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CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA
Prof. Marcos Aurélio Fernandes
UnB – Fil: 2019.1
TEXTO 4
2. INTRODUÇÃO GERAL À FILOSOFIA ANTIGA
(continuação)
2.2. CARACTERIZAÇÃO GERAL DA EXPERIÊNCIA GREGA DE
PENSAMENTO CHAMADA FILOSOFIA.
Tentamos expor as várias experiências gregas de pensamento. A filosofia é uma
delas. Ainda não expomos o caráter da experiência grega de pensamento na filosofia. É
o que nos cabe agora como tarefa. Vamos tentar delinear os traços que caracterizam
essa experiência grega de pensamento de uma maneira inicial, introdutória, agora. Uma
visão mais nítida só pode surgir do convivívio nosso com as obras dos pensadores em
questão. Ao tratar dessa experiência grega de pensamento, que é a filosofia, porém, é
preciso considerar que ela está numa tensão rica com as demais experiências.
2.2.1. UMA OBSERVAÇÃO PRELIMINAR SOBRE A
TEMPORALIDADE E A HISTORICIDADE DA
FILOSOFIA.
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O pensamento grego enquanto filosofia é temporal. É isso soa óbvio. Trivial. E é.
Mas pertence à meditação filosófica pensar o óbvio, o trivial. O óbvio é o ofício dos
filósofos. O senso comum e a ciência não interrogam o óbvio. O filósofo, sim. Pois então:
o que significa dizer que a filosofia é temporal? O que é, como é, a temporalidade da
filosofia? Tem a filosofia uma temporalidade própria? Parece-nos que sim. Que tal se
cada forma de fenômeno histórico tiver a sua própria temporalidade? Admitamos que
sim. Então cada forma de fenômeno histórico, como técnica, ciência, arte, religião,
filosofia, terá seu próprio modo de acontecer e de se destinar, de se encaminhar e de se
desdobrar, de atuar... Terá o seu próprio ritmo, o seu próprio andamento, a própria
cadência de seu curso e decurso. Terá, enfim, sua própria mobilidade. Esta é uma
primeira observação, preliminar, que convém termos em mente, ao considerarmos a
filosofia como fenômeno histórico, temporal.
Conexo a isto está a forma de historicidade própria da filosofia. Usualmente,
consideramos temporalidade e historicidade como um “decorrer no tempo”.
Consideramos o tempo como se fosse um “quadro” geral em que os acontecimentos
ocorrem e decorrem. Consideramos, assim, a filosofia, como uma ocorrência histórica,
com seu curso e decurso “no tempo”, em sua intratemporalidade. Tudo isso é muito
abstrato. O que é o tempo? Pode o tempo ser tomado assim – como este quadro? O
tempo só pode ser tomado como intratemporalidade? Não podemos discutir isso aqui.
Deixemos em aberto. Mas queremos propor pensar de modo diverso a relação entre
filosofia e tempo. Nossa proposta é experimentar pensar que a filosofia enquanto
filosofar é temporânea e historial em outro sentido, a saber, no sentido de ser tempo,
de ser criação de história. A filosofia, entendida no seu sentido originário, como a
realização do pensar, em que acontece a correspondência, pela linguagem, ao apelo do
mistério de ser, é tempo, é história1.
Nossa hipótese é, portanto esta: enquanto modo de existir do homem no seu
relacionamento de ser com o mistério de ser, relacionamento que acontece como o
1 Cf. Heidegger, Martin. O que é isto – a filosofia. In: Conferências e Escritos Filosóficos. São Paulo: Editora Nova Cultural (Os Pensadores), 1999, p. 39. Cf. também Rombach, Heinrich. Die Gegenwart der Philosophie: Die Grundprobleme der abendländischen Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens. 3., grundlegend neu bearbeitete Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 25-26.
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pensar, na linguagem, a filosofia não é propriamente uma manifestação no tempo,
dentro da história, mas é, mais propriamente, o acontecer do tempo, da história. Sua
historicidade, neste sentido, é primordial, e anterior à historicidade da técnica e da
ciência, e, até mesmo, da historicidade da arte e daquela que é própria da religião. A
filosofia, assim entendida, tem um modo próprio de se encaminhar; tem a sua própria
cadência e decadência; o seu próprio ritmo e a sua própria dinâmica de maturação, que
não podem ser compreendidos a partir da dinâmica da técnica ou da ciência, nem
mesmo a partir da dinâmica da arte e da religião. Ela não tem uma forma de
historicidade; ela é a forma da historicidade ela mesma acontecendo2. Em virtude disso,
uma introdução à filosofia não se faz a partir de fora, como já dissemos anteriormente.
É em filosofando que, sempre de novo, nos introduzimos na historicidade da filosofia.
“Só a filosofia é começo dela própria; só ela é medida dela mesma; só ela é acesso a ela
própria; por fim, só ela pode se revelar a si própria. Nada de fora dela pode nela
pretender introduzir, ou explicá-la, ou justificá-la”3. É, como já dissemos, um saber
hermético. É hermético não no sentido de ser trancada, excludente. Pelo contrário, a
filosofia é um pensamento que se abre à imensa vastidão do ser, ao Todo. Portanto,
nada exclui. Depois, é uma pensamento que deixa e faz atuar uma potencialidade que
está em todo o homem. Em certo sentido, todo o homem é filósofo, pois, no seu modo
de ser, está inscrita a tendência, o gosto pelo desvendamento do ser de tudo aquilo que
é. É o que Aristóteles nos recorda na primeira frase da Metafísica: Πάντες ἄνθρωποι τοῦ
εἰδέναι ὀρέγονται φύσει – pantes anthropoi tou eidénai orégontai physei: “todos os
homens, por natureza, aspiram ao saber”. Além disso, a filosofia é uma investigação que
está no fundo e no fundamento de todas as ciências e vive em cada uma delas – quer
elas saibam quer não, quer elas queiram quer não. Por tudo, isso, o hermético da
filosofia nada tem a ver com trancamento, no sentido de solipsismo, de exclusão. Não.
O hermético da filosofia se dá em outro sentido. No sentido de que, como vimos, a
filosofia ser uma experiência de pensamento bem autônoma. Não há acesso a ele de
fora. Só se pode acessá-lo se ele já estiver operando em nós. Só se pode penetrá-lo, a
partir dele mesmo.
2 Cf. Idem, p. 37-44. 3 Fogel, Gilvan. Da solidão perfeita: escritos de filosofia. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 53-54.
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2.2.2. O TEMPO-EIXO E AS NOVAS EXPERIÊNCIAS DO
ESPÍRITO EM NOVOS POVOS E CULTURAS.
Desde os primórdios de sua história o homem foi se tornando humano, isto é,
tornando-se o que ele é, em relação com o que ele não é: primeiro com os animais,
depois, com as plantas e, por fim, com as pedras. Em seus relacionamentos com os
animais e com as plantas o homem experimentou a sua primeira humanização: a
evolução natural-orgânica desembocou no desenvolvimento cultural, com a descoberta
do fogo e a invenção de ferramentas, a formação da linguagem, a organização em
grupos e em comunidades, a instituição de tabus, a criação de mitos.
Em seus relacionamentos com a pedra, o homem chegou às altas culturas:
cultuou os mortos, inventou a escrita, descobriu as leis, as cidades, o deus e os deuses,
a tradição, a história. Com a descoberta da história, experimentou e concebeu a
tradição, a transformação, o porvir, a passagem em épocas. Erguendo pedras, buscava
erigir a si mesmo. Menires, dolmens, estelas, obeliscos, pirâmides (Egito, México, Peru),
zigurates, estupas, pilares, colunas, templos, testemunham esta busca. O homem
buscava tornar-se ereto e reto no mundo, bem assentado na terra e elevado para o céu.
A cidade e o Estado nascem de todos estes esforços. Neste movimento encontraram-se
povos e culturas aos quais estão relacionados nomes como Uruk, Ur, sumérios, acádios,
assírios, babilônios, fenícios, hititas, egípcios, Creta, Micenas. No extremo oriente
asiático, destacam-se a Índia e a China. Nesta era de sua humanização, o homem
aprendeu a se beneficiar dos grandes rios (Nilo, Tigre e Eufrates), chegou à regulação
das correntes fluviais, à criação de cidades, à centralização do poder, à burocratização;
à invenção da escrita (sumérios: c. 3300 a.C; egípcios: c. 3000 a.C; china: c. 2000 a.C;
fenícia: alfabeto – c.1000 a.C). Surgiu a classe dos escribas, que eram funcionários da
administração estatal e, ao mesmo tempo, a aristocracia intelectual. De início, formam-
se povos com unidade de língua, cultura e mitos. Mais tarde aparecem impérios: o
assírio e o egípcio, o hindu e o chinês. O homem passa a viver a partir da sua consciência:
exercita a memória e a racionalização. Despontam-se as figuras de soberanos e sábios.
O homem tem consciência da fugacidade das coisas e dele mesmo e anseia pela
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imortalidade. Escritos como o “Diálogo do cansado da vida com sua Alma” (Egito); e a
epopeia de “Gilgamesch” (Babilônia) traduzem algo das tradições sapienciais destas
culturas.
As ideias primitivas que nessas etapas é possível
detectar constituem a primeira condição imprescindível de
todo o desenvolvimento ulterior do espírito humano. Entre
tais ideias apresentam-se, por toda a parte, estas: o culto dos
mortos, o animismo, a adoração das potências que
condicionam o homem, vinculada especialmente ao
espetáculo e à contemplação dos astros, a consciência de
responsabilidade contida no direito e o prestígio divino dos
costumes, do direito e das instituições4.
De uma grande crise desta era histórica das altas culturas e da ruptura com seu
modo de ser, irromperam as culturas do novo tempo, aquele que Karl Jaspers chamou
de tempo-eixo (entre os séculos VIII e V a.C.)5. Se as culturas do Egito e da Babilônia
representaram a configuração mais grandiosa das altas culturas dos primórdios, as
culturas que emergem da crise do tempo-eixo abriram novas possibilidades históricas
para o futuro: chineses, hindus, iranianos, judeus e gregos tiveram este papel6.
Eis, pois, que soprou sobre a face da terra um novo vento, que fez despertar o
espírito dos povos. Entre estes, as destinações de três povos possibilitaram as eras
vindouras no oriente e no ocidente: os hindus e os chineses criaram as condições do
modo de ser oriental; os gregos, as do modo de ser ocidental.
Este tempo de crise e de ruptura, mas, ao mesmo tempo, de irrupção do novo
entre os povos, foi experienciado como um extraordinário despertar do espírito
4 Dilthey, Wilhelm. História da filosofia. São Paulo: Livraria Exposição do Livro, s/d, p. 11. 5 Jaspers, Karl. Origen y meta de la historia. Madrid: 1968, p. 20-21. 6 Karl Jaspers anota que Egito e Babilônia não conheceram a crise e, por isso, também não conheceram a transformação. Continuaram sendo o que eram, em sua configuração, que incluía a ordenação da vida social e estatal, a arquitetura e a pintura, a religião mágica. A cultura babilônica desembocou e sumiu na cultura persa primeiramente, e, depois, na cultura sassânida e no islamismo. Já a cultura egípcia foi absorvida no mundo greco-helenista primeiramente, e, depois, na cultura romana e no cristianismo. Foi contrapondo-se a estas culturas que judeus e gregos configuraram suas próprias identidades, tão importantes para o mundo ocidental.
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humano. Foi como que o irromper de uma nova humanização do homem: uma nova
experiência e compreensão de ser. Karl Jaspers assim descreve este despertar:
A novidade desta época constitui no fato de que nos
três mundos o homem se eleva à consciência da totalidade
do ser, de si mesmo e de seus limites. Sente a terribilidade
do mundo e a própria impotência. Formula perguntas
radicais para si próprio. Aspira, desde o abismo, à libertação
e à salvação; enquanto toma consciência de seus limites,
propõe-se a si mesmo as finalidades mais altas. E, enfim,
chega a experimentar o incondicionado, tanto na
profundidade do próprio ser, como na claridade da
transcendência. Isto resulta da reflexão. Um dia a
consciência se faz consciente de si mesma, o pensamento se
volta para o pensamento e o faz seu objeto. Produzem-se
combates espirituais pelo intento de convencer os demais
mediante reflexões, raciocínios, experiências. Ensaiam-se as
posições mais contraditórias. A discussão. A formação de
partidos, a divisão do espiritual, cujas partes, não obstante,
relacionam-se entre si na forma de contraposição, geram
inquietude e movimento até lidar com o caos espiritual.
Nesta época constituem-se as categorias com as quais
pensamos, e se iniciam as religiões mundiais das quais vivem
os homens ainda hoje. Em todos os sentidos, os homens se
põem de pé no universal. Em virtude deste processo, as
concepções, os costumes, as situações são submetidas a
exame e à prova, postas em questão, dissolvidas. Tudo cai no
vórtice. O que da substância transmitida tradicionalmente
estava vivo até então na realidade foi esclarecido em suas
manifestações e de modo transmudado7.
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Esse vento trouxe novo alento à humanidade. Na China surgem os sábios
Confúcio e Lao-Tsé, meditam Mo-Ti e Chuang-Tsé. Na Índia surgem os Upanischades e
vive Sidarta Gautama, o Buda.
No oriente-médio, mais precisamente na mesopotâmia (Irã), Zaratustra ensina a
sua doutrina do combate entre o bem e o mal. Na palestina, em Israel, aparecem os
profetas, desde Elias e Eliseu, seguidos por Isaías e Jeremias e outros profetas, até Ageu
e Zacarias (c. 515)8.
E, na Grécia, entre os séculos VII e V, surgiram aqueles que chamaremos de os
pensadores originários, que antecederam aos filósofos decisivos para o ocidente,
Sócrates, Platão e Aristóteles.
São três mundos históricos. Três figuras do espírito: o sábio, o profeta e o
pensador-filósofo.
O sábio faz a experiência do espírito como o que está nele, na sua intimidade. A
unidade de espírito e homem se chama, aqui, iluminação. Para apenas indicar esta
experiência do espírito, própria do sábio, no oriente, vamos trazer algumas imagens e
os seus respectivos comentários, feitos por Heinrich Rombach.
8 Entre os profetas podemos lembrar, em tempos mais arcaicos, as figuras de Abraão e a de Moisés; em tempos mais recentes, a figura de Maomé. Assim como Moisés foi fundamental para a constituição de Israel, Maomé foi fundamental para a fundação do Islamismo.
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“Iluminação”9
“Quem possui iluminação é um sábio. Como galos de briga estão as coisas postas umas contra as outras. O sábio não perturba este processo, ele o mantém no equilíbrio, ele evita a unilateralidade. No equilíbrio vive afinação, na afinação, a vida se equilibra. Iluminação é o nível mais elevado a partir do qual a afinação é vista, vivenciada, devida e gozada. Descobre afinação somente quem não a procura em determinadas leis em determinadas ordens. Ela reluz em tudo, mas somente para quem sabe captá-la fulminante a partir do Nada do entremeio. Iluminação inesperada.
9 Rombach, Heinrich. Leben des Geistes: Ein Buch der Bilder zur Fundamentalgeschichte der Menschheit. Freiburg/Basel/Wien: Herder, p. 179.
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A imagem do Iluminado
Aparece aqui como monge mendicante, que todos os seus haveres leva numa mochila. Ele possui tanto, que é independente dos outros, e ao mesmo tempo tão pouco, que é independente de si mesmo. O sábio dança quando caminha; jovial e vivaz mantém-se a massiva figura no topo como um círculo. Nele se une redondo com agudo, plenitude com ponto, perfeita quietude com uma traquina mobilidade. Nisto se anuncia o Tao. Iluminação. Isto significa jovial felicidade. O sábio sente equilíbrio, goza do Tao em si e em tudo”10.
10 Rombach, Heinrich. Leben des Geistes: Ein Buch der Bilder zur Fundamentalgeschichte der Menschheit. Freiburg/Basel/Wien: Herder, p. 182.
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Lao-Tse
Segundo a legenda, viveu na China, alguns séculos antes de Cristo, um sábio, Lao-Tse, o qual, a partir da experiência do caminho, formou um profundo ensinamento. O livro, que a ele é atribuído, é denominado Tao-te-king, o livro do caminho e do atuar. Em 81 estrofes ele traz à fala a experiência do caminho. A experiência do Tao é originária e autônoma. Ela se encontra, em formas transformadas, também em outras culturas e religiões. Imediatamente pertinente é a experiência da iluminação. O que diz iluminação pode ser deduzido somente a partir do conhecimento do caminho...
Entretanto, o que é, como é a experiência do caminho?
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Caminhar é pois radicalmente abrir-se ao nascimento do sentido. Esse caminhar não tem fim. Ele mesmo como a liberdade do manancial do sentido é propriamente princípio e fim. A experiência do originário, isto é, da fonte nascente do sentido do ser, que Lao Tsé chama de Nada é via, o Tao que constitui a essência do homem. Homem é o olho d’água do manancial do sentido do ser e como tal ele é o en-vio que se perde, se abandona à e é usado pela Nascividade do Nada11.
11 Harada, Hermógenes. A via de Chuang Tzu, p. 3 (texto datilografado).
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A nascividade do nada dando-se como nascedouro do sentido no caminho
aparece também num comentário de Koichi Tsujimura a uma pintura Liang K’ai, do
século XII intitulada “O Sakyamuni que desce a montanha”. Ele desce da montanha,
caminhando em direção ao vale, ao mundo do cotidiano dos homens, como o iluminado.
O seu caminhar se dá como o acontecer da abertura da liberdade na claridade da
verdade. Caminho é, aqui, abertura de liberdade e abertura de liberdade é, aqui,
caminho. Isto quer dizer: uma abertura-de-liberdade que se movimenta, se põe a
caminho, e um caminho que se abre no viger da liberdade e se ilumina12. O título que
acompanha a imagem é: “No meio do nada há um caminho”. O nada é, pois, o medium
do caminho. A nascividade do nada é o que deixa-ser o caminho como caminho, isto é,
como abertura de liberdade. Ao comentar sobre a figura de Sakyamuni propriamente,
Tsujimura diz:
Mas, a quem se manifesta esta realidade [a realidade profunda das coisas que o circundam]? Ao que está descendo a montanha ele mesmo, primeiramente, aos seus olhos e ouvidos. Seus olhos veem de modo nítido e penetrante, mas eles miram para nenhuma coisa, eles até mesmo já não ficam fixados a alguma coisa de determinado. Seus olhos veem todo e cada visível e ao mesmo tempo todo e cada invisível – eles atravessam com o olhar todas as coisas. Neste sentido, os seus olhos veem Nada. Somente neste ver do nada (genitivo objetivo) se manifesta a realidade de todo e de cada visível e invisível. No manifestar-se desta realidade o vidente ele mesmo se torna nada, no sentido de nenhum algo. Se o vidente permanece algo de determinado, ele não consegue ver esta realidade. Logo, o vidente mesmo é, aqui, para dizer com uma palavra de meu amigo Ueda, “o nada”13.
Em lugar do êxtase, entra a quietude. Em lugar da irrupção para fora, para junto
dos homens, para denunciar e anunciar, ou para dentro de Deus, pelo êxtase, o retorno
para dentro. Em lugar da palavra, o silêncio. É o caminho do oriente asiático, que se
12 Sein und Nichts, p. 36. 13 Sein und Nichts, p. 40.
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diferencia tanto da experiência filosófica do ocidente quanto da experiência profética
judaica.
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O profeta faz a experiência do espírito divino como aquele que lhe sobrevém,
que faz a sua vida dar um giro, uma guinada, que o avassala, e que o elege para ser seu
porta-voz. Ele é um vidente: na vigência do presente percebe a vigência do ausente, isto
é, do passado e do futuro, ao mesmo tempo. O profeta segue um chamado, que se dirige
a ele, mas que, não raro, vai contra ele e contra o seu povo. Ele é chamado a profetizar
contra seu povo e contra o seu mundo. A estes ele aponta e faz notar as suas errâncias
e as suas iniquidades. Sua palavra é clara, ardente e apaixonada, quer em denunciar as
injustiças, quer em anunciar a salvação que vem de Deus – um Deus transcendente,
criador do mundo e senhor da história. A experiência profética do espírito é a do êxtase:
o homem é lançado para fora de si mesmo14. Mas, desde o êxtase, ele é conduzido
sempre de novo a se envolver com a destinação histórica dos homens. Do espírito
profético o ocidente herdou o ímpeto da revolução, do rompimento e da irrupção com
o mundo dado, a busca de novas arrancadas históricas, na direção do futuro.
O pensador faz a experiência do espírito a partir da autonomia do pensar. Pensar
quer dizer, aqui, viver a partir da própria profundidade, criativamente. O pensar, do que
proveio a filosofia, é, porém, aqui, algo de diverso da atividade de conhecer objetos, de
que proveio a ciência. Pensar quer dizer, originariamente, acolher o mistério da
realidade irrompendo nas realizações do real e a ele corresponder. Desde que o pensar,
porém, tornou-se filosofia, passou a se pôr como a ousadia de perguntar pelo sentido
de ser de tudo o que é. E este perguntar estava a serviço do próprio viver do homem.
Por isso:
Para se encontrar com o pensamento grego, deve-se
ter uma pergunta apenas: a pergunta que brota da unidade
14 Filon de Alexandria (nascido entre os anos 20 e 10 a. C e morto cerca do ano 41 d.C.) foi o primeiro judeu a inserir a mensagem bíblica e a experiência profética do espírito em diálogo com a filosofia grega. No êxtase místico, o homem se esvazia de si mesmo, se esvazia mesmo de seu intelecto ou pensamento (nous), para receber em si a plenitude do espírito divino (pneuma). Enquanto, para o grego, a experiência máxima do espírito era o intelecto (nous), para Filon, esta experiência é a de ser arrebatado pelo espírito divino, como no caso dos profetas. Se o grego experimenta o espírito em si mesmo como intelecto (nous), considerado o divino no homem (Aristóteles), o profeta experimenta o espírito (pneuma) como vigor divino que inspira. Na compreensão grega, o espírito (nous) está na posse do homem. Na compreensão profética, o homem é que está na posse do espírito (pneuma) e só estando nesta posse do espírito é que ele é plenamente homem, consumando a sua natureza transcendente. Na Idade Média, Moisés Maimônides, o maior dos pensadores judeus medievais, dirá que o verdadeiro filósofo é o profeta. No entanto, na modernidade, outro judeu, Spinoza, irá considerar a profecia algo de nível inferior ao conhecimento intelectivo, pois pertencente ao âmbito do conhecimento imaginativo.
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de nosso ser. Por isso, é importante deixar a periferia e ir
para o centro da vida. Pois, somente no centro a pergunta é
essencial. No centro, todo nosso ser transforma numa única
pergunta. Todo o nosso ser é pergunta. Ser todo pergunta
em qualquer estudo da Filosofia Grega é a única maneira de
se aprender a pensar o que pensavam os pensadores
gregos15.
O pensador é aquele que, na época do pensamento originário, vive da inquietude
do corresponder ao mistério de ser, em sua doação e em sua retração, e que, na época
da filosofia, vive da inquietude do perguntar pelo sentido de ser de tudo o que é. Pensar
não é conhecer objetos. Pensar é interrogar para além de todo o conhecido. Pensar é
erguer-se para além de todo o familiar e criar. A atividade criativa do pensar provém do
fogo de Prometeu. Irmão do pensar é o poetar. Irmão do pensador, o poeta.
2.2.3. FILOSOFIA COMO ATITUDE DE AUTONOMIA
A filosofia é um saber humano, logo, finito. Um animal não pode filosofar. Um
deus não precisa. Filosofar é um apanágio da finitude humana. E nessa finitude o homem
realiza o máximo empenho de sua autonomia. Autonomia significa, aqui, o empenho do
homem de erguer-se a si mesmo, de colocar-se de pé a si mesmo a partir de si mesmo,
tudo isso, porém, no seu relacionamento com o todo, em sua abertura para com a
imensa vastidão do ser.
Filosofia não é doutrina. É ação. Práxis de pensamento. Nessa práxis, o
pensamento não só se abre à imensa vastidão do ser, mas procura sondar sua
profundidade abissal e investigar sua originariedade, sua principialidade. Enquanto
movimento, práxis, de pensamento, o que mais importa na filosofia não são os
conteúdos, mas sim a forma de realização, de exercício, do pensar. E essa forma de
realização, por mais varidada que ela seja, faticamente, traz em seu fundo o caráter do
empenho da autonomia.
15 Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia Grega, uma introdução. Teresópolis: Daimon, 2010, p. 28.
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O espírito filosófico, em sua forma de realização, isto é, em seu caráter de
finitude e autonomia, emergiu entre os gregos. Os gregos são o oriente do ocidente. Por
isso, a história ocidental é, no seu cerne, filosófica. Isto quer dizer: a história ocidental
é, no modo e na dinâmica de seu encaminhamento mais íntimo, filosófica. Kant, na sua
preleção sobre a lógica (seção IV), dizia o seguinte: “não se pode determinar
propriamente quando e onde o espírito filosófico surgiu entre os gregos”. De fato, se
considerarmos um espírito, isto é, um força de vida e de iluminação, não pode ser
circunscrita precisamente em lugares e tempos. E, no entanto, podemos pressentir,
numa visão retrospectiva, algo do começo da filosofia, entre os gregos, num
determinado momento de sua história. O começo da filosofia é um acontecimento que
não ficou, porém, num passado que simplesmente passou. Ele é um acontecimento que
originariário, isto é, que atesta a força de uma origem. A filosofia está na origem e não
só no começo da história ocidental. Enquanto originário, o vigor da filosofia está vigente,
ainda de uma forma latente, em toda a história do ocidente, tanto na sua cadência mais
vigorosa quanto em sua decadência e em sua perda de vigor.
Em uma conferência pronunciada em 1935, Husserl, meditando sobre “A crise da
humanidade europeia e a filosofia” retomou este caráter decisivo que a filosofia tem
para a história ocidental. Na sua consideração, a Europa tinha um registro de
nascimento, isto é, um lugar e um tempo de seu nascimento espiritual. Ele escrevia:
A Europa tem um lugar de nascimento. Com isso não penso num território geográfico, embora também tenha tal, mas no lugar espiritual de nascimento, em uma nação, ou em indivíduos ou grupos humanos desta nação. Tal nação é a Grécia antiga do século VII e VI a. C. Nela surge uma nova atitude de indivíduos para com o mundo circundante. E, como consequência, irrompe um tipo totalmente novo de criações espirituais, que rapidamente assumiu proporções de uma forma cultural bem delimitada. Os gregos chamaram-na filosofia. Corretamente, traduzido, conforme o sentido original, este termo é um outro nome para ciência universal, a ciência da totalidade do mundo, da unidade de todo o existente. Bem depressa começa o interesse pelo universo e com ele a indagação pelo devir que engloba todas as coisas e pelo ser no devir, especifica-se segundo as formas e
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regiões gerais do ser e, desta maneira, a filosofia, a ciência uma, se ramifica em múltiplas ciências particulares. Na irrupção da filosofia tomada neste sentido, incluindo nela todas as ciências, por paradoxal que pareça, vejo o fenômeno original (Urphänomen) que caracteriza a Europa sob o aspecto original16.
Husserl entendeu que esta nova atitude de autonomia na investigação do
sentido do ser do ente no todo, que caracteriza a filosofia, trouxe consigo uma
verdadeira revolução na experiência grega da historicidade. Com ela, o homem foi posto
em face a tarefas infinitas de investigação. Esta revolução, esta mudança radical na
historicidade, aconteceu, de início, em pequenos círculos de filósofos.
Tudo isso não exclui que os gregos não tenham recebido muito das tradições
sapienciais de povos mais antigos, como a dos egípcios, dos babilônios, etc. Também
não exclui que outras tradições sapienciais tenham chegado a grandes realizações
próprias, com seu caráter peculiar, como, por exemplo, as tradições indiana, chineza,
etc. Isso também não significa querer afirmar qualquer supremacia da Grécia, da
Europa, do ocidente. As riquezas e as especificidades das tradições sapienciais de outros
povos não são recusadas. O que está em questão, aqui, porém, é perceber o papel
histórico primordial da Grécia para a Europa e para o ocidente, e, nisso, a contribuição
fundamental do espírito filosófico.
O despertar do espírito filosófico é indicado por Husserl nestes termos:
Prometeu traz o logos divino a alguns indivíduos isolados que levam avante a tarefa do espírito que algum dia iluminará e transformará todo o universo humano. Apelaremos a algum milagre? Naturalmente, todo o conhecimento histórico novo tem sua motivação e é uma tarefa especial esclarecer como se originou aquele tipo de humanidade grega no século VII e VI a.C., no contato com as nações vizinhas e com as culturas nacionais, como se produziu aquela mudança de atitude que conduziu ao famoso thaumátzein (sic), que os
16 Husserl, E. A crise da humanidade europeia e a filosofia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, p. 66.
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mestres do primeiro apogeu da filosofia, Platão e Aristóteles, consideraram a origem da filosofia17.
Para Husserl, essa origem da filosofia tem a ver, pois, com uma mudança radical
de atitude para com o todo. Esta mudança é caracterizada como um interesse
puramente teórico pelo conhecimento. Husserl assim caracteriza este empenho da
filosofia:
Não se trata de mera curiosidade desviada da seriedade da vida, com sua preocupação e esforço, que vem a ser puro interesse casual pelo puro e simples ser e ser-assim dos dados do mundo circundante e mesmo de todo o circum-mundo vital (Lebensumwelt). Este interesse é essencialmente análogo aos interesses profissionais e às atitudes profissionais que suscita. Em relação a todos os outros interesses tem o caráter de um interesse absolutamente-não prático e que envolve todo o universo. O homem dispõe antecipadamente sobre toda a vida voluntária futura e traça, em consequência, o horizonte que conscientemente será seu campo de trabalho. Apodera-se, pois, do homem a paixão por um conhecimento que transcende toda práxis natural da vida com seus esforços e suas preocupações diárias e transforma o filósofo em espectador desinteressado, em um contemplador do mundo18.
A busca da verdade, neste sentido, se volta para o futuro, num empenho de
radical autonomia de questionamento. O homem se dispõe, assim, a transcender o bom
senso cotidiano e a sabedoria de uma tradição e sua interpretação já consolidada de
mundo. Ele busca a verdade do todo. Consagra toda a sua vida futura à tarefa da teoria,
da busca da verdade por causa da verdade. O vigor interrogativo desta forma desta
experiência de pensamento é marcada por uma grande audácia. Nele e por ele o homem
deixa as margens de segurança do bom senso e de uma sabedoria já estabelecida. A
filosofia é uma forma de pensamento marcada por uma postura crítica radical. Com
efeito, por ela e com ela o homem se decide a não admitir, sem questionar, nenhuma
17 Husserl, E. A crise da humanidade europeia e a filosofia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, p. 69. 18 Husserl, E. A crise da humanidade europeia e a filosofia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, p. 68.
20
opinião aceita, nenhuma tradição, nada que se apresente como pré-dado. Isso acarreta
consigo uma transformação radical, uma revolução, no modo de entender a educação
dos jovens. A tarefa pedagógica da filosofia, que lhe pertence intrinsecamente, e que
não lhe é aplicada de fora, é revolucionária. A filosofia é um ofício, uma profissão,
dedicada a esta tarefa pedagógica da autonomia e da crítica.
Crítica é, porém, a filosofia não somente por ser questionadora de todo o
sentido, de toda a posição e pressuposição. Crítica é a filosofia separar -
(krínein) – ente e ser. A filosofia encara o ente não como o meramente posto, o
mero positivo. Ela encara o ente na perspectiva do questionamento pelo seu ser – seu
fundamento e sentido. Para a consciência que se perdeu no mundo – no positivo do
ente – este questionamento soa como negativo. O ser nada é - é uma nulidade para
aquele que está com o olhar fixado no ente. O ser – o fundamento e o sentido do ente,
permanece, com efeito, encoberto, velado a um olhar assim fixado. Está certo – o ser
não “é” ente. E, no entanto, não é uma nulidade. Para o pensamento filosófico é o que
há de mais positivo19.
A filosofia é um exercício finito e autônomo de questionamento do ser – do seu
sentido, da sua verdade. Tudo o que a filosofia pergunta e responde é uma repercussão
desta questão.
... a questão filosófica do Pensamento não é uma questão entre outras. É a única questão, por ser ao mesmo tempo a mais universal e a mais concreta, a mais simples e a mais difícil, a mais indeterminada e a mais determinante. É a questão que mais nos tem, atém e detém, a única que, em sua obscuridade mesma, esclarece e nutre todas as demais questões. Sendo a questão extraordinária, tem por instância o ser, fundo de sustentação (hyp-archei) de todo é, de todo era, de todo será: o verbo mais ordinário e banal, a experiência mais corriqueira e comum, a primeira palavra das línguas ocidentais, em que desde sempre a Linguagem nos é concedida.
A audácia da questão filosófica não tem limites. O pensamento se entrega todo a questionar.
19 Heidegger, M. Grundbegriffe der antiken Philosophie. GA 22. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, p. 7- 11.
21
A interrogação é levada até os confins das possibilidades interrogativas e corta para si mesma qualquer ajuda que não advenha da própria interrogação. Isso significa: na Filosofia, pelo tremor da vertigem interrogativa, o próprio real cambaleia em toda a sua extensão. Falta-lhe o chão e se apresenta a finitude do questionamento. Abre-se o abismo do Nada, que o questionamento não consegue exorcizar de todo. O Nada nunca deixa de constituir a terra natal de todo questionamento, a fonte de qualquer interrogação, a própria possibilidade de arrar e mover-se de sua audácia de pensamento20.
A filosofia é o ofício de aprender e ensinar a pensar. No exercício da filosofia tudo
é reconduzido ao abismo desvelante do ser. O exercicio da filosofia cria assim uma
humanidade especial e uma profissão especial com uma nova criação de cultura21.
Embora não utilitário, isto é, não voltada para interesses do útil imediato, este ofício é
útil, no sentido de ser altamente salutar, para os homens. Nele se dá a utilidade do
desútil, a necessidade do desnecessário, da liberdade. Se com a filosofia não se pode
fazer nada, não quer dizer que ela não possa fazer algo com quem com ela se ocupa. E
isso repercute sobre todo um povo, toda uma sociedade. Husserl diz:
O conhecimento filosófico do mundo origina não só esses resultados especiais, mas um comportamento que repercute de imediato em todo o resto da vida prática, com todos os seus fins e sua atividade, ou seja, os fins da tradição histórica, na qual somos engendrados e daí adquirem valor. Forma-se uma comunidade nova e espiritual (innige), poderíamos dizer, uma comunidade pura de interesses ideais entre os homens que se dedicam à filosofia, unidos na dedicação às ideias que não são só são úteis para todos, mas são identicamente patrimônio de todos. Constitui-se, necessariamente, uma comunidade de tipo especial, na qual cada um trabalha com o outro e pelo outro, exercendo uma crítica construtiva em benefício mútuo, e na qual se cultivam os valores puros e incondicionais da
20 Leão, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a Pensar I: o pensamento na modernidade e na religião. Teresópolis-RJ: Daimon Editora, 2008, p. 159-160. 21 Husserl, E. A crise da humanidade europeia e a filosofia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, p. 71.
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verdade como um bem comum. A isso se acrescenta a tendência necessária da transmissão desse tipo de interesse, fazendo compreender a outros o que se quis e obteve e a tendência a incorporar pessoas sempre novas, ainda não-filósofos, na comunidade dos que filosofam (...). Combater-se-ão entre si os conservadores satisfeitos com a tradição e o círculo dos filósofos numa luta que, certamente, se travará na esfera do poder político. Já na aurora da filosofia começa a perseguição, o desprezo pelos filósofos. E, apesar disso, as ideias são mais fortes que todas asf forças empíricas. Deve levar-se em conta também que a filosofia surge de uma atitude crítica universal contra tudo tradicionalmente pré-estabelecido e não é detida em sua propagação por barreiras nacionais (...). Desse modo, a subversão da cultura nacional pode estender-se, primeiro na medida em que a ciência universal, ela mesma em vias de progresso, se torna um bem comum para as nações inicialmente estranhas umas às outras, e a unidade de uma comunidade científica e cultural penetra a maioria das nações22.
A filosofia tem, assim, a função de uma reflexão livre, universal, teórica. Ela é
uma transformação do modo de viver humano a partir da autonomia do pensamento.
O filósofo é, fundamentalmente, um pesquisador. O que é ser pesquisador? Quando
falamos de ser pesquisador, parece vir-nos à mente a idéia de uma disposição humana
sensível e aberta para uma busca inesgotável, inexaurível, sim, infinita. Pesquisar
significa estar numa tal disposição. Esta, por sua vez, exige uma acribia, um rigor, uma
precisão toda própria: a acribia do ver. O pesquisador é alguém que conquistou a acribia
do ver, ou melhor, do descobrir. Não é simplesmente aquele que vê coisas que todo o
mundo, no cotidiano, não vê. É, bem mais, alguém que aprendeu a ver de modo
diferente aquilo que todo o mundo supõe já saber. Por isto, não se pode ser pesquisador
sem a coragem do questionamento. Para o pesquisador, nada está pensado ou
conhecido definitivamente. Tudo está por pensar e conhecer. E aquilo que alcançamos,
a cada vez, é sempre o provisório. Ser pesquisador requer autonomia, portanto.
Autonomia e sentido da liberdade. Liberdade das crenças e opiniões em que nos
movemos, na maior parte das vezes, em nosso cotidiano. Liberdade para engajar-se com
22 Husserl, E. A crise da humanidade europeia e a filosofia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, p. 71-72.
23
todas as forças e recursos, na busca do descobrimento de novos conhecimentos e de re-
pensar o já pensado, na atitude de espera do inesperado, de manifestação do
impensado. Liberdade, enfim, para a fecundidade do criar, mais do que pra o afã e a
sanha do mero reproduzir. Com efeito, se a fecundidade do criar nos achega aos
movimentos mais íntimos da natureza e do espírito, e nos torna semelhantes ao divino
mesmo, a profundidade de um mero produzir nos aproxima do mundo morto das
máquinas.
Na verdade, talvez o que chamamos de pesquisa, em filosofia, careceria de ser
chamado, melhor, de investigação. Na filosofia, o buscar se faz pergunta. Trata-se de um
perguntar, porém, que não se deixa despachar por alguma resposta. As perguntas
filosóficas jamais são despacháveis. Elas permanecem sempre em aberto. Por sua vez,
as respostas nelas emergentes só são filosóficas se estão à altura das perguntas, ou seja,
caso sejam tão somente correspondências, sempre provisórias e apenas alusivas, àquilo
que faz perguntar a pergunta. Não só. Na filosofia, as perguntas se transformam em
verdadeiras investigações. Isto quer dizer, na filosofia, mestre não é quem sabe as
respostas, mas é quem saber perguntar as perguntas certas, do jeito certo. O jeito certo
de perguntar, porém, não é algo assim como uma técnica, mas é um cuidado por tornar
transparentes as perguntas, por deixar que as perguntas sejam propriamente perguntas.
E as perguntas são propriamente perguntas não somente quando questionamos acerca
de algo, do modo como este algo exige ser perguntado, mas também e, sobretudo
quando somos questionados neste questionar. O perguntar filosófico é algo de humano,
demasiado humano. Nós humanos somos seres que perguntam e, isto quer dizer, não
somente somos seres que têm perguntas, mas seres que são tidos, contidos, retidos
pelas perguntas mais fundamentais e essenciais. No fundo, não somente temos
perguntas ou somos tidos por elas, mas nós somos, no fundo, perguntas. O questionar
filosófico é, sim efeito, uma experiência radical da finitude humana, de sua última
solidão na suspensão do todo o saber, onde ecoa, repercute, a percussão do toque de
uma pergunta originária, vasta e profunda, que nos atinge e nos faz investigar, sempre
de novo, o sentido de tudo aquilo que é, enquanto é; faz-nos querer ver aquilo que se
mostra, tal como se mostra; faz-nos, sim, até mesmo, perseguir aquilo que não se
mostra, aquilo que se retrai, e que, retraindo-se, colhe-nos na tração de seu
24
retraimento, atraindo-nos na afeição de sua busca. Assim, estudar filosofia é empenhar-
se na busca do perguntar que se faz investigação radical. É o cuidado por um tal
empenho.
Entretanto, o sentido deste empenho: de onde vem? Por que nos empenhamos
na pesquisa científica ou na investigação filosófica? De onde nos vem a tendência para
o perguntar, para o descobrir, para o ver? Não vem, certamente, do âmbito de nossas
necessidades de sobrevivência. Vem, talvez, do fundo da essência de nosso próprio
viver, do âmbito de nossas necessidades mais livres, aquelas que nos impelem a buscar
o sentido de ser de tudo aquilo que, de alguma forma, é, o sentido de ser de tudo aquilo
que somos e de tudo aquilo que não somos. É que a filosofia, mais do que uma pesquisa
sobre fatos, é uma investigação sobre a essência, o sentido, o modo de ser, o sentido de
ser de tudo quilo que é. Nesta investigação, a filosofia é a radicalização de uma
tendência, de uma possibilidade, sim, de um gosto e de uma necessidade, radicada no
âmago mesmo do nosso ser: a necessidade da busca da verdade. Esta necessidade é, em
nós, tão profundamente radicada, que nenhum ceticismo pode erradicá-la. Por outro
lado, ela é tão finita que, esbarrando-se, sempre de novo, nos nossos limites em trazê-
la à fala e em demonstrá-la, impossibilita também todo o dogmatismo. A necessidade
da verdade. Não é isto que, em última instância, move o estudar filosófico? O que a
investigação filosófica visa, no fundo, não é dar corpo a uma tendência radical de nosso
próprio ser, isto é, aquela de seguirmos o desvelar por causa do próprio desvelar?
Aquela de deixar ser o desvelar numa fala que diz o que se desvela e que, neste dizer,
parte do próprio desvelar e faz aparecer o seu teor? Não está radicado em nós, como a
tendência mais natural, como a possibilidade mais originária ou como a necessidade
mais livre, o desejo de ver aquilo que se mostra, tal como se mostra, a partir de si
mesmo?
2.2.4. FILOSOFIA COMO THEORIA DO SER.
A práxis de pensamento, chamada de filosofia, seria, assim, uma ação que se
empenha toda no (theoreín), na ação chamada (theoría). Estas palavras
25
remetem, por sua vez, a (theorós): o expectador, aquele que se empenha em
ver, em observar. Assim era chamado alguém que era enviado a consultar um oráculo;
alguém que ia assistir a uma festa religiosa; o expectador de um espetáculo no teatro;
um embaixador. Apolo Pítio, deus dos oráculos, tinha o epíteto de (theários)
(em dórico se dizia - theórios). O verbo (horáo) significa: ver alguma coisa,
mirar, prestar atenção em alguma coisa, tomá-la sob os olhos, percebê-la com a vista.
(theoría) significa, inicialmente, o envio de embaixadores para uma festa que
celebrava os deuses - (theói). Para os gregos, os deuses, com efeito, eram
cintilações e doações do mistério de ser, o extrordinário do ordinário, que se mostra
quando o homem tem o olhar do (thaumádzo), do maravilhamento.
(theoría) seria, então, o olhar que se dirige atentamente à (theá) – isto é, à
deusa? Lembremo-nos que, no seu poema, Parmênides é conduzido pelas Heliades, as
filhas de Helios, o Sol, à (theá) – à deusa. Seria esta deusa o espetáculo mais
extraordinário que se dá em todo o ordinário, isto é, a revelação do ser, a
(alétheia), isto é, a verdade em sentido transcendental, que acontece antes de
tudo, como a manifestação do ser mesmo? Entre as deusas havia uma evocada sob o
nome de (theía). Irmã e Consorte de Hipérion (deidade da luz), ela é a mãe de
Helios (o Sol), de Selene (a Lua), e de Eos (o Amanhecer). É a deidade de que provém,
enfim, a luz, o brilho. Píndaro a celebra em sua V Ode Ístimica. Poderíamos entender o
sentido grego originário de (theoría) a partir de (theá) – deusa, e de
(óra), que quer dizer, respeito, honra, veneração, consideração. (theoría)
seria, assim, a consideração respeitosa da (alétheia), isto é, da re-velação do
ser; seria a visão protetora da verdade23.
(theoría) significava também, num sentido mais amplo, olhar com
atenção, observar. A partir de Platão a palavra (theoría) adquire um outro
sentido. Em vez da composição de (horáo), olhar, ver, mirar, observar, com
(théa): a visão, a vista, o aspecto, o espetáculo que alguma coisa oferece de si. Esta
palavra, por sua vez, remete a (tháuma): aquilo que é visto se manifestando
como algo digno de admiração, de maravilhamento. (thaumázo) é o próprio
23 Heidegger, M. Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 46. O étimo do antigo alto-alemão wara remonta ao mesmo étimo que o grego (horáo) e (óra): F(wora). Daí vem: wahr, verdadeiro; währen: preservar; Wahrheit: verdade.
26
maravilhar-se, o admirar, o honrar e venerar. É o princípio, segundo Platão e Aristóteles,
da filosofia. Filosofia é, pois, o maravilhar-se com o espetáculo do ser e sua verdade
(revelação). Para Platão, o ser do ente (a realidade do real), no sentido da presença
constante, a (ousía), se dá primordialmente como (théa): a fisionomia, o
perfil em que alguma coisa é e se mostra, a visão que é e oferece24. Platão chama este
perfil, em que o que vigente que se apresenta se presenta, mostrando-se naquilo que
ele é, de (eídos). Tomemos, por exemplo, a visão de várias maçãs. As
apresentações individuais são múltiplas, variam, mudam, de caso para caso, mas a o
perfil essencial é um e o mesmo e o que permanece. Esta conexão de diferença e
identidade, persistência e mudança, foi por Platão pela primeira vez compreendida e
tematizada no todo. O mesmo é o que permanece. Este mesmo é o aspecto, a cara, a
fisionomia, a vista, que algo oferece ao se nos manifestar. Em grego se chama
(eidos) ou (idéa). É o primariamente visto em sentido essencial: o que faz
com que algo seja o que ele é. Ver quer dizer, aqui, em sentido bem amplo, captar algo
nele mesmo. Neste modo de captação algo se torna acessível naquilo que ele é e no que
o perfaz, o constitui (sua essência). (theoría) é, aqui, em Platão, a disposição
constante de captar o (eidos) ou a (idéa) das coisas25.
24 Heidegger, M. Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 45. 25 Para os gregos, pois, a teoria, isto é, a consideração respeitosa do espetáculo da revelação da realidade dando-se nas realizações do real, era a atividade mais elevada, o momento prático decisivo da produção própria do pensar, que deixa vir à luz a visão essencial do real, ou seja, a visão que a coisa dá de si mesma, mostrando o aspecto típico, marcante e determinante, de sua fisionomia e do seu perfil (idea, eidos, morphé, typos).Depois, os romanos, em seu modo de considerar o dar-se da realidade, perderam de vista o espetáculo de sua revelação, e, no espírito do “divide et impera”, impostaram a teoria como contemplação (contemplatio), isto é, como demarcação e recorte (templum), no sentido de uma visão que é divisão: incisão e cisão na evidenciação da realidade. Nos primórdios da modernidade, teoria passou a ser a observação do real. É um modo de tratar a realidade de modo a alcançar o domínio e a posse do real. Teoria é uma produção, isto é, um trabalho, uma elaboração, que se dá como a execução de um projeto racional, matematizante, que se cumpre, antes de tudo, com a exploração do real (descoberta, invenção), e, além disso, como processamento e exposição do real no modo da objetividade. Por fim, em nossos tempos de baixa modernidade (ou pós-modernidade, como querem alguns), a objetividade se desfaz, e o real, tanto subjetivo quanto objetivo, aparece no modo da disponibilidade para a funcionalidade pura, para o processamento e o agenciamento sistêmico da vontade de poder. Teoria se torna, então, projeção matematizante de modelos explicativos e interpretativos, que permitem a segurança, a eficiência e a eficácia da dominação e do controle do homem sobre o real, objetivo ou subjetivo. Vê-se, assim, que “teoria” e “prática”, ciência e técnica, são um só processo de funcionamento, um só modo de dispor do real na perspectiva da funcionalidade. Nesta perspectiva, o valor do real se reduz à valência de função, de serventia, de instrumentalidade, torna-se simplesmente valor operativo. Os meios se impõem sobre os fins. O que se reconhece é, no máximo, metas de produtividade e objetivos pragmáticos. A técnica é o a priori da ciência moderna. A ciência é técnica não por aplicar seus conhecimentos ou resultados na configuração das diversas tecnologias. Também não é técnica por usar
27
Para os gregos, a (philosophía) era compreendida como uma forma
de viver, um (bíos). A vida era o “lugar” a partir do qual o filosofar se dava, com o
qual ele se relacionava constantemente e para o qual ele se voltava, sempre de novo.
Filosofia é filosofar. E filosofar é uma posição e uma atitude do homem na relação com
o todo, com a vida. Enquanto empenho de autonomia, a filosofia é, a cada vez, o modo
como o homem chega à apropriação do humano em si mesmo, ou seja, ao modo como
conquista o próprio de sua humanidade na sua singularidade. Mas para os gregos, o
mais sumo próprio coincide com a sumidade mais própria e, portanto, com o mais
universal26. Com outras palavras, um homem só conquista sua individualidade na
educação, ou seja, na e-dução da universalidade do ser-homem e do todo do ser em si
mesmo - (paideía).
Aristóteles entendeu que o sumo da vida humana consiste no
(bíos theoretikós). É a vida dedicada ao (theoreín), à
(theoría), isto é, o modo de viver de quem dá atenção ao brilho do ser e ao
espetáculo de sua revelação. É a maneira de viver de quem busca a verdade por causa
da verdade. O (bíos theoretikós), a vida de visão, de desvendamento
da realidade, de atenção respeitosa ao espetáculo da revelação do ser, é o auge, é a
atividade mais elevada, da vida de ação e de produção, o (bíos
praktikós). Por si mesma, a (theoría) é a forma mais perfeita e completa do modo
de ser e realizar-se do homem. É o relacionamento transparente com as coisas, com o
que elas mostram de si mesmas, essencialmente, em seus perfis e fisionomias, em suas
diferenças e em suas identidades comuns. Os brilhos de ser das coisas, cintilantes neste
relacionamento é o que os gregos chamavam de (theói) – deuses27.
das tecnologias para alcançar seus resultados. Ela é técnica em si mesma, desde o seu fundamento, na sua intenção mais íntima, em sua ótica mesma e no modo como ela projetar o sistema-mundo. Seu saber é poder, consiste em explorar o real em todas as suas dimensões, trazendo a descoberto tudo o que pode ser objetivado e funcionalizado, a fim de dominar e transformar. 26 Rombach, Heinrich. Die Gegenwart der Philosophie: Die Grundprobleme der abendländischen Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens. 3., grundlegend neu bearbeitete Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 48. 27 Heidegger, M. Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 45.
28
Aristóteles entendeu a filosofia como um saber que investiga o todo do ser, o
que os gregos chamavam de (tò eón) ou (tò ón). Para ele, a filosofia era
fundamentalmente uma única pergunta: (tì tò ón?). Traduz-se, usualmente:
“o que é o ente?”. Poderíamos ler com a exclamação da admiração assim: “o que? O
ente?!”. O sentido é: o que é propriamente o ente (o que está sendo em seu ser)?
Filosofia é filosofar. E filosofar é investigar esta pergunta – a saber: a pergunta pelo
(ti), pelo “o quê”, do ente, pela sua entidade, pelo seu ser. É o que mais admirável. É
o que mais ignoramos e o que é mais digno de ser questionado. Para Aristóteles, o passo
para a filosofia é dado, justamente, quando esta pergunta é investigada. Na Metafísica28
este passo é assim caracterizado:
(kaì dè kaì tò pálai te kaì nyn kaì aeì zetoúmenon kaì aeì aporoúmenon, ti tò on?) –
“e assim é, pois, aquilo para o que já outrora e também agora e sempre, em qualquer
hora, [a filosofia] se põe a abrir caminho e para o que ela sempre de novo não encontra
acesso: o que é o ente?”. Com outras palavras, o questionado desta questão
fundamental, da filosofia, para Aristóteles é: em que consiste a presença do que se
presenta e se apresenta? Nos termos de Aristóteles: (tís he ousía?). O ser
do ente, Platão determinou como (idéa); Aristóteles, porém, como
(enérgeia). A resposta de Aristóteles é: o ser do ente é (enérgeia) –
a realidade atuando na realização do real, o ser realizado, o existir em realidade. A
resposta de Aristóteles difere, assim, da resposta de Platão, a saber, que o ser do ente
é (idéa): o aspecto essencial, o perfil estrutural, a forma formadora e estruturante
do ente.
Platão e Aristóteles consideram como tema da investigação filosófica o mesmo:
o ente na perspectiva do seu ser, o ser do ente. Platão escreve:
(hau
te he ousía hes lógon dídomen tou eínai kaì erotontes kai apokrinómenoi) – “o tema é o
ente mesmo, no qual nós indicamos, deixamos e fazemos ver, o ser, perguntando por
28 Met. Z 1, 1028 b 2 ss.
29
ele e respondendo em referência a ele”29. A (ousía), o ser do ente (a sua
entidade), é, no entendimento de Platão, a (idéa)30.
Da filosofia Aristóteles dá a seguinte indicação essencial:
(Est
in episteme ti he theorei to on he on kai ta touto hypárchonta kath’autó) – Há um certo
saber que mira com atenção o ente enquanto ente e aquilo que no ente subsiste
segundo ele mesmo. O Estagirita aponta a filosofia como uma (epistéme)
(theoretiké). A filosofia é (epistéme), isto é, um saber, no sentido
de uma compreensão, em que aquele que compreende entende de e se entende com
aquilo que está em questão. Ele se torna competente, jeitoso, com aquilo. E, assim,
chega a um pertencimento com aquilo. Ela é uma (epistéme) que se
caracteriza como (theoretiké), isto é, como capaz de dirigir o olhar para algo
e de, assim, manter em mira isto para o que olha. O que o saber filosófico tem em mira,
porém, não é algo de particular, alguma área ou setor ou região do real, mas é a
realidade no todo, o ente no seu ser, o ente enquanto tal, no todo:
Há uma ciência que considera o ente enquanto ente e aquelas propriedades que lhe competem enquanto tal. Esta ciência não se identifica com nenhuma das ciências particulares: de fato, nenhuma das outras ciências considera o ente enquanto ente de modo universal, mas, depois de ter delimitado uma parte do ente, cada uma estuda o que é concomitante a esta parte. Assim fazem, por exemplo, as matemáticas (Metafísica Gama 1003 a 20 – 26).
A filosofia, diz Aristóteles, tem em mira o ente enquanto ente - to
on he on), isto é, o ente na perspectiva do ser, o ente no todo. Ela é a investigação que
abre caminho e dá acesso ao ser. Em Aristóteles, a investigação filosófica acontece
segundo e seguindo o caminho ou método definido pelo fio condutor do (lógos)
– a lógica. A física apresenta o ponto de partida de investigação ontológica: a questão
29 Fedon 78 d 1 ss. 30 Sofista 254 a 8 s.
30
do movimento - (kínesis). Esta investigação avança na indagação da alma -
(psyché) – e, assim, se põe uma base para a indagação do ser com a ontologia da
vida - (zoé). Um novo campo se abre com a investigação da ontologia da vida
humana - (bíos) – na ética. Tudo culmina então na investigação do ente enquanto
ente - (on he on) – isto é, do ente na perspectiva do ser31. A filosofia, o saber
do ser, não é uma ciência particular. Não investiga esta ou aquela parte ou região do
ente (por exemplo, o ente móvel, o ente vivo, o ente humano). Ela não se restringe a
um âmbito específico de investigação. Antes, pelo contrário, ela investiga o ente no
todo, o todo do ente, o ente enquanto ente, ou seja, o ente enquanto tal e em geral, na
perspectiva do ser. É, pois, uma ciência universal. A filosofia é, pois, uma investigação
que pergunta, indaga, questiona, perscruta o ser: que é o que há de mais vasto, pois
abrange tudo; e o que há de mais profundo, por ser o fundamento a partir do que tudo
é e é aquilo que é. Este questionamento é, pois, não somente universal, mas também
radical, fundamental e ainda o mais originário.
Para Aristóteles, uma única questão definiu sempre o estudo do Pensamento Filosófico em tudo que ele pensa: a questão da realidade realizando-se nas realizações do rea. O primeiro capítulo do Sétimo Livro da Metafísica nos lembra: e assim, pois, o que tanto outrora, como agora, como em qualquer hora se procurou e nunca se encontrou uma saída, foi o questionamento da questão, o que é o ser de qualquer sendo...
Na Filosofia, o Pensamento se concentra em ser, todo e somente, o questionamento desta questão da essência de tudo que é. É desta atenção inveterada que a Filosofia recebe tanto sua especificidade irredutível como sua virtuosidade sem fim, como a temeridade incrível de sua pretensão. É aí também que aparece a exaustão e o limite insuperável de seu esforço de pensar.
Na avalanche da questão filosófica, tudo é levado de roldão pela tríplice radicalidade do questionamento. A envergadura do empenho de pensar se estica até as fronteiras do Nada e do não ser, cobrindo a totalidade do real. Toda a questão
31 Metafísica 1; 1;
31
filosófica se estende entre o ser e o nada. Por isso, não é possível escapar ao alcance de sua atropelada. Mas não se trata apenas de uma totalidade extensiva, apenas. É também o questionamento mais profundo do Pensamento. Pois não se contenta com muito. Quer tudo. Somente o satisfaz o último fundamento e o derradeiro porquê. O porquê do porquê não o atrai. É um marcar passo no mesmo nível. Por isso apenas um porquê é capaz de levá-lo à plenitude de seu viço interrogativo: o porquê que extingue a necessidade de outro porquê e abole a necessidade de ulterior questionamento. Com e por ser a mais extensa e profunda, a questão filosófica exige também um questionamento originário. É um questionamento matinal. Remonta à primeira manhã, “à aurora dos dedos de rosa” da aventura ocidental: aparecimento, comparecimento e desaparecimento contemporâneo da terra, do homem, do mundo e do céu: dia e noite da história do ocidente32.
A filosofia investiga o ente enquanto tal no todo tendo em mira as
(prótai archaí kaì aitíai). O que ela perscruta são os primeiros
princípios e as primeiras causas do ente no todo, em geral. Aqui não podemos ainda,
porém, esclarecer o que os gregos, mormente Aristóteles, entende por
(prótai archaí kaì aitíai) – os primeiros princípios e causas do
ente. Deixemos esta discussão para mais tarde.
2.2.5. AS FASES DA FILOSOFIA GREGA
O que comumente chamamos de “filosofia grega” se desdobra do século VII a. C.
até o século VI d. C. A envergadura de seu arco, portanto, encobre cerca de mil anos. A
filosofia medieval também tem esta longa duração, de cerca de mil anos (do séc. V ao
32 Leão, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a Pensar I: o pensamento na modernidade e na religião. Teresópolis-RJ: Daimon Editora, 2008, p. 159.
32
século XV). A filosofia moderna, por sua vez, tem se estendido por cerca de 500 anos até
agora.
O desenvolvimento da experiência grega do pensar na filosofia atravessou 3 ou
4 fases.
1) O período originário – o pensamento que pensa (perí phýseos)
– em torno da (phýsis): de 600 a 450 aproximadamente, em regiões
periféricas, na Ásia Menor e nas colônias itálicas-sicilianas.
2) O período clássico – a investigação filosófica sobre o Todo se centra na
interrogação do ser do homem. O ser se restringe. A (phýsis) aparece
não mais como o Todo, mas sim como uma parte, um âmbito da realidade.
Cisão do todo (irrupção do pensamento metafísico): de 450 a 300
aproximadamente. Sofística, de um lado; Movimento Socrático, de outro
lado. Centralização em Atenas.
3) O período helenista I – a investigação filosófica se torna prática. Escolarização
e disciplinarização da filosofia. Centralidade da ética. Estoicos, epicureus e
céticos.
4) O período helenista II – a investigação filosófica se torna especulação
religiosa. Neoplatonismo. Comentários aos textos dos filósofos clássicos.
Entrada da especulação teológica cristã (patrística).
Os dois últimos períodos podem ser circunscritos num lapso de tempo que vai,
aproximadamente, do final do século IV, com a fundação de Alexandria em 331 a. C. até
o edito de Justiniano que fecha a Academia de Atenas em 529 d. C.
Antes, porém, de apresentarmos estas fases façamos uma consideração breve
sobre a dinâmica dos endereços de pensamento na filosofia.
A um primeiro olhar a história da filosofia é uma contínua divergência e
contradição entre os filósofos. Onde um diz sim, outro diz não. A filosofia, assim, se
apresenta numa pluralidade de pensadores e autores, de escolas e correntes
divergentes e, não raro, contraditórias. Por isso, há filosofias para todos os gostos.
33
Parece ser próprio dos filósofos o contradizerem uns aos outros e próprio do filósofo o
contradizer-se a si mesmo. Isso é o que aparece – à primeira vista.
Mas, se pensarmos bem, para haver divergência de opiniões é preciso que os
divergentes estejam falando da mesma coisa. Se estivessem falando de coisas diversas,
como poderiam divergir? Para que, num diálogo, haja convergências e divergências, é
preciso que se esteja falando do mesmo. Assim, todo o falar e dizer dos filósofos
acontece a partir do e sobre o mesmo. Esse mesmo, porém, nunca aparece como o igual.
Oferece-se numa inesgotável riqueza de diferenciações. O que é este mesmo? Aquilo
em torno do qual o pensamento filosófico se mantém e se detém: aquilo que é – o ente
no todo; o real em sua realidade; os gregos diriam: (tò ón).
A filosofia é um contínuo diálogo em torno disso: do “o quê” é o que está sendo
– o ente no todo, a realidade do real. A filosofia perene consiste justamente na
perenidade deste diálogo. Esse diálogo é a grande viagem do Pensamento pelas vias da
linguagem. A cada pensador é dado percorrer um caminho – o seu. Cada caminho pelo
qual o Pensamento se envia torna-se um endereço singular. Mas os caminhos se cruzam
e se reúnem como pertencentes à viagem do Pensamento e como participantes do
grande diálogo. O desafio de cada endereço é o de manter vivo o contínuo e diuturno
questionamento de forma mais pura e radical possível, pensando não somente as
posições e oposições, mas também as suposições, sejam alheias, sejam próprias. O vigor
do pensamento implica, pois, em aprender a pensar contra si mesmo.
Os filósofos, assim, estão inseridos em um diálogo ininterrupto com seus
antecessores e sucessores. Pode-se perguntar: se a filosofia busca a verdade, e se a
verdade é una, como pode se desenvolver uma multiplicidade de tantas filosofias? A
esta pergunta Hegel oferece uma resposta dialética: “a verdade não é as partes; as
partes são passagens de que necessita a verdade para chegar a si mesma no todo. A
verdade é o todo. Por ser e para ser o todo, a Verdade possui a tendência de se
desenvolver e se desenrolar nas peripécias de uma dialética, formando um fluxo de
crescimento, o curso da História”33.
33 Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia grega: uma introdução. Teresópolis: Daimon, 2010, p. 13.
34
Neste diálogo entre as filosofias da Filosofia, a mera crítica, isto é, a crítica no
sentido usual, corriqueiro, de indicar erros, apontar deficiências, denunciar falhas, é
insuficiente. Fica aquém do nível em que se move o pensamento. É que uma crítica assim
mantém fixos os critérios ou os parâmetros a partir dos quais julga. Por isso, não é
propriamente filosófica. O vigor do pensar, porém, consiste em pôr em questão todo
critério e todo parâmetro de julgamento. E, no entanto, há uma crítica filosófica. Esta se
dá no sentido originário da palavra “crítica”, que vem de (krínein): separar e
distinguir, para dirimir uma contenda, um litígio. O correspondente latino é cernere:
passar pelo crivo, peneirar, separar; distinguir, discernir, ver claramente, perceber,
compreender.
A crítica filosófica é, pois, um empenho de ver claramente aquilo que está em
questão no diálogo. Ela procura exercer a distinção entre o essencial e originário do que
é apenas acidental e derivado. Por isso, ela nunca é uma crítica meramente negativa.
Mesmo o que ela traz de negativo se exerce a partir do positivo. Fundamentalmente,
ela é uma crítica positiva. No exercício da crítica filosófica recusa-se posições de
problemas que são confusas e mal esclarecidas, tentando-se mostrar a autêntica esfera
da colocação dos problemas. Sua meta é positiva: procura ver e trazer à visão as
genuínas, verdadeiras origens da vida do espírito em geral, as intuições e experiências
filosóficas que podem, ao ser examinadas, conduzir aos genuínos campos de problemas.
Nesta crítica os critérios não podem ser fixos. O critério não pode ser outro que
a evidência compreensiva e a compreensão evidente das coisas mesmas em questão.
Assim, a crítica filosófica nunca é mera refutação nem é apresentar contraprovas. A
confrontação do pensamento se dá como um diálogo em que todo caminho de
pensamento procura ex-plicar-se com outro caminho de pensamento. Esta
confrontação, no sentido do ex-plicar-se com é a única maneira de honrar um pensador.
É o modo mais elevado de se considerar e levar a sério um pensamento. Cada posição,
cada proposição, neste sentido, precisa ser entendida no seu contexto, a partir de onde
ela emerge, segundo o seu sentido, a partir de suas motivações e de suas tendências. As
motivações autênticas devem ser discernidas, assim, em relação às motivações não
autênticas. Autênticas são aquelas que buscam a verdade por causa da verdade e se
atém às coisas mesmas em questão e às suas evidências. O que se há de ter em vista,
35
sempre, é o mostrar-se dos fenômenos, isto é, das coisas mesmas em questão. A coisa
mesma da filosofia, porém, em última instância, é a realidade mesma. “Ex-plicar um
pensamento é deixar surgir a profundeza de suas implicações com o real, é fazer emergir
a vitalidade de sua a-plicação às realizações e assumir o vigor de suas complicações com
a realidade”34.
A fala de um pensador, porém, não se insere somente no contexto fático de uma
situação imediata. Ela não é somente a fala de um passado que passou e que hoje não
é mais. O pensamento do passado tem uma vigência latente no presente e que, na
verdade, está sempre porvir, é sempre futura. Neste sentido não há, na história do
pensamento, nem antecessores nem sucessores, como disse certa vez Hegel. Uma obra
de pensamento, neste sentido, não é a obra de certa hora apenas. É uma obra para
todas as horas, em que está em questão aprender a pensar. E, neste diálogo para além
do contexto imediato, o que uma obra diz vai além daquilo que o autor quis dizer.
Pois, toda obra criadora, caso seja realmente criadora, isto é, uma obra, que nos liberte a capacidade de pensar, transcende sua própria filosofia, ultrapassa seus próprios parâmetros, remetendo-nos para fora e para além da posição fundamental emq eu ela mesma se planta. O único sentido de uma obra filosófica é precisamente rasgar novos horizontes, é desencadear novos impulsos, é instaurar novo princípio em que os recursos, os caminhos e padrões da obra se apresentem superados e insuficientes, se mostrem exauridos e ultrapassados pelo novo nascimento histórico. Instituindo novos parâmetros de questionamento, uma obra de pensamento cria novas regras de leitura.
Retornemos, pois, às fases do pensamento grego.
2.2.5.1. O período originário (cerca de 600 a 450 a.C.)
34 Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia grega: uma introdução. Teresópolis: Daimon, 2010, p. 14.
36
Nos séculos VIII-VII a. C. emergiram três princípios de ordem no mundo grego
que transformaram os fundamentos de toda a existência histórica: o princípio universal
das trocas de poder, a Cidade; o princípio universal das trocas de símbolo, o alfabeto; e
o princípio universal das trocas de bens e serviços, a moeda35.
O século VII é marcado pelo surgimento dos primeiros filósofos: Tales,
Anaximandro, Anaxágoras, Anaxímenes, Heráclito, filósofos da Jônia, colônia grega na
Ásia Menor; Parmênides e Zenon, filósofos da colônia grega itálica de Eléia; e Pitágoras
de Samos. Também nesse século surgem os Jogos Olímpicos e a poesia lírica, tendo Safo
e Alceu como principais nomes. No século seguinte, Píndaro irá se destacar nesse gênero
de poesia.
Na aurora do século VIII aparece a (Pólis). A pólis é o lugar, a dimensão,
em que se dá o acontecer histórico do povo grego. A ela pertencem os deuses, os
templos, os sacerdotes, as festas, os jogos, os poetas, os pensadores, os governantes, o
conselho dos anciãos, a assembleia do povo, o exército dos guerreiros, os navios. Cada
qual tem sua função. A cada qual, a partir desta função, está confiado o cuidado e a
responsabilidade com o todo da pólis. Cada qual precisa responsabilizar-se pelo
acontecer histórico de modo concriativo. Todos são, nesta experiência criativa de
convivência, em que se dá a distribuição do poder, fundadores da convivência, da vida
comum, da realidade pública. A pólis é uma experiência criativa de fundar convivência,
isto é, (comunhão-comunidade). Ela é uma instituição que estrutura o viver
comum a partir da liberdade, isto é, da corresponsabilidade de todos os cidadãos,
aqueles que acedem à (politéia), à cidadania. A ideia da pólis – e aqui trata-se
apenas de apresentar a construção da ideia sem analisar em que sentido e em que
medida esta ideia se concretizou faticamente – é a do lugar ou espaço de convivência
em que um povo como um todo se torne soberano e livre. Soberania e liberdade, no
entanto, são uma tarefa sempre em aberto, infinita, algo por se conquistar, sempre de
novo. A (Pólis) não é um “quê”, mas sim um “como”. É tarefa de libertação para
a liberdade. É tarefa de integração das diferenças e da igualdade no seio de uma
identidade comum. A (politéia) é o exercício do modelo democrático. Trata-
35 Cf. Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia grega: uma introdução. Teresópolis: Daimon, 2010, p. 39.
37
se daquele modelo em que a soberania está no direito e o exercício do poder está na lei.
“Pois a democracia não é a tirania da maioria. A democracia é o reconhecimento e a
preservação dos direitos de todos numa ordem universal da lei pelo governo da
maioria”36.
Os primeiros pensadores, que surgem na periferia do mundo grego, na Ásia
Menor e nas colônias itálicas e sicilianas, no século VI a. C. estão em tensão constante
com a cultura tradicional grega, com o mito e a mitologia, com a poesia, com a religião,
com a política, com a educação do povo grego. Em virtude da autonomia do
pensamento, exercem um papel crítico em relação à verdade e não verdade da
existência grega, denunciando a miopia da consciência vigente. O pensamento se impõe
com uma força revolucionária nesta tensão. Os pensadores indicam, com suas vidas,
palavras e obras, que não há liberdade sem libertação nem libertação sem exercício do
pensamento. Indicam, ainda, que não há formação sem transformação a partir do
exercício do pensar. Qualquer reforma deforma sem a transformação do pensar.
Quando a (Pólis) abdica do pensamento, de sua função autônoma, libertadora,
crítica, ela se defasa. Os pensadores surgiram, neste sentido, como questionadores da
inércia de pensamento, que tendia a dominar na (Pólis) grega. No exercício desta
crítica, os pensadores “buscavam desinstalar a consciência de uma luz sem sombras, de
uma verdade sem mistério, de um dia sem noite, de uma vida sem morte”37. O
pensamento guarda, assim, a recordação do vigor do trágico na existência humana.
Porém, trágico não significa, aqui, uma concepção da vida ou uma visão de mundo
pessimista, própria de uma existência torturada pela impotência. Trágico é o pensar à
medida que o ser se revela como o jogo e o combate entre a luz e a escuridão, o dia e a
noite, a diferença e a identidade dos seres. Trágico é o homem à medida que se
autoconstitui em sua humanidade a partir daquele jogo e dá consistência e fisionomia à
sua existência suportando e se expondo àquele combate. Trágica é a existência à medida
que ela se dá e acontece, se projeta e se realiza, nas tensões e peripécias daquele jogo
e combate, na correspondência aos poderes misteriosos da realidade.
36 Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia contemporânea. Teresópolis: Daimon, 2013, p. 185. 37 Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia grega: uma introdução. Teresópolis: Daimon, 2010, p. 111.
38
Este primeiro período da experiência grega de pensamento chamada de filosofia
vamos chamá-lo de originário. Aqui o pensar consiste em acolher a irrupção da realidade
nas realizações do real. Esta irrupção da realidade foi chamada de Physis). Por
isso, Aristóteles chamou os pensadores deste período de “physio-lógoi”, aqueles que
pensam e discorrem a respeito da “Physis”. Os latinos traduziram “physis” por “natura”.
Nós traduzimos “natura” por “natureza”. Mas nós entendemos, normalmente, natureza
como uma região de ser, a saber, a região de ser dos entes não humanos: os corpos, os
seres vivos, sejam plantas, sejam animais. No entanto, no pensamento da origem a
“Physis” nomeava tanto o todo daquilo que é (o ente no todo), como também o ser
deste todo.
Os pensadores da origem pensaram a partir da admiração (thaumádzo) com a
“Physis”. Fizeram a experiência de seu mistério. Mistério é o que se dá e, ao mesmo
tempo, se subtrai; se des-vela e ao mesmo tempo se re-vela. Por isso é que Heráclito
disse: “ − phýsis krýptesthai phýlei – a natureza ama esconder-
se. A natureza, isto é, a dinâmica de irrupção da realidade, que deixa e faz ser o
surgimento e o desencobrimento das realizações do real como um todo, ama, gosta de
retrair, tende ao encobrimento”38.
Os pensadores dos primórdios que pensaram mais radicalmente a irrupção
originária da realidade em seu jogo de desencobrimento e encobrimento foram
Anaximandro de Mileto, Heráclito de Éfeso e Parmênides de Eleia39. Vamos chamá-los
de pensadores originários.
Alguns pensadores deste tempo, porém, em vez de se concentrar em pensar a
Physis como ser do ente no todo, se empenharam praticar a hystoria (investigação,
pesquisa), com o escopo de produzir conhecimento positivo sobre os entes, à luz da
compreensão da Physis. Nesta direção é que se movimentou, por exemplo, o
pensamento dos milésios Tales, predecessor de Anaximandro, e de Anaxímenes, seu
sucessor. Nesta mesma direção se encaminhou o pensamento de Pitágoras de Samos.
38 Cfr. Leão, Emmanuel Carneiro & Wrublewski, Sérgio Mário (Tradutores), os Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 90-91. 39 A escola eleática foi fundada pelo jônio Xenófanes, que se fixou na colônia de Eléia, no sul da Itália. A ele seguiu Parmênides. A terceira geração tem como destaque Zenão e Melisso de Samos.
39
Segundo Heráclito40, Pitágoras foi de todos os homens o que mais hystoria praticou. Este
foi o que primeiramente denominou o todo do ente de kósmos, em homenagem à sua
beleza e à ordem que nele impera, à sua proporção inteligível e harmônica. Embora jônio
de origem, ele viajou ao Egito (onde familiarizou-se com o saber matemático e
astronômico oriental) e criou uma thíase (fraternidade consagrada às Musas) em
Crotona, na Magna Grécia (colônias dóricas do sul da Itália).
Enquanto Anaximandro, Heráclito e Parmênides são pensadores ontológicos (do
ser), os demais são investigadores e pesquisadores ôntico-positivos (dos entes já
desvelados). O que hoje chamamos de ciência é, fundamentalmente, o conhecimento
objetivo, funcional, ôntico-positivo. Por isso, nós tendemos a ver nestes pensadores
ôntico-positivos os fundadores da ciência no ocidente. A dificuldade de pensar,
penetrando no mistério do ser, acaba levando o pensamento a se deter no ente e a
buscar produzir conhecimento positivo, por meio da hystoria, isto é, da pesquisa. Nesta
mesma direção se encaminha também a pesquisa da multiplicidade do ente mutável na
segunda fase deste primeiro período da filosofia grega, com Empédocles, Anaxágoras e
a atomística (Demócrito). O pensamento se torna, aqui, etiologia (aitiología), busca da
razão suficiente do todo do ente, da aitia (causa, no sentido da coisa originária – Ursache
– que responde pelo surgimento do ente no todo). O ser do ente é procurado como um
fundamento estável da mudança das coisas. Este fundamento é encontrado nos
elementos (stoicheía) ou raízes (rizómata) das coisas. É a partir deles que se descobre a
relação estável de mistura e de separação entre as coisas. Nesta etapa, não obstante se
aprofunda na estrutura do ente, não se penetra no sentido do ser como tal. A
preocupação do pensar não é tanto com o ser como tal, mas com o ente e sua entidade
e com o conhecimento do ente.
2.2.5.2. O período clássico (de 450 a 300 aproximadamente).
40 Diógenes Laércio VIII, 6.
40
O segundo período do desenvolvimento do pensamento na Filosofia Grega é o
clássico. A terra desta filosofia é a Ática, especialmente Atenas.
No século VI, Sólon, o primeiro poeta ático, tornando-se arconte de Atenas (594
a.C.), promulga uma constituição, cujas leis inauguram a democracia. A poesia trágica,
que tinha sido inventada no século anterior, por ocasião do festival de Dionísio (534 a.C),
toma o primeiro plano, na obra de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. Irrompem guerras que
irão assolar o mundo grego. Primeiramente, vieram as Guerras Médicas ou Greco-
Pérsicas, ou seja, os conflitos bélicos entre os gregos e os persas pelo domínio da Jônia
e do Mar Egeu. Após diversas batalhas, cujas vitórias se alternavam, finalmente, os
gregos conseguiram banir a ameaça persa, liderados por Atenas e Esparta. Em meio às
guerras médicas, Atenas foi liderada por Péricles. Este discípulo de Anaxágoras tentou
retomar e consolidar a experiência da democracia ateniense. Com ele, a cidade de
Atenas ganha um esplendor até então desconhecido, sendo embelezada pela
arquitetura de Ictinos e Calícrates e pela escultura de Fídias. As ruínas da Acrópole são,
ainda, testemunhas do esplendor desse mundo que logo se retraiu e caiu em
decadência.
Com efeito, após afastar o perigo persa, os gregos se dividem e entram em
conflito, articulando-se em torno dessas duas cidades-potências, Atenas e Esparta.
Irrompe, assim, a Guerra do Peloponeso, que durou de 431 a 404 a.C e que terminou
com a derrota de Atenas. No ano de 406, após uma vitória, os comandantes Atenienses,
coagidos por uma borrasca, deixa insepultos os corpos dos soldados atenienses mortos
na batalha. Este fato provoca a ira do povo. E o tribunal ateniense condena à morte os
comandantes mais valorosos do exército daquela cidade. Como se não bastasse, a
cidade fica dividida por facções, que lutam entre si.
Nessa época, o mito perde o poder de conduzir os homens em sua relação com
o Todo. A religiosidade, privada de espírito, se dissolve e decai em meras práticas
exteriores e em crenças supersticiosas.
Em meio a tudo isso, soa a hora dos Sofistas, cujos nomes mais célebres foram
Protágoras e Górgias. Com a sofística temos a passagem do primeiro para o segundo
41
período41. O desenvolvimento da democracia depois das guerras persas não se limitou
a abrir ao indivíduo novas vias de participação na comunidade, mas pretendeu ao
mesmo tempo uma formação cultural superior e mais segura, para o que se necessitou
de professores: os sofistas. Eles ensinavam sobretudo a forma por excelência da
atividade pública: a arte do discurso com vistas a persuadir, a retórica. Esta era útil não
só nas assembleias populares, nas
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