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B E L I N H A S A U B E L E L K I N D

Croniquetas

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Andarilhos na madrugada

O contraste da aurora com as pessoas ainda

sombreadas por um céu azul escuro é absolu-

tamente estonteante... Do alto da janela, vis-

lumbro pequenas figuras que se locomovem

rapidamente para não perder, suponho, nem

um minuto do panorama que premia os não

sedentários: as primeiras horas do novo dia.

“Deus ajuda a quem cedo madruga” é uma

verdade comprovada; cabelos ao vento, bri-

lho no olhar, sangue circulando, por que não?

Vale tudo em qualquer idade...

Parece mentira, mas, esfregando suave-

mente meus pés no cobertor (ar-refrigerado

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muito frio no quarto), experimento uma tran-

quilidade momentânea da qual não quero me

separar tão cedo... Muito boa a sensação do

lençol gelado, dos travesseiros fofos, tal cum-

plicidade física não é pra qualquer um... Pre-

ciso ser muito cara-de-pau depois de todos os

alertas veiculados pela imprensa em relação

à saúde x sedentarismo, para ficar neste bem-

-bom sereno, quase paradisíaco...

Da janela para minha cama é um pulo

“muito grande”!

Cooper inventou, João Ubaldo escreveu,

Fernando Sabino reiterou: CAMINHEM!

Mas palavras como serotonina, adrenalina,

até mesmo penicilina, não fazem parte de

meus primeiros momentos de lucidez.

Bocejar, espreguiçar; com o nariz enfiado

nas almofadas, a maravilha da penumbra pre-

guiçosa… Dá até raiva ter de cumprir algum

compromisso previamente marcado, mesmo

Croniquetas 15

que seja na manicure! Reluto em colocar o

biquíni… Fui, durante muito tempo, “rata de

praia”: um raiozinho de sol e, “pimba”... Lá

estava eu bronzeando até os dentes!!!

Aos quase setenta, penso duas vezes antes

de ir ao terraço mergulhar na minha piscina

azul, morna e clorada... Só de vez em quando

me animo, ao reparar nas figuras bronzeadas

da moçada que passa em direção à água deto-

nada e areias nunca limpas de nossa outrora

maravilhosa orla do Leblon.

Mas o sol, agora inteirinho refletido como

Narciso em um mar que beira o verde-azula-

do, de longe, ah… Este é um espetáculo que

não podemos perder — mesmo porque ca-

rioca que se preza mora em balneário e joga

vôlei antes do trabalho, não tem opção: ou é

sol, ou NADA!!

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Mãos

Mãos que se entrelaçam ternas

ou que oram preces de louvor.

Ou que imploram milagres de vida e amor.

Mãos rudes de calos, árduos trabalhos,

cicatrizes tristes de grandes labutas.

Valerão a pena, tantas lutas?

Mas claro, vida é vida, sopro individual!

Cada mão que agita uma bandeira

torce por seu time e afinal

viver é lutar!

Mãos são instrumentos vivos de sobrevivência

para quem a dura experiência ensina que viver

é também e sobretudo amar!

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Intenso

A intensidade do olhar é capaz de nos fazer

virar a cabeça na direção de quem o lança...

Quanta adrenalina poderá uma pessoa gerar

quando consegue perceber uma energia real

vibrando por perto?

Acredito que o magnetismo pessoal, seja

do homem ou da mulher, é uma força deveras

poderosa, tanto quanto o disparo hormonal no

tão decantado “amor à primeira vista...”. Im-

pressiona-me o fato de um simples olhar —

talvez apenas supostamente simples — atingir

níveis tão poderosos de intensidade, sem levar

em conta idade, intimidade ou proximidade.

20 Belinha Saubel Elkind

Atento para um importantíssimo detalhe:

o romantismo! Seres humanos percebem, as-

sim como outros animais, uma química inex-

plicável, uma conexão particular que aguça

os sentidos, concentrando-os no seu eleito, se

subjetivamente correspondido, criando uma

situação ideal e específica de atração.

Não importa se, em paralelo, há um com-

promisso feliz, casamento, filhos ou situação

social integrada com amigos: nada parece im-

pedir este súbito e inesperado acontecimen-

to no advento deste contexto emocional. Por

vezes, se uma das partes for comprometida,

nem mesmo a percepção do cônjuge, que

sabe o que está ocorrendo e observa, sem to-

mar atitude alguma, literalmente “pagando

pra ver”, impede esta atração.

Porém, mais inquietante ainda, é o abso-

luto mutismo dos envolvidos, que não che-

gam a trocar uma palavra, comunicando-se

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tão somente pelos inefáveis e cálidos olhares,

furtivos às vezes, ousados quase sempre mas,

ao que parece, absolutamente carentes da

presença dramática e audaciosamente tímida

de um sentimento que, se fosse plenamente

consumado, daria um excelente best-seller!!