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Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
DE “RAZÕES DE GÊNERO” A “RAZÕES DE CONDIÇÃO DO SEXO
FEMININO”: DISPUTAS DE SENTIDO NO PROCESSO DE CRIAÇÃO DA
LEI DO FEMINICÍDIO NO BRASIL
Clara Flores Seixas de Oliveira1
Resumo: Esta pesquisa analisa o processo de criação da Lei nº 13.104/2015, que inseriu a categoria
feminicídio no código penal brasileiro, como uma modalidade de homicídio qualificado. Proposta
pela CPMI que investigou a situação da violência contra a mulher no país, esta lei foi fruto de uma
construção coletiva de ONGs e movimentos feministas, órgãos do executivo, organizações
internacionais, grupos acadêmicos e setores do sistema de justiça. Seguindo uma tendência
internacional, o projeto de lei inicial definia o feminicídio como a forma extrema de violência de
gênero que resulta na morte da mulher, selecionando determinadas circunstâncias que caracterizam
este crime e o diferenciam dos demais homicídios. No decorrer do processo legislativo, contudo,
houveram algumas alterações no projeto inicial, que revelam processos de disputa em torno do
alcance e do significado das categorias contidas na lei. Este artigo apresenta algumas reflexões
sociológicas em torno das disputas de sentido que se deram neste processo, com ênfase na transição
de “gênero” para “sexo”, operada a partir de uma “emenda de redação”, na Câmara de Deputados.
Toma-se como aporte as diversas teorias feministas que discutem a distinção sexo/gênero, a
literatura específica sobre femicídio/feminicídio e os crimes de gênero, considerando também as
especificidades da atual conjuntura do Congresso Nacional brasileiro, em que o gênero – traduzido
pejorativamente como “ideologia de gênero” – figura como verdadeiro tabu.
Palavras-chave: Feminicídio. Criação de lei. Disputas de sentido. Sexo e gênero.
INTRODUÇÃO
Em março de 2015, foi sancionada no Brasil a Lei nº. 13.104, que inseriu a categoria
feminicídio no código penal como uma nova modalidade de homicídio qualificado. O projeto de lei
(PL) tipificando o feminicídio foi uma das proposições da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito
(CPMI) criada em 2013 para investigar a situação da violência contra a mulher no país, e o processo
de elaboração da lei envolveu diversos setores, como órgãos do executivo e do sistema de justiça,
organizações internacionais, pesquisadoras, ONGs e movimentos feministas. Ao aprovar a lei, o
Brasil segue orientações expressas das Nações Unidas e acompanha uma tendência internacional de
tipificação do feminicídio, sobretudo no contexto da América Latina.No decorrer do processo
legislativo, houveram algumas modificações no texto da lei, quanto à definição de feminicídio e das
circunstâncias que o identificam, além da introdução de algumas causas de aumento de pena.
1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência Sociais da Universidade Federal da Bahia, Salvador.
Pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Crime e Sociedade (LASSOS/UFBA).
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Destaca-se a substituição, no plenário da Câmara de Deputados, da expressão “razões de gênero”
por “razões de condição do sexo feminino”.
Apresento aqui as primeiras análises daminha pesquisa de mestrado, que tomou como objeto
de investigação sociológica o processo de criação da lei do feminicídio, buscando compreender
como o sistema político recepcionou, traduziu e processou a demandapela tipificação do
feminicídio e como, no decorrer do processo de elaboração da lei, foram construídos sentidos em
torno das categorias legais. Para este trabalho, o objetivo é discutir algumas disputas de significado
que se deram neste processo, com ênfase na transição de gênero para sexo.
Os métodos utilizados foram análise documental e entrevistas qualitativas. O corpus
empírico foi composto basicamente de documentos legislativos referentes ao processo de tramitação
da lei, como o relatório final da CPMI da Violência contra a Mulher, o PL e seus substitutivos; os
pareceres; as notas taquigráficas das discussões em plenário e em audiência pública etc. Foram
realizadas 12 entrevistas qualitativas semiestruturadas com interlocutoras que participaram do
processo de criação da lei, sendo 5 parlamentares (3 deputadas e 2 senadoras); 3 militantes
feministas; 2 pesquisadoras do tema e 2 juristas do sistema de justiça. A utilização da entrevista
como método de pesquisa parte da compreensão de que, embora o processo legislativo seja, a priori,
de ordem pública e documentado, existem nuances que não se deixam apreender pela leitura dos
documentos oficiais, sendo necessário combinar a análise documental com outros métodos para ter
uma melhor visão do processo. Quanto aos compromissos éticos da pesquisa, ressalto que foi
assinado termo de consentimento livre e esclarecido e garantido o anonimato a todas as
participantes, de modo que estas são identificadas, neste trabalho, pela categoria a que pertencem
(parlamentares, militantes etc.) seguida por letras (A, B, C etc.).
É importante explicitar que todas as pessoas entrevistadas são mulheres e que têm, em maior
ou menor grau, um histórico de atuação voltada para as questões de gênero e de combate à violência
contra as mulheres. Tentei agendar entrevistas com parlamentares que se posicionaram contrários à
lei e que apresentaram contrapropostas, porém não obtive sucesso. Assim, as minhas entrevistadas,
embora falem desde lugares diferentes, de experiências profissionais e de vida diversas, são pessoas
que compartilham de alguns sentidos e visões de mundo comuns quanto aos problemas enfrentados
nessa pesquisa. Nos documentos, por outro lado, consigo ouvir vozes que não compartilham
necessariamente esses sentidos.
A PRODUÇÃO DE SENTIDOS EM TORNO DO FEMINICÍDIO
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Não cabe, nesta exposição, falar sobre o surgimento do conceito de feminicídio e as suas
diferentes acepções. O que nos interessa aqui é perceber como, no decorrer do processo político de
elaboração da lei no Brasil, são construídos significados em torno desta categoria. Varikas (2016,
p.26) diz que “as ideias, quando viajam, emprestam itinerários manifestamente mais tortuosos e
imprevisíveis do que os humanos”. Assim, busco acompanhar a viagem percorrida pela palavra
feminicídio pelo parlamento brasileiro, até chegar à formulação final do texto legal, para perceber
como se dá o processo de construção de sentidos, ou, como propôs Jenness (1999) no seu estudo
sobre crimes de ódio no congresso norteamericano, as formas como determinadas ideias são
montadas, reunidas, apresentadas e processadas dentro da arena da produção de leis.
Ao longo do relatório final da CPMI da violência doméstica (BRASIL, 2013), tomado como
marco inicial desta viagem da palavra feminicídio, pode-se encontrar diferentes concepções de
feminicídio, como: “o assassinato de mulheres pelo fato de serem mulheres” (p.7); “termo cunhado
para denominar a eliminação sistemática de mulheres” (p.975); “forma extrema de violência de
gênero contra as mulheres” (p.998); “mortes de mulheres baseadas no gênero” (p.564); “assassinato
relacionado a gênero” (p.1003); “instância última de controle da mulher pelo homem” (p.1003);
“prática [...] antecedida pela clássica ameaça ‘se não ficar comigo, não ficará com mais ninguém!’,
que compõe um sentimento de poder masculino.” (p.975); ou, apenas, “homicídios de mulheres”
(pp. 339; 341; 342). Da leitura do documento, então, depreendem-se entendimentos diversos do
feminicídio, que vão desde interpretações amplas, em que se toma como feminicídio qualquer
assassinato de mulheres; passando pela compreensão do feminicídio como fenômeno relacionado ao
gênero, até interpretações mais restritas, que parecem compreender como feminicídio apenas os
feminicídios íntimos, isto é, praticados no contexto de relações afetivas. De toda sorte, é possível
observar que expressões que compõem a semântica feminista – como gênero; (des)igualdade de
gênero; dominação masculina; sexismo; misoginia; patriarcado – são mobilizadas para conferir
sentido ao feminicídio e justificar a importância de ter um nome próprio para esse fenômeno.
No PL que se encontra ao final do relatório – PL do Senado nº. 292/2013 –, juntamente com
outros projetos relacionados à questão da violência contra a mulher, o feminicídio foi definido
como “a forma mais extrema de violência de gênero que resulta na morte da mulher”, quando
presentes alguma das seguintes circunstâncias: relação íntima entre vítima e agressor, prática de
violência sexual e/ou mutilação ou desfiguração da vítima. Nessa primeira operação de seleção de
significado, então, optou-se por vincular nominalmente o tipo penal à expressão ‘violência de
gênero’, seguindo o exemplo da lei mexicana (Ley General de Acesso de lasMujeres a uma Vida
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Libre de Violencia), que também definea violência feminicida como uma forma extrema de
violência de gênero contra as mulheres. As circunstâncias escolhidas para caracterizar este crime
estão em consonância com o diagnóstico apresentado pela CPMI, que afirma que a maior parte das
mulheres morre no contexto das relações afetivas e que, muitas vezes, a crueldade dos crimes se
inscreve nos corpos violentados das mulheres.
O PL foi enviado à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado (CCJ), onde,
após a realização de uma audiência pública, recebeu parecer favorável da relatora, acompanhado
por uma emenda substitutiva, que definiu o feminicídio como o homicídio “cometido contra a
mulher por razões de gênero”, compreendendo-se que há razões de gênero quando presentes
algumas das seguintes circunstâncias: violência doméstica ou família, nos termos da legislação;
violência sexual; mutilação ou desfiguração da vítima e/ou emprego de tortura ou qualquer meio
cruel ou degradante. A legislação de referência para a primeira circunstância é a Lei Maria da
Penha, que define violência doméstica e familiar contra a mulher como qualquer ação ou omissão
baseada no gênero que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico, dano moral ou
patrimonial, ocorridas no âmbito da unidade doméstica, da família, ou de qualquer relação íntima de
afeto (art.5º).
Ainda na CCJ, foi apresentada outra emenda, de autoria do senador Aloysio Nunes (PSDB-
SP), que, ao invés de tipificar apenas e expressamente o feminicídio, propôs a inserção de uma
circunstância qualificadora ampla para o crime de homicídio, quando cometido “por preconceito de
raça, cor, etnia, orientação sexual e identidade de gênero, deficiência, condição de vulnerabilidade
social, religião procedência regional ou nacional, ou por outro motivo torpe; ou em contexto de
violência doméstica ou familiar”. O argumento utilizado foi de que a proposta deveria ser ampliada
para abranger a proteção a crimes cometidos contra outros setores da sociedade que também se
encontram desprotegidos pela legislação defasada. A proposta, contudo, não foi bem aceita pelos
setores empenhados na aprovação da lei, que a encararam como uma forma de resistência à
necessária visibilização específica do feminicídio e acentuaram a necessidade de ter a palavra no
código penal:
[...] o que se discutiu na época é que essa proposta novamente colocaria na
invisibilidade a questão do gênero, que era o que se queria desde o início que
fosse trabalhado com o nome feminicídio. O que tava em questão não era um
aumento de pena, ou um agravamento da pena para a morte de mulheres pro
homicídio de mulheres, mas que se pudesse associar o nome feminicídio à
violência decorrente da desigualdade de gênero e que isso era importante constar
no texto legislativo. E a proposta do Aloysio fazia justamente com que isso se
perdesse novamente, né, não haveria um nome pra chamar essa violência, e
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gênero se diluiria aí novamente junto com as outras categorias de diferença
social, de discriminação e diferença social. Então foi bastante debatido na época
por essa razão, e se fixou muito a importância de se adotar o nome. O nome,
desde sempre, foi muito importante [...]. (Pesquisadora A, entrevista, 2017).
A importância dada ao ato de nomeação – através da legislação, veículo por excelência de
produção de discursos oficiais – do assassinato de mulheres enquanto feminicídio nos remete a
Bourdieu (1998, p.142), quando afirma que, diante da pluralidade de visões de mundo existentes, os
grupos sociais travam lutas simbólicas pela produção e imposição de uma visão de mundo legítima.
[...] o conhecimento do mundo social e, mais precisamente, as categorias que o
tornam possível, são o que está, por excelência, em jogo na luta política, luta ao
mesmo tempo teórica e prática pelo poder de conservar ou de transformar o mundo
social conservando ou transformando as categorias de percepção desse mundo.
Nesta disputa, prevaleceu a posição que garantia a inserção do termo feminicídio, sendo
rejeitada a emenda do senador Aloysio Nunes e aprovado o PL na CCJ nos termos do parecer. No
retorno ao plenário do Senado, foi apresentada uma nova emenda, que manteve a definição geral de
feminicídio e agrupou as circunstâncias “violência sexual” e “mutilação ou desfiguração da vítima”
sob a fórmula “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. A justificativa foi que essa
expressão abarca as duas circunstâncias, além de descrever “outras situações de violência de gênero
em que a mulher é discriminada ou tratada como mero objeto”. Foram adicionadas também causas
de aumento de pena, para os casos em que o crime for praticado durante a gestação ou nos 3 meses
após o parto; contra pessoa menor de 14 anos ou maior de 60, ou com deficiência, ouna presença de
descendente ou ascendente da vítima. Os objetivos das causas de aumento de pena seriam proteger a
vítima que se encontra em situação de vulnerabilidade e preservar a integridade psicológica da
família da vítima, sobretudo das crianças. Esta versão foi aprovada no Senado e, então, a matéria foi
remetida à Câmara de Deputados.
Por fim, no plenário da Câmara, o PL sofreu uma emenda de redação – emenda que visa
sanar vício de linguagem, incorreção de técnica legislativa ou lapso manifesto da proposição2 – que
substituiu a expressão “razões de gênero” por “razões de condição do sexo feminino”. Mas como a
palavra gênero, que esteve no centro da rede de significados que acompanhou as definições em
torno do feminicídio durante todo o processo de elaboração da lei foi excluída “aos 45 do segundo
tempo”, por uma emenda de redação, sem que houvesse maiores discussões sobre o tema? Para
entender melhor este processo, é necessário compreender um pouco a atual conjuntura do congresso
nacional brasileiro.
2 De acordo com o art. 118 do Regimento Interno da Câmara de Deputados.
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A “GENEROFOBIA” NO PARLAMENTO BRASILEIRO
Em 2014, no contexto de discussão no parlamento sobre o Plano Nacional de Educação
(PNE) – lei que institui as metas e diretrizes para a educação–, instaurou-se uma forte polêmica em
torno da menção às questões de gênero e sexualidade no texto legal. Setores assumidamente
conservadores, sobretudo ligados a igrejas católicas e evangélicas, articularam-se para barrar a
utilização da palavra gênero na lei, sob o argumento de estarem combatendo a “ideologia de
gênero”. Houve diversas mobilizações, com abaixo-assinados, distribuição de vídeos e cartilhas e os
termos acabaram sendo retirados do PNE, mas essa resistência à palavra gênero se estendeu a
diversos outros projetos de lei que tramitam na casa. Foi nesse contexto que se deu a retirada do
termo gênero da lei do feminicídio, em 2015. As parlamentares entrevistadas relatam este cenário,
descrevendo-o como uma “guerra contra a palavra gênero” ou como uma “generofobia”, uma “nova
fobia morfológica”.
As interlocutoras relatam que essa interdição à palavra gênero foi imposta pelo então
presidente da Câmara, o deputado Eduardo Cunha(PMDB-RJ), como uma condição para a
aprovação da lei: “[...] ele seria retirado de pauta, que foi assim a ameaça que o Cunha fez, ‘eu
retiro de pauta, não aprovo’.” (Parlamentar B, entrevista, 2017). A solução pela substituição de
gênero por sexo feminino teria sido, assim, fruto de uma negociação entre esses setores e a bancada
feminina, como forma de garantir a aprovação da lei.
A contínua resistência à palavra gênero levou à realização de uma audiência pública, em
agosto de 2016, especificamente para debater seus significados, solicitada pela Comissão de Defesa
dos Direitos da Mulher da Câmara de Deputados. O registro em áudio desta audiência, disponível
no site da Câmara, compôs o corpus empírico da pesquisa, sendo de fundamental importância,
tendo em vista que a retirada da palavra gênero, operada por uma emenda de redação em plenário,
não se encontrava justificada em nenhum documento referente ao processo legislativo da lei do
feminicídio. Como já explicitado, não pude entrevistar os parlamentares empenhados em retirar a
palavra gênero, logo, a análise deste documento pôde fornecer pistas acerca dos sentidos atribuídos
a gênero e a sexo por parte destes sujeitos e quais os objetivos pretendidos com essa retirada.
Busquei, então, analisar o corpus empírico guiada pelas seguintes questões: que sentidos ambos os
lados deste confronto atribuem às categorias de gênero e sexo? O que exatamente se está
negociando quando se negocia a substituição de gênero por sexo feminino?
O Padre Paulo Ricardo de Azevedo, na audiência pública sobre a palavra gênero, descreve o
processo através do qual a palavra sexo foi sistematicamente substituída por gênero, no contexto
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internacional, como um “[...] vírus que foi introjetado na agenda da verdadeira defesa do direito das
mulheres, de uma forma que ela foi raptada para fazer uma outra coisa, que é desconstruir a família
natural, nessa complementariedade de homem e de mulher que gera a vida [...]” (BRASIL, 2016). A
palavra gênero é vista como portadora de um significado oculto que revela um projeto de destruição
da família e de negação das diferenças sexuais entre homens e mulheres que sustentam a “família
natural”:
Numa aparente vontade de defender o direito da mulher, o que se estava fazendo
era uma outra coisa: destruir a família. E aqui que está a realidade, e aqui que está
o problema. Então querem defender o direito das mulheres? Façam o seguinte:
quando querem defender o direito das mulheres, usem a palavra ‘mulher’, usem a
palavra ‘sexo’, mas por que que os ideólogos e os militantes não vão aceitar que as
senhoras legisladoras coloquem a palavra mulher, coloquem a palavra sexo e não a
palavra gênero? Por que?! Porque a finalidade não é defender a mulher! A
finalidade é raptar a causa da mulher para uma outra agenda, uma agenda
escondida: a agenda de gênero. A agenda de destruição da família natural.
(ibidem).
É interessante notar como a oposição entre quem defende e quem contesta o uso da palavra
gênero é representada pela distinção entre “ideólogos e militantes” e “senhoras legisladoras”. Na
estratégia discursiva de deslegitimar o uso do gênero, a representação daqueles que são contrários à
palavra como defensores da família parece ser atualizada aqui na figura das “senhoras legisladoras”.
Essa identificação dos estudos de gênero como ideologia aparece também na fala do professor
DomênicoSturiale:
Me parece que esses estudos tenham um certo viés ideológico, por isso, é até certo
ponto justificável chamá-los de ideologia ou ideologias, quem sabe, de gênero.
Afinal de contas, o que é uma ideologia? É um sistema de ideias sem base
científica, sem suporte empírico experimental, que se apresenta como uma visão
abrangente, exaustiva da realidade, que tem um sonho, tem uma utopia, e quer
revolucionar o presente para chegar a essa utopia. [...] Na realidade, os estudos de
gênero não têm nenhuma evidência empírica experimental. Não só não têm, como
eles fazem questão de não ter né, que possa sustentar a teoria deles. E por que
fazem questão de não ter? Porque a maior parte deles tem uma procedência
foucaultiana, e o que que diz Foucault? Foucault diz que tudo é discurso, que não
há realidade, ou se há, não há como ter acesso a ela. Então, tudo se resolve no
discurso, na narrativa, e o discurso dos cientistas, falo dos cientistas das áreas
naturais, são os discursos a serviço de um sistema opressor, né. Então não adianta
eu aqui vir com pesquisas que demonstram, que coloquem evidências contra os
estudos de gênero. (BRASIL, 2016).
O professor utiliza, então, a distinção ciência/ideologia para diferenciar sexo de gênero. Essa
parece ser uma distinção central para esta maneira de observar o problema, visto que a expressão
“ideologia de gênero” é recorrente nos discursos contrários ao uso da palavra. Sendo um “sistema
de ideias sem base científica”, os estudos de gênero são compreendidos como uma ideologia a
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serviço de uma utopia de revolucionar o presente. Aqui, a ideia de ciência é identificada com um
paradigma das ciências naturais, como fica bem claro nos trechos: “suporte empírico experimental”,
ou, ainda, “falo dos cientistas das áreas naturais”. Às ciências humanas em geral parece ser negado
o próprio status de ciência. Essa distinção é retomada, embora de forma diversa, na fala da deputada
Soraya Santos (PMDB-RJ):
Nós temos alguns projetos de lei que precisam ser avançados, mas que acabam
esbarrando nessas questões de discussão ideológica e discussão ideológica que não
podem estar sendo tratadas aqui. Discussão ideológica tem que ser tratada lá na
universidade. Aqui nós temos que ter leis muito claras. (BRASIL, 2016).
Aqui, a identificação das questões de gênero enquanto ideologia é uma forma de justificar a
exclusão desse tema dos debates parlamentares, relegando-o ao espaço da universidade. Além de
representar um projeto de destruição da família, a “ideologia de gênero” também serviria para negar
as diferenças sexuais:
Então, em que acredita a ideologia de gênero? Acredita que a minha natureza, o
meu sexo, não sejam importantes para definir a minha identidade, minha orientação
ou opção sexual, e acredita também que a diferença sexual entre homem e mulher
não seja importante, necessária, fundamental, condição sinequa non para a
constituição de uma família [...].(ibidem, fala do Professor DomênicoSturiale).
Nessa fala, é possível identificar aproximações nos sentidos de gênero atribuídos pelos lados
opostos desta “polêmica”. De fato, para aqueles setores que defendem a utilização da categoria
gênero, biologia não é destino; logo, o sexo biológico do nascimento não vincula a pessoa à
identidade ou à orientação sexual, assim como a família não é vista como necessariamente
composta por homens e mulheres. Contudo, neste outro trecho, é possível observar uma distorção
dessa ideia:
Então esse tipo de estudos mais recentes, criticam tudo que é considerado natural
ou normal, e exaltam todo tipo de sexualidade diferente da heterossexualidade.
Então, exalta a homossexualidade, bissexualidade, panssexualidade, assexualidade,
intersexualidade, polissexualidade, né. Nessas outras formas de sexualidade, a
idade dos envolvidos, o número dos envolvidos, o gênero dos envolvidos, as
relações parentais dos envolvidos nestas relações sexuais, tudo isso não conta mais
nada. (ibidem).
Nesse trecho, há uma passagem de um reconhecimento da desvinculação do sexo biológico
à orientação sexual para uma crítica ou uma recusa à heterossexualidade, e uma identificação com
fenômenos como a pedofilia (“a idade dos envolvidos”) e o incesto (“as relações parentais dos
envolvidos”). Gênero é uma palavra que, a um só tempo, parece associada a todos esses aspectos:
destruição da família; pedofilia; incesto; negação das diferenças biológicas etc. Aqui, os sentidos
atribuídos a gênero parecem confirmar as previsões de algumas das entrevistadas, quando dizem
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que: “[...] na hora que você fala gênero, na cabecinha deles vem o quê? A população LGBT!”
(Jurista B, entrevista, 2017).
Por outro lado, nos discursos que defendem a utilização da palavra gênero, acentua-se o
caráter de construção social, cultural dos papeis tidos como masculinos e feminismos na sociedade,
em contraposição a uma noção puramente biológica das diferenças entre os sexos. Gênero aparece
vinculado a expressões como: regime político; estrutura de poder; relações desiguais de poder;
desigualdades estruturais; vivências generificadas; identidades de gênero, forma como a pessoa se
enxerga e quer ser vista. A violência fatal que atinge as mulheres deve ser entendida então, sob esse
ponto de vista, no marco destas relações sociais desiguais. O feminicídio é, portanto, uma violência
de gênero. É possível observar, na fala de algumas entrevistadas, a preocupação em distinguir o
gênero do sexo no contexto da motivação da violência sofrida pelas mulheres:
[...] que é difícil eles entenderem que nós não somos discriminadas porque
nascemos mulher. Nós somos discriminadas porque existe uma construção de
gênero que subalterniza a mulher. (parlamentar B, entrevista, 2017).
Não é por questão de sexo feminino, entendeu, a construção sobre nossos corpos,
essa construção social que coloca alguns corpos mais vulneráveis que outros é
maior que o sexo, né, em si... (militante A, entrevista, 2017).
Isto é, por essa forma de observar, a violência não é resultado da mera diferença biológica
entre homens e mulheres, mas justamente desta construção social em torno das diferenças. A
mulher que “morre por ser mulher” – fórmula muito utilizada para descrever o fenômeno do
feminicídio –, não é assassinada porque nasceu biologicamente mulher, mas porque vive num
contexto social em que vigoram relações de poder desiguais entre homens e mulheres. Aqui, a fala
das interlocutoras se alinha com as discussões teóricas que deram origem ao termo feminicídio: ao
fim e ao cabo, tratava-se de dar um nome próprio para este fenômeno como forma de situá-lo num
contexto de violência de gênero, conferindo a ele um sentido político. Ou, nas palavras de Diniz et
al. (2015, p.227): “nomear o marco político da matança”.
É interessante notar que aparece, nas falas de algumas entrevistadas, o argumento de que a
resistência à palavra gênero se deve ao fato das pessoas não saberem o significado da palavra, seria
uma palavra “amaldiçoada pela ignorância”, pela desinformação, pelo desconhecimento. Contudo,
contrariando essas expectativas, os discursos em oposição ao gênero na audiência pública fazem
referência a diversos teóricos: de Marx e Engels a feministas radicais norte-americanas, como Kate
Millet e Shullamit Firestone, chegando à filósofa contemporânea Judith Butler. Não seria exato
falar então, de uma ignorância ou completo desconhecimento do tema, mas mais propriamente de
uma interpretação diferente que se dá a esses escritos. Enquanto os “contrários à ideologia de
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gênero” são acusados de ignorância, estes acusam o outro lado de ocultar o verdadeiro significado
da categoria gênero.
O quadro abaixo apresenta a síntese de alguns sentidos associados à palavra gênero,
percebidos nos discursos contrários e a favor à sua utilização:
Quadro 1 - Sentidos de gênero
Contrários ao uso
A favor do uso
Ideologia
Vírus que roubou a agenda do verdadeiro direito
das mulheres
Destruição da família natural
Negação das diferenças sexuais
Desconstrução da heterossexualidade e de todas as
identidades
Livre-arbítrio, decisão fluída, líquida, transitória
Conceito
Construção social, cultural
Regime político
Relações desiguais de poder
Desigualdades estruturais
Atribuições associadas a papeis
Identidade de gênero, forma como a pessoa se
enxerga, como quer ser visto
É possível percebe que, salvo algumas aproximações, quando os parlamentares cristãos
negociam com a bancada feminina a substituição de gênero por sexo, as partes acordantes não estão
negociando a mesma coisa, posto que partem de significados diferentes. Alvarez (2014) relata como
o gênero serviu, para o campo feminista, como um “brindingdiscourse”, um discurso que “faz
ponte”, fornece uma gramática compartilhada e facilita as traduções feministas, possibilitando a
articulação das agendas com outros atores políticos. No caso do parlamento brasileiro, contudo, há
um movimento contrário: gênero se torna a palavra que ergue muros, que dificulta a tradução das
demandas. A discussão parlamentar se descola do debate sobre a pertinência ou não do crime de
feminicídio e sobre qual a melhor maneira de caracterizá-lo e toma a forma de uma polêmica que
parte da recusa irrevogável da utilização da palavra gênero.
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REFERÊNCIAS
ALVAREZ, Sonia E. Para além da sociedade civil: reflexões sobre o campo feminista. Cadernos
Pagu, 43, jan-jun. de 2014, pp.13-56. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-
83332014000200013&script=sci_abstr act&tlng=pt. Acesso em: 20 ago. 2016.
BRASIL, Congresso Nacional. Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher: Audiência Pública.
Tema: Significado da palavra “gênero”. 10 ago. 2016. (Arquivo Sonoro). Brasília: Câmara de
Deputados, 2016. Disponível em:
http://imagem.camara.gov.br/internet/audio/Resultado.asp?txtCodigo=57586. Acesso em: 02 jun.
2017.
BRASIL, Congresso Nacional. Diário da Câmara dos Deputados, ano LXX, nº.029, quarta feira,
04 de março de 2015. Brasília: Câmara dos Deputados, 2015. Disponível em:
http://imagem.camara.gov.br/diarios.asp. Acesso em: 10 fev. 2016.
BRASIL, Congresso Nacional. Relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito
criada “com a finalidade de investigar a situação da violência contra a mulher no Brasil e apurar
denúncias de omissão por parte do poder público com relação à aplicação de instrumentos
instituídos em lei para proteger as mulheres em situação de violência”. Brasília: Senado Federal,
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From “gender reasons” to “female sex’s condition reasons”: disputes of meaning in the
creation process of the femicide’s law in Brazil
Abstract:This research analyzes the creation process of the femicide’s law (nº 13.104/2015), that
placed the “femicide” category in the brazilian criminal code, as a modality of qualified homicide.
Proposed by the parliamentary committee that inquired about the situation of violence against
women at the country, this law was the result of a collective construction of feminists NGO sand
movements, government and judiciary agencies, international organizations and academics groups.
Following an international trend, the original bill defined femicide as the extreme form of gender
violence tha tresults in the woman’s death, determining the circumstances that characterize this
crime and distinguishhes it from other homicides. However, in the course of the legislative process,
there have been some changes in the initial bill, which reveal processes of dispute over thes cope
and mening of the categories contained in the law. This article presents some sociological
reflections on the disputes of meaning that have occurred in this process, with emphasis on the
transition from "gender" to "sex", operated from an "editorial amendment" in the Chamber of
Deputies. The feminists theories that discuss the sex/gender distinction and the specific literature
about femicide and gender crimes are taken into account, as well as the specificities of the current
12
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Brazilian Congress, where the gender - pejoratively converted into "genderideology" - figures as a
real taboo.
Keywords: femicide; lawmaking; disputes ofmeaning; sex andgender.
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