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30 • Cidades • Brasília, quarta-feira, 27 de julho de 2011 • CORREIO BRAZILIENSE

Depois de o CCoorrrreeiioo contar sua história, rapaz tetraplégico viajou aos Estados Unidos para se submeter atratamento especializado. Cinco anos após o acidente, ele refaz planos e comemora as pequenas conquistas

»MARCELOABREUESPECIAL PARA O CCOORRRREEIIOO

Há histórias que são construí-das com tanta determinaçãoque chegam a doer emocionale fisicamente. Esta é uma de-

las. Um mergulho malsucedido numapiscina alterou para sempre os rumosda vida. Fez o personagem desta repor-tagem rever valores, reconstruir etapase refazer todos os sonhos. E refazer so-nhos é, provavelmente, a parte mais di-fícil da história de cada um. FábioGrando ganhou uma segunda chance.E agarrou-se a ela com intensidademaior que a força de suas pernas e deseus braços. Cada movimento hoje écomemorado como tombo de bebêque começa a engatinhar.

Em fevereiro de 2010, o Correiocontou, com exclusividade, o dramade Fábio. Quatro anos antes, aos 21,ele ficara tetraplégico, depois de pularde ponta. Era Copa do Mundo. Brasil eAustrália faziam a segunda partida. Areunião era na casa de um amigo, noLago Sul. A partida prosseguia. Fábioresolveu entrar na piscina. A festa es-tava apenas começando. “Só me lem-bro do barulho da minha cabeça nofundo.” A água ficou escura. Era o san-gue dele que jorrava.

Os amigos chamaram o Corpo deBombeiros. Imobilizado, Fábio foi leva-do para o Hospital de Base (HBDF). Lá,encontrou os pais, desesperados. Sou-be que havia tido uma lesão medular.Esperou por quatro dias para fazeruma cirurgia. Não conseguiu. Uma fe-rida enorme (escara) se alastrava pelascostas. De lá, seguiu para o Hospital Sa-rah do Aparelho Locomotor, na Asa Sul,para tentar, finalmente, ser operado.

Lá, no Sarah, a certeza que lhe inva-diu a alma: ficara tetraplégico. O mun-do desabou. Era a pior notícia que ou-vira nos seus 21 anos de vida. Esperoupor 22 dias pela cirurgia. Colocaram-lhe quatro parafusos no pescoço e umaplaca de titânio para fixar a vértebra.

Ficou ali por quatro longos meses, parareabilitação. “Eles me ensinaram a vi-ver numa cadeira de rodas”, conta.

No meio desse processo, a mãe deFábio, Solange Grando, que contava àépoca 40 anos, saudável, sem históricode doença e que deixara tudo para cui-dar dele integralmente, sentiu-se mal.Desmaiou no quarto onde o filho sómexia o pescoço. Nem gritar Fábio pô-de. “Só ouvi o baque dela no chão.”Uma enfermeira passava no local. So-correu-a. Solange foi levada ao Institu-to do Coração (Incor-DF). Sofrera seteparadas cardíacas. Fez cateterismo.Causa do infarto? Os médicos apontamo estresse em que se encontrava. Resis-tiu milagrosamente, sem sequelas. So-breviveu para cuidar de Fábio.“Se eu ti-vesse tido o infarto em casa ou na rua,provavelmente não teria sobrevivido.Só me salvei porque estava dentro dohospital e fui socorrida imediatamen-te”, resigna-se.

DependênciaPassaram-se os anos. Em 2008, sen-

tado numa cadeira de rodas, todoimobilizado, o rapaz tetraplégico for-mou-se em jornalismo. Chegou em-purrado pelos amigos. A vida precisa-va seguir, mesmo daquela forma, mes-mo mexendo apenas a cabeça. Ele sa-bia disso. “Passei a ser dependente detudo. Meu pai, há quatro anos, todasas madrugadas, acorda para me mu-dar de posição na cama. Isso não é jus-to com ele”, disse ao Correio, em feve-reiro do ano passado.

Fábio queria chegar a San Diego,nos Estados Unidos. Lá, soube que ha-via um tratamento de fisioterapia ex-clusivamente para pacientes com le-são medular. Era o Project Walk — ba-seado na repetição dos exercícios, emaparelhos desenvolvidos para cada ti-po de lesão. Mas era caro chegar ali.Ano passado, pelos seis meses (tempomínimo de tratamento), ele teria quedesembolsar U$ 55 mil (R$ 110 mil). O

pai, proprietário de um pequeno self-service no Sudoeste, não teria comoarrumar a quantia.

Depois que a história de Fábio foicontada pelo Correio, a ajuda veio detodos os lados. “Teve gente que fez de-pósito de R$ 1 e de R$ 5 mil”, conta Fá-bio. “Um comerciante chegou aqui emcasa com um envelope e havia dentrodele 8 mil euros”, lembra, ainda emo-cionada, a mãe. Ele ainda disse por queguardava o dinheiro: “Era para umaeventual doença na minha família”.

Os amigos se mobilizaram na cam-panha Bora, Fabito! . Teve festival detortas, artistas da cidade se juntarampara shows beneficentes, vendas decamisetas. Em 11 meses, a famíliacontabilizou R$ 80 mil. “Se não fosseessa ajuda, nunca teria chegado lá.Sou grato a todas as pessoas”, diz ele.

Para completar a quantia, a mãe ven-deu o carro e juntou com as econo-mias da família, que havia cortado to-das as despesas.

SuperaçãoDezembro de 2010. Fábio, o pai, a

mãe e o irmão caçula embarcaram pa-ra os Estados Unidos. Alugaram umpequeno apartamento em Vista, a70km de San Diego. E lá começa a se-gunda parte desta história. Fábio par-tiu em busca de qualquer indepen-dência. Mesmo que fosse apenas se vi-rar na cama nas madrugadas, sem terque acordar o pai.

Os seis meses nos Estados Unidosviraram sete. A mãe e o irmão ficaramcom ele em San Diego. O pai voltou,para tocar o comércio da família. A fi-sioterapia foi intensa — três vezes porsemana, durante três horas a cada dia.“Era muito pesado. No começo, eu ia àtarde para o Project, mas, no dia se-guinte, dormia a manhã toda, de tãocansado”, lembra.

Na fisioterapia americana, Fábioandou, em esteiras preparadas. Eracomo se tivesse engatinhando. Foi amelhor sensação dos últimos cincoanos. “Aqui, ficava em pé com talas.Lá, fiquei sem talas, no simulador decaminhada.” E mais um aprendizado:“Precisei preparar o pensamento.Meu cérebro desaprendeu a andar. Ti-nha que ter concentração total”. Ebrinca: “Saía de lá com mais dor decabeça do que nas pernas”.

Nos sete meses nos Estados Uni-dos, Fábio deparou-se com um paíspreparado para receber e convivercom gente que tem pernas e braçosemprestados. “Tô em cadeira de rodashá cinco anos. Lá, pela primeira vez,não precisei empinar minha cadeirapra nada. Todos os lugares são adapta-dos. As vagas para deficientes são res-peitadas sem discussão. Nos bancos, aadaptação é tão grande que os cadei-rantes nem precisam de fila especial.”

A mãe intervém: “Isso é respeito”.De volta a Brasília há uma semana,

ao apartamento alugado onde a famíliamora no Sudoeste, Fábio continua nasua cadeira de rodas. Qual o saldo daviagem? “Voltei mais independente.Hoje, faço algumas coisas sozinho. Sin-to meu abdômen e os meus músculos,o que me dá mais equilíbrio. Consigopassar da cama para a cadeira commais facilidade.” E comenta: “Algunsamigos me viram na cadeira e ficarammeio decepcionados. Pensaram que euvoltaria andando. Eu sempre soubeque isso não ia ser possível, mas hojeme sinto mais confiante, mais dispostoe até mais forte”, alegra-se. Fábio segui-rá com os exercícios de fisioterapia nu-ma academia no Núcleo Bandeirante.É lá que foi inaugurada, há poucos dias,uma filial do ProjectWalk no DF.

A proprietária, Karen Sakayo, 23anos, ficou paraplégica depois de cairdurante uma apresentação circense dalira (“bambolê suspenso”), de uma al-tura de 6 metros, quando a corda serompeu. Ela foi paciente do Project nosEstados Unidos e trouxe a técnica paraBrasília. Os fisioterapeutas que lá tra-balham foram treinados em San Diego.É lá que Fábio seguirá suas atividades.E assim poderá tocar seus novos proje-tos. Com gosto de vida, ele diz: “Querovoltar a trabalhar. Posso fazer algumacoisa com jornalismo de internet. Que-ro dar cada vez menos trabalho à mi-nha família”. O pai, Éder Grando, 48anos, ouve. Emociona-se em silêncio. Amãe serve um copo com água para o fi-lho. E também se comove.

A vida e os sonhos de Fábio seguem.Ele quer mais. E tem direito de querermais. Um pulo numa piscina modifi-cou rumos. Alterou todos os sentidos.Mas ele os reinventou. A vida é sempreuma grande reinvenção. E esse talvezseja o segredo de viver. Hoje, quarta-feira, 27de julho, ele tem tudo para es-tar mais certo disso. Completa 27 anos.Uma vida inteira o espera pela frente.Parabéns, Fabito!

Conheçamais//Fábio conta suas histórias no blog: fabiogrando.blogspot.com

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E Fábioreinventoua vida...

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GustavoMoreno/CB

/D.APress

Fábio: “Hojemesintomais confiante,

mais disposto eatémais forte”