de estudo coordenado pelas professoras Dra. Roseane Vargas Rohr e Dra. Raquel
Baroni de Carvalho, onde discutamos temas muito relevantes, como os princpios e
diretrizes do SUS, a importncia deste sistema para a comunidade, a educao
popular em sade, a promoo da sade e o protagonismo dos sujeitos na luta pelos
seus direitos. Discusses que transformaram no apenas nossa formao
profissional, mas nossos projetos de vida, uma vez que nosso olhar sobre a sade,
as pessoas e a vida passaram a ser outros. Passamos a enxergar cada sujeito como
nico. Um sujeito que dotado de desejos, saberes, histria e direitos, deve ser
13
respeitado e incentivado a protagonizar a luta por direitos individuais e coletivos,
inclusive no que diz respeito luta em defesa do SUS.
Com vrias expectativas, ao concluir a graduao ingressei no mercado de trabalho
atuando como enfermeiro de uma Unidade de Sade da Famlia (USF) em
Guarapari, um municpio ao litoral sul do Esprito Santo, em um vnculo estatutrio.
Neste momento deparei-me com uma comunidade extremamente pobre, carente de
recursos fsicos e materiais. Uma comunidade que sofria com as fragilidades de um
sistema municipal de sade incapaz de corresponder s reais necessidades e
demandas. Deparei-me ainda com os Agentes Comunitrios de Sade (ACS) desta
equipe, que mesmo com toda dificuldade enfrentada, lutavam em seu cotidiano de
trabalho no intuito de garantir a melhor assistncia sade possvel sua
comunidade. Nesta experincia pude compartilhar saberes e experincias
anteriormente vividas, incentivar os profissionais e atuar junto aos mesmos no intuito
de mudarmos a realidade vivenciada em nosso cotidiano de trabalho, mediante a
escassez de recursos e pessoal. Uma luta por direitos em busca de melhorias no
sistema de sade local e municipal.
Depois de trabalhar dois anos em Guarapari, solicitei meu desligamento e assumi
outro vnculo estatutrio ainda no litoral sul, no municpio de Anchieta, que possui
alta arrecadao de impostos devido ao seu grande parque industrial, quando
comparado regio. Na sade, este municpio possui uma cobertura de Estratgia
de Sade da Famlia (ESF) de 100%, o que pode ser considerado um avano.
Em Anchieta encontrei outra realidade de sade, comparada vivncia anterior.
Apesar de possuir comunidades tambm desprovidas de recursos fsicos e
materiais, Anchieta um municpio com grandes investimentos em polticas pblicas
sociais, mediante sua alta arrecadao e interesse da gesto municipal, o que pode
ser notado, por exemplo, na sade, a partir da estrutura fsica das unidades de
sade, da composio das equipes ou at mesmo da disponibilidade de materiais e
equipamentos.
Fui surpreendido, ao ingressar mais uma vez em uma equipe de sade da famlia,
com a recente criao de CLS em cada uma das USF do municpio, a partir do
14
discurso de possibilitar a participao da comunidade na gesto das polticas e do
sistema de sade municipal e local. Ao procurar conhecer mais a respeito destes
CLS, descobri que o municpio de Anchieta havia recebido uma importante
premiao na 14 Conferncia Nacional de Sade (CNS), o Prmio Srgio Arouca
de Gesto Participativa no SUS, em sua quarta edio, graas a experincia
exitosa de instalao dos CLS em 100% de seus territrios de sade.
Ao mesmo tempo em que ingressava no municpio de Anchieta, dei lugar ao desejo
antigo, mas no silenciado pela prtica profissional, de enveredar no mestrado em
Sade Coletiva no intuito de aprofundar meus conhecimentos a respeito do SUS,
fortalecer os ideais profissionais semeados em mim ainda na graduao e buscar
respostas (ou ainda mais questionamentos) a respeito da realidade vivenciada no
cotidiano de trabalho at ento. Foi quando tive a grande oportunidade de ir alm
das disciplinas cursadas e fazer parte do Grupo de Estudo em Trabalho e Sade
(GEMTES), coordenado pelas Professoras Dra. Maristela Dalbello Arajo e Dra.
Francis Sodr, onde percebi que as sementes ora plantadas, germinavam como
desejos de lutar em prol de um SUS de qualidade, resolutivo, equnime e integral.
Assim, compreendi que para alcanar este SUS desejado e conquistado legalmente,
seria muitssimo relevante a participao social em seu mbito.
A deciso de estudar este tema veio, portanto, ao compreender que a participao
social essencial para que o SUS desenvolva-se e alcance os objetivos sonhados
pelo Movimento Sanitrio, transformados em princpios e diretrizes constitucionais.
Uma participao entendida como a partilha de poder entre o Estado e a sociedade,
que possibilite a gesto participativa do SUS, a fim de construir polticas e aes que
realmente correspondam s demandas da comunidade.
Ao decidir sobre este tema, lembrei-me dos CLS criados em Anchieta,
principalmente ao observar o conselho que se reunia na USF em que trabalhava.
Comecei a indagar-me se o discurso antes evocado em sua criao, no teria agora
sido silenciado. Questionei-me quem eram estes conselheiros. Desejava saber de
onde eles vinham a quem representavam, e a partir de quais interesses. Estava
interessado em descobrir se os CLS, uma vez criados, geravam ou no alguma
15
repercusso no cotidiano dos servios de sade. Diante destes questionamentos,
estruturamos este estudo a partir dos seguintes objetivos:
Analisar o processo de criao e implantao dos CLS do municpio de
Anchieta/ES;
Descrever o perfil socioeconmico dos conselheiros eleitos;
Investigar como os CLS influenciaram a poltica de sade municipal;
Identificar que fatores que apoiaram ou limitaram a participao social nos
referidos conselhos.
A partir do momento em que propomos analisar o processo de criao e implantao
dos CLS em Anchieta, elegemos a pesquisa qualitativa por entendermos que a
natureza deste problema de pesquisa exigia uma abordagem capaz de buscar
interpretaes dos fenmenos sociais, no sentido de analisar as vivncias e
experincias a partir das relaes sociais (MINAYO, 2008), possibilitando uma
investigao do processo, no apenas dos resultados e do produto (GASKELL,
2002). Entretanto, foi importante tambm agregarmos alguns aspectos da pesquisa
quantitativa, a partir do uso de estatsticas descritivas, para colaborar com esta
anlise, conforme evidenciaremos posteriormente.
Minado e Sanches (1993) afirmam que a pesquisa qualitativa
[...] realiza uma aproximao fundamental e de intimidade entre sujeito e objeto, uma vez que ambos so da mesma natureza: ela se volve com empatia aos motivos, s intenes, aos projetos dos atores, a partir dos quais as aes, as estruturas e as relaes tornam-se significativas (MINAYO; SANCHES, 1993, p.244).
Para o desenvolvimento desta pesquisa, realizamos uma anlise prvia a partir de
alguns contatos com cada unidade de sade do municpio, perguntando nestas
quem poderia nos informar um pouco a respeito do CLS. Em cada unidade foi nos
indicado uma pessoa (usurio ou profissional), geralmente conselheiro de sade
daquela localidade, para nos fornecer algumas informaes preliminares
relacionadas ao funcionamento do conselho desde a sua criao e implantao.
Propomo-nos a realizar esta anlise prvia para nos aproximarmos do cotidiano dos
16
conselhos, identificarmos a frequncia de reunies realizadas, a presena de
conselheiros eleitos nas mesmas e a frequncia de encaminhamentos ou
solicitaes emitidos, a fim de elegermos o modo em que conduziramos o estudo.
A partir desta anlise prvia, identificamos que alguns conselhos foram pouco ativos
desde sua criao e implantao, sendo que a partir de 2012 a maioria j no
funcionava mais. Outros, porm, destacaram-se e mantiveram suas atividades at
2012, como o CLS da ESF Jabaquara, da ESF Centro II e da ESF Me-B.
Aparentemente, isso aconteceu porque alguns conselheiros abandonaram seus
mandatos, ou ainda porque a partir de 2013 uma nova gesto assumiu o municpio,
e novas eleies do CLS ainda no ocorreram, a fim de manter as atividades dos
conselhos.
De acordo com a Lei n 628, de 3 de agosto de 2010, que dispe sobre a criao
destes CLS, os mandatos poderiam ser encerrados em 2012 ou prorrogados por
igual perodo (ANCHIETA, 2010a). Entretanto, at o presente momento, nada foi
definido pela gesto atual em relao a esta questo, o que tem comprometido a
manuteno dos conselhos, mesmo os que se mantiveram mais atuantes at 2012.
Logo, ficamos impossibilitados, inclusive, de propormos como tcnica de pesquisa a
observao de reunies, pelo fato de no estarem acontecendo durante o
desenvolvimento deste estudo.
Diante deste cenrio e dos questionamentos que nos inquietavam, decidimos ento
estruturar a pesquisa, a fim de alcanarmos os objetivos propostos, dividindo-a em
quatro etapas, a saber: 1) Pesquisa bibliogrfica; 2) Coleta de dados a partir de um
questionrio, com perguntas abertas e de mltipla escolha; 3) Entrevista orientada
por roteiro semi-estruturado; e 4) Anlise documental.
A pesquisa bibliogrfica levou em considerao as orientaes dadas por Gil (2006)
para coleta de informaes, uma vez que buscamos uma profunda anlise do tema,
em diversas fontes bibliogrficas, denominadas fontes de papel, como livros,
publicaes peridicas, alm de outros impressos diversos, portais eletrnicos,
dentre outras fontes. Para o referido autor
17
[...] A principal vantagem da pesquisa bibliogrfica reside no fato de permitir ao investigador a cobertura de uma gama de fenmenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar diretamente. Essa vantagem torna-se particularmente importante quando o problema de pesquisa requer dados muito dispersos pelo espao (GIL, 2006, p. 45).
Assim, esta primeira etapa deste estudo foi constituda a partir dos principais
descritores que fundamentariam nossas discusses. So eles: descentralizao,
participao social, democracia e Conselhos Locais de Sade.
A segunda etapa, correspondente aplicao de questionrio (APNDICE A). O
questionrio foi composto por questes que abordaram informaes quanto ao perfil
socioeconmico e poltico dos conselheiros. Procuramos investigar quem eles
representavam, se j possuam ou no experincias anteriores de participao em
fruns polticos e se eram filiados a algum partido politico, a fim de percebermos se
havia ou no participao direta de conselheiros filiados aos partidos polticos que
compuseram a coligao do prefeito em exerccio na poca de criao e
implantao dos conselhos, o que poderia nos apontar as influncias da gesto
municipal neste frum de participao social.
A amostra selecionada para aplicao deste questionrio foi composta por 54
(cinqenta e quatro) conselheiros e representou 50% do nmero total de
conselheiros eleitos em todos os nove conselhos de sade. Para fins de anlise,
dividimos a mesma em dois grupos. O primeiro referiu-se aos 20 (vinte)
representantes dos usurios moradores destes territrios, e o segundo aos 34 (trinta
e quatro) representantes dos profissionais de sade da ESF. Para selecionarmos
esta amostra, consideramos os seguintes critrios: a) Ter sido eleito ou selecionado
como conselheiro a partir da criao dos CLS em 2010; b) Ser conselheiro titular,
prioritariamente, ou suplente, no caso em que no foi possvel ter acesso ao titular.
A terceira etapa deste estudo consistiu em entrevista orientada por roteiro semi-
estruturado, no intuito de analisarmos o processo de criao e implantao dos CLS
e investigarmos como os referidos conselhos influenciaram (ou no) a poltica de
sade municipal. A entrevista foi aplicada aos conselheiros de sade de dois
conselhos selecionados, a partir das informaes que obtemos com a anlise prvia
realizada, que nos indicou a atuao e funcionamento dos CLS. No total,
18
entrevistamos treze conselheiros de sade, utilizando os mesmos critrios de
incluso citados anteriormente.
Para as entrevistas, decidimos seguir a sugesto da banca de qualificao deste
estudo, e selecionamos, dentre os conselhos existentes, duas experincias distintas
no municpio: uma constituda de um conselho mais atuante, cujo seus conselheiros
reuniram-se regularmente desde sua criao, e outra cujo conselho no se manteve
ativo desde o princpio. Esta seleo nos possibilitou uma anlise diferenciada do
problema de pesquisa, evidenciando ainda os fatores que constituram apoio ou
entrave ao desenvolvimento dos CLS em Anchieta.
Optamos pela tcnica de entrevista, pois se mostra como uma tcnica relevante,
uma vez que a partir dela os sujeitos expressam por meio de ideias, crenas,
opinies, sentimentos, atitudes e comportamentos uma representao de sua
realidade (MINAYO, 2007).
Em relao modalidade de entrevista, optamos pela utilizao de um roteiro semi-
estruturado (APNDICE B) por acreditarmos ser importante para dar direcionamento
ao entrevistador em questes fundamentais da pesquisa durante a entrevista, sem,
contudo, roubar-lhe a liberdade de adapt-la de acordo com o retorno do
entrevistado, tornando cada entrevista nica (FLICK, 2004; MINAYO, 2008).
Finalmente, a quarta etapa da pesquisa, que na realidade ocorreu
concomitantemente s demais, consistiu em uma anlise documental. Nesta etapa
exploramos a Lei n 628, de 3 de agosto de 2010, que dispe sobre a criao dos
CLS (ANCHIETA, 2010a), o Regimento Interno do CLS da ESF Centro III
(ANCHIETA, 2010b) e algumas anotaes de reunies ocorridas em um dos
conselhos selecionados para este estudo, uma vez que no existiam atas que
registrassem o contedo das mesmas. Esta anlise foi importante para nos
possibilitar o alcance de elementos que trouxeram indicaes sobre o processo de
criao e implantao, alm do desejado funcionamento dos referidos conselhos.
A anlise documental mostra-se relevante por permitir ao pesquisador analisar
materiais que muitas vezes ainda no receberam nenhum tratamento analtico,
19
denominados fontes de primeira mo (GIL, 2006), como exemplo documentos
oficiais, atas de reunies, dirios e reportagens. So importantes ainda porque
possibilitam resgates histricos relevantes aos temas de pesquisas, colaboram com
a reflexo crtica a respeito dos mesmos e com compreenso da realidade atual
(GIL, 2006).
Ao reunir cada um dos produtos deste estudo, partimos para a anlise e tratamento
do material. Os dados fornecidos a partir da aplicao dos questionrios foram
categorizados e analisados por meio do emprego de estatsticas descritivas,
gerando grficos e tabelas, levando-se em considerao o nmero total da amostra
para realizao dos clculos estatsticos.
Os dados provenientes das entrevistas realizadas foram expostos a uma leitura
profunda, repetidas vezes, sempre retornando leitura crtica e reflexiva do
referencial terico selecionado para embasamento da pesquisa, no intuito de
identificar os temas, as relaes e as contradies pertinentes ao entendimento da
criao, implantao e repercusses dos CLS em Anchieta e da participao social
no municpio.
Para isso, escolhemos a proposta da Anlise de Contedo de Bardin (2000), cujos
procedimentos metodolgicos da anlise consistem em: categorizao, inferncia,
descrio e interpretao. Nos empenhamos em um trabalho de leitura e releitura
dos materiais das entrevistas, at que as categorias de anlise comearam a
emergir. Desta forma construmos quatro categorias de anlise. So elas: 1) Ser ou
no ser conselheiro de sade? Eis a questo!; 2) O no pertencimento e a no-
participao; 3) Conselhos Locais de Sade: elos, meios e mediaes; e 4) A
exogenia da administrao e os obstculos participao social.
A pesquisa primou por atender as prerrogativas da Resoluo n 196/96, do
Conselho Nacional de Sade para Pesquisa Cientfica em Seres Humanos (BRASIL,
1996). Logo, a aplicao dos questionrios e a realizao das entrevistas se deram
mediante a autorizao dos pesquisados, por meio da assinatura do termo de
consentimento livre e esclarecido (TCLE) (APNDICE C), quesitos indispensveis
20
aprovao desta pesquisa pelo comit de tica e Pesquisa (CEP) com seres
humanos desta Universidade (ANEXO A).
Ao final, esta dissertao, portanto, foi organizada em trs captulos que agora
apresentamos. No primeiro nos dedicamos a discorrer a respeito da pesquisa
bibliogrfica, realizada com base nos descritores que fundamentaram nossas
discusses. Iniciamos com uma breve reviso terico-histrica da categoria
descentralizao, at a mesma tornar-se diretriz constitucional do SUS e
finalizamos questionando suas aplicabilidades ampliao ou no da democracia e
da participao social quando nos referimos aos CLS.
A partir do segundo captulo, trouxemos os resultados e discusses provenientes da
aplicao dos questionrios aos conselheiros de sade, buscando caracterizar o
perfil socioeconmico e poltico dos mesmos, em busca de relaciona-los instituio
e funcionamento, ou no, dos CLS no municpio de Anchieta.
No terceiro captulo, apresentamos e discutimos os dados provenientes das
entrevistas realizadas com os conselheiros, em uma busca de promover um dilogo
sobre as nossas inquietaes e crticas com os sujeitos da pesquisa e os autores
ora evocados para a construo do nosso referencial terico.
Finalizamos o trabalho tecendo algumas consideraes finais, porm, estamos longe
de concluirmos as ideias ou trazermos respostas prontas. Ao contrrio, apontamos
caminhos e (des)caminhos que facilitam, fomentam ou silenciam a participao
social nos conselhos locais de sade algo que objetivvamos responder durante a
trajetria no mestrado em sade coletiva.
21
1 DESCENTRALIZAO E DEMOCRATIZAO DAS POLTICAS PBLICAS DE
SADE: CONTROVRSIAS HISTRICAS E CONCEITUAIS
1.1 DESCENTRALIZAO NA SADE: CONCEPES E CONCEITOS
A anlise da evoluo histrica das polticas pblicas de sade no Brasil nos revela
que, mesmo em meio a controvrsias entre momentos autoritrios e centralizadores
na formulao e na execuo das polticas sociais, a descentralizao da
assistncia e gesto em sade foi uma das marcas dos anos 90, aps intensos
embates polticos e ideolgicos promovidos pelo movimento de redemocratizao do
pas, que na sade destacamos o Movimento da Reforma Sanitria (MRS).
Entretanto, que sentido de descentralizao foi atribudo ao SUS e s polticas de
sade? Por que este conceito alcanou destaque nas discusses polticas e sociais
no Brasil e no mundo?
Principalmente no setor pblico, descentralizar ganhou sentido de flexibilizao da
gesto a partir dos governos centrais, num processo de transferncia de autoridade
e/ou poder decisrio no financiamento e gesto do nvel nacional para nveis
subnacionais, a partir do pressuposto que na gesto municipal possvel um maior
controle de qualidade das polticas pblicas pelo cidado/usurio dos servios
prestados e/ou contratados pelo setor pblico (COSTA; RIBEIRO; SILVA, 1999;
TOBAR, 1991).
Contudo, Tobar (1991) adverte que existem alguns riscos utilizao do termo
descentralizao, que se tornou moda entre polticos, administradores e cientistas
a partir das dcadas de 80 e 90, uma vez que falar em descentralizao tornou-se
olhar a partir de um prisma; o termo transformou em um camaleo poltico, que se
adequa de acordo com os interesses de quem o utilize.
Assim, em um olhar o conceito foi esboado a fim de representar uma importante
ferramenta capaz de expandir e intensificar a democracia, garantindo inclusive a
22
universalidade na cobertura dos servios pblicos, na busca pela aproximao dos
servios s necessidades dos cidados e possibilitando a ampliao da participao
social. Porm, em outro olhar, o conceito tornou-se mecanismo de controle e
dominao, instrumento para a privatizao de servios, e at mesmo passou a
significar a capacidade individual de cada cidado de custear o seu prprio
atendimento, representando nitidamente os interesses do projeto poltico econmico
que rege o sistema capitalista mundial (TOBAR, 1991; LECOVITZ; LIMA;
MACHADO, 2001; SPEDO; TANAKA; PINTO, 2009).
A incluso da descentralizao na agenda das polticas governamentais nem
sempre foi carregada de conotaes positivas. H registros de tenses e
divergncias histricas relacionadas dicotomia centralizao-descentralizao,
uma vez que estes conceitos esto relacionados disputa de poder e recursos
financeiros (TOBAR, 1991).
Ao longo da histria, os governos oscilaram entre os que privilegiavam a "eficincia"
e os que privilegiavam a "eficcia" na alocao de recursos para o financiamento
pblico descentralizado. Os postulados destes dois grupos polticos divergem em
vrios aspectos (TOBAR, 1991).
O primeiro grupo, chamado eficientista considerava que a prioridade do Estado
deveria ser sempre o crescimento do pas. Logo, descentralizar seria um retrocesso,
pois o progresso do pas dependia da centralizao como estratgia econmica de
alocao dos recursos nos centros, nas metrpoles, pois era nelas que os
rendimentos cresciam cada vez mais (TOBAR, 1991).
J o segundo grupo, denominado descentralista, defendia a descentralizao por
acreditar que a alocao de recursos deveria acontecer de forma equnime em toda
extenso territorial, considerando a potncia governamental do poder local, com
vistas a favorecer a administrao e facilitar o processo poltico (TOBAR, 1991).
Nesta disputa conceitual e ideolgica, os ideais descentralistas tornaram-se mais
populares no momento em que comearam a ser defendidos pelos organismos
internacionais, como a Organizao das Naes Unidas (ONU), o World Bank e a
Organizao Pan-Americana de Sade (OPAS) a partir da dcada de 80. Neste
23
perodo, destacou-se uma publicao intitulada Decentralization and development
(1983), de autoria de G. Shabbir Cheema e Dennis A. Rondinelli. Nesta, foram
enunciadas diversas funes da descentralizao para a organizao poltica e
econmica do mundo ocidental. Como exemplo, podemos citar a diminuio dos
efeitos negativos da burocracia, o respeito s prioridades e necessidades locais, a
facilidade de uma maior representatividade na formulao de decises, maior
equidade na alocao dos recursos e ainda o aumento da legitimidade e
estabilidade institucional (TOBAR, 1991).
Todavia, de acordo com Tobar (1991), o argumento mais relevante da
descentralizao na referida publicao, foi o de que ela capaz de reduzir os
gastos financeiros relacionados superconcentrao do processo decisrio,
possibilitando ainda o aumento do nmero de bens e servios pblicos, bem como a
eficincia de sua prestao a custos mais baixos. Portanto foi a funcionalidade
econmica da descentralizao a responsvel por aumentar sua popularidade nos
meios polticos e gestores.
a partir desta popularidade da descentralizao que o seu uso tornou-se mais
comum, podendo ser notado vrias possibilidades de experincias
descentralizadoras, com realidades e sentidos completamente diferentes, de
acordo com a base ideolgica que as fundamentam (TOBAR, 1991).
Diante deste contexto, achamos essencial o estudo das diferentes classificaes da
descentralizao, uma vez que de acordo com o grau de poder poltico transferido,
existem diferentes tipos de descentralizao. Dentre as diversas classificaes,
destacamos algumas, conforme quadro esquemtico a seguir:
FIGURA 1 Diferentes classificaes da descentralizao
FONTE: MENDES, 2006; TOBAR, 1991; PASCHE et. al, 2006; SILVA, 2012
24
Acreditamos que, no que se refere ao Brasil e ao SUS, a classificao que
predomina a descentralizao como devoluo, tambm presente na
conceituao que adotamos, pois foi desta forma que foi idealizada a fim de ampliar
a autonomia das esferas estaduais e municipais na gesto e execuo das polticas
de sade (MENDES, apud PASCHE et. al, 2006).
No setor sade, podemos considerar que a descentralizao ocorreu basicamente
em dois momentos ao longo da histria do Brasil. O primeiro momento refere-se ao
perodo entre a dcada de 60 e 70 do sculo passado e o segundo a partir da
dcada de 80 (JACOBI, 1996).
O primeiro momento foi caracterizado por intensa centralizao de poder e recursos
por parte do governo federal, principalmente com o advindo da ditadura militar, em
1964 e da reforma tributria em 1967, uma vez que o regime estabeleceu um
movimento de desmunicipalizao das responsabilidades sociais, o que gerou
afastamento dos municpios do processo decisrio das polticas pblicas no mbito
do Estado, influenciado pelas polticas centralizadoras, que eram as balizas dos
militares (JACOBI, 1996; VENNCIO, 2001). Cabe destacar tambm que este
perodo histrico foi marcado pelos grandes contrastes de recursos financeiros e
poderes em um sistema de sade dicotmico e dividido entre a assistncia mdica
previdenciria, excludente e desigual, e a sade pblica, sob a responsabilidade do
Ministrio da Sade (JACOBI, 1996).
Entretanto, a histria brasileira revela que a descentralizao poltico-financeiro-
administrativa j era desejada desde os anos 60, pois o Relatrio Final da III CNS,
realizada em 1963, destacou a descentralizao e transferncia de poder aos
municpios como ideais a serem alcanados pelo sistema de sade brasileiro
(VENNCIO, 2001).
Os ideais da descentralizao comearam a se destacar com a conquista de alguns
governos municipais pela oposio, o Movimento Democrtico Brasileiro (MDB),
principalmente em prefeituras como a de Campinas (SP), Lages (SC), Londrina
(PR), Niteri (RJ), e Piracicaba (SP), que na sade, passaram a programar modelos
alternativos de servios de sade, focados na ateno primria (ELIAS, 1996).
25
J na dcada de 80, correspondente ao segundo momento histrico da
descentralizao no Brasil (JACOBI, 1996), foi iniciado um processo de expanso da
cobertura assistencial do sistema de sade, no intuito de atender as proposies
formuladas pela OMS a partir da Conferncia de Alma-Ata (1978), que preconizava
"Sade para Todos no Ano 2000 (NETO; CUTAIT; TERRA, 2013).
Neste mesmo perodo, o MRS emergiu caracterizado por liderar um intenso embate
poltico-social que contou com a participao de intelectuais, trabalhadores da rea
da sade, alm de outros movimentos sociais organizados com insero na sade e
alguns parlamentares apoiados por estes atores sociais. Dentre suas inmeras
vertentes, podemos caracteriz-lo principalmente pela crtica e questionamento ao
modelo de sade altamente excludente, hospitalocntrico, e centralizado no mbito
federal, alm de mergulhado em articulaes polticas que favoreciam o setor
privado e os seus lucros (AGUIAR; OLIVEIRA, 2003).
Mesmo em pleno regime militar, o MRS defendia, entre vrios ideais, a construo
de uma poltica de sade efetivamente democrtica, pautada em princpios como a
descentralizao e a universalizao (NETO; CUTAIT; TERRA, 2013).
Este movimento ocupou a mquina pblica nas burocracias federais e estatais,
promovendo muitos debates em eixos como a integralidade, a universalidade da
assistncia sade, a descentralizao do poder e recursos do mbito federal para
estados/municpios e a participao social nas formulaes e decises das polticas
pblicas de sade (AGUIAR; OLIVEIRA, 2003).
Logo, desde a dcada de 80 a descentralizao tem sido evocada de forma
veemente, tanto no plano retrico, quanto da ao, como a melhor alternativa para
produzir mudanas no setor sade, principalmente com a ampliao do acesso. O
grande desafio ento deste processo tem sido transformar a ideia hegemnica
difundida que apregoa que o sistema de sade um caos sem fim, mediante as
fraudes, os desperdcios financeiros e os enormes ns crticos. E a aposta nesta
transformao vem a partir do realce dos melhores atributos da esfera local, com a
descentralizao, pois pela proximidade entre governante e governados, pela menor
26
complexidade administrativa, pelo menor grau de burocratizao, e pela maior
capacidade para fiscalizar e prover os servios de sade, essa mudana no iderio
comunitrio seria alcanada. Assim, os municpios foram aos poucos sendo
transformados nos principais depositrios na luta contra as fraudes e os desvios
existentes no sistema de sade, principalmente a partir dos conselhos de sade
(ELIAS, 1996).
Dentre as vrias propostas deste movimento para implantao de uma rede de
servios voltada para a ateno primria sade, fundamentada nestes princpios,
podemos citar o Programa de Interiorizao das Aes de Sade e Saneamento
(PIASS), em 1976, o Programa Nacional de Servios Bsicos de Sade (PREV-
SADE), criado em 1980, que na verdade no se efetivou, e o plano do Conselho
Nacional de Administrao da Sade Previdenciria (CONASP), tambm dos anos
80 (FRANA, 1998; NETO; CUTAIT; TERRA, 2013).
O CONASP foi institudo mediante a crise financeira do sistema de sade e
previdencirio do pas. Elaborou um novo plano de reorientao da assistncia
sade brasileira, por meio de princpios como a descentralizao e a utilizao
prioritria dos servios pblicos federais, estaduais e municipais na cobertura
assistencial (ACURCIO, 2013).
Dentre as principais atividades do CONASP, a que mais se destacou foi a
implementao da poltica de Aes Integradas de Sade (AIS), a partir de 1983,
que constituram uma estratgia de extrema importncia para o processo de
descentralizao da sade (JACOBI, 1996; NETO; CUTAIT; TERRA, 2013).
A poltica de AIS tinha como objetivo integrar os servios de assistncia sade de
uma dada regio, e para isso estabeleceu convnios entre os Ministrios da
Previdncia e Sade e as Secretarias Estaduais de Sade, que recebiam recursos
para executar o programa e repassava aos municpios que tambm aderiam aos
convnios (ACURCIO, 2013).
Esta poltica se fortaleceu a partir do perodo ps-ditatorial, principalmente no que
diz respeito valorizao das instncias de gesto colegiada e participao de
27
usurios dos servios de sade na gesto do sistema, no intuito de torn-lo mais
acessvel e correspondente aos ideais da Reforma Sanitria (CUNHA; CUNHA,
1998). Porm, os principais problemas relacionados centralizao e
descoordenao do sistema permaneciam por no haver definio das atribuies
ou responsabilidades especficas entre as esferas de governo na gesto dos
servios.
Neste sentido, foram fundamentais alguns fatos ocorridos neste perodo: em 1982
ocorreu a primeira eleio direta dos governadores; no mesmo perodo intensificou-
se a mobilizao em prol dos investimentos sociais; e em 1986 realizou-se em
Braslia a VIII CNS, marco histrico para o desenvolvimento do sistema de sade no
Brasil baseado em ideais democrticos (JACOBI, 1996).
A VIII CNS contou com a ampla participao de trabalhadores, governo, usurios e
parte dos prestadores de servios de sade do pas. Foi precedida por conferncias
municipais e estaduais e significou um marco na formulao das propostas de
mudana do setor sade, consolidadas na Reforma Sanitria brasileira, servindo de
palco para a apresentao de um modelo de sistema de sade revolucionrio, em
face da amplitude e profundidade das mudanas apresentadas no documento
resultante e dos ideais que lhe servem de sustentao. Este documento, resultado
das discusses da VIII CNS, serviu de base para as negociaes na Assembleia
Nacional Constituinte, que se reuniria logo aps, em 1987 (CUNHA; CUNHA, 1998).
Dentre os ideais da Reforma Sanitria contemplados neste documento final da VIII
CNS, destacamos os que se referem defesa de um sistema de sade
descentralizado e que possibilitasse a autonomia municipal na formulao e
execuo das polticas e planos de sade (VENNCIO, 2001).
Assim, mediante embates poltico-ideolgicos e das diferentes propostas em relao
ao setor sade, inclusive referentes s inmeras emendas populares Constituio,
o SUS foi criado, a partir da Constituio Federal de 1988, estabelecendo a sade
como um direito de todos os cidados a ser assegurado pelo Estado, mediante
aes e servios pblicos de sade que integram uma rede regionalizada e
hierarquizada; um sistema pautado em importantes diretrizes como
28
descentralizao, atendimento integral e participao da comunidade (BRASIL,
1988).
Alm da Constituio de 1988, outras legislaes foram elaboradas no intuito de
regulamentar de forma mais clara os sentidos atribudos diretriz constitucional
sobre a descentralizao. Dentre estas, destacamos a Lei Orgnica da Sade n
8.080/90, que aborda a descentralizao poltico-administrativa do SUS, com vistas
a descentralizar os servios para os municpios, a partir de critrios de
regionalizao e hierarquizao da rede de servios de sade. Em seguida, foram
elaboradas as Normas Operacionais Bsicas (NOBs) nos anos de 1991, 1993 e
1996 e ainda as Normas Operacionais de Assistncia Sade (NOAS) nos anos de
2001 e 2002, e nos Pactos pela Sade a partir de 2006, legislaes estas que foram
fundamentais para solidificar as discusses a respeito do processo de
descentralizao e transferi-las para o campo da prtica, pois estabeleceram aes,
servios, recursos e responsabilidades aos municpios, estados e mbito federal.
A proposta de descentralizao contida nestas legislaes foi muito audaciosa, no
sentido de corresponder a variados e complexos aspectos da gesto e execuo
das polticas pblicas, como o modelo assistencial, a redefinio de competncias
das esferas de governo, e a questo dos recursos humanos (ELIAS, 1996).
No entanto, nos questionamos se descentralizar a assistncia, a gesto, a
participao, conforme as referidas legislaes e outras a respeito proferem, seria
sempre algo vantajoso para os municpios ou para as comunidades. Ser que
quanto mais descentralizados os servios, maior qualidade acrescida aos
mesmos? Ser que quanto mais descentralizadas as arenas de participao, mais
democrticas tornam-se as discusses, as relaes, as polticas pblicas?
Questionamentos como estes vm e vo a nossas mentes e nos levam a uma
reflexo crtica baseada em alguns autores a seguir.
29
1.1.1. Descentralizao: outros olhares... Outro debate
At o momento discorremos a respeito da descentralizao e apresentamos um
breve resgate histrico do conceito, com problematizaes quanto aos possveis
usos, mostrando o seu potencial, mesmo envolto ao risco dos possveis
desdobramentos deste conceito. Agora, porm, nos dedicaremos a discorrer a
respeito dos possveis entraves concretizao desta diretriz constitucional, bem
como mitos que a envolve, principalmente no que diz respeito autonomia municipal
e democratizao das polticas pblicas de sade.
Um dos pilares da descentralizao justamente a municipalizao, a partir do
discurso de que a instncia municipal o melhor lugar para gerir as polticas e os
recursos pblicos (COSTA; RIBEIRO; SILVA, 1999). Todavia, como a maioria dos
municpios brasileiros no tm condies financeiras e administrativas prprias e
capazes de subsistir como esfera autnoma de governo, os mesmos tornam-se
refns das esferas estadual e federal para manter seus compromissos financeiros e
administrativos, o que compromete substancialmente suas prerrogativas como poder
local, sobretudo em relao sua autonomia (ELIAS, 1996).
E ao promover a descentralizao, principalmente a partir da municipalizao nestes
moldes e realidades, aes, servios, recursos e responsabilidades foram
estabelecidos aos municpios sem a devida cooperao e apoio tcnicos das esferas
estadual e federal, o que ocasionou a criao de sistemas municipais muitos
distintos que passaram a apresentar dificuldades em seus potenciais resolutivos e
tornaram-se atomizados, desarticulados (SPEDO, TANAKA, PINTO, 2009).
Neste sentido, enquanto a esfera federal mantem-se em uma posio confortvel
em relao descentralizao de responsabilidades aos estados e municpios, por
estar livre do nus poltico, social e econmico que representa a sade e a
previdncia, os municpios, principalmente, enfrentam o grande desafio de se
aproximar das inmeras demandas sociais dos cidados, sem ter capacidade fiscal
para atend-las suficientemente (MENDES, 2006; LUZ, 2001). Uma situao que
causa prejuzos principalmente aos usurios dos servios de sade, pois no
30
conseguem acessar um direito que legalmente constitudo devido estas falhas do
sistema (SILVA, BENITO, 2012).
Venncio (2001) tambm considera que a descentralizao pode vir acompanhada
de efeitos negativos. Dentre estes a autora cita a fragmentao dos servios, a
perda de escala, o enfraquecimento das estruturas centrais, as possveis
iniquidades, a ineficincia, o clientelismo local, a privatizao do Estado e o aumento
do emprego, do gasto pblico e dos custos de transao.
Apesar da rea da sade ser considerada como o exemplo mais consolidado da
descentralizao no pas, Barros e Silva (1995) tambm relativizam seus benefcios,
quando apontam as dificuldades de relacionamento entre distintas esferas de
governo e entre estas e o setor privado prestador de servios, o que compromete os
resultados positivos do processo.
Outro aspecto interessante da descentralizao que, comumente, ela est
associada democracia. Arretche (1996) apresenta que existem duas vertentes
principais que consideram esta associao. De um lado os progressistas, que
acreditam na descentralizao como uma estratgia para a participao de sujeitos
sociais em decises polticas. De outro, os liberais, que afirmam que a
descentralizao pode representar uma ruptura com estruturas centralizadas,
possibilitando uma sociedade com mais iniciativas polticas.
E nesse plano, questionamos o pressuposto inicial que a esfera municipal de
governo seja mais democrtica por estar mais prxima da populao, e que as
autoridades locais detenham melhor conhecimento das necessidades dos
muncipes.
necessrio considerar, por exemplo, se a esfera local possui aparato tcnico
suficiente para exercer todas as atribuies que lhe so conferidas, visando o
alcance mnimo de eficcia social que responda de modo socialmente competente
s demandas da populao (ELIAS, 1996).
31
Questionamos ainda a suposio que com a descentralizao haveria o aumento da
eficincia e da transparncia das polticas pblicas, uma vez que as decises
pblicas seriam aproximadas dos cidados. Mendes (2006) esclarece que no h
evidncias de que esse processo de descentralizao para os governos locais tenha
alcanado estes objetivos, por no ter garantido maior eficincia e responsabilidade,
apesar de grandes avanos na ampliao da oferta local de servios e na autonomia
dos estados e municpios (ARRETCHE, 2003; MENDES, 2006).
Tobar (1991) tambm traz uma crtica definio de que uma vez instaurado o
processo de descentralizao, estaria garantida a gesto democrtica do sistema.
Segundo o autor, esta afirmao opera com uma viso tecnocrtica que no leva em
considerao as necessrias mudanas que o movimento descentralizador deve
gerar nas correlaes de foras e poder. H omisso da existncia de projetos
hegemnicos no poder e da necessidade de gestar alternativas de mudana.
Nunes (1996) critica a ideia que o poder local mais factvel de ser democratizado e
de servir de palco a uma maior participao por estar mais prximo do cidado.
Esta crtica se embasa em trs argumentos. O primeiro refere-se o fato de que
qualquer esfera de gesto pblica, mesmo a central ou as mais perifricas, possui
uma abstrao no imaginrio da comunidade - no sentido de ser uma instncia de
poder longe, distante da vida da sociedade, e o municpio no nem mais nem
menos abstrato que os demais nveis de governo. O que ocorre com maior
frequncia no caso municipal, quando comparado a outras esferas de poder, que
as pautas de discusso so mais concretas, so mais facilmente compreendidas
pela maioria da populao, uma vez que correspondem diretamente s
necessidades vivenciadas no cotidiano, demandas aos gestores (NUNES, 1996).
O segundo argumento utilizado pelo autor que como a democratizao depende
cada vez mais de decises mais universais, o municpio, sem autonomia adequada,
torna-se refm de instncias superiores que detm o poder, sendo submetido
politicamente influncia delas. J o terceiro argumento, refere-se ao risco de que a
proximidade possa dar lugar ao clientelismo e ao uso indiscriminado de poder pelas
oligarquias, muito mais fortes em mbitos mais locais, o que significaria um
retrocesso ao processo de democratizao desejado (NUNES, 1996).
32
No se pode negar, todavia, que a descentralizao, apesar de no garantir
automaticamente a participao social, nem a democratizao, pode possibilitar a
criao de novas instncias de negociao e novas alternativas de ordenamento da
estrutura organizacional do sistema de sade, que sejam mais permeveis s
demandas dos cidados.
Porm, para garantir a democracia na sociedade, no basta descentralizar. Existem
alguns princpios democrticos que precisam estar tambm incorporados nas
instituies. Dentre estes podemos citar: o controle do governo pelos cidados, o
direito ao voto, a priorizao das demandas das minorias, o acesso educao para
cidadania e a participao popular (UGA, 1991). Caso estes princpios no estejam
incorporados s instituies durante processos de descentralizao, ocorrer
apenas transferncia de poder do centro para as instncias locais, com o risco
apenas de deslocar a centralizao (ARRETCHE, 1996).
Vianna e Piola (1991) apontam uma srie de pressupostos necessrios para o
alcance de uma descentralizao que preserve minimamente a autonomia das
esferas locais. Dentre estes pressupostos, destacamos: 1) A necessidade das
esferas de governo compartilhar responsabilidades em relao sade da
populao; 2) A obrigatoriedade de recursos federais claros e suficientes ao
financiamento da sade; 3) A efetiva transferncia de poder decisrio, e no apenas
de recursos financeiros, de modo a conferir ao nvel local uma maior governabilidade
na conduo da poltica de sade; 4) Mudanas Constitucionais necessrias a fim
de flexibilizar o uso dos recursos federais por parte das instncias estaduais e
municipais; e 5) A intensificao da participao de usurios conscientes do
potencial estratgico que possuem na gesto das polticas e do sistema de sade.
Assim, possvel o xito no processo de descentralizao medida que existir
ambiente social e cultural propenso a mudanas e enfrentamentos de problemas
mltiplos a partir da capacidade de interveno de diferentes atores sociais
(VENNCIO, 2001). O que mais uma vez refora a relao entre a descentralizao
e participao social, no intuito de tornar mais democrtico o planejamento e a
execuo das polticas pblicas de sade.
33
1.2 DESCENTRALIZAO E PARTICIPAO SOCIAL: PROJETOS ALINHADOS
A partir da dcada de 90, os pilares fundamentais da descentralizao passaram a
ser o financiamento das aes de sade e a participao social, uma vez que a
constituio e o funcionamento pleno dos fundos e dos conselhos de sade
tornaram-se requisitos indispensveis para que estados e municpios se
candidatassem descentralizao, o que ocasionou um intenso crescimento no
nmero de conselhos de sade no Brasil (ELIAS, 1996).
Desde 1988, o texto constitucional explicitava que as aes e servios pblicos de
sade deveriam integrar uma rede regionalizada e hierarquizada, constituindo um
sistema nico, que tivesse como diretrizes fundamentais a descentralizao e o
atendimento integral com prioridade para as atividades preventivas e ainda a
participao da comunidade (BRASIL, 1988).
Os conselhos de sade e as conferncias de sade, institucionalizados pela Lei
Federal 8.142 de 28 de dezembro de 1990, representaram o desejo que a
participao social assumisse lugar estratgico na definio e execuo das polticas
de sade. Composto de modo paritrio pelos representantes dos usurios e pelos
demais segmentos, foram considerados como uma possibilidade vocalizao dos
interesses e da interveno de grupos e setores usualmente segregados do plano
das deliberaes polticas na sade (CORREA, 2000; BRAVO, 2001).
Entretanto, ao analisarmos algumas pesquisas e os dispositivos legais, notamos em
muitos destes a adoo da expresso controle social como sinnimo de
participao da comunidade ou participao social na gesto do SUS. Porm,
como esta expresso tem sido alvo de muitas discusses e prticas recentes de
diversos segmentos da sociedade (CORREA, 2008), e por no considerarmos tratar-
se de um mesmo significado, decidimos trazer estas categorias, a partir de uma
breve contextualizao poltica/histrica, antes mesmo de aprofundarmos a
discusso a respeito das relaes entre a descentralizao e a participao social.
34
1.2.1 Participao ou Controle Social?
A anlise histrica revela que o termo controle social tem origem na sociologia e
empregado, neste contexto, para designar mecanismos de estabelecimento de
ordem social e disciplinarizao da sociedade, mediante padres sociais e princpios
morais aos quais os indivduos so submetidos, a fim de assegurar a conformidade
de seu comportamento. Contudo, na teoria poltica, o significado desta expresso
mostra-se ambguo, uma vez que pode ser concebido de diferentes formas, de
acordo com diferentes concepes de Estado e de sociedade civil. Portanto, pode
ser utilizado ora para designar o controle do Estado sobre a sociedade, conforme o
sentido essencial advindo da sociologia; ou exatamente o contrrio, no sentido de
designar o controle da sociedade (ou de setores organizados da mesma) sobre as
aes do Estado (CORREA, 2008).
Outro aspecto a ser analisado nesta discusso que as expresses controle social
e participao social assumiram significados diversos, de acordo com contextos
referentes s concepes do processo sade-doena e, principalmente, s relaes
entre o Estado e a sociedade. No incio do sculo XX, por exemplo, perodo em que
o pas vivia o sanitarismo campanhista, as concepes de sade-doena estavam
ligadas teoria dos germes (modelo monocausal) e os problemas de sade eram
explicados pela relao linear entre o agente e o hospedeiro, o que favorecia aes
do Estado por meio de medidas de saneamento e controle de epidemias. Neste
contexto histrico e poltico, o termo controle social tambm se relacionava ao
controle do Estado sobre a sociedade, o que representa uma enorme diferena
quanto sua aplicao nos textos legais a partir da Lei Orgnica da Sade
(CARVALHO; PETRIS; TURINI, 2001).
Para reforar a crtica ao conceito, apresentamos a pesquisa realizada por Guizardi
et al. (2004) que analisou a presena e o sentido atribudo s categorias controle
social e participao social nos relatrios das Conferncias Nacionais de Sade
(CNS), desde a oitava at a dcima primeira. Os autores encontraram como
resultados inmeras divergncias conceituais, como descrevemos a seguir.
35
Inicialmente, o relatrio da VIII CNS trouxe o termo controle social com o sentido
de garantir participao popular na organizao, gesto e controle dos servios e
aes de sade. Um sentido amplo que envolve o cidado em todo o processo
poltico, desde a formulao interveno e revela uma populao que adquire
condio de sujeito, protagonista na construo social do projeto de direito sade
(GUIZARDI et al., 2004).
J a partir da IX CNS, realizada em 1992, no auge do neoliberalismo e marcada por
um cenrio de intensos obstculos concretizao do SUS, o projeto de
participao construdo at a VIII CNS mostrava-se comprometido, uma vez que o
sentido de controle social tornou-se muito mais fiscalizao e avaliao externa, se
contrapondo participao em todo o processo de construo, como antes. E ainda
na X CNS os autores notaram uma consolidao e um enrijecimento normativo da
direo tomada sobre o tema a partir da IX CNS - uma vez que o relatrio refere-se
aos Conselhos de Sade como instncias de acompanhamento e fiscalizao,
fortalecendo a concepo de exterioridade ao processo, cabendo a ele apenas
acompanhar, fiscalizar ou ainda aprovar e autorizar (GUIZARDI et al., 2004).
Todavia, a partir da XI CNS realizada em 2000, o sentido atribudo ao controle social
e participao voltou a mudar, em relao direo hegemnica que se
configurou a partir da IX CNS caracterizada pela reduo da participao ao controle
social (externo) sobre o Estado e de sua restrio s instncias institudas pela
legislao do SUS. A participao social passou a ser considerada em uma
dimenso constitutiva como ao e interveno no campo social, a partir do
protagonismo de atores sociais implicados e aos efeitos dessa mobilizao
(GUIZARDI et al., 2004).
Portanto, ao percebermos estas inmeras ambiguidades conceituais envolvendo os
termos controle social e participao social, no intuito de evit-las, optamos por
adotar neste estudo o termo participao social, considerando-a como um agente
de construo e efetivao do SUS, por meio da interveno na produo do
processo e no apenas em sua fiscalizao. Uma noo que promove a constituio
de sujeitos sociais (GUIZARDI et al., 2004).
36
Este conceito de participao social surgiu se contrapondo ao conceito de
participao comunitria. A participao comunitria vem do termo comunidade no
sentido de representar um agrupamento de pessoas que coabitam num mesmo
ambiente e so expostas as mesmas condies sociais e culturais supostamente
homogneas, estando predispostas solidariedade, ao trabalho voluntrio e de
ajuda mtua (CARVALHO; PETRIS; TURINI, 2001).
Tendo origem no incio do sculo XX, ligada a experincias norte-americanas de
medicina comunitria, a participao neste contexto tem como caractersticas a
assistncia social aos mais pobres e vulnerveis, a educao para o auto-cuidado, a
solidariedade e coletivismo, a integralidade das aes e a descentralizao e
organizao comunitria (CARVALHO; PETRIS; TURINI, 2001).
No Brasil, este modelo de medicina comunitria s ganhou destaque a partir da
dcada de 70, entendida como passaporte para melhorias sociais (CARVALHO;
PETRIS; TURINI, 2001, p.96), quando as aes e servios de sade oferecidos pela
previdncia social deixaram de corresponder s demandas da populao,
principalmente os no contemplados por ela.
Como a situao poltica do pas na poca, de pouca liberdade e ausncia de
democracia, no favorecia o fortalecimento das propostas de participao
comunitria, muitas experincias perderam as foras. Porm outras persistiam, com
um carter de organizao e politizao comunitria, que contestava a situao do
sistema de sade vigente no intuito de propor um projeto contra-hegemnico,
(CARVALHO; PETRIS; TURINI, 2001).
Assim, um novo sentido estava sendo atribudo ao termo, e aos poucos participao
comunitria foi se consolidando como
[...] um processo social em que grupos especficos com necessidades compartilhadas, vivendo numa determinada rea geogrfica, perseguem ativamente a identificao de suas necessidades, tomam decises e estabelecem mecanismos para atender a essas necessidades (RIFKIM et al., 1988, p.933 apud CARVALHO; PETRIS; TURINI, 2001).
37
E ento, seguindo as vertentes anteriormente citadas de organizao e politizao
comunitria, surge no incio da dcada de 80, a partir do declnio do regime
autoritrio, o termo participao popular, num contexto de crise social e no sistema
de sade. Vale ressaltar ainda, que neste perodo houve ainda uma intensa crtica
ao modelo de sade hegemnico centrado na doena e em relaes monocausais,
principalmente a partir de atores posteriormente envolvidos na Reforma Sanitria,
que trouxeram a esta discusso a grande interferncia dos efeitos do meio social no
curso das doenas, como as condies de moradia, educao, sade e lazer. Neste
sentido a participao popular ganhou destaque a partir do aprofundamento da
crtica e radicalizao das prticas polticas de oposio ao sistema
economicamente predominante (CARVALHO; PETRIS; TURINI, 2001).
E para os referidos autores, o termo participao popular considerado sinnimo
de participao social, relacionando-a a propostas de gestes colegiadas e
representativas que reconhecem e legitimam as organizaes da sociedade civil, a
partir do final da dcada de 70 e incio da dcada de 80, perodo que houve uma
multiplicao de movimentos e organizaes populares na rea da sade, em vrios
contextos (igrejas, associaes e sindicatos). Todos com o intuito de alcanar uma
transformao poltica das prticas sanitrias e do conjunto do sistema de sade
(CARVALHO; PETRIS; TURINI, 2001, p. 97).
por isso que neste estudo, buscando evitar as controvrsias conceituais,
adotaremos a categoria participao social. Uma participao construda por
diversos segmentos sociais empenhados por meio da mobilizao, denncia e
contestao (LONGUI; CANTON, 2011) e que deve ser entendida como uma
verdadeira partilha do poder entre o Estado e a sociedade civil, em espaos
legalmente institudos ou no, pois se a partilha de poder estiver comprometida,
restrita ou limitada, restar sociedade civil apenas funes consultivas, executoras
e/ou legitimadoras das decises previamente tomadas no interior da estrutura estatal
(DAGNINO, 2002).
38
1.2.2 Descentralizao e Participao Social
Os ideais da descentralizao foram desenvolvidos em consonncia com as
discusses polticas quanto participao social no Brasil. Um cenrio de fortes
embates entre o poder estatal, movimentos sociais e organizaes da sociedade
civil, que marcaram o pas, com uma trajetria de lutas pela ampliao democrtica,
pela participao da sociedade nos processos decisrios da gesto e controle dos
recursos pblicos.
Ao abordarmos as relaes entre a participao social e a descentralizao
essencial relembrarmos que at o incio dos anos de 1980 a gesto pblica no Brasil
era caracterizada pela intensa centralizao do poder decisrio e da dotao
financeiro-oramentria na esfera federal, restando aos estados e municpios,
apenas o papel de executores de polticas formuladas centralmente. Ao mesmo
tempo, como os recursos eram centralizados em nvel federal, tornaram-se comuns
as articulaes clientelistas entre governos estaduais, municipais e o federal,
baseadas em troca de favores. Isto transformava as instncias locais em
agenciadores de recursos federais para o municpio ou estado, pois nas esferas
locais de poder que as necessidades e demandas dos cidados eram diretamente
expostas (DRAIBE, 1992).
Em meio a esta intensa centralizao da gesto pblica, no havia espao para a
sociedade civil no processo de formulao das polticas pblicas, nem mesmo no
acompanhamento da implementao dos programas ou no controle da ao
governamental. Ao contrrio, havia a predominncia de trs elementos no que dizia
respeito s relaes entre Estado e Sociedade, sobretudo a partir da dcada de
1980: o clientelismo, o corporativismo e o burocratismo; caractersticas que
ocasionavam o desenvolvimento de polticas pblicas marcadas pela fragmentao
e desarticulao institucional entre diferentes esferas de governo (DINIZ, 1996).
A partir dos anos 1990, porm, intensificou-se o processo de descentralizao
poltico-administrativa e a municipalizao das polticas pblicas. Um processo que
interferiu diretamente nas relaes entre o Estado e a sociedade, levando a
transformaes e ao fortalecimento das instituies democrticas no pas,
39
principalmente no que concerne aos governos locais, cujas mudanas na
organizao e funcionamento eram as mais desejadas, a fim de incorporar
mudanas a partir dos canais de gesto democrtica institucionalizados
(ARRETCHE, 2000).
Nesta tica, a descentralizao e a participao passaram a estar intimamente
relacionadas, sendo consideradas fundamentais para uma reorientao de polticas
sociais que garantissem equidade e incluso de novos segmentos da populao na
esfera do atendimento estatal. Uma luta por direitos que envolveria os prprios
sujeitos como atores sociais, protagonistas no processo de construo das polticas
pblicas (DRAIBE, 1992).
E foi assim que a luta pela democratizao da gesto pblica alcanou a
Constituio Federal, que sinalizou o princpio da gesto descentralizada e
participativa (BRASIL, 1988). Uma luta que, na sade, ganhou novos espaos
legalmente institudos, os Conselhos e Conferncias de Sade, considerados formas
inovadoras de interao entre governo e sociedade, canais estratgicos de
participao social, como j mencionamos.
Ao longo de mais de vinte anos de implantao, os conselhos e conferncias de
sade consolidaram-se como espaos de mediao, participao social e
interveno de interesses e valores diversificados e plurais, tornando inegveis os
avanos alcanados com esta institucionalizao, que ocorreu de forma expressiva
nos anos 90, apesar de algumas limitaes. A conquista desses espaos de
participao foi decisiva para que o direito sade se efetivasse como direito de
cidadania, pois possibilitou o fortalecimento da sociedade civil dentro do movimento
de democratizao das relaes da sociedade e o Estado, que considerado como
um acontecimento indito na histria das polticas sociais no pas, colocando a
sade como pioneira na luta pela consolidao dos direitos sociais (VIANNA;
CAVALCANTI; CABRAL, 2009).
Uma agenda que passou a interligar a descentralizao e a participao social como
eixos centrais para democratizar os processos de deciso a fim de garantir polticas
40
pblicas com mais equidade e tentar romper com o autoritarismo e paternalismo
brasileiro de interveno estatal na rea social (BRASIL, 2006).
Iniciativas que, implicitamente, levam em si a ideia de cidadania ampliada, que
possibilita o acesso dos cidados ao processo de gesto das polticas pblicas em
nossa sociedade, indo de encontro tendncia centralizadora e autoritria brasileira
e possibilitando a participao da sociedade civil na gesto da coisa pblica
(DAGNINO, 1994).
De acordo com a Poltica Nacional de Gesto Participativa para o SUS
(PARTICIPASUS), a descentralizao ocorrida na gesto e execuo das aes de
sade, caracterstica fundamental do processo de implantao do SUS, legitimada
quando adota-se a gesto participativa, capaz de incluir novos atores nos processos
decisrios em diferentes instncias polticas (BRASIL, 2005).
Ao identificar o usurio como membro de uma comunidade organizada com direitos
e deveres, esta poltica apostou na ampliao da condio de cidadania, guiada
pelos ideais reformistas. Assim, como em outros aspectos da descentralizao,
considerou o municpio como uma instncia privilegiada para possibilitar a
construo do modelo de ateno proposto para o SUS: resolutivo, equnime,
humanizado e integral (a partir da regionalizao). Esta fundamentao baseia-se no
fato de que os municpios so mais capazes de corresponder s reais demandas e
necessidades da populao, por estarem mais prximos da realidade das pessoas.
A descentralizao ento, como estratgia, estaria aliada regionalizao
cooperativa, construda a partir de um pacto de gesto entre as distintas esferas do
SUS, a fim de garantir o enfrentamento das inmeras iniquidades em sade, com
integralidade e racionalidade (BRASIL, 2005).
A descentralizao promoveria, logo, uma rede de participao social de alta
capilaridade, um novo ciclo democrtico no SUS, a partir da gesto participativa
considerada um componente estratgico capaz de influir e interagir com outros
fundamentos do processo de democratizao (BRASIL, 2005).
41
A ideia de gesto participativa foi disseminada no intuito de buscar o aumento da
participao direta da sociedade na gesto municipal, visando aumento da eficincia
e da efetividade das polticas pblicas e buscando tornar a participao uma
ferramenta de gesto pblica (BRASIL, 2006).
Na sade, a gesto participativa frente s limitaes dos canais tradicionais de
articulao entre Estado e sociedade, passou a apostar na renovao e criao de
instncias mais flexveis, porosas e efetivas s complexas demandas sociais.
Instncias nas quais os cidados em geral, independentemente de sua classe social,
pudessem produzir uma nova compreenso sobre o papel do Estado, como sujeitos
sociais, protagonistas na luta pela universalizao dos direitos. Uma cultura poltica
de participao cidad (BRASIL, 2006).
Assim, vrios casos concretos de participao comearam a se multiplicar nas
ltimas dcadas, em destaque aqueles no totalmente governamentais, vinculados,
porm a outras arenas de participao de carter no tradicionalmente institucionais
(BRASIL, 2006). Dentre estes vrios casos de participao, surgiram os CLS, como
alternativa flexvel de participao social, mais poroso s demandas comunitrias.
Justificar a utilidade e importncia da descentralizao dos conselhos de sade em
municpios de grande porte, ou uma metrpole pode ser uma tarefa de fcil
realizao, tendo em vista as distncias geogrficas, as diferenas territoriais,
culturais, econmicas e sociais. Entretanto, neste estudo nos propomos a analisar a
descentralizao dos conselhos de sade no municpio de Anchieta, um municpio
de pequeno porte que possui aproximadamente 24 mil habitantes e est localizado
ao litoral sul do Esprito Santo (BRASIL, 2010).
O porte do municpio definido conforme sua populao pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatstica (IBGE). Portanto, de acordo com tabela a seguir, Anchieta
considerado um municpio de pequeno porte II (BRASIL, 2010).
42
TABELA 1 Classificao do porte dos municpios no Brasil
Pequeno porte I At 20.000 hab.
Pequeno porte II De 20.001 a 50.000 hab.
Mdio porte De 50.001 a 100.000 hab.
Grande porte De 100.001 a 900.000 hab.
Metrpole Mais de 900.000 hab.
FONTE: IBGE (2010)
A descentralizao na sade e na participao social em um municpio de pequeno
porte tende a ocorrer de forma bem peculiar. Para estes municpios, a autonomia de
gerir seu sistema de sade de forma a garantir uma assistncia integral, mostra-se
como um dos vrios desafios a serem enfrentados (SILVA; CASOTTI, 2012).
Embora existam municpios de pequeno porte no estado do Esprito Santo, por
exemplo, que desfrutem de uma boa arrecadao financeira, principalmente devido
aos royalties de petrleo, esta no a realidade da maioria desses municpios, que
diante de uma realidade scio-demogrfica desfavorvel, ainda enfrentam grandes
problemas por escassez de recursos.
Alm disso, outros desafios enfrentados por estes municpios em questo tambm
podem ser apontados, a saber: 1) as limitaes na garantia do acesso aos nveis de
ateno secundrio e tercirio do SUS; 2) as dificuldades em implementar de forma
efetiva polticas de planejamento, avaliao e monitoramento das aes; 3) as
limitaes na obteno e utilizao de sistemas de informao, principalmente
devido dificuldade de acesso internet; e 4) as dificuldades em instituir, manter e
investir em polticas de recursos humanos e em educao permanente dos
profissionais (SILVA; CASOTTI, 2012).
Assim, os CLS surgiram como uma alternativa, inclusive aos municpio de pequeno
porte. Representaram mais um espao participao, considerando a essncia da
participao cidad, que preconizava que todos, independentemente de sua classe
social, poderiam produzir uma nova compreenso sobre o papel do Estado, como
sujeitos sociais, protagonistas na luta pela universalizao dos direitos.
43
Os conselhos locais tornaram-se componentes estratgicos da gesto participativa,
uma vez que seguiam a cultura de descentralizao j implementada no pas desde
os anos 90. Surgiram como instncias de participao mais prximas da
comunidade e, logo, mais prximas do cotidiano dos usurios e da dinmica dos
servios de sade da unidade, podendo inclusive interagir com outras organizaes
do bairro, como as associaes de moradores, pescadores, trabalhadores rurais,
dentre outras. Instncias que funcionariam como bases setoriais e territoriais,
capazes de possibilitar mais envolvimento dos usurios na gesto pblica, por
proporcion-los uma ampliao de informaes sobre o funcionamento dos servios
e da administrao (JACOBI, 2002). Fruns que poderiam elaborar propostas para a poltica
de sade em sua localidade, levar sugestes ou reivindicaes a instncias
superiores, como o Conselho Municipal de Sade, e tambm estabelecer relao
entre conselheiros e a populao, sendo uma forma de aumentar a mobilizao, no
afastando os representantes da sua base (BRAVO, 2001).
Neste sentido, nos propomos a investigar em Anchieta, municpio de pequeno porte,
como foram criados e implementados os Conselhos Locais de Sade, buscando por
meio de um resgate deste processo caracterizar o perfil dos sujeitos eleitos ou
indicados a compor estes fruns de participao.
44
2 CONSELHOS LOCAIS DE SADE: EXPERINCIA DE PARTICIPAO SOCIAL
EM UM MUNICPIO DE PEQUENO PORTE.
Em Anchieta, municpio localizado ao litoral sul do Esprito Santo foi criado e
implantado no ano de 2010 os CLS em cada um dos nove territrios da ESF do
municpio.
2.1 OS CONSELHOS LOCAIS DE SADE EM UM TERRITRIO EM DISPUTA
Anchieta um municpio a 73 km de Vitria e integra a Regio Metropolitana
Expandida Sul do Esprito Santo. Apresentando 417 km2 de extenso territorial,
mantm-se como um municpio de pequeno porte populacional, e de acordo com o
IBGE (censo 2010), o municpio possui 23.902 habitantes, sendo 18.161 residentes
na rea urbana e 5.741 na zona rural (BRASIL, 2010).
As principais atividades econmicas em Anchieta so a indstria e servios, pesca,
agricultura, pecuria, turismo e comrcio em geral. Possui uma alta arrecadao de
royalties do petrleo. Um bom exemplo disto que em 2011 o municpio arrecadou
aproximadamente R$ 50 milhes de reais. Recebe muitos migrantes de outros
municpios do Esprito Santo, inclusive da Regio Metropolitana da Grande Vitria, e
at mesmo de outros estados, principalmente Bahia, atrados pela especulao do
crescimento e oportunidades de empregos nas grandes empresas da regio, que em
sua maioria oferecem vnculos trabalhistas precrios, como contratos temporrios
em empresas terceirizadas. No municpio, as localidades do interior concentram
aproximadamente 50% do eleitorado (TOMAZELLI, 2012).
45
Palco de grandes embates econmicos e ambientais, nos ltimos anos esta regio
tem atrado muitas empresas e investimentos nas reas de petrleo e siderurgia1,
principalmente, o que tem ocasionado um processo de metamorfose com profundas
e rpidas transformaes demogrficas, econmicas e sociais (RAUTA MARTINS;
RAUTA RAMOS, 2012).
Na sade, o municpio de Anchieta possui uma cobertura de 100% da ESF,
totalizando nove USF principais, alm das sub-unidades. Possui ainda uma rede de
sade composta por Centro de Especialidades Unificadas (especialidades mdicas,
fonoaudiologia, fisioterapia, nutrio, dentre outras), Centro de Especialidades
Odontolgicas, Pronto Atendimento, Centro de Ateno Psicossocial I (CAPS I),
Centro de Ateno Psicossocial lcool e Drogas (CASP ad), Centro de Testagem e
Aconselhamento, Centro de Controle de Zoonoses e Laboratrio. Alm destes
servios, o municpio possui convnio com um hospital filantrpico.
Em dezembro de 2010, a Secretaria Municipal de Sade de Anchieta conquistou o
Prmio Srgio Arouca de Gesto Participativa no SUS, em sua quarta edio,
graas experincia exitosa de instalao dos CLS em 100% dos territrios de
sade do municpio. Este prmio foi criado em 2005, em homenagem ao sanitarista
Sergio Arouca, um dos lderes da Reforma Sanitria no pas, e em sua quarta
edio, fez parte da agenda da 14 CNS, cujo eixo foi Acesso e acolhimento com
qualidade: um desafio para o SUS. O objetivo da iniciativa foi promover o
reconhecimento e a divulgao de experincias exitosas de gesto participativa em
sade nos servios, organizaes e movimentos sociais (CARMO, 2012).
Os CLS de Anchieta foram criados como uma proposta de interveno a partir de
um curso de especializao em ateno primria sade, elaborado e financiado
pela Secretaria de Estado da Sade do Esprito Santo (SESA) em parceria com as
Secretarias Municipais de Sade e com Instituies de Ensino Superior do estado
(CARMO, 2012). 1Alguns empreendimentos a serem desenvolvidos na regio e em especfico em Anchieta-ES so:
Porto da Petrobrs, Ferrovia Litornea, quarta usina Samarco e siderrgica CSU, da Vale. Estes iro gerar impactos econmicos a partir da gerao de emprego e renda e aumento considervel das receitas do municpio, arrecadao de impostos e da participao dos royalties do petrleo (TOMAZELLI, 2012).
46
O referido curso de especializao foi criado com o intuito de capacitar profissionais
de nvel superior que atuavam na ateno primria sade do estado e gestores. As
turmas foram formadas seguindo a distribuio de acordo com o Plano Diretor de
Regionalizao (PDR) do estado, nas microrregionais de sade