CORRUPÇÃO EMPRESARIAL NO BRASIL REPUBLICANO: A CORDIALIDADE
BRASILEIRA NAS RELAÇÕES ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO
Anna Flávia Arruda Lanna Barreto1
Natália Silva Teixeira Rodrigues de Oliveira2
Resumo:
A corrupção, para além do aspecto penal, implica em práticas antiéticas com o objetivo de
corromper alguém ou obter favores de alguma pessoa por meios ilícitos. Seu uso não se
restringe às esferas política e econômica, ele está inserido em práticas culturais cotidianas que
denigrem as relações sociais e legitimam a tolerância a determinados casos de corrupção. Esta
pesquisa objetiva estabelecer uma relação entre a corrupção empresarial no Brasil
republicano, como os casos das empresas envolvidas em grandes obras de infraestrutura,
transporte, construção civil e extração de recursos naturais e minerais, e a dita “cordialidade”
do brasileiro, expressão cunhada por Sérgio Buarque de Holanda. A abordagem pretende
verificar as origens das práticas de corrupção no Brasil, e seus efeitos para a sociedade
brasileira tanto na esfera jurídica como na esfera cultural, com ênfase no período pós 1964. A
metodologia adotada será a pesquisa bibliográfica sobre o tema da corrupção no Brasil
republicano, buscando mapear as suas origens e causas. São resultados esperados da pesquisa
a explicação dos condicionantes que moldam o “jeito peculiar” do brasileiro tratar a corrupção
e tornam imprecisos os limites entre o público e o privado nas inter-relações sociais, políticas
e empresariais.
Palavras-Chave: corrupção, Brasil Republicano, cultura da cordialidade, empresa.
Abstract:
Corruption, beyond the criminal aspect, involves unethical practices with the aim of
corrupting someone or obtaining favors from someone through illicit means. Its use is not
restricted to the political and economic spheres, it is embedded in daily cultural practices that
denigrate social relations and legitimize tolerance to certain cases of corruption. This research
aims to establish a relationship between corporate corruption in republican Brazil, such as the
cases of companies involved in major infrastructure works, transportation, construction and
extraction of natural and mineral resources, and the so-called "cordiality" of the Brazilian, an
expression coined by Sérgio Buarque de Holanda. The approach seeks to verify the origins of
corruption practices in Brazil, and its effects on Brazilian society both in the legal sphere and
in the cultural sphere, with emphasis in the period after 1964. The methodology adopted will
be the bibliographical research on the subject of corruption in Brazil Republican, seeking to
map its origins and causes. The expected results of the research are the explanation of the
constraints that shape Brazil's "peculiar way" to treat corruption and make the boundaries
between the public and the private in the social, political and business interrelationships
imprecise.
1 Doutora em História pela UFMG, professora adjunta do Centro Universitário UNA, pesquisadora do Projeto
República: núcleo de pesquisa, documentação e memória da UFMG. E-mail: [email protected]. 2 Doutora em Direito pela UFMG, professora adjunta do Centro Universitário UNA. E-mail:
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Key-words: Corruption, Brazil Republican, culture of cordiality, enterprise.
1 INTRODUÇÃO
Uma breve análise do processo civilizatório brasileiro permite-nos observar que as
nossas estruturas políticas e sociais tiveram sua formação viciada por práticas como o
patrimonialismo, o coronelismo e o clientelismo, nas quais os políticos exerciam práticas de
favorecimento de determinadas empresas ou candidatos em troca de apoio para as suas
campanhas. Esta situação nos remete as causas da corrupção no Brasil. Estudiosos e
pesquisadores do assunto defendem diferentes versões para esta questão. Uma das mais
aceitas é a nossa herança patrimonialista ibérica.
Segundo Raimundo Faoro, no patrimonialismo não há distinção, por parte dos líderes
políticos, entre o patrimônio público e o privado, tese esta também defendida por Sérgio
Buarque de Holanda. Mediante essa prática, os representantes do legislativo brasileiro
consideram os cargos políticos e o Estado como patrimônio privado, haja vista a eleição
ocorrida no dia 17 de abril de 2016, na Câmara dos Deputados, em que parlamentares
justificaram seus votos a respeito do impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff,
baseados nos seus familiares e amigos, utilizando argumentos que nada se relacionavam ao
caso em julgamento. Práticas como esta permitem que parentes de políticos, sem qualquer
preparo ou mérito, sejam escolhidos para cargos de confiança na administração pública ou
que empresas financiadoras de campanhas eleitorais vençam licitações públicas. Não são
raros os políticos que “herdam” de seus antepassados o prestígio político e as famílias vão se
perpetuando no poder. Como exemplo, pode ser citada a família Andrada que, desde José
Bonifácio de Andrada e Silva, ou seja, desde o início do século XIX, possui vários membros
ocupando cargos na política brasileira.
O problema da pesquisa se coloca na verificação das origens das práticas de corrupção
no Brasil e seus efeitos para a sociedade brasileira, tanto na esfera jurídica como na esfera
cultural. Trata-se de uma pesquisa oriunda de um projeto de iniciação científica, levada a
efeito numa instituição de ensino superior em Minas Gerais, que objetiva analisar o fenômeno
da corrupção durante o período republicano brasileiro bem como a legislação interna relativa
aos crimes de corrupção.
A estratégia adotada para realização da pesquisa é baseada na retrospectiva histórica
do fenômeno da corrupção no Brasil, a fim de explicar a relação entre os fatores sociais,
políticos e culturais que condicionaram a maneira peculiar do brasileiro de tratar a corrupção
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e a formação do estado nacional brasileiro, tendo, como consequência, a indistinção entre o
público e o privado nas inter-relações sociais e políticas.
Com a finalidade de esclarecer as práticas administrativas corruptas adotadas ao longo
do período republicano brasileiro e seus reflexos sociais e culturais na sociedade, o grupo,
formado pelas autoras e pelos estudantes selecionados optou por focalizar a pesquisa nas
relações entre o público (o Estado, os políticos) e o privado (as grandes empresas), de acordo
com a bibliografia existente. O período da análise se dará a partir da instalação do Regime
Militar Brasileiro até os dias atuais, aludindo aos casos envolvidos na “Operação Lava Jato”.
A escolha desse período procurou associar dois fatores: conhecimento das pesquisadoras e
período auge de crescimento e progresso financeiro das principais empreiteiras brasileiras.
A corrupção no Brasil mostra-se como um flagelo social que serve de agente de
disseminação da desigualdade social e da crise econômica brasileira. Atualmente é notório,
entre os pesquisadores, a visão de uma crise de caráter da sociedade civil e política brasileira,
sobretudo nos altos círculos da administração pública, frequentemente denunciados pelo
Ministério Público em escândalos de corrupção. São tantos os casos de envolvimento dos
parlamentares e grandes empresários brasileiros em casos de desonestidade e de atentados
contra o erário, que a ética passa ser a exceção à regra. Nesse sentido, é de se compreender
que, se essa situação perdurar, o futuro do nosso país e das próximas gerações estará
comprometido, não só economicamente, mas, sobretudo, do ponto de vista ético e moral.
A relevância dessa pesquisa está na verificação de que o comportamento corrupto
daqueles que se relacionam com o Estado brasileiro, nas suas diversas esferas, está na própria
formação política do Brasil, pautada no patrimonialismo e nas relações de cordialidade do
brasileiro. Esta análise, em especial a identificação dos fatores culturais e morais que
condicionam sua frequência e assiduidade nas esferas públicas e privadas, poderá fomentar
questionamento crítico e ético das nossas ações como cidadãos de direitos e deveres,
compromissados com a efetivação dos direitos fundamentais e a conquista da cidadania plena.
O problema da pesquisa é a verificação das origens das práticas de corrupção no
Brasil, que se baseiam nas relações “cordiais” entre o âmbito público (o Estado, os políticos) e
o privado (as empresas), bem como os seus efeitos para a sociedade brasileira republicana
tanto na esfera jurídica como na esfera cultural e moral. Nossa hipótese baseia-se na herança
patrimonialista brasileira que prevê a incorporação do público pelo privado, tornando possível
práticas administrativas e empresariais desonestas que atentam contra o erário público
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nacional. A continuidade e a intensidade dessa prática, apesar de comprometer o futuro
econômico e moral das próximas gerações, encontra respaldo na maneira peculiar do
brasileiro em omitir “pequenos” atos de corrupção e condenar a desonestidade alheia.
2 CORRUPÇÃO, PATRIMONIALISMO E COMÉRCIO NA AMÉRICA
PORTUGUESA
De acordo com uma pesquisa desenvolvida pela ONG Transparência Internacional
(TI), no ano de 2015, o Brasil ocupa o 76º lugar, com uma nota de 38 pontos, no ranking
mundial que analisa a percepção da corrupção em 175 países. Segundo essa pesquisa, o Brasil
caiu sete posições no ranking global, pois, em 2014, ele ocupava a posição 69º, com 43
pontos. As notas dadas aos países analisados vão de 0 a 100, ou seja, quanto maior a nota do
país, mais transparente ele é. Segundo essa classificação, a Dinamarca, que teve a nota 91, é
considerado o país mais transparente e menos corrupto, enquanto a Somália, com a nota 8, é
considerado o país mais corrupto do ranking global.
O citado relatório registra que os países com maior desempenho no ranking
apresentam um nível elevado de liberdade da imprensa, com efetivo acesso da população à
informação sobre o orçamento público e sistemas judiciários independentes de outras esferas
governamentais. Já os países com os menores desempenhos no ranking têm, como
características, a existência de guerras e conflitos, governos frágeis e com baixa capacidade de
planejar, formular, programar políticas e cumprir funções. Este dado nos remete a uma
questão histórica: estaria o fenômeno da corrupção diretamente relacionada as relações
público/privada desenvolvidas nas esferas política, econômica e social de um país ao longo de
sua história?
Tendo em vista que a história se constrói, sobretudo, por processos de longa duração,
que permitem identificar permanências e rupturas em relação ao passado e demonstrar o
quanto estas são fundamentais para a formação cultural de uma sociedade, é possível
identificar que as práticas de corrupção, que estão presentes em todas as esferas da sociedade
brasileira, não são recentes, mas, fazem parte de uma formação cultural, que a acompanha
desde o período colonial. Já ensinava Fernand Braudel que há uma diferença substancial entre
o “acontecimento” e a “ocorrência”, na medida em que o primeiro é único, individual, e
somente a segunda pode se repetir até tornar-se generalidade, estrutura, na medida em que
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“invade a sociedade em todos os seus níveis, caracteriza maneiras de ser e de agir
desmedidamente perpetuadas (BRAUDEL, 2005, p. 17)”. Portanto, os elementos, que
identificam uma sociedade, não se constroem em processos de curta duração. Cultura é uma
construção humana, que exige tempo para se consolidar, para se tornar um costume social e
ser absorvido como identidade de uma determinada sociedade. A compreensão de que a
cultura se forma por meio das estruturas de longa duração é imprescindível para que as
análises muito pontuais e isoladas não se tornem imposição.
Nesse sentido, ao analisarmos a história do Brasil, verificamos que a corrupção no
âmbito político é uma prática que data o período colonial, quando das relações dos primeiros
colonos com a Metrópole portuguesa. Segundo o historiador José Murilo de Carvalho (2009,
p. 18) “a colonização foi um empreendimento do governo colonial aliado a particulares”.
Raimundo Faoro (2001, p. 125) assim descreve a “empreitada” brasileira:
A aliança entre a atividade econômica do rei e a dos comerciantes declara-se, de
imediato, consorciando a força militar das armadas com a exploração comercial. O
monopólio real não se exerceu diretamente, mas mediante concessão: o rei
permaneceria comerciante, sem envolvimento imediato no negócio, mas vigilante,
com o aparelhamento estatal a serviço de seus interesses.
A colonização na América portuguesa baseou-se, como na própria Metrópole, na
relação com a terra, com contornos mais específicos, mas, sem dúvida, voltada para a lógica
fiduciária, já que era a propriedade rural aquela que dava prestígio significativo. Todavia,
desde os primórdios, a relação entre patrimonialismo e comércio também era estreita,
identificando que a empresa mercantil na colônia tinha, como base, a terra e o comércio, nem
que seja o de escravos. João Fragoso, Manolo Florentino e Sheila de Castro Faria (1998, p.
44) exemplificam tal relação:
Nesse sentido, não é de se estranhar que o comércio tenha servido de base para a
formação de famílias senhoriais e, portanto, para o ingresso no topo da hierarquia
colonial. A esse respeito, aliás, é exemplar a trajetória da família Godinho Rosado,
senhores de engenho no recôncavo carioca. A primeira notícia que temos de Pero
Godinho Rosado, patriarca da família, é de cerca de 1650, quando ele enviou uma
procuração para a realização de negócios no Congo e em Angola, o que leva a crer
que Rosado era um comerciante de escravos. Meio século depois, encontramos o seu
neto, João Godinho Rosado, recebendo uma sesmaria para ampliar os domínios de
seu engenho. As últimas informações sobre a família referem-se aos casamentos das
bisnetas de Pero Rosado com membros de antigas casas senhorais do Rio de Janeiro.
Percebe-se, assim, pela história de uma família originária de comerciantes, ao longo
de três gerações, a combinação de diferentes estratégias de acesso ao grupo
senhorial: acumulação mercantil, aquisição de terras por circuitos não comerciais e
alianças matrimoniais. Percebe-se, mais uma vez, como na colônia se reproduzia o
modelo social metropolitano, no qual a terra era o principal indicador da posição e
do prestígio dos indivíduos.
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Baseado no monopólio comercial, que determina a comercialização restrita da colônia
com a Metrópole, visando a obtenção de lucros exclusivos para esta, a conquista da América,
desde o século XVI, contou com práticas ilegais de fiscalização e controle das relações
comerciais desenvolvidas na colônia. Segundo Rita Biason (2009), funcionários da
Metrópole, encarregados de fiscalizar o contrabando e demais transgressões contra a coroa,
praticavam o comércio ilegal de mercadorias brasileiras (como o pau-brasil, o ouro, o
diamante e o tabaco), que acabavam sendo repassadas para os contrabandistas. As grandes
dimensões territoriais da colônia e a dificuldade enfrentada pela Coroa portuguesa em
fiscalizar essas práticas possibilitaram sua continuidade e seu desenvolvimento durante todo o
período colonial. Eduardo Bueno (2006, p. 248), ao descrever um conflito entre o então
governador geral, D. Duarte, e o bispo Sardinha, dá mostras da corrupção que já assolava a
Colônia e de como a fiscalização era precária:
Tão fragilizadas quanto o domínio territorial, encontravam-se a administração da
Justiça e da Fazenda na América portuguesa. A corrupção e os desmandos que
imperavam na capital – exemplarmente retratados pelo conflito entre D. Duarte e o
bispo Sardinha – não eram exclusividade da cidade de Salvador: as demais
capitanias enfrentavam problemas semelhantes, pois, tão logo tomavam o poder, os
homens mais abastados colocavam o aparelho judiciário e o fiscal a seu serviço, em
detrimento da população.
A fiscalização da coroa e a aplicação da justiça eram limitadas pelas dificuldades
enfrentadas para atingir os locais mais afastados das cidades e pela oposição dos grandes
proprietários de terra, que praticavam leis específicas em seus domínios. Sobre este aspecto,
as práticas corruptas tornavam-se possíveis graças à ineficácia da coroa portuguesa em
controlar as relações comerciais e judiciais, à falta de controle das autoridades na prestação de
contas, à ineficiência na punição dos envolvidos e ao descumprimento das leis pelos próprios
funcionários reais.
3 CORDIALIDADE E CORRUPÇÃO
Sérgio Buarque de Holanda, em sua obra síntese dos fundamentos que orientaram a
colonização brasileira, definiu o que ele denominou de “homem cordial” ou “brasileiro
cordial”.
Para um dos explicadores da nossa história, a cordialidade, típica das relações íntimas entre o
público e o privado, entre o estado e o particular, que pautaram a cultura brasileira, está longe
de ser a ideal. Entre estado e particular há de se ter um hiato e não uma intimidade. Conforme
Anais do X
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o autor (1995, p. 141), “o Estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos,
uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é
o melhor exemplo. Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes
uma descontinuidade e até uma oposição”.
Eduardo Bueno (2006, p. 248), lançando mão da análise do brasilianista Harold
Johnson, aponta como a cordialidade, as relações espúrias entre o “público e o privado”
condicionaram, por exemplo, a nomeação para cargos públicos, marca da administração
pública no Brasil até os dias de hoje, não havendo, pois, a necessária impessoalidade:
Os agravos, vexames e acusações mútuas ocorridos no âmbito da disputa entre o
bispo e o governador constituem exemplo significativo de uma realidade que
marcou indelevelmente todo um vasto período da vida e do reino e sobretudo das
colônias, onde o poder da Coroa era mais débil.[...] Refletia-se desta forma a
contaminação da esfera do público pela do privado, problema para cuja resolução as
medidas tomadas pela Coroa – no sentido de distribuir os cargos de acordo com o
preparo técnico de quem os iria desempenhar mais do que com o desejo de contentar
poderosos e preferidos – nunca se revelaram suficientemente eficazes. Com efeito,
cada figura proeminente fazia-se rodear-se de grande número de protegidos,
familiares e compadres, cuja partilha de interesses e a dependência em relação à sua
vontade os levava a preocupar-se mais em servir aquele com quem eram solidários,
e de quem dependia seu modo de vida, do que a agirem de acordo com o bem
comum, de forma reta e justa.
A “cordialidade” do brasileiro nada tem a ver com boas maneiras, educação, polidez.
Na realidade, o “homem cordial”, no Brasil, é aquele que não sabe distinguir o público do
privado, claramente misturando as duas esferas, uma adentrando a outra, sem qualquer pudor
ou constrangimento. Não raras são as relações íntimas entre membros dos poderes do Estado,
juízes recebendo partes em sua esfera particular, cargos sendo distribuídos em razão da
amizade ou de troca de favores políticos e financeiros, bem como empresas favorecendo
políticos, seja financiando campanhas eleitorais, seja com doações para o patrimônio
particular de ocupantes de função ou cargo público. Nas palavras de Lilian M. Schwarcz e
Heloisa M. Starling (2015, p. 17):
Conforme propôs Sérgio Buarque de Holanda, o país foi sempre marcado pela
precedência dos afetos e do imediatismo emocional sobre a rigorosa impessoalidade
dos princípios, que organizam usualmente a vida dos cidadãos nas mais diversas
nações. “Daremos ao mundo o homem cordial”, dizia Holanda, não como forma de
celebração, antes lamentando a nossa difícil entrada na modernidade e refletindo
criticamente sobre ela. Do latim “cor, cordis” deriva-se “cordial”, palavra que
pertence ao plano semântico vinculado a “coração” e ao suposto de que, no Brasil,
tudo passa pela esfera da intimidade (aqui, até os santos são chamados no
diminutivo) num impressionante descompromisso com a ideia de bem público e
numa clara aversão às esferas oficiais de poder. O pior é que mesmo Holanda foi
reprovado pela ideologia do senso comum. Sua noção de “cordial”, na visão
popular, tem sido castigada pelo juízo invertido. Foi reafirmada como um libelo das
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nossas relações cordiais, sim, mas cordiais no sentido de harmoniosas, sempre
receptivas, e contrárias à violência, em vez de ser entendida a partir de seu sentido
crítico – a nossa dificuldade de acionar as instâncias públicas.
Esta “promiscuidade” foi construída por meio de uma herança patrimonialista, típica
da colonização portuguesa no Brasil, já que os “donos do poder político” são e sempre foram
os “donos do poder econômico”. Esta lógica é a que foi implementada na empresa colonial
brasileira e encontram profundas e rígidas raízes em nossa cultura, que influencia todos os
setores estatais, inclusive a justiça.
Nos autos da devassa mais famoso da história colonial brasileira, decorrente da
Inconfidência Mineira, por exemplo, as relações espúrias entre o “ouro” e o poder público já
demonstraram ser uma realidade bem presente até os dias de hoje. Aqueles que participaram
da insurreição, mas que faziam parte das elites mineiras, tiveram penas mais brandas ou foram
perdoados. Alguns deles, inclusive, lançando mão de um procedimento bem conhecido
atualmente, a delação premiada, não só se livraram da pena, como ainda receberam inegáveis
benefícios, como o famoso delator mais conhecido Joaquim Silvério dos Reis e o abastado
sesmeiro das Minas Gerais Inácio Corrêa Pamplona. Com certeza, pagaram caro pela
liberdade. Tiradentes, o nosso herói símbolo nacional, como era um simples alferes e sem
muitos recursos, foi o único condenado à forca, esquartejado e considerado o maior traidor da
Coroa Portuguesa.
O processo de independência do Brasil deu-se via uma negociação entre a elite
nacional, a coroa portuguesa e a Inglaterra. Em 1822, D. João VI aceita a independência do
Brasil mediante o pagamento de 2 milhões de libras esterlinas à coroa portuguesa. As elites
brasileiras adotaram a monarquia como forma de governo, mantendo o povo brasileiro como
mero espectador do processo. A ausência de transparência nas relações políticas durante o
período imperial, possibilitou o surgimento de outras formas de corrupção no cenário
nacional. Uma delas diz respeito à manutenção do tráfico negreiro, embora as elites nacionais
tivessem assinado um acordo com a Inglaterra para aboli-lo, em troca de seu apoio no
processo de independência. A inexistência de um controle eficaz do tráfico negreiro se deve,
em parte, aos lucros obtidos pelos subornos e propinas recebidos por todos os participantes. A
origem da expressão “lei para inglês ver” é atribuída ao período imperial quando foram
criadas, pelo governo brasileiro, uma série de leis que, teoricamente, impediam o comércio de
escravos no Brasil, mas que na prática não eram cumpridas. Essas leis foram criadas somente
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para os ingleses pararem de pressionar as autoridades brasileiras quanto ao cumprimento do
acordo firmado.
A primeira Constituição do Brasil, outorgada em 1824, estabeleceu os três poderes,
Executivo, Legislativo e Judiciário, e criou um quarto poder, o Poder Moderador, que era
privativo do Imperador, como vestígio do absolutismo português. Além disso, a Carta regulou
os direitos políticos dos cidadãos brasileiros e definiu o direito ao voto, permitido a todos os
cidadãos homens a partir dos 25 anos, com renda mínima de 100 mil réis. As mulheres e os
escravos não eram considerados cidadãos, já os libertos poderiam votar nas eleições
primárias. As eleições eram indiretas e feitas em dois turnos. No primeiro, os votantes
escolhiam os eleitores, que deveriam ter renda de 200 mil réis, e esses escolhiam os senadores
e deputados. As eleições primárias eram tumultuadas e muitas vezes eram decididas no grito.
Nesse período, sugiram vários especialistas em burlar as eleições. O principal deles foi o
cabalista, a quem cabia garantir um maior número possível de eleitores partidários de seu
chefe local. Era responsabilidade do cabalista oferecer a prova da renda mínima legal exigida
para o eleitor. Cabe ressaltar que essa prova poderia valer-se de um testemunho pago para
dizer que a renda do votante tinha aspecto legal.
Após a proclamação da República, em 1889, as fraudes eleitorais se sofisticaram. Com
a adoção do federalismo, os presidentes das antigas províncias passaram a ser eleitos pela
população. A descentralização política tinha como objetivo aproximar o governo da
população, via eleições de presidentes de estado (hoje, os governadores) e prefeituras. Essa
aproximação se deu sobretudo com as elites locais, apoiadas em partidos únicos. As práticas
eleitorais continuaram fraudulentas com o voto podendo ser fraudado na hora de ser lançado
na urna, na apuração ou mesmo durante o reconhecimento do eleito. Os grandes
latifundiários, apelidado de “coronéis”, impunham, de forma coercitiva, o voto desejado aos
seus empregados e dependentes. Era o chamado voto de “cabresto”. Além dessa, outras
formas de corrupções eleitorais eram praticadas, tais como o voto comprado e a “eleição a
bico de pena”. No primeiro caso, o votante vendia o voto em troca de um par de sapatos, por
exemplo. O comprador entregava um pé de sapato no dia da eleição e o outro pé após apurado
o resultado das eleições. Caso o candidato do comprador não ganhasse, o votante ficaria
apenas com um pé de sapato. A “eleição a bico de pena” acontecia após a apuração do
resultado das eleições e durante o reconhecimento do eleito. Nas atas eleitorais, eram
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incluídos como votantes as pessoas mortas e inexistentes. Nesse caso, os resultados eleitorais
eram absurdos, sem nenhuma relação com o número efetivo de eleitores (LESSA, 1988).
Na República Nova, as disputas eleitorais presidenciais de 1929 contaram com uma
inusitada reviravolta do resultado final. A disputa entre o candidato das oligarquias
cafeicultoras paulistas Júlio Prestes e Getúlio Vargas, candidato dos setores insatisfeitos com
a tradicional política do “café com leite”, que garantia a alternância do poder executivo ora
com um representante de São Paulo ora com um representante de Minas Gerais, foi marcada
por acusações de fraudes por parte da aliança liberal levando à presidência da República o
candidato derrotado Getúlio Vargas, embora os resultados eleitorais registrassem a vitória do
candidato Júlio Prestes com 1 milhão e cem mil votos contra 737 mil alcançados por Getúlio
Vargas (GOMES, 1988).
Uma breve análise do processo civilizatório brasileiro permite-nos observar que as
nossas estruturas políticas e sociais tiveram sua formação viciada por práticas como o
patrimonialismo, o coronelismo e o clientelismo, nas quais os políticos exerciam práticas de
favorecimento de determinadas empresas ou candidatos em troca de apoio para as suas
campanhas. Um dos casos mais inusitados dessas práticas ocorreu na década de 1950 e se
refere a “caixinha de Adhemar”. Durante o período em que foi governador do estado de São
Paulo, Adhemar de Barros acumulou uma “caixa” de cerca de 2,4 milhões de dólares oriundos
de troca de favores entre bicheiros, fornecedores, empresários e empreiteiros que desejavam
algum benefício do político (MOREL, 2012).
Durante o Regime Militar Brasileiro, a corrupção era interpretada como “resultado
dos produzidos por uma vida política de baixa qualidade moral e vinha associada, às vésperas
do golpe, ao comportamento viciado dos políticos diretamente vinculados ao regime nacional-
desenvolvimentista” (STARLING, 2012, p. 213). Apoiado numa ideologia de cunho
geopolítico expressa na Doutrina de Segurança Nacional, com o objetivo de modernizar o Brasil
e transforma-lo em uma potência mundial no ano 2000, o novo regime (militar) buscava a
modernização do país através da via conservadora ou "Modernização Conservadora". A partir de
1964, instalou-se no Brasil um poder centralizado pelo Executivo, apoiado em leis de exceção,
como os Atos Institucionais e Complementares, e na militarização da vida cotidiana, marcada
pela guerra ao inimigo externo (comunismo) e interno (ações subversivas e guerrilhas). O
aparato militar repressivo se transfere para a população, em especial, os subversivos políticos e
os comunistas.
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Na primeira metade da década de 1960, a sociedade brasileira viveu momentos de intensa
efervescência política e cultural marcada pela renúncia do presidente Jânio Quadros em agosto
de 196, a tumultuada posse do vice presidente João Goulart com o apoio da sociedade civil e de
Leonel Brizola, apesar do veto dos ministros militares, a substituição do presidencialismo pelo
regime parlamentarista, limitando o poder da presidência da República, mas garantindo a posse
de Jango (1961) e a restauração presidencialismo em 1963.
A campanha da legalidade, conduzida por Leonel Brizola, alimentou ânimos nos setores
nacionalistas e de esquerda da sociedade brasileira, que passaram a exigir reformas estruturais na
política e economia do país. Bandeiras e manifestações sociais exigindo a reforma fiscal,
administrativa, universitária, agrária passaram a fazer parte do cenário político e cultural da
época. Neste programa de reforma estavam incluídas nas políticas nacionalistas e o controle
sobre o capital estrangeiro.
O governo Jango foi marcado por intensa politização da sociedade, com amplos debates e
participação do povo na discussão pública de propostas de mudanças e reformas políticas para o
país. Este clima de debate e participação popular preocupou os setores mais conservadores da
sociedade civil, temorosos que uma revolução socialista, similar a Revolução Cubana, viesse a se
instalar no Brasil. Assim, a posse de João Goulart e o anúncio das reformas de base foram
recebidos com grande alarmismo pelos grupos sociais conservadores que buscavam promover
uma campanha de mobilização da opinião pública para desestruturar o governo Jango. Um dos
momentos de maior expressão conservadora da época foram as marchas da Família com Deus
pela Liberdade. Para aqueles que participaram dessas marchas ou se aliaram aos seus propósitos,
o governo de João Goulart tinha pretensões comunistas e “caminhava para a destruições de
valores religiosos, patrióticos e morais da sociedade” (PRESOT, 2010, p. 74). Essas passeatas
sugiram como uma espécie de apoio ao Movimento de 1964, que destituiu o governo
constitucional de João Goulart e instalou a ditadura militar no Brasil. Vários participantes dessas
manifestações eram oriundos da classe média brasileira.
O fato regime militar ter se instalado logo após o governo populista de João Goulart,
onde em teoria, acreditava-se que se tinha uma presença popular na esfera pública, deu margem
para o surgimento de uma intrigante memória histórica. Segundo esta memória, entre os anos de
1946 a 1964, a sociedade brasileira viveu numa democracia. Contudo, segundo M. Chauí,
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essa memória é paradoxal porque tecida de vários esquecimentos significativos como,
por exemplo, o de que a Constituição de 1946 define a greve como ilegal, mantém a
legislação trabalhista outorgada pela ditadura Vargas (e que é reprodução literal da
Carta del Lavoro, de Mussolini), proíbe o voto de analfabetos (isto é, a maioria da
população, na época), coloca o Partido Comunista na ilegalidade, conserva a
discriminação racial e não questiona a discriminação das mulheres, consagrada pelos
códigos Civil e Penal (CHAUÍ, 1989, p. 50).
Na sociedade brasileira Marilena Chauí reconhece alguns traços desta tradição
autoritária sobre o viés da exclusão social e da tomada do espaço público pelo privado.
Segundo a autora,
contra a irracionalidade', a classe dominante apela para técnicas racionalizadoras (a
célebre 'modernização'), as tecnologias parecendo dotadas de fantástico poder
reordenador e racionalizador. Contra o 'perigo', representado sempre pela manifestação
explícita das classes populares, os dominantes partem em busca dos agentes
'responsáveis pela subversão', isto é, iniciam a caça às bruxas que ameaçam a 'paz
nacional' e a 'união da família brasileira'. Finalmente, contra o 'caos', a classe dominante
invoca a necessidade da 'salvação nacional'. A 'união da família brasileira' (isto é, um
elemento do espaço privado definido como elemento central do espaço público) e a
'salvação nacional' conduzem, via de regra, à 'pacificação nacional', isto é, aos golpes de
Estado e às ditaduras (velhas ou 'novas'). Numa palavra, a preservação do que poderia
ser público e contraditório se faz negativamente por redução ao privado (a 'família
brasileira') e à indivisão (a 'pacificação nacional'). Como se observa, o autoritarismo
político se organiza no interior da sociedade e através da ideologia; não é exceção, nem
é mero regime governamental, mas a regra e expressão das relações sociais (CHAUÍ,
1989, p. 60-61).
A justificativa dos militares para a realização do golpe foi a "defesa da ordem e das
instituições, contra a ameaça comunista”. Associados aos interesses militares, dos grandes
latifundiários e dos setores da classe média, estavam os interesses da grande burguesia nacional e
internacional e do governo norte-americano.
O golpe de Estado levado adiante por uma articulação civil e militar, em 1964,
apresentou, nos vinte e um anos de duração do regime autoritário que sucedeu a ele, uma
complexa dinâmica de institucionalização. Marcado pela influência da Doutrina de Segurança
Nacional3, este processo explicitou um conjunto de políticas que, sob a máxima
“desenvolvimento com segurança”, articulou medidas de efetivo controle social com estratégias
econômicas de maior inserção do Brasil na ordem capitalista internacional. A delimitação deste
projeto de modernização-conservadora apresentou duas faces: a construção de uma ordem
política autoritária e a emergência de uma nova fração dirigente no interior da classe dominante,
3 A respeito do complexo ESG/ IPES/ IBAD, Doutrina de Segurança Nacional e seu papel no golpe de
64, ver: (DREIFUSS, 1981) , (STARLING, 1986), (SODRÉ, 1992) .
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os militares. Esta nova fração, que não era comprometida com o pacto político populista,
procurou dar continuidade a este projeto e controlar, internamente, suas possíveis dissensões4.
A sociedade brasileira é uma sociedade autoritária. Em nossa sociedade a cidadania é
conservada como privilégio de classe, sendo concedida periodicamente e provisoriamente pela
classe dominante às demais classes sociais. As diferenças sociais são transformadas em
desigualdades, que seguem relações de hierarquia, de mando e de obediência. Assim, "as
relações sociais tomam a forma de dependência, da tutela, da concessão, da autoridade e do
favor, fazendo da violência simbólica a regra da vida social e cultural" (CHAUÍ, 1989, p. 54). As
lutas e manifestações sociais são pautadas em reivindicações imediatas e específicas. Suas
necessidades são muito variadas, impedindo que os agentes sociais enxerguem claramente onde
está localizado o corruptor. Estes agentes podem tornar-se presas fáceis das ações eleitorais,
discursos autoritários ou informações deturpadas.
Nos tempos atuais, há um abismo que separa os interesses dos governos ou dos líderes
políticos e os da população. As decisões votadas pelos parlamentares não visam atender ao
interesse público, ao contrário restringem-se a atender interesses particulares ou, quando muito,
de alguns grupos específicos. Os representantes do povo, ao ocuparem seu "cargo", parecem
esquecer daqueles que o elegeram e lhe garantiram um lugar na esfera das decisões políticas. A
confiança depositada nestes parlamentares parece ser esquecida quando estes viram as costas
para decisões que beneficiariam aqueles que os elegeram. Por outro lado, a população, descrente
das instituições públicas e políticas e dos líderes políticos, entrega-se à melancolia e
desesperança frente ao futuro do país e a sua participação efetiva nos processos decisórios. O
processo de impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello, em 1992, que contou com
expressiva participação popular nas manifestações de rua, parecia apontar para uma mudança
desse cenário e inaugurar uma nova era de enfrentamento às práticas de corrupção. Mas, será?
Para o ex-Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso (1985), a sociedade
brasileira é marcada pela modernidade, ou seja, ela é, ao mesmo tempo, "parte do mundo
avançado e coletânea do que há de mais atrasado". A classe média brasileira pode ter a ilusão de
ser igual a um europeu desenvolvido, pois a vida que se descreve nas revistas e nos meios de
comunicação é a vida daqueles que não apenas estão integrados na esfera política brasileira,
4 Sobre esta nova fração dirigente (militares) e seu papel na condução do projeto de modernização-
conservadora, consultar (DREYFFUS, 1981), (ALVES, 1989).
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como também daqueles que representam os setores "ricos" da sociedade. Contudo, a grande
maioria da população é deixada fora da cena política do país e à margem do mercado de trabalho.
A vasta massa popular pobre é esquecida pela política brasileira.
4 O ESTADO NA RELAÇÃO COM AS EMPRESAS: A CORDIALIDADE ENTRE O
PÚBLICO E O PRIVADO
Em um cenário de globalização econômica, o compromisso com a garantia dos
direitos humanos não se limita a relação entre Estado e cidadãos, mas abrange também a
responsabilidade das empresas na efetivação e fruição desses direitos. Com a atuação cada
vez mais abrangente das grandes empresas no mercado global, tornou necessário a criação de
princípios e regras que regulam a atuação dessas empresas de forma a garantir o respeito aos
direitos humanos nos países que elas atuam. Em 2011, o Conselho de Direitos Humanos da
ONU aprovou, por consenso, os "Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos
Humanos".
A partir deste ano, passou-se a adotar uma norma de conduta mundial aplicável a todas
empresas, impondo o respeito aos direitos humanos e minimizando os impactos negativos que
a atuação das empresas podem gerar em diversos países, sobretudo em grandes
empreendimentos, como nas atividades mineradoras, na construção civil e nas obras de
infraestrutura do Brasil.
O investimento das grandes empresas em grandes obras de infraestrutura, transporte,
construção civil e extração de recursos naturais e minerais tem trazido intervenções positivas
e negativas para a sociedade. Com relação aos efeitos positivos podemos citar a geração de
uma rede de empregos e ocupações que dinamizam a economia dos países e diversificam os
ramos de produção do conhecimento. Com relação aos efeitos negativos podemos citar a falta
de coordenação entre o planejamento das obras e políticas públicas, incapazes de suprir as
deficiências históricas da população, gerando problemas de saneamento, segurança, moradia,
saúde e educação.
Os grupos mais vulneráveis nesse processo são as crianças, os trabalhadores migrantes
e com deficiência, as minorias nacionais, étnicas e religiosas. Essas são as pessoas que mais
necessitam de proteção e respeito com relação aos direitos humanos. Contudo, não podemos
deixar de mencionar os trabalhadores e a população local que tem seu cotidiano alterado pela
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nova lógica das relações trabalhistas impostas pelas grandes empreiteiras como também a
exploração do meio ambiente, como nas atividades das mineradoras.
Em 1988, com a promulgação da Constituição brasileira, o Brasil passou a assumir,
em termos normativos, um maior compromisso com a efetivação dos direitos humanos no
país. Contudo, a cultura patrimonialista da sociedade brasileira, tem propiciado práticas que
permitem a contratação de parentes de políticos, sem qualquer mérito, para cargos de
confiança na administração pública ou que empresas financiadoras de campanhas eleitorais
vençam licitações públicas. A aprovação dos "Princípios Orientadores sobre Empresas e
Direitos Humanos", em 2011, pelo Conselho de Direito Humanos da ONU, tendo o Brasil um
dos signatários desse acordo, reforçou o compromisso do país com o combate às práticas de
corrupção e com a realização de políticas públicas que visem a garantia dos direitos humanos
à população brasileira e o cumprimento da responsabilidade social das grandes empresas.
A partir da análise cultural da realidade brasileira, que tem, como uma de suas
práticas, senão a ausência, ao menos a dificuldade de tratar, de forma separada, o “público” e
o “privado”, uma das mais evidentes permanências da nossa história republicana. A
importância desta pesquisa está no fato de buscar compreender os diversos fenômenos
presentes na sociedade brasileira republicana, à luz das práticas culturais e históricas, tais
como a corrupção, a pessoalidade das relações, dificuldades de implementação de um
desenvolvimento sustentável, dentre outras, que permitem identificar uma relação estreita e
pouco salutar entre os espaços do privado (empresa) e do público (Estado).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Toda essa retrospectiva histórica nos remete às causas da corrupção no Brasil.
Estudiosos e pesquisadores do assunto defendem diferentes versões para esta questão. Uma
das mais aceitas é a nossa herança patrimonialista ibérica. Segundo Raimundo Faoro (2012),
no patrimonialismo não há distinção por parte dos líderes políticos entre o patrimônio público
e o privado, tese também defendida por Sérgio Buarque de Holanda (1995), ao criar e explicar
a expressão homem cordial. Mediante essa prática, os governantes consideram os cargos
políticos e o Estado como patrimônio privado. Práticas como esta permitem que parentes de
políticos, sem qualquer preparo ou mérito, sejam escolhidos para cargos de confiança na
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administração pública ou que empresas financiadoras de campanhas eleitorais vençam
licitações públicas.
A corrupção, para além do aspecto penal, implica em práticas de suborno com o
objetivo de corromper alguém ou obter favores de alguma pessoa por meios ilícitos. Seu uso
não se restringe às esferas política e econômica, ele está inserido em práticas culturais
cotidianas que denigrem as relações sociais e legitimam a tolerância a determinados casos de
corrupção. Práticas corruptas e frequentes no cotidiano do brasileiro parecem apontar para
uma predisposição ao ilícito e imoral, como traços inerentes ao caráter do brasileiro. Ações
como tentar subornar o guarda de trânsito para evitar uma multa, comprar produtos
falsificados, furar fila, colar na prova para obter uma boa nota, enganar as pessoas em uma
negociação, burlar as leis de trânsito, não pagar impostos, mentir, falsificar ou aceitar troco
errado são práticas corruptas tidas como normais pelos brasileiros. O “jeitinho” para levar
vantagem em transações e relações sociais, mesmo desrespeitando leis, regras e costumes
tradicionais, atribui ao povo brasileiro um caráter desonesto e de desconfiança, como que a
corroborar uma antiga frase, dita por um empresário paulista há mais de 30 anos, “todos
somos corruptos. Ninguém pode atirar a primeira pedra”.
O fenômeno da corrupção não é exclusivo do Brasil ou dos tempos recentes. Ele é
fruto de uma complexidade de processos sociais e históricos que apresentam peculiaridades
em cada país e sociedade. Uma das maneiras mais eficientes de combate a corrupção é o
investimento na transparência das informações com relação ao uso dos recursos públicos e na
educação consciente, baseada em uma moral ética e correta, capaz de orientar as pessoas a
realizarem escolhas livres de vícios imorais e tendenciosos. Como já dizia João Ubaldo
Ribeiro (2011) “nós sabemos de tudo e não somos bobos, somos apenas omissos, submissos,
cínicos e cada vez mais moralmente insensíveis – ninguém é perfeito”.
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