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    Consumo e desejona cultura do narcisismoPedro Luiz Ribeiro de Santi1

    RESUMONeste artigo, pretendo mostrar como o conceito de cultura donarcisismo, criado pelo antropólogo americano ChristopherLash nos anos 1970, pode nos ajudar a pensar sobre alguns pa-drões de consumo em nosso mundo contemporâneo.Trabalho também com o psicanalista Jurandir Freire-Costa, o so-ciólogo Zygmunt Bauman e teses minhas para tentar compreen-der como se altera a forma de consumir em decorrência da criseda Modernidade.Palavras-chave: Consumo; desejo; narcisismo; Modernidade.

    ABSTRACTIn this article, I intent to show how the concept of culture of nar-cisism, created by American anthropologist Christopher Lash inthe 1970’s, can help us think about some patterns of consumptionin contemporary world.I also work with ideas put forward by psychoanalyst Jurandir Frei-re-Costa, sociologist Zygmunt Bauman as well as some of my ownideas, in order to try to understand how the modes of consumptionchange throughout the crisis of Modernity.Keywords: Consumption; desire; narcisism; Modernity.

    1 Psicanalista,doutor emPsicologia Clínicapela PontifíciaUniversidadeCatólica (PUC-SP) e mestre emFilosofia pelaUniversidadede São Paulo(USP). Leciona naEspecialização emPsicologia Clínica:Teoria Psicanalítica(COGEAE/PUC-SP) e na Faculdadede ComunicaçãoSocial da EscolaSuperior dePropaganda eMarketing (ESPM-SP). É autor de A crítica ao euna Modernidade.Em Montaignee Freud (Casa doPsicólogo, 2003), A construção do euna Modernidade.Uma apresentaçãodidática (Holos,1998) e co-autor, ao ladode Luís ClaudioFigueiredo, dePsicologia. Uma

    nova introdução (EDUC, 1997).

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    N este artigo, explorarei as possibilidades que o con- ceito de “cultura do narcisismo” abre com relação àcompreensão do sentido de determinados comportamen-tos de consumo. Partirei do livro A cultura do narcisismo,de 1979, do antropólogo americano Christopher Lasch2.

    Ainda que sua conceituação tenha sido bastante ques-tionada, a expressão “pegou” e passou a ser usada emdiversos contextos. Pretendo expor de maneira bastantepróxima à da obra de Lasch (até mesmo por ela estar hojefora de catálogo no Brasil) e, em seguida, apresentarei adiscussão e os desenvolvimentos em torno do conceito,em especial pelo enfoque de um autor brasileiro: JurandirFreire-Costa.

    Trata-se aqui do entrecruzamento de uma teorizaçãopsicanalítica com uma dimensão cultural, relacionada àcrise da Modernidade. Pretendo explorar as formas que odesejo toma em nosso tempo.

    1A cultura do narcisismodefinida por Lasch

    No final dos anos 1970, Lasch se depara com um for-te sentimento de mal-estar e perda de confiança nos EUApelos próprios americanos, depois do otimismo das duas

    décadas anteriores.O período posterior à Segunda Guerra havia sido deabertura do mundo e também de aparência de que tudo se-ria possível, mas essa esperança foi se esgotando na medidaem que o estoque de idéias construtivas foi se exaurindo etodos se depararam com o fato de que a ciência e os valo-res modernos não teriam conseguido resolver os problemasmundiais.

    Lasch apresenta sua obra nos seguintes termos:

    2 Este artigose baseia numcapítulo da pesquisaque desenvolvipara o Núcleode Pesquisas ePublicações daESPM em 2005,chamada “Culturado narcisismo,

    cultura dotraumático”.

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    Este livro descreve um modo de vida que está moribundo– a cultura do individualismo competitivo, o qual, em suadecadência, levou a lógica do individualismo ao extremode uma guerra de tudo contra tudo, a busca da felicidadeem um beco sem saída de uma preocupação narcisista como eu (Lasch 1983: 14).

    A cultura do narcisismo não se segue (ou se opõe) a umaordem tradicional, mas sim ao individualismo moderno, aoqual torna mais agudo ou supera. Voltaremos a este ponto

    ao final deste artigo.Se os valores da Modernidade produziam culpa comoexpressão de mal-estar, com sua ética repressiva da renún-cia ao prazer imediato, os tempos atuais passaram a produ-zir ansiedade.

    Aqui, Lasch faz uma referência clara, ainda que não no-meada, à “teoria da cultura” de Freud, tal como formuladaemO mal-estar na civilização (1931). A base do modelo é aconcepção segundo a qual a cultura se apóia sobre a repres-são dos impulsos sexuais e agressivos que, então, são desvia-dos para finalidades socialmente úteis e aceitáveis: o traba-lho, a amizade etc. Mas a aderência à renúncia ao prazerimposta pela sociedade e suas exigências cada vez maiorescustam um preço muito alto: a repressão excessiva acabapor gerar o “nervosismo moderno”, a neurose que acaba

    por tornar as pessoas improdutivas e se mostrar nociva àprópria vida social. Mesmo fora do campo das patologiasque retirassem algumas pessoas da circulação social, a mas-sa das pessoas seria tomada por um crescente mal-estar, queé formulado como sentimento contínuo de culpa e dívidacom relação aos modelos ideais inalcançáveis da cultura.Para aquém da dinâmica da repressão dos impulsos, Freudainda formula outra fonte mais radical de sofrimento e difi-culdade para a vida social: um impulso primitivo destruti-

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    vocado pelo “desterro” do sujeito, tal como concebido naModernidade: livre, ativo e autônomo. A própria família te-

    ria perdido sua função da criação e transmissão dos valoresda cultura às novas gerações: essa tarefa passou a caber a“especialistas”, profissionais da educação e da saúde. Fre-qüentemente, consideramos ser problemática a situaçãoem que a esfera privada da experiência invade a pública,como quando um político orienta suas ações em favor debenefícios próprios, mas a análise de Lasch inverte a di-reção do problema. Trata-se aqui da invasão dos espaçosprivados (como a própria casa e a família) pela ordem pú-blica. Essa invasão produziria uma desapropriação de cadaindivíduo das ordens de determinação e compromisso como que faça, levando-o a recuar num fechamento narcísicodefensivo.

    Referindo-se ao clássico modelo de Max Weber, em Aética protestante e o espírito do capitalismo(1996), como

    modelo do homem americano, diz Lasch:Ele [o homem americano] vivia para o futuro, evitando aauto-indulgência em favor de uma acumulação paciente,diligente; e na medida em que a perspectiva coletiva viao todo com tanto fulgor, ele encontrava no adiamento dagratificação não só sua gratificação pessoal, mas tambémuma fonte abundante de lucro [...]. A inflação corrói os investimentos e as poupanças. Apropaganda solapa o horror ao endividamento, exortan-do o consumidor a comprar agora e a pagar mais tarde. À medida que o futuro se torna ameaçador e incerto, sóos tolos deixam para o dia seguinte o prazer que podemter hoje [...]. A autopreservação substituiu o autocresci-mento como o objetivo da existência [...]. Esperam nãotanto prosperar, mas simplesmente sobreviver, embora aprópria sobrevivência necessite cada vez mais de ganhosmaiores (1983: 79).

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    Muitas coisas importantes são anunciadas nessa passa-gem. Uma delas é a questão do consumo, à qual abordare-

    mos adiante. Por ora, destaquemos a dimensão da experiên-cia psicológica envolvida. O sujeito moderno (freudiano eweberiano) vive no reino do desejo e da renúncia a ele; estesujeito que o segue recua à posição de quem vive no campodas necessidades básicas de sobrevivência. Em vez de umtrabalhador que almeja a ascensão social ou a possibilidadede abrir seu próprio negócio, temos alguém desesperadoem não perder seu emprego. Ou ainda, em vez daqueleque abre seu próprio negócio (a oficina na garagem, a fran-quia do pão de queijo) como senso de oportunidade e dese-jo de autonomia, hoje temos alguém que abre seu negóciopor não ter conseguido se incluir no campo cada vez maisestreito do emprego formal.

    Embora aos olhos de um psicanalista a dinâmica descri-ta por Lasch soe mais primitiva e regredida que a do sujeito

    neurótico moderno, o autor procura analisá-la em termosde recrudescimento da própria repressão. As pessoas teriaminteriorizado cada vez mais os mandatos repressivos e de taforma que teriam se tornado incapazes de desejar ou sentiro que quer que seja. Segue-se a essa aderência excessivaaos limites da civilização um tédio aniquilador que as levaa cultuar experiências mais intensas que despertem seus

    apetites adormecidos. O narcisista sonha com uma vidaselvagem, louca e aventureira com a liberdade de quemnão se sente ameaçado por esta possibilidade.

    As pessoas do século XX já não saberiam o que seria sertomado pelo desejo:

    Ao contrário, tendem a ser consumidas pelo ódio, que de-riva das defesas contra o desejo e dão origem, por sua vez,a novas defesas contra o próprio ódio. Suaves, submissase sociáveis por fora, elas fervem em um ódio interior para

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    o qual uma sociedade densa, superpopulosa e burocráticapode divisar poucas saídas legítimas (Lasch 1983: 32).

    Assim, temos a procura por sensações intensas no pre-sente, com o repúdio ao passado, ausência de perspecti-va de futuro e a expressão de um ódio intenso a tudo ea todos. Temos ainda a referência indireta a um modode organização subjetiva teorizada pela psicanálise (maisespecificamente, por Winnicott) como falsoself : trata-seprecisamente daquela organização na qual se estabelece

    uma casca superficial de normalidade criada como defe-sa aos ataques do ambiente, numa espécie de “amadure-cimento precoce”. No entanto, a criação dessa barreiratem como custo a manutenção de um estado interiorimaturo e explosivo, podendo conter até mesmo umapsicose latente.

    Tendo perdido a crença nas autoridades e valores cultu-rais, a atenção volta-se então para aqueles que detêm valorreconhecido pela cultura a cada instante: as celebridadesinstantâneas:

    Os meios de comunicação de massa, com seu culto dacelebridade e sua tentativa de cercá-la de encantamentoe excitação, fizeram dos americanos uma nação de fãs,de freqüentadores de cinema. A “mídia” dá substância e,por conseguinte, intensifica os sonhos narcisistas de famae glória, encoraja o homem comum a identificar-se comas estrelas e a odiar o “rebanho”, e torna-se cada vez maisdifícil aceitar a banalidade da existência cotidiana (Lasch1983: 43).

    Correlatamente, na falta de qualquer outro critériointeriorizado ou social para identificar-se e reconhecer-se, só resta o anseio por existir e ser reconhecido comocelebridade:

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    Estas pessoas exibem, de forma exagerada, a obsessão pre-dominante pela celebridade e uma determinação de con-segui-la mesmo a custo de auto-interesses racionais e suasegurança pessoal. O narcisista divide a sociedade em doisgrupos: os ricos, grandes e famosos, de um lado, e o reba-nho comum, do outro (Idem: 115).

    O livro de Lasch segue desenvolvendo o tema, explici-tando o narcisismo presente em diversos produtos culturaisnorte-americanos. Dois dos temas que ele desenvolve ain-

    da nos interessam particularmente.Lasch passa a estabelecer como referência para a com-preensão do narcisismo na cultura o narcisismo com omodelo psicopatológico na psicanálise. Na classificação deFreud, os grandes grupos eram constituídos pelas neurosesde transferência (a histeria, a neurose obsessiva e a fobia),as perversões e as neuroses narcísicas (as psicoses, como aparanóia, a esquizofrenia e o distúrbio bipolar, ainda que osnomes dados por ele a essas estruturas fossem outros). Umaparte importante do trabalho de Freud foi problematizar adefinição de normalidade e anormalidade. Muitos de seustrabalhos vão na direção de mostrar que não há uma dife-rença qualitativa, mas apenas quantitativa entre aquilo quepodemos considerar como normalidade e os estados psico-patológicos. O comportamento chamado de normal, por

    sua vez, contém uma série de pequenas fixações, inibiçõese atos falhos característicos da neurose. Embora se possamencontrar referências eventuais ao “normal” em sua obra,não é difícil perceber que ele, de fato, corresponde ao com-portamento neurótico. Provavelmente só se possa pensar aanormalidade em termos estatísticos (ou seja, o que é nor-mal em determinado grupo de pessoas) e não em termosabsolutos; de outra parte, o limite do patológico tambémaparece quando a própria pessoa se dá conta que sua forma

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    de agir passa a ser um entrave para sua felicidade e adapta-ção ao meio.

    O narcisismo faz parte da constituição do eu de todasas pessoas em suas infâncias, mas, como se vê, ele diziarespeito também a um modo de funcionamento patológicoque explica as psicoses. Elas se caracterizariam, em termosgerais, por um recolhimento do interesse da pessoa comrelação aos objetos externos e um fechamento no mundointerno. Foi do estudo das psicoses que Freud derivou oconceito de narcisismo: toda a energia psíquica estaria vol-tada ao próprio eu. Alguns psicanalistas posteriores a Freud passaram arecorrer ao narcisismo para se referir a outras formas desofrimento psíquico com o qual se defrontavam. Trata-sede pessoas com fortes traços narcísicos que não chegam aromper com a realidade. Lasch observa corretamente comoconsta na história da psicanálise que, sobretudo desde osanos 1950, muitos dos pacientes que chegam aos consul-tórios não parecem se encaixar no modelo freudiano. Elesse queixam de insatisfações difusas, existência amorfa, fútil,vazia, de depressão e alterações bruscas na auto-estima, porexemplo, em vez de ter um quadro sintomático estável. Afalta de lugar na categorização clássica (neuroses e psicoses)fez com que fosse forjado o nome de categoriaborderline.Mas o próprio termo sofreu uma série de mudanças semân-

    ticas, de forma que, do significado de “terra de ninguém”nas fronteiras da neurose e da psicose, ele passou a nomear,hoje, uma forma de adoecimento das fronteiras (limites) doeu. Os “casos-limite” são, hoje, um dos principais objetosde estudo da psicanálise.

    Lasch procura evocar a história deste novo uso do nar-cisismo e, com isso, identificar os traços desta patologiacom aqueles que descreveu na dinâmica cultural ameri-cana. O autor considera que a psicanálise pode ajudar na

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    compreensão dos fenômenos sociais na medida exata emque não tenta fazê-lo diretamente, mas sim quando pro-

    cura criar modelos teóricos para a compreensão de casossingulares. Ao mesmo tempo que, para Lasch, o narcisismo patoló-

    gico informa sobre o narcisismo como fenômeno social, asmudanças ocorridas ao longo do século XX nesta mesmacultura são reconhecidas como causa do aumento de casospatológicos. Cada época criaria suas formas particulares deadoecimento que expressariam, de forma exacerbada, as es-truturas da organização social vigente.

    Tomemos uma passagem na qual ele descreve isso: A psicanálise, uma terapia que teve origem na experiênciacom indivíduos severamente reprimidos e moralmente rígi-dos, os quais precisam chegar a um acordo com um censorinterior rigoroso, hoje se vê cada vez mais confrontada comum caráter caótico e impulsivo. Ela precisa lidar com pa-

    cientes que atuam seus conflitos, em vez de reprimi-los ousublimá-los. Estes pacientes, embora muitas vezes agradá-veis, tendem a cultivar uma superficialidade protetora nasrelações pessoais. Falta-lhes a capacidade de sentir pesar,pois a intensidade de sua ira contra objetos amorosos per-didos, em particular contra seus pais, impede que revivamexperiências felizes ou que guardem na memória. Sexual-mente mais promíscuos do que reprimidos, não obstanteacham difícil “elaborar o impulso sexual” ou abordar o sexocom espírito lúdico. Evitam envolvimentos íntimos, quepoderiam liberar sentimentos intensos de ira (Idem: 62).

    Essa descrição adequa-se de fato aos quadros que des-crevemos como casos-limite. Mas, como veremos adiante,a assimilação de uma modalidade de patologia para descre-ver a cultura de uma época ou país parece ser um procedi-mento falho, por princípio.

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    fase, controlar não apenas o aparelho de produção, mas ademanda de consumo [...]. O efeito geral é o de, seja pormeios anteriores ao ato da produção (pesquisas, estudosde mercado), seja por meios posteriores (publicidade, ma-rketing, condicionamento), retirar do comprador o poderde decisão sobre a compra, para transferi-lo à empresa,onde pode ser manipulado (Galbraith,apud Freire-Costa1984: 150).

    Aqui, a propaganda e o consumo se encontram comoexpressão e produção da subjetividade narcísica. De umlado, há a superabundância de oferta de mercadorias queprometem felicidade, de outro, cidadãos perdendo suasreferências e diante de um mundo complexo que não po-dem compreender e controlar. Acrescento um comentário:é como se houvesse um acionamento do narcisismo porduas vias – um recuo à onipotência infantil, com a ilusãode acesso mais imediato aos prazeres que se busca, e umfechamento narcísico defensivo ante as invasões e riscos davida contemporânea.

    A tese segundo a qual um excesso de produção a serescoada teria criado a cultura do consumo é questionada(como veremos adiante) e, independentemente disso, oreal aumento da produção também não significou o acessoreal de tais produtos à totalidade da população. O mundo

    tal como apresentado pela propaganda, no entanto, repre-senta a possibilidade de se alcançar a felicidade plena como encontro daquilo mesmo que nos faltava. Já não é precisorenunciar ou esperar, basta poder pagar:

    A moderna propaganda de mercadorias e da boa vida san-cionou a gratificação do impulso e tornou necessário parao id desculpar-se por seus desejos ou disfarçar suas propor-ções grandiosas. Contudo, esta mesma propaganda tornouinsuportável o fracasso e a perda (Lasch 1983: 44).

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    Assim, a sociedade torna-se inteira espetáculo, tendocomo único critério de valor a visibilidade e a fama. Por

    meio do consumo, aderimos à promessa de prazer imediatoe por meio da aderência ao consumismo nos condenamos auma insatisfação maior. Se já não bastava a frustração e insa-tisfação à qual – edipicamente – procurávamos nos confor-mar, com as promessas da propaganda temos que nos havercom o reforçamento dos ideais narcísicos que, da mesmaforma, serão frustrados. Mas agora, gerando uma insatisfa-ção maior, com a queda proporcional ao patamar no qualhabitavam nossos ideais. Alguns autores representam estemovimento da seguinte forma: em vez do imperativo supe-regóico que nos impunha a renúncia ao prazer, teríamoshoje um outro imperativo que diz: goze! O gozo aparecehoje inicialmente como uma possibilidade e então passa aser um dever. Aquele que não goza, deve estar doente.3

    Tomemos uma última passagem na qual Lasch conden-

    sa suas teses:Todos nós, atores e espectadores, igualmente vivemos cer-cados de espelhos. Neles, procuramos segurança quanto ànossa capacidade de cativar ou impressionar outras pessoas,ansiosamente procuramos por manchas que possam pre-judicar a aparência que desejamos projetar. A indústria dapublicidade encoraja deliberadamente esta preocupaçãocom aparências [...], um fascículo anunciando conselhosde beleza colocou em sua capa um nu com o título: “suaobra-prima: você” (Idem: 124).

    A seguir, passaremos a percorrer alguns dos destinos dasteses de Lasch sobre a cultura do narcisismo. Vamos fazê-lo por meio de trabalhos de Jurandir Freire-Costa desde osanos 1980, nos quais aquelas teses são mais bem contex-tualizadas do que no próprio livro original, desenvolvidas,discutidas e, possivelmente, superadas.

    3 A psicanalistaMaria RitaKhel trabalhabastante bem essaperspectiva emmuitas de suasobras. Ver, por

    exemplo, Khel &Bucci (2004).

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    2Cultura do narcisismoe trauma

    EmViolência e psicanálise(1984), Freire-Costa faz umaampla apresentação das teses de Lasch.

    Uma primeira crítica que apresenta é a proposição segun-do a qual o modelo do narcisismo social seria o narcisismopatológico, o que seria incongruente. Aquilo que apresentacomo narcisismo social é descrito como um traço étnico da

    cultura americana, um produto da socialização, enquanto otraço psicopatológico significa uma falha no processo de socialização. Não faria sentido falar num grupo social doente.

    Mas são outras duas considerações que vêm ao encontrode nosso interesse: uma relativa à origem do consumismo eoutra relativa ao conceito de narcisismo.

    Baseado nas análises de Jean Baudrillard (1970), Freire-Costa critica a concepção presente em Lasch, segundo aqual o consumismo tornou-se um programa bem-sucedidode produção de consumidores gerado pela produção indus-trial abundante de mercadorias a serem escoadas.

    A análise de Baudrillard empenha-se em desvincularconsumo de abundância de produção e, com isto, desfa-zer o mito de que os meios de produção e a mídia consi-gam criar o desejo e exercer pleno controle sobre ele. Isso

    é exemplificado de forma simples e eficaz: o consumo nãocresce (não cresceu) em ambientes de riqueza generaliza-da, pelo contrário, ele cresce em meio à desigualdade eescassez relativa de bens materiais e culturais. A dimensãodo consumismo em países como o Brasil e noutros paísessubdesenvolvidos deve ser um exemplo irrefutável dissoPor outro lado, é também evidente que nem sempre asações de marketing são bem-sucedidas, e mesmo quando osão, seria preciso explicar caso a caso como e por que isso

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    se deu ou não. Assim, se desfaz a concepção de que o ciclodo comportamento de consumo seja reduzido “à criação

    de um dado produto pela indústria e à criação do desejodeste produto no indivíduo através da publicidade” (Freire-Costa 1984: 152).

    Na análise de Baudrillard, o sistema de consumo ba-seia-se em diversas formas de hierarquização e produção dediferenças entre os indivíduos. A desigualdade intrínsecaao sistema não é ou tende a ser resolvida, mas é transferidapara novos bens e objetos aos quais só uma minoria privi-legiada tem acesso. Assim que a massa passa a ter acesso adeterminado bem de consumo, novas modalidades e qua-lidades são criadas para que se possam restabelecer as dife-renças de acesso de acordo com o poder aquisitivo.

    Podemos pensar que no mundo moderno urbanizado,com a ausência de critérios familiares, títulos de nobreza,tradição etc., os indivíduos passaram a buscar suas iden-

    tidades por meio daquilo que consomem. A sociedade deconsumo teria como um de seus componentes a buscapela construção de subjetividades singulares, o que ocor-re, num aparente paradoxo, no contexto de produçãomassificante:

    A lógica do consumo é a de opor os indivíduos uns aosoutros como elementos de um sistema de signos, onde atotalidade é o que importa e não a necessidade ou a parti-cularidade de cada elemento. É a partir desta lógica que sepode entender aditadura da moda na grande cidade (Frei-re-Costa 1984: 153).

    Aparentemente ligado à tradição estruturalista france-sa, Baudrillard identifica o engate do desejo de consumode determinado produto a um fator relacional. Assim, porexemplo, o desejo de adquirir determinado automóvel émovido pelo valor atribuído a ele nos grupos aos quais per-

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    tancia muito do amor a si próprio e do hedonismo. Trata-seda compreensão do narcisismo como mecanismo defensi-

    vo ante situações traumáticas, em vez da evocação simplesde sua dimensão infantil e constitutiva do eu. A noção de trauma teve uma longa história no pen-

    samento de Freud. Em suas primeiras formulações, otrauma aparecia como causa real da neurose do adulto:aquele que se tornou neurótico necessariamente teria so-frido um trauma na primeira infância, na forma de umasedução por parte de um adulto. O nascimento da psica-nálise se deu justamente quando Freud abandonou a teo-ria do trauma da sedução. Ele percebeu que os relatos deseus pacientes em grande medida não correspondiam acoisas vividas, mas a fantasias e, o que foi mais importan-te, que essas fantasias tinham eficácia real na causa dossofrimentos e sintomas daquelas pessoas. O trabalho dapsicanálise é centrado na realidade psíquica. Ao longo dotempo, no entanto, a noção de trauma foi reaparecendoem outros termos, articulada às novas teorias. A formula-ção recuperada por Freire-Costa é a que Freud apresen-tou em Além do princípio do prazer (1920). Dentro dessaobra, há uma extensa análise sobre as neuroses de guerra,causadas justamente por um trauma. O trauma implicauma invasão pelo ambiente, que ultrapassa as possibilida-des de compreensão e controle da situação pelo eu. Essa

    invasão desperta excitações internas incontroláveis e an-gustiantes. Diante de toda essa desorganização e excesso,o eu procura, defensivamente, fechar-se com relação aomundo externo, num recrudescimento das barreiras queo constituem.

    Na dinâmica mais normal de conflitos psíquicos, pre-dominam o princípio do prazer e os mecanismos de defesaneuróticos, que acabam por levar à repressão e aos seus sub-produtos, os sintomas. Na situação traumática, no entanto, a

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    veria a possibilidade de lidar com o objeto destrutivo, deforma que o eu reage narcisicamente com a tentativa de

    afastá-lo, anular sua existência, evitar toda a forma de con-tato com aquilo que possa evocá-lo. Assim, a chave para entender o narcisismo contemporâ-

    neo não seria a simples busca de prazer ou recuperação daonipotência narcísica infantil:

    O mal-estar da cultura atual não se explica, em nossa opi-nião, por um “excesso qualquer de narcisismo”, ligado àeconomia da experiência de satisfação. [...] O narcisismomoderno é um narcisismoregenerador . O investimentocompulsivo no corpo que presenciamos hoje é uma manei-ra encontrada pelo indivíduo de limitar os efeitos violentosda sociedade de consumo. A devastação da vida privada, tão bem descrita por Lasch,excedeu o que ele pôde supor. Tornando o corpo e o sexoobjetos de consumo, o capitalismo moderno obrigou o indi-víduo a adotar uma “estratégia de sobrevivência narcísica”que pouco tem a ver com o prazer e muito a ver com a dor.O indivíduo moderno é um indivíduoviolentado, antes desernarcisista (Idem: 169).

    O corpo será o local de eclosão desta dinâmica narcísi-ca, quer como imposição de controle e manuseio confor-me modelos culturais, quer como local do adoecimento:

    doenças psicossomáticas, anorexia etc.Longe (dissociadas) desta perspectiva, as promessas dasociedade de consumo são a da liberdade para se ter prazer,todos foram liberados para gozar e quem não o faz deveestar doente. Prometer prazer, naturalmente, é aliar-se aosanseios de todos. Mas há aqui uma idealização das possi-bilidades de obtê-lo, com o conseqüente sentimento de dí-vida, culpa (não ser) de cada um que, humanamente, nãoatinge este grau extremo e contínuo de gozo:

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    Ora, ninguém está à altura deste ideal, por um motivo mui-to simples: ele não é criado para ser alcançado e, portanto,para saciar o prazer dos indivíduos, mas para mantê-los emestado de perpétua insatisfação, que é o combustível doconsumo (Idem, ibidem).

    Padrões de beleza e saúde são produzidos na mesma es-cala que qualquer produto e só os modelos publicitáriosparecem capazes de acompanhar e corresponder a eles.

    A insatisfação do homem urbano origina-se nesta nova

    “doença” da cultura do consumo, ou seja, na convicçãode que seu corpo está sempre aquém do padrão de “nor-malidade” decretado pela publicidade. Donde a aparên-cia religiosa que os exercícios de saúde e bem-estar apre-sentam (Idem: 181).

    Concluindo, Freire-Costa nos proporciona elementosvaliosos para o refinamento da idéia de cultura do narcisis-

    mo. Ele nos leva a conceber que, em termos psicanalíticos,seria mais preciso denominar esta cultura de “traumática”,mas a denominação “narcísica” mantém seu valor, desdeque nos demos conta da medida de violência e defesa en-volvida nela.

    Outro psicanalista brasileiro contemporâneo discute aopção por denominar nossa cultura de narcísica. Luís Cláu-dio Figueiredo, em “Modernidade, trauma e dissociação”,

    reconhece o valor desta via interpretativa, mas, buscandomaior precisão teórica, diz considerar que o funcionamen-to de uma sociedade superindividualista seria mais bemdescrito como esquizóide. O narcisismo se caracterizariapor uma expansão do eu, em indiferenciação com tudo oque o cerca. A base dessa consideração concorda com aanálise de Freire-Costa:

    A ameaça da autodestruição da humanidade cedeu lugara uma cultura do individualismo esquizóide na qual, en-

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    tre mortos e feridos, todos nos salvamos, cada um na sua enada entre nós (Figueiredo 2003: 53).

    Como uma das mais primitivas formas de lidar com amassa indiferenciada de estímulos oriundos do ambiente,a mente mobiliza mecanismos de dissociação, produzin-do diferenças primárias e radicais (bom/mau, dentro/fora,eu/não-eu). O eu torna-se encapsulado e apático. Depoisda ruidosa histeria no início do século XX, teríamos hoje asilenciosa frieza e tédio irremediável produzida pela mobi-lização de tais mecanismos de defesa ante o traumatismo aque estamos expostos.

    Embora as manifestações contemporâneas, como o con-sumismo, o culto ao corpo e à celebridade, tenham grandevisibilidade, manifestações menos ruidosas e muito sofridasdizem respeito ao tédio, à depressão, à incapacidade de sentirou manifestar afeto. Essas formas são freqüentemente maisdisfarçadas sob o aspecto de uma aparente normalidade.

    3Modos contemporâneosdo consumo

    Vinte anos depois, em 2004, Freire-Costa voltou a tratardo tema, em termos ainda mais complexos, emO vestígio ea aura. Corpo e consumismo na moral do espetáculo. A pri-

    meira observação que faço é a de que nesta reflexão maisrecente sobre contemporaneidade e consumo, o termo“narcisismo” como referência desapareceu. Os trabalhosde Lasch são evocados numa nota de rodapé e, apoiadoneles, Freire-Costa justifica a formulação da expressãoper-sonalidade somátic como mais expressiva sobre o mundocontemporâneo.

    No capítulo que mais nos interessa aqui, chamado “De-clínio do comprador, ascensão do consumidor”, o autor

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    identifica como as principais preocupações da cultura con-temporânea o culto ao corpo e a violência generalizada.

    A tese clássica sobre a origem desses dois fenômenos éapresentada com a consideração de que ela precisa ser reti-ficada. O crescimento exagerado da cultura capitalista dis-solveu as referências da vida social e as substituiu por umregime de consumismo hedonista e narcísico. Essa seria aorigem do culto ao corpo – como fascínio pela imagem epelos ideais estéticos da moda – e da violência, por partedaqueles atingidos pelos apelos da publicidade, mas semacesso ao consumo.

    A tese que vimos em Lasch, segundo a qual o consumis-mo teria nascido por uma necessidade da indústria dianteda necessidade de escoamento da abundância e excesso daspossibilidades de produção, é retomada, agora pela análisede Hannah Arendt, em A condição humana (2005). Comela, a tese parece mais elaborada que em Lash. O aumento

    da produtividade teria transformado o trabalho em labor. Osentido disso, em termos breves, é que a meta da produçãodeixou de ser produzir e passou a ser vender. Freire-Costasintetiza assim a concepção de Arendt:

    Na visão dohomo faber , a natureza bruta deveria ser ma-nipulada para dar origem a objetos que deixassem a marcado engenho humano no mundo [...]. A vitória doanimallaborans ou do consumidor varreu da superfície social estemandamento prático. A utilidade deixou de ser um fim emsi, ou seja, deixou de ser o valor que legitimava o esforçohumano para fabricar artefatos que sobrevivessem ao artífi-ce. No lugar, diz Arendt, surgiu uma concepção de vida naqual a utilidade se tornou serva da felicidade (Freire-Costa2004: 134).

    A quantidade de prazer e dor que se pode extrair de cadaexperiência passou a ser um critério primário de valor.

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    Reconhecendo o valor das formulações de Arendt, o autorvolta a criticar, no entanto, o modelo da criação de demandacriada pela necessidade de escoamento do excesso de produ-ção. Recorrendo uma vez mais a Baudrillard, é reafirmadaa tese de que o consumo seria um modo moderno de lidarcom a necessidade anterior que os homens teriam de marcaruma diferença social. O consumo aparece como forma demarcar a desigualdade social por meio da suposta igualdadede oportunidades e acesso aos bens de consumo.

    Tanto em Arendt quanto em Baudrillard, a dinâmica do

    consumo parece condenar as pessoas a estarem continua-mente insatisfeitas.Freire-Costa avança na sua exposição de concepções rela-

    tivas ao consumo justamente pela via da insatisfação, recor-rendo agora ao sociólogo Collin Campbell – no livro A éticaromântica e o espírito do consumismo moderno (2001). Comoo título do livro sugere, o autor está se referindo e contrapon-do às teses clássicas de Weber sobre o sujeito moderno.

    Campbell retroage o nascimento do consumismo emdois séculos, com relação aos autores que temos visto. Bemantes da explosão da produção em massa no início do sécu-lo XX, já desde o século XVII, podemos identificar a produ-ção e consumo de produtos que poderiam ser consideradossupérfluos.4 Como reação à moral protestante, tão rígidae voltada para a acumulação, uma onda “sentimentalista”

    teria se afirmado. O homem sensível vive num estado deinsatisfação que, segundo Campbell, anseia por manter.Isso explicaria a procura por objetos que se tornam obso-letos quase instantaneamente. Numa inversão do que secostuma considerar:

    A insatisfação é o fim e os objetos os meios adequados a estefim. [...] o que importa, nos produtos industriais, é a suarenovabilidade. A insatisfação investe no que é descartável,porque este investimento garante a sua própria reprodução.

    4

    Conferir tambémStearns (2001).

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    A afinidade eletiva entre sentimentalismo e consumismoconsistiria no fato de oindivíduo desejar a própria insaciabi-lidade emocional (Freire-Costa 2004: 145).

    A valorização aparentemente paradoxal da insatisfaçãoteria derivado da transição de valor: em vez de buscar asatisfação, passa-se a buscar prazer. A diferença é grande A satisfação implica o encontro ou reencontro de certoequilíbrio, na adequação daquilo que foi encontrado comaquilo que foi almejado. O prazer, por sua vez, é uma qua-

    lidade de experiência, ele é instantâneo e transitório pordefinição. O consumo cai como uma luva para esta formade sensibilidade: cada produto é uma promessa de gozoduplo, com seu encontro e com a decepção que se podeantecipar pelo desgaste de sua possibilidade de desfrute.

    De minha parte, acrescentaria que esta análise de Camp-bell aproxima o consumidor de sensibilidade romântica aohistérico. Ele deposita sua expectativa de felicidade no de-sejo por certo objeto mas, no fundo, teria certa consciênciado engano desta promessa. O encontro com o objeto de-nunciaria o engano, daí a necessidade de postergar ao in-finito a satisfação, deslocando indefinidamente os objetosvislumbrados como capazes de obturar a falta.

    Para desenvolver ainda mais esta vertente da sensibili-dade, Freire-Costa evoca a obra clássica de Richard Sen-

    net:O declínio do homem público(1995). Sennet trabalhacom a idéia de que o homem moderno foi mergulhandocada vez mais em sua intimidade, uma vez que foi per-dendo as referências externas tradicionais. Essa intimidadedesvinculada, no entanto, torna-se o lugar de ansiedadese incertezas. O consumo apareceria neste contexto comouma forma de expressão e projeção de seu mundo interior.Por meio dos objetos adquiridos poderia se materializar asingularidade diferenciada da pessoa.

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    de pessoas e lugares, assertivo, superficial no contato etc. Aatitude requerida seria como a do turista.

    A questão da autoridade estaria atrelada ao “aparecermoral”. A crise da tradição acaba levando a tomar o pre-sente como única referência, deixando de lado o passado eperdendo a perspectiva de futuro. No presente, a autorida-de é encarnada por aquele que tem sucesso: a celebridadedo momento.

    A imagem do corpo estaria, hoje, submetida à moral doespetáculo. O sucesso depende de certos atributos corpo-rais. Ante o fascínio pelas celebridades e sem acesso a seruma, o que resta como acessível é procurar parecer-se comelas. Ocorpo-spetáculo tomou o lugar do mundo interno; asensação tomou o lugar do sentimento:

    Na economia dos sentimentos, o bom objeto é o que resisteao tempo e estabiliza o prazer; na das sensações, é o queexcita,hic et nunc, os sentidos, despertando o corpo parauma nova prontidão prazerosa: drogas psicoestimulantes,medicamentos, alimentos energéticos, tônicos, hormônios,próteses orgânicas e mecânicas [...] (Idem: 168).

    É nesse contexto que a violência também pode flores-cer. Numa expressão especialmente feliz, o autor enunciaque “onde não há totem, não há tabu” (Freire-Costa 2004: 175). Sob este regime, desgasta-se o contrato social e qual-

    quer limite ao exercício dos impulsos sobre os outros. Tra-ta-se de um regime de terror. Assim, o consumo passou a assumir o sentido tão cri-

    ticado por vários dos autores citados, incluindo Lasch. Oconsumismo não foi a causa da degradação do tecido sociale da aparente volta à barbárie, tal como assistimos, mas setornou uma via de expressão privilegiada da moral das sen-sações e do entretenimento.

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    4Modernidadee contemporaneidade

    É clássico que se oponham sociedades tradicionais e mo-dernas. As primeiras seriam aquelas nas quais os esquemascoletivos e sociais dariam conta da experiência humana.O mito se impõe à experiência singular. As sociedades mo-dernas são aquelas advindas do fim do Renascimento e querompem com as tradições. Nelas, há o surgimento do su-

    jeito moderno, alguém que se crê livre, centro do mundo,dono de um mundo interno rico e único, alguém que se vêcomo prestador de serviço e fonte de força de trabalho, mascom direito a uma vida privada inviolável.

    Acrescentamos aqui que a contemporaneidade pareceter levado ao extremo a experiência moderna, de forma quenão podemos ainda ter uma noção precisa sobre se aindapertencemos àquele campo (como na expressão Alta-Mo-dernidade) ou se rompemos com ele (como na expressãoPós-Modernidade), mas ainda não sabemos como denomi-nar de forma própria tal experiência.

    De toda maneira, mesmo na compreensão que privilegiea continuidade levada a extremos, determinadas formas deexperiência têm se dado a nós a ponto de mecanismos dedefesa extremamente primitivos do funcionamento mental

    serem precipitados e tornados correntes. É a isto que serefere a expressão “cultura do narcisismo”.Em alguns trabalhos que tentam pensar a contempo-

    raneidade parece haver o pulo de um degrau nesta histó-ria. O mundo contemporâneo (freqüentemente datadode meados do século XX) é apresentado como aquele queteria rompido com a ordemtradicional moderna, trazidorecentemente perda de referências, gerado uma angústiaextrema às pessoas etc.

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    Por tudo o que trabalhamos até aqui, creio que se podever que o mundo contemporâneo não sucede uma socieda-

    de tradicional cheia de certezas e estabilidade, muito pelocontrário. A Modernidade – do século XVII a meados doséculo XX, ao menos – representou a convivência com aperda das referências tradicionais (medievais). A ciêncianão é o mundo das certezas, mas o do melhor que pudemosconhecer até então, sempre ante a possibilidade de que no-vos fenômenos e experimentos nos levem a rever tudo o queconsiderávamos assentado. A democracia identicamente éo reino do conflito e da alternância no poder. O sujeito nãopredestinado é aquele a quem se apresenta o dever de estarsempre se desenvolvendo. Tudo na Modernidade é movi-mento e instabilidade: ela é orientada para o futuro5. Nestesentido,uma cultura do narcisismo não é aquela na qualas referências sólidas acabam de se perder, mas aquela naqual a instabilidade de longa data torna-se insuportável eleva à busca de refúgios que possam parecer mais sólidos eseguros. Como vemos com facilidade, estamos numa épo-ca de retorno de fundamentalismos e urgência em respon-der a necessidades primárias: saúde, emprego, segurança.Diga-se ainda que talvez mesmo as sociedades consideradastradicionais não tenham sido assim tão estáticas, mas só ad-quiram esta imagem sob nossa perspectiva.

    Para apoiar essas hipóteses, tomemos brevemente a ar-

    gumentação de Bauman emModernidade líquida (2001).Para ele também, a Modernidade pode ser pensada comoum processo de dissolução (liquefação) desde o início. Nomundo contemporâneo, a aceleração e dissolução teriamchegado a seu limite natural: a instantaneidade de acesso atudo o que se queira e a obsolescência igualmente instan-tânea dos objetos ou soluções encontrados.

    O processo de modernização teria criado uma distânciacada vez maior entre aquilo que se colocou como infra-

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    Conferir Santi(2003).

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    poraneamente por um movimento vazio de objeto e que serevela em sua compulsividade pura.

    Unindo agora a reflexão de Freire-Costa àquela sobrea Modernidade podemos nos reencontrar com a idéia deque, hoje, os comportamentos de consumo estão articu-lados à crise da Modernidade. Não se trata aqui simples-mente de uma dinâmica de oposição entre tradição e con-temporaneidade, mas de um movimento em três tempos:tradição, Modernidade e contemporaneidade. Bauman fazuma articulação bastante interessante entre esses tempos, adinâmica do desejo e o consumo:

    A história do consumismo é a história da quebra e descartede sucessivos obstáculos “sólidos” que limitam o vôo livreda fantasia e reduzem o “princípio do prazer” ao tamanhoditado pelo “princípio da realidade”. A “necessidade”, con-siderada pelos economistas do século XIX como a própriaepítome da “solidez”– inflexível, permanentemente cir-

    cunscrita e finita – foi descartada e substituída durante al-gum tempo pelo desejo, que era mais “fluido” e expansívelque a necessidade por causa de suas relações menos lícitascom sonhos plásticos e volúveis sobre a autenticidade deum “eu íntimo” à espera de expressão. Agora é a vez dedescartar o desejo. Ele sobreviveu a sua utilidade: tendotrazido o vício do consumidor a seu Estado presente, nãopode mais ditar o ritmo (Bauman 2001: 89).

    Do consumo direcionado às necessidades, passou-seao consumo direcionado à satisfação de desejos de umsujeito moderno, rico em fantasias em seu mundo in-terno, e, no mundo contemporâneo, o movimento teriasido reduzido a seu elemento mínimo: a compulsividadepura, segundo o modelo dos vícios. Em vez de sujeitos embusca da satisfação de determinadas fantasias (em parteaté realizáveis, ainda que não da forma exata que se es-

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    perava), temos a crua busca por prazer que, na qualidadede sensação, é passageiro e requer contínua alimentação.

    Não estamos indo a lugar algum, e isso só faz com queaceleremos a marcha esperando extrair dela algo comouma realização.

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